Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1152/15.0T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: RECURSO
LEGITIMIDADE
INTERVENIENTE ACESSÓRIO
Nº do Documento: RP201905221152/15.0T8VFR.P1
Data do Acordão: 05/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: CONFIRMA O DESPACHO RECLAMADO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO,(LIVRO DE REGISTOS N.º696, FLS.78-96)
Área Temática: .
Sumário: I - O direito de recorrer é apenas atribuído, em princípio, a quem for parte e lhe advier um prejuízo directo e efectivo da decisão, ou seja, se dela resultar um prejuízo actual e positivo, no sentido de impor responsabilidades ou implicar a imediata afectação de direitos ou interesses juridicamente tutelados.
II - Assim, o interveniente acessório, para além da situação especial prevista no artigo 329.º do CPCivil (quando o assistido for revel), só tem legitimidade para interpor recurso quando demonstre que a decisão o prejudicou directa e efectivamente, situação que não se verifica quando pretenda apenas interpor da decisão final em que o chamante, como réu, é condenado no pedido indemnizatório formulado pelo autor.
III - É que a intervenção acessória visa apenas impor ao chamado os efeitos do caso julgado da acção, de modo a que não seja possível (nem necessário), que na subsequente acção de regresso que vier a ser proposta pelo réu contra o chamado se voltem a discutir as questões já decididas no anterior processo enquanto elemento condicionante ou prejudicial da existência do direito de regresso ou indemnização, ou seja, os pressupostos concernentes à existência e ao conteúdo do direito à indemnização da titularidade do autor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1152/15.0T8VFR.P1-Reclamação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira-J3
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, residente na Rua …, nº .., Santa Maria da Feira, instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra C…, S.A., - actualmente, D…, S.A., peticionando a condenação da Ré pelos danos sofridos por causa e na decorrência do sinistro ocorrido em 16 de Agosto de 2012, no total de 172.292,56€.
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Devidamente citada, contestou a Ré, alegando uma versão distinta na ocorrência do sinistro, designadamente ter sido o Autor que, sem nada que o fizesse prever, se atravessou à frente do veículo do segurado na Ré, invadindo-a, em passo apressado, quando o veículo seguro se encontrava a 4/5 metros do local em que aquele pretendia efectuar a travessia da estrada e que o fazia com cerca de 1,00 de álcool no sangue, imputando assim a este, por negligência, a ocorrência do acidente. Deduziu ainda incidente de intervenção acessória provocada do condutor do veículo, que foi deferida.
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Citado para a acção, deduziu contestação o chamado E…, alegando em síntese que seguia a velocidade inferior a 50 km/h, distanciado da linha de guia que delimita a via da berma direita, atento o sentido de marcha em que seguia, em cerca de um metro e que foi surpreendido pelo atravessamento da faixa pelo Autor, provindo de um carreiro existente junto à vedação, tendo o atropelamento ocorrido faixa de rodagem por onde seguia o QN.
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Procedeu-se ao saneamento dos autos e fixação dos temas de prova.
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Tendo o processo seguido os seus regulares termos teve lugar a audiência de discussão e julgamento que decorreu com observância do legal formalismo.
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A final foi proferida decisão que julgou a acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, condenou a Ré D…, S.A. a pagar ao Autor B…, a quantia global de 37.500,00€ (trinta e sete mil e quinhentos euros), sendo de 17.500,00€ a título de danos patrimoniais por défice funcional permanente e 20.000,00€, a título de danos não patrimoniais, sendo as quantias referentes a danos patrimoniais acrescidas de juros moratórios à taxa legal de 4% desde a citação e a quantia referente ao dano não patrimonial acrescida de juros moratórios desde a data da presente sentença.
Mais julgou procedente o pedido de reembolso das prestações pagas pelo Instituto da Segurança Social e, em consequência, condenou a Ré a pagar ao ISS a quantia de 1.492,94€, acrescida de juros moratórios, desde a citação, à taxa legal.
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Desta decisão veio o chamado E… interpor o presente recurso.
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Por decisão singular de 15/03/2019 não se conheceu do objecto de recurso por falta de legitimidade do recorrente.
