Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3822/13.3T2OVR-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM MOURA
Descritores: RESOLUÇÃO CONTRATUAL
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
DECLARAÇÃO RECEPTÍCIA
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
Nº do Documento: RP202111082822/13.3T2OVR-C.P1
Data do Acordão: 11/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A resolução contratual depende da livre vontade de quem dela se queira prevalecer e, ainda, da verificação do facto que dê lugar ao direito potestativo de o fazer;
II - Estando verificado o facto justificante da resolução do contrato de mútuo que vinculava exequente e executado, pois que as prestações de reembolso do valor do empréstimo deixaram de ser pagas, cai-se na previsão da norma do artigo 781.º do Código Civil;
III - Não sendo esta uma norma imperativa e sendo o desencadeamento do vencimento antecipado de todas as prestações nela previsto uma faculdade do credor, este só a tornará efectiva se manifestar a sua vontade nesse sentido, interpelando o devedor para cumprir imediatamente a totalidade da obrigação;
IV – Sendo a declaração resolutiva de um contrato uma declaração receptícia, ela é eficaz quando chegue ao poder do destinatário, ou seja dele conhecida (n.º 1 do artigo 224.º do Código Civil) ou quando, sendo enviada, só por culpa do destinatário não tenha sido oportunamente recebida (n.º 2 do mesmo artigo);
V – Se o destinatário da declaração resolutiva já era falecido quando foi emitida, terá de concluir-se que se frustrou a tentativa de interpelação necessária para desencadear o referido efeito de vencimento antecipado de todas as prestações;
VI- A citação dos requeridos no âmbito do incidente de habilitação de herdeiros do executado e a posterior decisão de os julgar habilitados para ocuparem o lugar deste na execução, é suficiente para tornar exigível a obrigação exequenda e, assim, assegurar a sua exequibilidade intrínseca.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2822/13.3T2OVR-C.P1 - Embargos de executado
Comarca de Aveiro
Juízo de Execução de Águeda

Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
Em 24 de Abril de 2020, B… e C… vieram, por apenso aos autos de execução comum para pagamento de quantia certa que, sob o n.º 2822/13.3T2OVR, correm termos pelo Juízo de Execução de Águeda, Comarca de Aveiro, em que figuram como executados (após terem sido julgados habilitados, como sucessores de D…, por sentença de 04.02.2015) e em que é exequente E…, UNIPESSOAL, L.DA (julgada habilitada, por sentença de 07.11.2016, para com ela prosseguirem os termos desta acção, em que a exequente inicial era F…), deduzir oposição à execução, com os seguintes fundamentos:
Não conhecem a dívida que subjaz à presente execução, mas sabem que é falsa, tal como falsa é a assinatura, supostamente do seu falecido pai, aposta no escrito particular de 27.02.2008 que titularia essa dívida, pois não é verdade que lhe tenha sido emprestado dinheiro.
Mesmo que fosse verdade, nem o seu pai, nem eles, embargantes, foram interpelados para que se originasse a mora, incumprimento definitivo e posterior exigibilidade da obrigação, pelo que, também por essa razão, «deveria falecer a presente demanda».
Concluíram pedindo a procedência dos embargos, «sendo os executados absolvidos do pedido, para e com os necessários e advindos efeitos legais».
Foram os embargos, liminarmente, recebidos e, notificada para contestar, querendo, veio a exequente/embargada fazê-lo, alegando, em síntese:
Entre a exequente e o executado D… (entretanto falecido) foi celebrado «um contracto de crédito pessoal sob forma de mútuo, enquadrável no regime de crédito ao consumo», formalizado por escrito particular de 27/02/2008.
Entregou ao executado a quantia de € 9.091,7 por crédito na conta de depósitos à ordem com o NIB n.º ………………… de que este era titular na G….
O executado recebeu esse montante e confessou-se devedor da exequente (cláusula 10.ª do contrato).
As partes convencionaram, ainda, que aquele valor de € 9.091,77, acrescido dos juros remuneratórios e encargos associados, seria pago à exequente em 96 prestações mensais, constantes e sucessivas, vencendo-se a primeira prestação um mês após a data da concessão do crédito e as demais em igual data dos meses subsequentes.
