Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1273/23.6YLPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: CESSAÇÃO DO ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA FINS NÃO HABITACIONAIS
OPOSIÇÃO DO SENHORIO À RENOVAÇÃO
AÇÃO DE PREFERÊNCIA
CAUSA PREJUDICIAL
Nº do Documento: RP202401111273/23.6YLPRT.P1
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A acção de preferência na venda do arrendado a terceiro, instaurada pelo arrendatário, não é causa prejudicial da acção ou do procedimento especial de despejo que o terceiro adquirente da posição de senhorio instaure para obter a entrega do arrendado com fundamento na caducidade do contrato de arrendamento por oposição do senhorio à sua renovação.
II - A decisão que reconheça a preferência tem natureza constitutiva e efeito retroactivo, mas daí não resulta que tudo se deva passar como se tal decisão já fosse definitiva antes de ter sido sequer proferida.
III - A pendência da acção de preferência não constitui nunca na acção ou no procedimento especial de despejo uma excepção dilatória inominada que determine a recusa do conhecimento do mérito e a absolvição do demandado da instância.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:1273.23.6YLPRT.P1
*

SUMÁRIO:
……………………………
……………………………
……………………………



ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:

A..., S.A., sociedade comercial e contribuinte fiscal com NIPC ...10 e com sede em Almeida, instaurou no Balcão Nacional de Arrendamento procedimento especial de despejo com fundamento na cessação do contrato de arrendamento para fins não habitacionais por oposição do senhorio à renovação da fracção urbana designada pela sala L do edifício ... sito na Rua ..., Vila Nova de Gaia, contra a inquilina B... Unipessoal, Lda., sociedade comercial e contribuinte fiscal com NIPC ...47 e sede no ..., Vila Nova de Gaia.
A requerida foi notificado e deduziu oposição sustentando a improcedência do procedimento e alegando para o efeito que se encontra pendente a acção de preferência com processo n.º 7951/22.0T8VNG, na qual a requerente e a requerida são, respectivamente, ré e autor, e na qual este pretende obter o reconhecimento do seu direito de preferência na venda da fracção ao aqui requerente pelo seu anterior proprietário que não comunicou a intenção desse negócio ao arrendatário para este exercer querendo a preferência, situação que configura uma situação de causa prejudicial ou de litispendência, constituindo a instauração do presente procedimento um abuso do direito.
O requerente respondeu à oposição reconhecendo a pendência da acção de despejo, mas refutando as conclusões jurídicas sustentadas pela requerida e negando o abuso do direito.
Foi junta cópia da sentença entretanto proferida na acção de preferência, a julgar a acção improcedente, ainda não transitada em julgado, e certidão da respectiva petição inicial.
A seguir foi proferida decisão na qual se julgou totalmente improcedente a excepção dilatória da litispendência e, em relação à alegada pendência de causa prejudicial, se julgou nos seguintes termos:
«No que concerne à verificação de causa prejudicial (assim qualificamos a invocada “prejudicialidade” por parte da sociedade requerida, desacompanhada de qualquer enquadramento jurídico).
Como é consabido, uma causa é prejudicial em relação a outra quando o julgamento ou decisão da questão a apreciar na primeira pode influir ou afectar o julgamento ou decisão da segunda, nomeadamente modificando ou inutilizando os seus efeitos ou mesmo tirando razão de ser à mesma.
Nessa medida, o legislador consagra de certa forma a solução da suspensão da instância de uma das acções (a acção dependente), através dos regimes da modificação da competência do tribunal – artigo 92.º - e da suspensão da instância – artigo 272.º.
Aqui chegados, somos de considerar que a acção declarativa comum (acção de preferência) e o procedimento especial de despejo estão intrinsecamente ligados, sendo que o decretamento do despejo está dependente da decisão definitiva sobre o direito de preferência.
Isto porque, a requerida neste procedimento (inquilina) é a preferente na compra e venda do imóvel arrendado à aqui requerente. Por isso, o desfecho deste procedimento depende em abstracto daquela acção.
Sucede que, não obstante o mencionado, outro enquadramento se sobrepõe ao da causa prejudicial, tendo em linha de conta simplesmente os mesmos factos.
Com efeito, importa atentar que, quando a requerente peticiona, a 04/08/2023, o despejo contra a requerida já estava pendente a acção declarativa comum (acção de preferência) desde o ano de 2022. Aliás, não havia ainda sido proferida sentença que, entretanto, proferida não transitou em julgado.