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Desse despacho veio agora a chamado reclamar para a conferência concluindo da seguinte forma:
1 – A decisão singular proferida, que rejeitou, por falta de legitimidade do chamado, a apreciação do recurso por este interposto da sentença proferida pela primeira instância não deve manter-se por consubstanciar uma solução que não consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso sub judice das normas e princípios jurídicos competentes.
Na verdade:
- Da conjugação do preceitua nos artigos 321º, nº 1 e nº 2; 323º, nº 1 e nº 4; e 332º, todos do C.P.C., resulta que, contrariamente ao entendimento sufragado na decisão singular, o chamado ora recorrente, por via da intervenção acessória provocada, embora beneficie do seu estatuto próprio, não é, nem pode ser considerado como um assistente nos termos em que esta figura processual se encontra definida no artigo 326º do C.P.C., devendo antes aplicar-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 328.º e seguintes e, consequentemente, considerar-se que o chamado ocupa a posição processual da chamada, pelo que, por virtude dessa qualidade, passou a gozar dos mesmos direitos e a estar sujeita aos mesmos deveres da parte principal assistida.
3 - Isto porque, fundando a Ré o chamamento num putativo direito de regresso, se for condenada, fica munida de uma decisão contra o chamado que lhe permite exigir, no âmbito das relações internas, a responsabilidade que compete ao chamado.
4 - E assim sendo, como efectivamente é, o chamado tem naturalmente todo o interesse em contestar para tentar impedir que se provem factos que sustentem a existência desse direito de regresso de que a ré pretende servir-se em futura acção, para receber dele aquilo que na primitiva acção foi condenado a pagar.
5 - Foi o que fez o chamado ora recorrente, que assim assumiu, desde o início do seu chamamento, uma postura activa no processo, apresentando contestação e meios de prova.
6 - Para além disso, pese embora o chamado ora recorrente não possa ser condenado nesta acção (atendendo a que não é sujeito da relação jurídica que aí se debate entre Autor e Ré) a verdade é que este incidente permite que os efeitos do caso julgado da sentença aqui proferida a ele se estendam, de modo a que não seja possível (nem necessário) que na subsequente acção de regresso proposta pela Ré contra ele se voltem a discutir questões já discutidas no anterior processo.
7 - Ou seja, no fundo, o caso julgado torna indiscutíveis, na acção que vier a ser intentada posteriormente pela Ré contra o chamado ora recorrente, os pressupostos atinentes à existência e ao conteúdo do direito da indemnização da titularidade do A., o que significa que, nessa nova acção de regresso em que figure como Réu o ora chamado, este fica necessariamente vinculado ao conteúdo da sentença aqui proferida, esta que assim fará prova plena dos factos nela estabelecidos relativamente ao direito definido e no que concerne às questões de que depende a acção de regresso.
8 - E uma vez tecidas estas considerações sobre a posição processual do chamado ora recorrente, importa ainda trazer à colação o disposto no artigo 680º,nº 2 do C.P.C., donde decorre que “As pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.”
9 - No caso dos autos, é evidente e manifesto que o chamado e ora recorrente tem todo o interesse em não ver vingadas as pretensões do autor da acção, posto que, se isso vier a acontecer, ele fica definitivamente em paz jurídica, deixando de haver motivo para que possa vir a ser exercido contra si o direito de regresso.
10 - É que, como acima se deixou dito, a posição do chamado ora recorrente não é a de um simples espectador, desinteressado com a sorte a lide, nem tão pouco de um mero auxiliar da Ré, mas antes um interessado confesso na não condenação desta última, certo de que o determinado na sentença aqui proferida (designadamente quanto à existência e ao conteúdo do direito de indemnização da titularidade do A.) lhe será imposta em sede de direito de regresso no caso de vencimento definitivo do A. nos moldes assinalados na sentença proferida pela primeira instância
11 - No concreto caso dos autos, tendo em linha de conta que a sentença proferida condenou a Ré no pagamento ao A. a quantia global de 37.500,00€ (sendo de 17.500,00€ a título de danos patrimoniais por défice funcional permanente e 20.000,00€, a título de danos não patrimoniais, sendo as quantias referentes a danos patrimoniais acrescidas de juros moratórios à taxa legal de 4% desde a citação e a quantia referente ao dano não patrimonial acrescida de juros moratórios desde a data da presente sentença), e que esta, uma vez transitada em julgado, constitui caso julgado material, com força obrigatória dentro e fora do processo, mostrando-se o chamado incluído nesse âmbito, tal circunstância impede que se possa vir a definir de forma diferente, na futura acção de regresso, o direito concreto aplicável à relação material litigada, quer relativamente às questões de que depende o direito de regresso, quer quanto à existência e conteúdo concreto do direito de indemnização do A.