O executado deixou de pagar as prestações que estava obrigado a pagar e por isso foi interpelado para esse efeito, mas manteve o incumprimento, pelo que a exequente informou-o, por carta que lhe remeteu, que considerava resolvido o contrato.
Considera que os executados não estão a agir de boa-fé ao alegarem a falsidade da assinatura aposta no contrato que serve de base à execução, sendo certo que o executado falecido beneficiou do financiamento concedido durante vários anos e pagou parte das prestações acordadas sem nunca ter posto em causa a genuinidade do contrato e da sua assinatura.
Concluiu pela improcedência dos embargos.
Com a anuência das partes, foi dispensada a audiência prévia e, tendo considerado que estava em condições de conhecer do mérito da oposição deduzida, sendo certo que a questão a decidir era, apenas, de direito, em 16.10.2020, o Sr. Juiz proferiu saneador-sentença[1] em que julgou procedente a oposição deduzida e, em consequência, declarou extinta a execução[2].
Inconformada, em 20.12.2020, a embargada veio interpor recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensou nas seguintes conclusões (transcrição integral):
«A) No exercício da sua atividade, o Recorrente e o Executado D… (Falecido), celebraram um contracto de crédito pessoal sob forma de mútuo, enquadrável no regime de crédito ao consumo, por escrito particular de 27/02/2008.
B) Nos termos do contrato de crédito pessoal, o Recorrente entregou ao Executado (falecido) a quantia de € 9.091,77.
C) As partes estipularam que o capital mutuado no âmbito do contrato referido, seria entregue pelo Recorrente ao Executado (falecido), por crédito na conta de depósito à ordem com o NIB n.º ………………… da qual o mesmo era titular junto do da G…, o que, efetivamente, aconteceu.
D) O Executado (falecido) recebeu o montante supra identificado e confessou-se devedor do Recorrente.
E) As partes acordaram que o valor de € 9.091,77 acima identificado, acrescido dos juros remuneratórios e encargos associados, seriam pagos à Recorrente pelo Executado (falecido), através de 96 prestações mensais, constantes e sucessivas, vencendo-se a primeira prestação um mês após a data da concessão do crédito, as restantes em igual data dos meses subsequentes e a última no termo do contrato.
F) Acontece que, o Executado (falecido) deixou de proceder ao pagamento das prestações a que estava obrigado no âmbito do contrato de crédito pessoal.
G) O Executado (falecido) foi interpelado, para esse efeito e não liquidou os montantes em dívida, por esse motivo, o Recorrente informou o Executado (falecido) de que, por força da não regularização dos montantes em dívida, considerava resolvido o contrato, sendo que aos montantes em dívida acresceriam juros de mora e demais encargos que fossem devidos.
H) A carta foi remetida a 18 de junho de 2013, com o seguinte assunto: “Resolução do Contrato Crédito Pessoal Flash nº……….., celebrado em 2008-02-27”.
I) O contrato de crédito pessoal constitui documento particular, do qual consta a assinatura do Executado (falecido), sendo que, através da mesma, aquele reconhece todas as obrigações para com o Recorrente, decorrentes do contrato em apreço, designadamente as obrigações pecuniárias, pelo que constitui título executivo nos termos do art.º 46.º n.º 1 c) do CPC.
J) Assim, não restando alternativa o Recorrente diligenciou pela apresentação da ação executiva objeto dos presentes autos.
K) Na pendência da referida ação executiva, e na sequência das diligência para tentativa de citação do Executado (falecido), teve o Recorrente conhecimento que o executado havia falecido no dia 05/06/2012.
L) Assim que teve a informação do falecimento do Executado, a 28/03/2014, o Recorrente deduziu o devido incidente de habilitação de herdeiros.
M) Na sequência do factos supra referidos, foi o ora Recorrente notificado na data de 18/06/2020 para contestar os Embargos.
N) Na contestação elaborada, veio o ora Recorrente esclarecer que foi remetida carta de interpelação ao executado falecido, resolvendo assim o contrato por falta de liquidação das prestações.
O) O nº2 da cláusula 8ª do contrato exequendo prevê que “A resolução da presente Proposta/Contrato nos termos da presente Cláusula operará automaticamente, mediante simples notificação à contraparte e sem dependência de qualquer outro pressuposto.”