Ora, estamos perante factualidade que consubstancia uma excepção dilatória inominada que obsta ao conhecimento do mérito do pedido – artigo 278.º, alínea e) do C.P.C.
De facto, em momento prévio ao presente procedimento especial de despejo, a requerida intentara acção declarativa comum, através da qual reclama o exercício do direito de preferência, podendo vir a assumir a propriedade do bem cuja entrega se lhe exige nestes autos. A qualidade das partes está controvertida noutra acção, ainda não transitada em julgado, não se vislumbrando fundamento para o prosseguimento de acção declarativa comum (despejo), nem procedimento especial de despejo, até que tal preferência se decida.
Acresce, convém referir, que os presentes autos têm natureza urgente, o que é absolutamente incompatível com a discussão da acção de preferência. No fundo, enquanto durar a dita acção, a requerente não poderá fazer valor o seu direito nesta forma de processo especial.
Como referido, somos de considerar que os factos alegados pela requerida como sendo a existência de causa prejudicial são antes qualificáveis como excepção dilatória inominada, com base na circunstância de, desde o ano de 2022 (momento anterior ao presente procedimento), estar controvertida a qualidade das partes no contrato e a definição dessa qualidade contratual depender da decisão na acção de preferência.
Nem se diga que a requerida confessa nestes autos que é inquilina. Pois sê-lo-á até decisão de mérito em contrário e com efeitos à data da realização da escritura pública do imóvel objecto da preferência.
Em último recurso, caso assim não se entenda, sempre se estaria perante a mesma excepção, mas com base no uso indevido do procedimento, impondo a resolução da questão através de acção declarativa comum e nunca neste procedimento especial.
Nessa medida, fica prejudicada a apreciação da junção atempada ou não dos documentos por parte da requerida e naturalmente o mérito do pedido.
Pelo exposto, o Tribunal julga verificada, por provada, a excepção dilatória inominada que obsta a que conheça do mérito da causa (artigos 576.º, n.os 1 e 2, 577.º) e absolve a requerida da instância (artigo 278.º, n.º 1, alínea e) todos do C.P.C.). ... »
Do assim decidido, a requerente interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I – Nulidade por excesso de pronúncia
1. A douta decisão sob censura padece de vício de excesso de pronúncia, uma vez que não foi dada oportunidade prévia às partes, mormente à aqui apelante, para se pronunciar sobre a suposta excepção dilatória inominada e sobre a excepção de uso indevido do procedimento especial de despejo, configurando, por isso, a decisão sob censura uma decisão-surpresa, proibida, desde já, pelo n.º 3 do artigo 3.º do C.P.C.
2. Sucede que nenhuma das partes suscitou a questão da excepção dilatória inominada ou a questão do uso indevido do procedimento especial de despejo, nem, muito menos, teve a ora apelante oportunidade de exercer o seu contraditório, como, inclusive, era imposto pelo n.º 3 do artigo 3.º do C.P.C.
3. Atento àquela proibição do n.º 3 do artigo 3.º do C.P.C. o conhecimento, sem a prévia audiência das partes, de uma excepção dilatória, que põe termo ao processo, traduz-se no conhecimento de uma questão em relação à qual o juiz não podia tomar conhecimento, padecendo, por isso, a decisão proferida de nulidade por excesso de pronúncia, cf. segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C.
4. Termos em que, salvo melhor e douta opinião, a sentença objecto de recurso configura uma decisão surpresa, padecendo de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C., nulidade esta que expressamente se invoca para os devidos efeitos legais.
Sem prescindir,
II – Da alegada excepção dilatória inominada
5. A douta sentença objecto do presente recurso julgou verificada uma excepção dilatória inominada, considerando que até decisão final na acção de preferência não pode qualquer acção declarativa ou procedimento especial de despejo prosseguir.
6. No entanto, salvo melhor e douta opinião, o facto de que a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel dos autos se encontra controvertido noutro processo, quando muito configura uma causa prejudicial que determina a suspensão da instância (e nunca a absolvição da instância).
7. Com efeito, é há muito pacífico na nossa jurisprudência que a pendência de acção declarativa onde se discute a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel arrendado configura mera causa prejudicial, devendo lançar-se mão dos mecanismos consagrados nos artigos 92.º e 272.º do C.P.C.
8. Nem se consegue descortinar como é que a natureza urgente do procedimento especial de despejo veda a possibilidade de se suspender a presente instância, atento à ausência de norma legal expressa nesse sentido, cf. artigos 15.º-A e ss. do N.R.A.U.