12 - E assim sendo, como efectivamente é, a sentença proferida pela primeira instância é claramente susceptível de causar prejuízo sério, directo, real e efectivo ao chamado ora recorrente, dado que lhe impõe responsabilidades (designadamente na produção do acidente dos autos) e, por via disso, a probabilidade séria de vir o seu património a ser reduzido.
13 - Trata-se, sim, de um prejuízo directo e imediato, que resulta imediatamente da sentença proferida na primeira instância, porquanto, reconheceu e atribuiu directa e expressamente a responsabilidade na produção do acidente ao chamado ora recorrente, questão que, não sendo admitido o recurso interposto, ficará definitivamente decidida e constituirá caso julgado, jamais podendo ser negada ou contestada em ulterior acção de regresso.
14 - Face ao exposto, não pode deixa de se reconhecer que o chamado ora recorrente tem efectivamente legitimidade para recorrer da decisão proferida pela primeira instância que condenou a Ré nos termos acima referidos, a medida em que tem todo o interesse em ver a Ré absolvida do pedido formulado pelo A., tanto mais que, da sorte da presente lide fica dependente a possibilidade de vir a ser chamado pela Ré, por via do direito de regresso, a fim de fazerem contas.
15 - A douta decisão singular violou, assim, as disposições conjugadas dos artigos 332º, nº 4, 671º, 673 e 680º, nº 2, todas do C.P.C., porquanto as mesmas não foram aplicadas e interpretadas com o sentido versado nas considerações supra.
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Devidamente notificado veio o recorrido pugnar pela manutenção da decisão singular mais levantando a questão prévia da retirada ao recorrente do apoio judiciário com a sua consequente obrigação do pagamento da taxa de justiça.
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Foram dispensados os vistos.
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II - FUNDAMENTOS
O objecto da reclamação é delimitado pelas conclusões da alegação do reclamante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguinte desta orientação é apenas uma a questão a decidir:
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a) - saber se o recorrente tem, ou não, legitimidade para interpor recurso da sentença proferida pelo tribunal de primeira instância.
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com relevância para a apreciação e decisão da questão suscitada no presente recurso, importa ter em consideração a dinâmica processual supra referida no relatório.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas a questão a decidir no âmbito da presente reclamação.
a)- saber se o recorrente tem, ou não, legitimidade para interpor recurso da sentença proferida pelo tribunal de primeira instância.
Não se nos afigura, contudo, que o mencionado despacho singular proferido pelo ora Juiz Relator mereça a censura que lhe vem apontada, posto que as questões que nele foram decididas obtiveram solução jurídica que reputamos como acertada.
Como assim, não divisamos razões para divergir do antes decidido e, como tal, renovamos e fazemos nossos os argumentos em que se ancorou a aludida decisão singular e que passamos a transcrever nos seus termos essenciais.
Nos termos do preceituado no artigo 631.º, do Código de Processo Civil, têm legitimidade para recorrer:
a) a parte principal na causa em que tenha ficado vencida;
b) o terceiro prejudicado no recurso de oposição de terceiro;
c) o terceiro directa e efectivamente prejudicado pela decisão;
d) a parte acessória directa e efectivamente prejudicada pela decisão.
Pressuposto necessário à legitimidade para recorrer a estas quatro categorias de pessoas é o gravame ou prejuízo real sofrido. Sem este não há o interesse de agir, suporte do pedido de impugnação.[1]
No caso dos autos, interessa sobretudo chamar à colação o regime consignado no nº 2, do artigo 631º, do falado diploma, que estabelece um desvio à regra enunciada no nº 1, atribuindo legitimidade para recorrer às pessoas directamente prejudicadas por uma decisão, embora não sejam partes ou sejam partes acessórias.