P) Na sua sentença, Tribunal a quo veio a proferir a sua sentença considerando que no caso dos autos, quando foi enviada a carta de resolução contratual ao mutuário já este havia falecido, pelo que, não chegou ao conhecimento do destinatário, nem foi enviada qualquer carta de resolução contratual dirigida aos seus herdeiros.
Q) Assim, em face do exposto, considerou que o contrato exequendo não foi validamente resolvido, pelo que é inexigível a obrigação exequenda, procedendo quanto a esta questão os embargos.
R) Tal como já demonstrado, o Recorrente assim que teve conhecimento que o executado havia falecido, na pendência da ação executiva, procedeu de imediato à instauração da habilitação de herdeiros.
S) Entende o Recorrente, que não poderia ter agido de outra forma, pois aquando da carta remetida para rescisão do contrato de crédito, a mesma desconhecia que o executado havia falecido, desconhecendo também que tinha de notificar os herdeiros do mesmo.
T) Mais se dirá que, tendo os Recorridos (herdeiros) conhecimento da dívida, haviam os mesmos de ter informado a Instituição Financeira, anteriormente F…, do falecimento do executado, seu pai.
U) Não tendo os Recorridos procedido dessa forma, consolidou-se assim o direito da ora apelante resolver o contrato de crédito, para todos os efeitos jurídicos.
V) Assim, e não restando alternativa, a ora apelante procedeu, e bem a nossa ver, pela apresentação da ação executiva objeto dos presentes autos.
W) O Código de Processo Civil prevê claramente a possibilidade de requerer a habilitação de herdeiros, quando o conhecimento por parte dos autos do falecimento do Recorrido seja na sequência de diligência do Senhor Agente de Execução, ainda que o óbito seja anterior à proposição da ação.
X) Nesse mesmo sentido decidiu o Tribunal da Relação de Évora, no douto Acórdão nº 4945/18.3T8STB.E1 de 18/10/2018.
Y) Sendo que o Recorrente deduziu o incidente de habilitação após a notificação de que o executado havia pré-falecido, pelo que fica esclarecida a legitimidade dos Recorridos em substituição ao executado falecido, na presente demanda.
Z) Conclui assim o Recorrente, que do escopo da norma do artigo 351 nº 2 do CPC, e dos critérios de ponderação do acórdão referido supra, retira-se igualmente, o aproveitamento e valoração da notificação efetuado ao falecido, tendo em vista a resolução contratual.»
Os embargantes/recorridos não contra-alegaram.
O recurso foi admitido como apelação (com subida imediata, nos próprios autos de oposição por embargos e efeito devolutivo) por despacho de 27.04.2021.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
Em face do teor das conclusões formuladas pela recorrente, são, apenas, questões de direito que submete à apreciação deste Tribunal de recurso.
A questão fundamental a apreciar e decidir consiste em saber se a obrigação exequenda reúne uma das condições necessárias para ser objecto de execução, a sua exigibilidade, o que passa por apurar da eficácia da declaração resolutiva do contrato de mútuo emitida pela exequente.

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Na primeira instância, foram considerados provados os seguintes factos relevantes para a decisão:
A) Foi dado à execução o documento particular denominado de Proposta/Crédito Pessoal em que figura como mutuante a ora exequente e como mutuário o executado falecido D…, documento esse datado de 27.02.2008.
B) O referido contrato prevê a entrega do montante de 9.091,77€ ao mutuário, a reembolsar em 96 prestações mensais e sucessivas no valor de 180,42€, pagas por débito direto da conta da G…, SA, agência …, com o nº…………………., titulada pelo executado falecido.
C) A morada indicada no contrato como sendo a do mutuário é a seguinte: Rua …, ….-… ….