9. Sendo, em todo o caso, posição unanime na jurisprudência a possibilidade de se suspender o procedimento especial de despejo por existência de causa prejudicial, cf. cit. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08 de Outubro de 2015, processo n.º 1311/14.3YLPRT.E1, disponível em www.dgsi.pt.
10. Termos em que deverá a douta decisão sob censura ser revogada e substituída por douto Acórdão que julgue improcedente a excepção dilatória inominada invocada pelo tribunal a quo.
III – Da excepção de uso indevido do procedimento especial de despejo
11. Além da referida excepção dilatória inominada supra analisada, o tribunal a quo entende, ainda, verificar-se a excepção dilatória de uso indevido do procedimento especial de despejo, remetendo a sua fundamentação para as considerações tecidas em sede da pretensa excepção dilatória inominada.
12. No entanto, sublinha-se que só se pode falar de uso indevido de um procedimento injuntório quando o pedido formulado se encontra fora das finalidades visadas por este procedimento, isto é, fora das finalidades a que se refere o artigo 15.º do N.R.A.U.
13. Compulsados os autos facilmente se verifica que as partes celebraram um contrato de arrendamento, que o presente procedimento especial de despejo visava a efectivação da cessação daquele contrato de arrendamento e que a aqui apelante cumpriu as suas obrigações fiscais decorrentes da celebração do contrato de arrendamento.
14. Ao contrário do que parece entender a decisão sob censura, a apelada não ocupa mais a posição de inquilina, porquanto indubitavelmente o contrato de arrendamento se extinguiu no termo do prazo por caducidade, na sequência da oposição à renovação efectuada pela ora apelante.
15. Sendo a caducidade do contrato de arrendamento, em virtude de oposição à renovação válida apresentada pelo senhorio, um dos fundamentos que justifica o recurso ao procedimento especial de despejo, cf. n.º 2 do artigo 15.º do N.R.A.U., não existindo dúvidas que a pretensão deduzida pela Apelante é reconduzível à finalidade específica do procedimento especial de despejo.
16. Termos em que é imperioso concluir que não se verifica uso indevido daquele procedimento, devendo a douta sentença sob censura ser, também, revogada nessa parte e substituída por outra que julgue por não verificada aquela excepção dilatória.
Em todo o caso,
IV – Do conhecimento do mérito da questão
17. Entende a ora apelante que os autos dispõem de elementos suficientes para conhecer do mérito da questão controvertida que se encontrou, de certo modo, prejudicado pela verificação pelo Tribunal a quo da supra-referida excepção dilatória, impondo-se, por isso, o recurso ao mecanismo estabelecido no artigo 665.º do C.P.C.
18. Na opinião da ora requerente, o litígio emergente da mencionada acção de preferência, apesar de, em abstracto, poder configurar uma causa prejudicial aos presentes autos, em virtude dos moldes em que o mesmo se equaciona, o mesmo não se revela determinante para se suspender os presentes autos.
19. Como já resulta dos autos, foi proferida na mencionada acção de preferência douta sentença que julgou manifestamente improcedente a pretensão da ora apelada, por ter julgado procedente a excepção de caducidade do direito de preferência da mesma.
20. A Apelada funda o seu recurso de apelação naquele processo no facto de que não lhe foi comunicado o preço da fracção, mas tão-somente o preço global do contrato de compra e venda, porém, e como é consabido, a obrigação de preferência cumpre-se com a comunicação dos elementos essenciais do projecto de venda, cf. artigo 416.º do C.C., por ser esse o negócio que iria celebrar.
21. Salvo melhor e douta opinião, a apelada, no âmbito da mencionada acção de preferência, suposta causa prejudicial dos presentes autos, com a sua pretensão recursiva está a tentar obviar ao máximo a entrega do imóvel, em relação ao qual bem sabe não ter qualquer direito que legitime a sua posse.
22. Havendo, por isso, sérias razões para crer que a Apelada recorreu da douta Sentença que julgou manifestamente improcedente a sua pretensão para tentar deferir o momento de entrega da fracção através da suspensão dos presentes autos.
23. Termos em que se impõe, nos termos do n.º 2 do artigo 272.º do C.P.C., que não seja decretada a suspensão da instância com fundamento na existência de causa prejudicial, devendo ser ordenado o normal prosseguimento dos autos de despejo.