Tal como é afirmado por Abrantes Geraldes[2], “[A] exigência de um prejuízo directo tem subjacente a ideia de que a decisão visa directamente o recorrente, afastando os casos em que o prejuízo, ainda que efectivo, é indirecto, reflexo ou mediato, ou atinge unicamente a pessoa representada.
Sem embargo de outras situações, em tal categoria podem englobar-se os depositários, adquirentes e preferentes na acção executiva, assim como o agente de execução. Seguramente englobam-se ainda as testemunhas e os peritos e todos quantos, apesar de não figurarem no processo como partes, nem nele terem tido qualquer intervenção, sejam directamente e efectivamente atingidos na sua esfera pessoal ou patrimonial pelos efeitos de qualquer decisão judicial.
Depois de elencar outros exemplos, esclarece ainda o mesmo Autor “[T]odavia, não é vencido o terceiro que apenas indirecta ou reflexamente é atingido pela decisão”, como sucede com “(…) o sócio de uma sociedade condenada numa acção, ainda que tal condenação se reflicta nos dividendos que pode auferir em função da redução dos lucros da sociedade.
Se nas situações normais a legitimidade para recorrer se afere através de um critério formal, verificando se o recorrente é parte no processo e conferindo o resultado da lide, nos casos em que o recurso advenha de terceiro directamente prejudicado pode revelar-se necessária a demonstração dos factos onde assenta o alegado interesse, o que, sem embargo dos poderes de averiguação do tribunal, deve ser feito pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso [arts. 637º, n.º 2, e 641º, n.º 2, al. a)].”
Também o Prof. Alberto dos Reis[3] (em anotação ao anterior art. 680.º, do C. P. Civil, ponto 3.) refere que a expressão legal de “prejuízo directo” “[E]m primeiro lugar (…) exclui o prejuízo indirecto ou reflexo; em segundo lugar, deve ter-se como certo que o prejuízo há-de ser actual e positivo; não é suficiente o prejuízo eventual, incerto e longínquo.”
À luz do novo CPCivil, Cardona Ferreira defende igualmente que a expressão legal “directa e efectivamente” “impede que qualquer pessoa se imagine prejudicada, sem que tal resulte imediatamente da decisão, mas, isto, em termos jurídicos (…). O que se exige é que surja um contexto jurídico imediatamente prejudicial para que o terceiro esteja legitimado para recorrer.”[4]
Por sua vez, na jurisprudência, pelo Ac. STJ de 23.11.2005[5], foi defendido que: “Todavia, o referido prejuízo derivado da decisão deve ser directo ou imediato e efectivo, não bastando para a determinação dos terceiros a quem a lei atribui legitimidade ad recursum a titularidade de direitos incompatíveis com os reconhecidos às partes na decisão em causa, certo que o caso julgado material decorrente daquela decisão é, em regra, insusceptível de os afectar (artigo 497º do Código de Processo Civil).
Assim, o núcleo essencial dos terceiros com legitimidade ad recursum, embora não se cinja apenas aos intervenientes acidentais stricto sensu, não vai muito para além deles, porque do que se trata é de uma legitimidade excepcional, insusceptível de se transformar, por via de recurso, em anómalo incidente de oposição ou de embargos de terceiro, à margem do regime a que se reportam, respectivamente, os artigos 342º a 350º, e 351º a 359º, todos do Código de Processo Civil. (7)
E é irrelevante a circunstância de o terceiro haver intervindo na acção e formulado algum requerimento sobre o qual incidiu a decisão recorrida, ou de assim não ter acontecido, e o facto de a decisão recorrida haver sido provocada pelo requerimento do terceiro não obsta a que subsista a questão da sua legitimidade ad recursum.”
No mesmo sentido, no Ac. STJ de 15.12.2011[6] refere-se que: “O prejuízo que é pressuposto da legitimidade ad recursum de terceiros prejudicados pela decisão, é um prejuízo real, directo, efectivo, não meramente um prejuízo ou dano colateral, reflexo. Se a decisão não causa um prejuízo directo, se não se repercute de forma nuclear, afectando o património físico ou moral do recorrente, mas antes de modo reflexo lhe puder causar dano, esse terceiro não pode recorrer da decisão por falta de legitimidade.”[7]
No caso em apreço, o recorrente E… figura no presente processo exclusivamente na veste de parte acessória, na sequência da suscitação do seu chamamento por parte da Ré D…, S.A..