D) A cláusula 8ª do contrato dado à execução, epigrafada de (Resolução Unilateral e Vencimento Antecipado), tem o seguinte teor:
“1 – A mora ou o não cumprimento definitivo de qualquer das obrigações assumidas na presente proposta/contrato ou a ela inerentes confere ao Banco o direito de considerar imediatamente vencido, independentemente de interpelação, tudo o que for devido, seja principal ou acessório, com a consequente exigibilidade de todas as obrigações ou responsabilidades, ainda que não vencidas, sem prejuízo de quaisquer outros direitos que lhe sejam conferidos por lei ou pelo presente Contrato, constituem causa bastante e fundamentada de resolução da presente Proposta/Contrato, independentemente de interpelação, as que, designadamente se indicam:
a) quando não for cumprida pelo Cliente qualquer obrigação (seja qual for a respetiva natureza, pecuniária ou não) emergente da presente Proposta/Contrato, nomeadamente o reembolso de capital, juros compensatórios e moratórios, comissões, despesas e encargos, nas datas previstas;
b) nos casos de arresto, penhora ou qualquer providência equiparável sobre quaisquer bens ou direitos do Cliente, bem como a interposição de qualquer providência ou ação judicial que possa comprometer o reembolso do crédito concedido;
c) se se verificar mora do Cliente no pagamento de quaisquer obrigações contraídas designadamente de empréstimos ou outros compromissos com incidência financeira contraídos junto do Banco ou de quaisquer terceiros, designadamente outras instituições de crédito ou verificados quaisquer incidentes de créditos ou incidentes relacionados com a utilização de quaisquer meios de pagamento no seu relacionamento bancário;
d) quando, no entender do Banco, se registar uma degradação da situação económico-financeira do cliente, suscetível de por em perigo o crédito concedido, bem como se ocorrerem factos ou situações que afetem a solvabilidade do Cliente e o Banco entender que tais factos constituem alteração material adversa da solvabilidade deste;
e) no caso de impossibilidade de cobrança dos valores que se mostrem devidos;
f) nos casos em que se verificar inexatidão, por ação ou por omissão, intencional ou negligente, no todo ou em parte, de qualquer informação, incluindo declarações, compromissos e garantias prestadas, antecipadamente celebradas à presente Proposta/Contrato ou na sua pendência pelo Cliente;
g) no caso de se verificar qualquer tentativa, independentemente do resultado da mesma que possa resultar a modificação dos pressupostos em que o Banco fundou a sua decisão de contratar.
2 – A resolução da presente Proposta/Contrato nos termos da presente Cláusula operará automaticamente, mediante simples notificação à contraparte e sem dependência de qualquer outro pressuposto.”
E) O montante de 9.091,77€ foi transferido para o mutuário em 27.02.2008.
F) O executado procedeu ao pagamento das prestações acordadas no período compreendido entre 01.04.2008 e 01.06.2012.
G) Em 18 de junho de 2013, a exequente enviou carta para o executado, para a morada referida em C), com o seguinte teor:
“(…)
Assunto: Resolução do Contrato Crédito Pessoal Flash nº……….., celebrado em 2008-02-27.
(…)
Como é do conhecimento de V. Exas., encontram-se por regularizar várias prestações do contrato de crédito concedido na data em epígrafe.
Deste modo e porque até à presente data não se verificou qualquer liquidação das mesmas, serve a presente para, nos termos da competente cláusula do contrato resolver o mesmo, na presente data.
Aos valores em dívida acrescem juros de mora e encargos legais aplicáveis.
Decorrido o prazo máximo de 8 dias, sem que se verifique a integral regularização das situações supra identificadas, o processo será enviado para o Serviço de Contencioso do Banco para interposição da competente ação judicial.
(…)”
H) A execução movida contra o executado entrou em juízo em 24.09.2013.
I) O executado mutuário faleceu em 05.06.2012.
J) Facto trazido ao conhecimento do processo em 28.03.2014, com a dedução do incidente de habilitação de herdeiros.
K) Os embargantes foram citados para os termos da execução em 09.06.2020.

2. Fundamentos de direito
O executado pode pôr em causa a execução em bloco, evitando ou impedindo o prosseguimento de actos executivos.
Não tendo a execução por base uma sentença ou requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, o executado pode deduzir oposição com os fundamentos especificados no artigo 729.º do Cód. Proc. Civil (naturalmente, na parte aplicável) e, ainda, quaisquer outros que lhe era lícito deduzir como defesa em processo de declaração (artigo 731.º do mesmo diploma legal).