Sem prescindir,
24. Atendendo à manifesta ausência de boa aparência de direito, por ser provável que o recurso na acção de preferência seja julgado improcedente, atento ao facto de estar verificada a caducidade do direito de preferência da apelada, sempre se deveria tomar conhecimento da questão a título incidental, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 91.º do C.P.C.
25. Através de uma análise perfunctória incidental do mérito da causa prejudicial, em particular atento ao facto do direito de preferência da apelada estar caducado, como reconheceu o tribunal da 1.ª instância naquele processo, deve a causa prejudicial (o exercício do direito de preferência da apelada) ser, a título incidental, julgada improcedente e, em consequência, deverá ser ordenado o normal prosseguimento dos autos de despejo.
A sentença sob censura violou, entre outros, os seguintes preceitos legais: artigos 3.º, n.º 3, 549.º e 615.º, n.º 1, alínea d) do C.P.C., artigo 15.º do N.R.A.U.
Nestes termos, nos mais de Direito e sempre com o douto suprimento de V. Exas., deverá ser considerado procedente o presente recurso, assim se fazendo a costumada Justiça!
A recorrida não respondeu a estas alegações de recurso.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se a decisão recorrida é nula por excesso de pronúncia.
ii. Se a pendência da acção de preferência interposta pela requerida arrendatária constitui uma causa prejudicial e/ou importa a absolvição da instância da requerida.

III. Nulidades da decisão recorrida:
A recorrente sustenta que a decisão recorrida é nula por excesso de pronúncia uma vez que foi proferida sem ter sido dada prévia oportunidade às partes para se pronunciarem sobre a suposta excepção dilatória inominada e sobre a excepção de uso indevido do procedimento especial de despejo, configurando uma decisão-surpresa, proibida pelo n.º 3 do artigo 3.º do C.P.C
A nulidade da sentença prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil consiste em o juiz conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento. Parece, portanto, que se o tribunal conhece de questões de que devia tomar conhecimento, como é o caso, manifestamente, das consequências da pendência da acção de preferência sobre a instauração do procedimento especial de despejo, tal nulidade não pode existir.
Por outro lado, a violação do principio do contraditório consagrado no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, parece corresponder sempre à omissão de um acto processual prescrito na lei (a notificação da parte para tomar, querendo, posição sobre algo de que se irá conhecer) pelo que em regra, estaremos perante uma nulidade processual com o regime que é próprio das nulidades processuais, designadamente perante quem devem ser arguidas e em que prazo, não perante uma nulidade da sentença que conheça das questões de que tem de conhecer.
É, no entanto, conhecido que ultimamente alguma doutrina, que passou a ser seguida por alguma jurisprudência, ampliou significativamente o sentido tradicional das causas de nulidade da sentença, entendendo que se para conhecer de determinada questão de que deve conhecer, o tribunal deve ordenar previamente a prática de determinado acto processual (v.g. ouvir as partes), a falta deste acto equivale à ausência das condições em que aquele conhecimento pode ter lugar, caso em que a sentença que conheça da referida questão será nula não por o juiz ter conhecido do que não podia conhecer mas por ter conhecido do que nessas condições concretas ainda não podia conhecer.
Mesmo que se siga esta tese, parece que no caso não existe mesmo nulidade da sentença.
Com efeito, uma coisa é estar suscitada uma determinada questão e as partes já terem tido oportunidade de sobre ela se pronunciarem, tendo-o aliás feito, outra coisa é a qualificação jurídica que o tribunal faz dos factos que constituem essa questão e as consequências jurídicas que deles retira e que podem diferir daquelas que ambas as partes supuseram e sobre as quais entenderam tomar posição.
As questões suscitadas são as situações fáctico-concretas invocadas que possuem relevo jurídico para a apreciação e o julgamento da acção, não são nem os argumentos jurídicos que se travam a propósito dessas situações, nem o modo como as mesmas são qualificadas do ponto de vista jurídico, designadamente quanto aos efeitos que deles decorrem ou podem decorrer.
As partes têm de ser ouvidas previamente sobre as situações invocadas, cabendo-lhes a elas o ónus de não apenas proceder à respectiva qualificação jurídica, como de se pronunciarem sobre os eventuais efeitos jurídicos, sejam eles os que a parte arguente sustenta, sejam eles outros conjecturáveis à luz da ordem jurídica.