Efectivamente, preceitua a este respeito o artigo 321.º do CPCivil que:
1 - O réu que tenha acção de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal.
2 - A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento.
Conforme refere Lopes do Rego[8], na base da configuração do incidente intervenção acessória provocada “está a ideia de que a posição processual que deve corresponder ao sujeito passivo da relação de regresso, conexo com a controvertida e-invocada pelo réu como causa do chamamento-é a de mero auxiliar da defesa, tendo em vista o seu interesse indirecto ou reflexo na improcedência da pretensão do autor, pondo-se, consequentemente, a coberto de ulterior e eventual acção de regresso ou de indemnização contra ele movida pelo réu da causa principal” (sublinhado nosso).
Mas, sendo tal a ideia-continua o mesmo A.-“não deve ser tratado como parte principal”, o seu papel e estatuto reconduzem-se, pois, ao de auxiliar na defesa, visando com a sua actuação processual-não obstar à própria condenação, reconhecidamente impossível-mas produzir a improcedência da pretensão que o autor deduziu no confronto do réu-chamante”.
A este respeito, escreveu também Salvador da Costa[9]: “Esta solução legal é inspirada, face ao interesse indirecto ou reflexo, na improcedência da pretensão ao autor, pela ideia de a posição processual que deve corresponder ao titular de uma acção de regresso, meramente conexa com a relação jurídica material controvertida objecto da causa principal, é a de mero auxiliar na defesa, em termos de acautelamento da eventualidade da hipótese de no futuro contra ele ser intentada, por quem foi réu na acção anterior, acção de regresso para efectivação do respectivo direito”.
E, não deixou de fazer notar que “o fundamento básico da intervenção acessória provocada é a acção de regresso da titularidade do réu contra terceiro, destinada a permitir-lhe a obtenção da indemnização pelo prejuízo que eventualmente lhe advenha da perda da demanda", sendo certo que "o chamado não influencia a relação jurídica processual desenvolvida entre o autor e o chamante" e, daí que "nela não pode haver sentença de condenação”.
Portanto, o efeito do chamamento é apenas fazer com que a sentença proferida constitua caso julgado quanto ao chamado, relativamente às questões de que depende o direito de regresso do autor do chamamento sendo que, apenas em ulterior acção de regresso, proposta pela Ré seguradora contra o chamado, uma vez satisfeita a indemnização ao lesado, haverá que averiguar e decidir se esse direito existe ou não.
A decisão sobre a efectiva titularidade do direito de regresso não cabe no âmbito da relação jurídica controvertida nesta causa e antes diz respeito a outra relação jurídica conexa com ela, cuja apreciação exige a instauração de uma ulterior acção de regresso contra o terceiro chamado, onde se decidirá sobre a existência ou inexistência desse direito.
O efeito de caso julgado que a sentença eventualmente produzir relativamente ao chamado reduz-se à impossibilidade de este alegar, na acção de indemnização, que o réu foi negligente na defesa oposta ao autor mesmo que o réu tenha confessado o pedido ou deixado passar em julgado a sentença da primeira instância.
Do que fica dito resulta, pois, que o papel do chamado E… como interveniente acessório era, por força do preceituado no artigo 321.º, de mero auxiliar na defesa da Ré Seguradora, cingindo-se a sua participação processual à discussão das questões com repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento cabendo-lhe, nas fases subsequentes à respectiva citação, o estatuto de assistente, definido pelo artigo 326.º CPCivil, aplicável ex vi artigo 323.º, nº 1 do mesmo diploma legal.
Ora, ao assistente não cabe o direito de recorrer pelo assistido, salvo na específica situação de substituição processual (quando o assistido for revel) prevista no artigo 329.º do CPCivil.