Com a instauração da presente execução, pretende a exequente obter o cumprimento coercivo de uma obrigação pecuniária que tem a sua origem num mútuo («contracto de crédito pessoal sob forma de mútuo», segundo o nomen que lhe foi dado) e que não foi integralmente cumprido porque o mutuário, entretanto, faleceu.
Os embargantes fundamentam a sua oposição à execução alegando a inexistência da obrigação exequenda, por ser falso que a exequente tenha emprestado dinheiro ao seu pai e por isso ser falsa a assinatura aposta no escrito particular que titula o contrato de mútuo. Dizem até que podem afirmar essa falsidade «por conversas tidas com o seu falecido pai» (supõe-se que sobre o mútuo que, afinal, inexistiria).
No saneador-sentença recorrido, essa alegação mereceu a seguinte apreciação e decisão:
«No caso dos autos, conforme resulta da matéria dada como provada, o mutuário sempre cumpriu com o pagamento das prestações acordadas com o exequente até à data em que veio a falecer, nunca tendo posto em causa a validade do contrato ou a genuidade da sua assinatura, pelo que não merece acolhimento a alegação dos embargantes de que sabem que a assinatura é falsa de conversas tidas com o mutuário falecido, seu pai.
Tal alegação não tem qualquer suporte nos factos dados como provados e contraria o comportamento do mutuário até à sua morte.
O comportamento dos ora embargantes integra o abuso de direito sob a forma de “venire contra factum proprium”, pelo que não pode o Tribunal considerar como válida e eficaz a invocada falsidade da assinatura aposta no contrato dado à execução.
Em face do exposto, julgo improcedentes os presentes embargos de executado quanto a esta questão.».
Na realidade, o mutuário, primitivo executado, cumpriu, religiosamente, o contrato, pagando todas as prestações vencidas até ao seu decesso e não é crível que assim acontecesse se a assinatura que dele consta não fosse do seu próprio punho, ou seja, se fosse alheio ao contrato.
Não sendo, também, crível que o mutuário tivesse mentido aos filhos sobre este assunto, a conclusão lógica é a de que são os embargantes quem falta à verdade, alegando factos que sabiam não serem verdadeiros.
Está, assim, claramente indiciada litigância de má fé dos embargantes (cfr. artigo 542.º, n.º 2, do CPC) e não propriamente abuso de direito na modalidade indicada.
Seja como for, o que importa aqui realçar é que, ao julgar improcedentes os embargos deduzidos, o que se pretendeu dizer foi que esse primeiro fundamento invocado como oposição à execução improcedia.
O segundo fundamento invocado na oposição deduzida está assim concretizado: nem o seu pai, nem eles, embargantes, foram interpelados para que se originasse a mora, incumprimento definitivo e posterior exigibilidade da obrigação, pelo que, também por essa razão, «deveria falecer a presente demanda».
Referem-se os embargantes à mora e incumprimento definitivo quanto ao pagamento das prestações de amortização do empréstimo.
Sobre esse ponto, com relevância para a decisão, deu-se como assente o seguinte:
O montante mutuado (valor entregue ao mutuário) foi de € 9.091,77 e seria reembolsado em 96 prestações mensais e sucessivas no valor de € 180,42.
Nos termos da cláusula 8.º do contrato de mútuo, a mora ou o não cumprimento definitivo de qualquer das obrigações contratualmente assumidas conferem ao Banco o direito de considerar imediatamente vencido, independentemente de interpelação, tudo o que for devido, seja a título principal ou acessório, com a consequente exigibilidade de todas as obrigações ou responsabilidades, ainda que não vencidas.
Constituía «causa bastante e fundamentada» de resolução do contrato de mútuo, independentemente de interpelação, designadamente, o não cumprimento de qualquer obrigação (pecuniária ou não) emergente do contrato, nomeadamente o reembolso de capital, juros compensatórios e moratórios, comissões, despesas e encargos, nas datas previstas.
O mutuário/executado pagou as prestações de amortização do empréstimo acordadas no período compreendido entre 01.04.2008 e 01.06.2012.
Em 18 de junho de 2013, a mutante/exequente enviou carta dirigida ao executado, para a morada constante do contrato, denunciando a falta de pagamento das prestações de amortização do empréstimo e comunicando a decisão de resolver o contrato com esse fundamento.
O mutuário/executado faleceu em 05.06.2012, facto tornado conhecido no processo em 28.03.2014, com a dedução do incidente de habilitação de herdeiros.
Perante este aglomerado factual, o tribunal a quo conclui:
«Em face do exposto, considerando que o regime do incumprimento das obrigações não é imperativo, e face ao contratualmente convencionado entre as partes, não estava a exequente obrigada a enviar carta de interpelação prévia à resolução, já que acordaram entre si o afastamento da mesma.
Assim, quanto a esta questão improcedem os embargos de executado.»
Com efeito, nos termos convencionados, a mora é equiparada ao incumprimento como fundamento de resolução do contrato. A resolução pode advir da concretização de uma cláusula resolutória inserida, pelas partes, no contrato para a eventualidade de ocorrer o facto justificante, pelo que não têm razão os embargantes quando alegam na petição de embargos que tinha que haver interpelação admonitória para se chegar ao «incumprimento definitivo e posterior exigibilidade da obrigação».
Em qualquer dos casos, a resolução depende da livre vontade de quem dela se queira prevalecer e, ainda, da verificação do facto que dê lugar ao direito potestativo de o fazer.
Não há dúvidas quanto à verificação do facto justificante, pois que as prestações de reembolso do valor do empréstimo deixaram de ser pagas a partir de Julho de 2012.
Sobre a dívida liquidável em prestações, dispõe o artigo 781.º do Código Civil que a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas.
Não sendo esta uma norma imperativa[3], os contraentes são inteiramente livres de estipularem coisa diversa e, sendo o desencadeamento do vencimento antecipado de todas as prestações previsto naquela disposição legal uma faculdade do credor, este só a tornará efectiva se manifestar a sua vontade nesse sentido, interpelando o devedor para cumprir imediatamente a totalidade da obrigação.
A embargada, ora recorrente, decidiu fazer cessar o contrato de mútuo celebrado, enviando ao mutuário uma carta a resolvê-lo com esse fundamento, mas, nessa altura, há muito que o seu destinatário tinha falecido, facto tornado conhecido no processo, apenas, em 28.03.2014.
Em face dessa circunstância, ponderou-se e decidiu-se na primeira instância:
«No caso dos autos, quando foi enviada a carta de resolução contratual ao mutuário já este havia falecido, pelo que, obviamente não chegou ao conhecimento do destinatário, nem foi enviada qualquer carta de resolução contratual dirigida aos seus herdeiros.
Assim, em face do exposto, há que considerar que o contrato exequendo não foi validamente resolvido, pelo que é inexigível a obrigação exequenda, procedendo quanto a esta questão os embargos de executados.
*
Decisão:
Pelo exposto, julgo procedentes os embargos de executado deduzidos por B… e C… contra E…, Unipessoal, L.da determinando o prosseguimento da execução[4].
Custas a cargo da exequente – artigo 527/1 do Código de Processo Civil.
Fixo o valor dos embargos de executado em 7.141,44€ - artigo 297 do Código de Processo Civil.».
Ressalvado o devido respeito por entendimento diverso, o que importa determinar não é a validade da resolução do contrato de mútuo (é incontroverso que a mutuante tinha causa justificante da resolução).
Tão pouco está em causa (como parece ser entendimento da recorrente expresso nas conclusões W) a Z) do recurso) a possibilidade de requerer a habilitação de herdeiros em caso de pré-falecimento do demandado, de que houve conhecimento já depois de intentada a acção.
O que tem de apreciar-se e decidir-se é a eficácia da declaração resolutiva, pois dela depende a exigibilidade da obrigação exequenda.
Uma das condições da acção executiva é a de que a obrigação exequenda seja certa, exigível e líquida.
A exigibilidade da obrigação tem a ver com a exequibilidade intrínseca[5] do título executivo[6] e, na definição do Professor Rui Pinto (in A Ação Executiva, AAFDL, 2020, pág. 230), é «a qualidade substantiva da obrigação que deva ser cumprida de modo imediato e incondicional após interpelação ao devedor. Tal qualidade não é processual, mas substantiva: a verificação do facto do qual depende o cumprimento – interpelação pelo credor, decurso do prazo de vencimento, ocorrência de condição, realização de contraprestação».