Com efeito, não defendendo o interveniente acessório um direito próprio, mas limitando-se a auxiliar a parte principal, que é quem é condenada na acção, se decair, apesar de gozarem dos mesmos direitos e estarem sujeitos aos mesmos deveres que a parte principal, a sua actividade está subordinada à da parte auxiliada, não podendo praticar actos que esta tenha perdido o direito de praticar nem assumir atitude que esteja em oposição com a do assistido, sendo que, se houver divergência insanável entre a parte principal e o assistente, prevalece a vontade daquela (cfr. artigo 328.º, nº 2 do CPCivil).
Como assim, o interveniente acessório, para além da situação especial prevista no citado artigo 329.º, só tem legitimidade para interpor recurso quando demonstre que a decisão o prejudicou directa e efectivamente nos termos que supra se deixaram referidos.
Este prejuízo directo exigido pela lei tem subjacente a ideia de que a decisão visa directamente o recorrente, afastando as situações em que o prejuízo, ainda que efectivo, é indirecto, reflexo ou mediato.
A opção do legislador foi no sentido de evitar a interposição de recursos em casos de prejuízo “eventual, longínquo, incerto, apenas provável ou possível”.[10]
O direito de recorrer é, assim, apenas atribuído, em princípio, a quem for parte e, o referido prejuízo, para poder classificar-se de directo e imediato, tem de resultar da própria decisão e de ser actual e positivo, no sentido de impor responsabilidades ou implicar a imediata afectação de direitos ou interesses juridicamente tutelados, isto é, tem de ser real e jurídico.
Acontece que, no caso sub judice, a sentença proferida não impõe ao interveniente E…, como é bom de ver, quaisquer responsabilidades, nem implica a aludida imediata afectação de direitos ou interesses do mesmo, desconhecendo-se, até, se a acção relativa ao eventual direito de regresso vai, ou não, ser proposta.
Sendo-o, porém e como ficou dito, só aí se decidirá sobre a existência ou inexistência desse direito.
Destarte, não é admissível a autónoma interposição de um recurso próprio pelo chamado E…, por o mesmo não beneficiar obviamente do estatuto de parte principal e a decisão do litígio não ter incidência directa no seu interesse e na sua esfera jurídica, apenas podendo relevar, de modo estritamente reflexo e indirecto, no âmbito de uma futura e eventual acção de regresso.[11]
Bom, dir-se-á se “o chamado interveniente acessório assume o estatuto de alguém que, auxiliando a defesa do chamante, se defende a si próprio; tem todo o interesse jurídico em que a chamante obtenha ganho de causa, para frustrar o direito de regresso invocado como fundamento do chamamento (…) não fazendo por isso qualquer sentido que, estendendo-se à interveniente acessória os efeitos do caso julgado da sentença que condenou a ré (parte principal) não possa dela recorrer quem, como a chamada, é directa e efectivamente prejudicada com aquela decisão”.[12]
Salvo o devido respeito, não se acompanha este entendimento.
Importa, desde logo, assinalar que os efeitos do caso julgado, tal como acima se referiu, apenas se estendem ao chamado no que concerne às questões de que depende o direito de regresso.
Na verdade, o caso julgado apenas torna assentes os pressupostos do direito de regresso relativamente às questões já decididas no anterior processo que, por respeitarem à relação jurídica existente entre o autor e o réu, condicionam a relação (dependente) entre este e o chamado, ficando em aberto para a acção de indemnização a discussão sobre todos os outros pontos de que depende o direito de regresso.
Assim, em regra, na nova acção de indemnização em que figure como réu o chamado à intervenção, fica este vinculado ao conteúdo da respectiva sentença como prova plena dos factos nela estabelecidos relativamente ao direito definido (e só), tendo a faculdade de ali impugnar os referidos factos e o direito, alegando que o réu (autor na acção de regresso) na acção anterior o impediu de fazer uso de alegações ou de meios de prova influentes na decisão final, ou que desconhecia a existência de alegações ou provas susceptíveis de influir naquela decisão, e que o réu (autor na acção de regresso) as não usou intencionalmente.
Como refere Lebre de Freitas[13] “Esta circunscrição do âmbito objectivo do caso julgado no âmbito da causa prejudicial (relativamente ao direito de regresso) constituída pelo primeiro processo mantém-se inteiramente: para a acção de indemnização fica em aberto a discussão sobre todos os outros pontos de que depende o direito de regresso; assentes ficam só os pressupostos desse direito que, por respeitarem à relação jurídica existente entre o autor e o réu, condicionam a relação (dependente) entre este e o chamado”.
Acresce que, não vemos como se possa dizer que o chamado é directa e efectivamente prejudicado com decisão proferida na acção em que o incidente foi suscitado.
Porventura o chamado é condenado nessa acção?
E no caso concreto, a sentença proferida impôs ao interveniente E… quaisquer responsabilidades ou implicou de imediato a afectação de direitos ou interesses do mesmo?
É que a pergunta que se impõe não é: tem o interveniente interesse directo e efectivo na não condenação da parte que provocou a sua intervenção?
Na verdade não é na resposta a esta pergunta que se filia a facti species do nº 2 do artigo 631.º do CPCivil.
A legitimidade para a interpor o recurso, nos termos da citada norma, advém de alguém ter sido directa e efectivamente prejudicado pela decisão nos termos que noutro passo se deixaram referidos, coisa que não acontece com o chamado.
É claro que ele tem interesse na não condenação da parte que provocou a sua intervenção, pois que, se assim for, evidentemente que nunca poderá ser demandado em acção de regresso.
Todavia, daí não se segue que ele fique, apenas por essa circunstância, com legitimidade para recorrer.
Diferente entendimento é desvirtuar a ratio legis que presidiu à citada norma e que, segundo cremos, terá sido no sentido de evitar a interposição de recursos em casos de prejuízo eventual reflexo, longínquo, incerto, apenas provável ou possível.
É claro que isso não invalida que durante a tramitação processual da lide não possam surgir situações em que o chamado seja directamente visado por determinada decisão, caso em que, como se torna evidente, poderá dela recorrer (cfr. o já citado artigo 631.º nº 2 do CPCivil).
É que se assim não for, então, qualquer terceiro que por via indirecta ou reflexa possa vir a ser, em qualquer momento, afectado por uma qualquer decisão terá sempre legitimidade para dela recorrer.
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Nesta medida, forçoso é concluir que o chamado E… não possui legitimidade ad recursum para pôr em causa a decisão definitiva proferida, que julgou a acção parcialmente procedente por provada e condenou a Ré seguradora nos supra referidos.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar a reclamação improcedente por não provada e consequentemente confirmar o despacho reclamado.
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Custas pelo reclamante (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 22 de Maio de 2019.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais (dispensei o visto)
Jorge Seabra (dispensei o visto)
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[1] Cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, pag. 143.
[2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª edição, pág. 82.
[3] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 3ª edição 1952, pág. 272.
[4] In Guia de Recursos em Processo Civil, actualizado à luz do CPC de 2013, Coimbra Editora, 6ª edição, pág. 116.
[5] Proc. n.º 05B3713, relator Salvador da Costa, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Proc. n.º 767/06.2TVYNG.P1.S1, relator Fonseca Ramos, acessível em www.dgsi.pt.
[7] Neste sentido, cfr. ainda Ac. STJ de 07.12.1993, BMJ 432, pág. 298, no qual se refere “Pelo art. 680.°, do Código de Processo Civil, o direito de recorrer é atribuído apenas, em princípio, a quem for “parte principal na causa” (n.º 1), mas, a título excepcional, é reconhecido também às “pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão…, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias” (n. °2). Este prejuízo, para poder classificar-se de directo e imediato, tem de resultar da própria decisão e de ser actual e positivo, no sentido de impor responsabilidades ou implicar a imediata afectação de direitos ou interesses juridicamente tutelados, isto é, tem de ser real e jurídico.”
[8] In Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 252 e ss..
[9] In Os Incidentes da Instância-3ª edição-, pág. 127 e ss..
[10] Cfr. BMJ, Vol. 123º. Pág. 132.
[11] Cfr. neste sentido Ac. do STJ de 25/03/2010 in www.dgsi.pt
[12] Cfr. neste sentido Ac. do STJ de 13/11/07 in Col. Jur. III/142 e ainda o do mesmo tribunal o Ac. de 17/04/2008 in www.dgsi,pt.
[13] In CPC Anotado, Vol. I. pags. 590 e 591.