Acrescenta o mesmo autor (ob. cit., 233) que «está nessas condições a obrigação que, à data da propositura da execução, se encontre vencida ou se vença mediante interpelação, ainda que judicial, não estando dependente de contraprestação, nem estando o credor em mora».
É sabido que uma obrigação é inexigível se não estiver vencida (porque é uma obrigação com prazo certo e este, ainda, não decorreu) ou se o vencimento não depender de simples interpelação ao devedor (p. ex., porque a constituição da obrigação depende de uma condição suspensiva, ainda não verificada).
A resolução é um direito potestativo extintivo, o que é dizer que a declaração resolutiva se impõe, inelutavelmente, à contraparte inadimplente.[7]
A intervenção do tribunal visa exercer o controle da legalidade da resolução, limitando-se a declarar a sua existência e eficácia.
Como salienta Calvão da Silva[8], a “eventual intervenção judicial…não terá a natureza de sentença constitutiva da resolução, mas sim a de sentença de simples apreciação pela qual o juiz unicamente verifica os pressupostos e declara a existência de uma resolução nos termos da lei (sem operar ou autorizar qualquer mudança na ordem jurídica preexistente)”.
A resolução opera, em regra, por simples declaração dirigida por um dos contraentes à outra parte.
Sendo uma declaração receptícia, ela é eficaz quando chegue ao poder do destinatário, ou seja dele conhecida (n.º 1 do artigo 224.º do Código Civil) ou quando, sendo enviada, só por culpa do destinatário não tenha sido oportunamente recebida (n.º 2 do mesmo artigo).
Tendo-se frustrado a tentativa levada a cabo pela mutuante de notificar o mutuário da decisão de resolver o contrato de mútuo porque este já havia falecido quando a comunicação lhe foi dirigida, a questão que se coloca é a de saber se a citação para a acção cumpre essa função de interpelação em termos de tornar exigível a obrigação, hipótese que não foi equacionada na decisão recorrida.
O artigo 804.º, n.º 3, do CPC, na redacção resultante do Dec. Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, previa essa situação de vencimento da obrigação com a citação na acção executiva ao dispor:
«quando a inexigibilidade derive apenas da falta de interpelação (…), a obrigação considera-se vencida com a citação do executado».
Com a reforma da acção executiva operada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 08 de Março, essa norma deixou de existir.
José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes (Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, Coimbra Editora, 2003, pág. 248), explicavam assim a razão dessa eliminação:
«Este n.º 3 nada acrescentava à norma do art. 805-1 CC, segundo o qual, sendo a obrigação pura e não derivada de facto ilícito, o devedor fica constituído em mora quando é interpelado para cumprir, seja extrajudicialmente, seja judicialmente (por notificação judicial avulsa ou citação para uma acção, declarativa ou executiva). Reproduzia, de resto, o preceito, também decorrente do art. 805-1 CC, constante, para a acção declarativa, do art. 662-2-b[9] e já aplicável à acção executiva por via do art. 466-1. Por isso foi suprimida pelo DL 38/2003».
Por seu turno, Lopes do Rego (Requisitos da Obrigação Exequenda, Revista Themis, Ano IV, n.º 7, 2003, pág. 70-71), comentou assim a eliminação:
«É evidente que, no essencial, tal regime se mantém, por força do estipulado no artigo 805.º n.º 1 do Código Civil, que confere plena relevância à interpelação judicial – a qual, como é óbvio, se poderá naturalmente consubstanciar na citação para o processo executivo.».
No actual CPC, o artigo 713.º estatui:
«A execução principia pelas diligências, a requerer pelo exequente, destinadas a tornar a obrigação certa, exigível e líquida, se o não for em face do título executivo».
Em anotação a este artigo, A.S. Abrantes Geraldes, L.F. Pires e de Sousa e P. Pimenta (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, 2020, pág. 41) escrevem que, quando as apontadas condições da obrigação exequenda não forem reveladas pelo título executivo, a execução inicia-se pelas diligências destinadas a assegurá-las e fazem notar que «a interpelação resolutiva do contrato, quando se mostre necessária para assegurar a exequibilidade intrínseca da obrigação, pode ser realizada através da citação do executado, tornando exigível a obrigação».
É esse, também, o entendimento expresso no acórdão da Relação de Coimbra de 12.12.2017 (processo n.º 10180/15.5 T8CBR-A.C1) em que se ponderou: «VII – Face ao atual Código de Processo Civil (na redacção decorrente da Lei nº 41/2013, de 26.06), com referência à execução sob a forma ordinária, na medida em que a mesma corresponde à execução com citação prévia e constitui a forma-regra, importa concluir que ao ter lugar a citação (prévia) dos Executados, teve lugar o exercício do direito potestativo de resolução do contrato, com a concomitante interpelação para o pagamento do montante total em dívida, montante este tornado exigível por via do seu operado vencimento, isto é, a resolução foi comunicada e operada com a citação dos Executados nos presentes autos.»[10].
Logo que chegou ao processo a informação do óbito do executado, a exequente requereu a habilitação dos seus sucessores (os aqui embargantes) para com eles prosseguirem os termos da execução.
Foram, então, os requeridos citados (por carta registada com A/R expedida em 03.12.2014) para contestar, mas não deduziram qualquer oposição. Aliás, em procedimento simplificado de habilitação de herdeiros que teve lugar na Conservatória do Registo Civil de … em 12.06.2012, foram os aqui embargantes habilitados como sucessores de D….
Por sentença de 04.02.2015, B… e C… foram julgados habilitados para com eles prosseguirem os termos da acção executiva, no lugar do executado D….
Em sintonia com a doutrina e a jurisprudência citadas, deve considerar-se que, com a citação dos sucessores do executado D…, e a posterior decisão de os julgar habilitados para ocuparem o seu lugar na execução, ficou suprida a necessidade de comunicar ao mutuário a decisão da mutuante de resolver o contrato de mútuo, ou seja, a obrigação exequenda tornou-se exigível.
Não pode, pois, manter-se a decisão recorrida.
No entanto, da quantia exequenda, não é devido o montante de juros de mora vencidos, liquidado no pressuposto de que a notificação da declaração resolutiva havia chegado ao seu destinatário ou dele foi conhecida, o que não aconteceu.

III - Dispositivo
Termos em que acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso de apelação interposto pela embargada “E…, Unipessoal, L.da” e, em consequência, revogando a decisão recorrida, julgar improcedentes os embargos de executado deduzidos por B… e C… e determinar o prosseguimento da execução, excepto quanto ao montante liquidado de juros de mora.
Custas do processo de embargos a suportar por embargantes e embargada na proporção do respectivo decaimento.
As custas do recurso serão suportadas pela recorrente na proporção do seu decaimento.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).

Porto, 28.11.2021
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
______________
[1] Notificado às partes por expediente electrónico elaborado em 24.11.2020.
[2] Já com a correcção, ordenada pelo despacho de 02.12.2020, do lapso que o dispositivo do saneador-sentença continha.
[3] Cfr. o AUJ n.º 7/2009.
[4] Como já se referiu, este segmento do dispositivo veio a ser rectificado, ficando a constar a extinção da execução em vez do seu prosseguimento.
[5] Na terminologia usada pelo Professor Miguel Teixeira de Sousa na obra citada na decisão recorrida.
[6] Importa aqui assinalar que a execução foi instaurada em Agosto de 2013 e, nessa altura, eram títulos executivos os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importassem o reconhecimento de obrigações pecuniárias de montante determinável.
[7] A resolução pode ter que operar-se por via judicial quando a lei assim o determina. Assim acontece na resolução do contrato de arrendamento.
[8] “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 323.
[9] A que corresponde o artigo 610.º, n.º 2, al. b), do actual CPC.
[10] Cabe referir que, também no caso que nos ocupa, houve (tentativa de) citação prévia. Não era caso de dispensa do despacho liminar e, consequentemente, da citação prévia do executado, pois não se verificava nenhuma das hipóteses contempladas no n.º 1 do artigo 812.º-A do CPC então em vigor.