O tribunal goza de inteira liberdade na qualificação jurídica dos factos, designadamente daqueles que surgem invocados a título de excepção, de questão prévia ou outro, não tendo a obrigação de previamente à sua decisão, caso entenda que a qualificação feita pelas partes não é correcta e deve ser outra, de ouvir previamente as partes sobre a qualificação que considera adequada. Se assim fosse, aliás, dificilmente processo algum teria uma duração adequada ou razoável, quando é suposto que é do interesse das partes, do tribunal e da sociedade que os processos sejam decididos com celeridade, respeitado apenas as características que lhe conferem equidade.
No caso, a requerida invocou na oposição que antes da instauração do procedimento especial de despejo já ela tinha instaurado contra a requerente e o anterior proprietário da fracção arrendada uma acção de preferência no negócio jurídico através do qual foi transferido para a ora requerente a titularidade do direito de propriedade sobre a fracção e consequentemente a qualidade de senhorio. A requerente pronunciou-se sobre essa situação na resposta à oposição, tendo então tido oportunidade de tecer sobre ela as considerações jurídicas que entendeu, designadamente quanto aos respectivos efeitos jurídicos.
É certo que (excluído a questão da litispendência que, entretanto, foi decidida e não é objecto do presente recurso, até porque foi julgada, e bem, improcedente) o que a requerida defendeu em função da pendência da acção de preferência foi que «a presente acção não pode prosseguir sem, previamente, ter sido decidida definitivamente a acção anterior», isto é, defendeu a suspensão e não a extinção da instância do procedimento, como acabou por ser decidido.
Todavia, ao concluir pela extinção da instância o tribunal não se afastou dos factos que haviam sido alegados pela requerente (a pendência da acção de preferência) e procedeu apenas à sua qualificação jurídica de forma diferente daquela que as partes tiveram em mente.
Nesse sentido e medida, independentemente do acerto da decisão, afigura-se-nos que o princípio do contraditório não tem a extensão de exigir a audição prévia das partes sobre o modo como o tribunal tenciona qualificar os factos jurídicos concretos sobre os quais as partes já se pronunciaram (caso em que a esmagadora maioria das sentenças tinha de ser antecedida de um projecto de sentença a notificar às partes para que elas se pronunciassem, com os atrasos, as controvérsias e a complicações inevitáveis) e, portanto, que no caso não estamos perante uma sentença que haja conhecido de uma questão de que (nas condições actuais ainda) não podia conhecer.
Existe ainda outra razão para não acolher a alegação da nulidade da sentença.
Trata-se do facto de o artigo 665.º do Código de Processo Civil determinar que ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação, donde resulta que, no sistema de recursos vigente, a nulidade da sentença não determina a anulação do processado e o regresso dos autos à fase anterior ao cometimento da nulidade.
Por isso, como muito bem anotou no Acórdão da Relação de Coimbra de 20.12.2011, relatado por Henrique Antunes, in www.dgsi.pt, «na apelação, a regra é da irrelevância da nulidade, uma vez ainda que julgue procedente a arguição e declare nula a sentença, a Relação deve conhecer do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 do CPC). No julgamento da arguição de nulidade da decisão impugnada de harmonia com o modelo de substituição, impõe-se ao tribunal ad quem o suprimento daquela nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 e 731 nº 1 do CPC). Contudo, nem sempre, no julgamento do recurso, se impõe o suprimento da nulidade da decisão recorrida nem mesmo se exige sempre sequer o conhecimento da nulidade, como condição prévia do conhecimento do objecto do recurso. (…) Raro é o caso em que o recurso tenha por único objecto a nulidade da decisão recorrida: o mais comum é que a arguição deste vício seja apenas mais um dos fundamentos em que o recorrente baseia a impugnação. Sempre que isso ocorra, admite-se que o tribunal ad quem possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, por exemplo, quando ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada (artº 137 do CPC)».
Por tudo isso, sendo, no caso concreto, absolutamente inútil conhecer da nulidade da decisão recorrida, uma vez que o objecto do recurso é constituído também pelo respectivo mérito, mesmo que ela exista não se justifica conhecer dela, devendo passar-se directamente à avaliação do mérito da decisão impugnada, como pretendido pela recorrente.

IV. Fundamentação de facto:
O tribunal a quo elencou a seguinte fundamentação de facto da sua decisão:
A. Corre termos no Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia a acção declarativa comum n.º 7951/22.0T8VNG, no âmbito da qual é autora a aqui requerida B... Unipessoal, Lda. e réus C... e A..., S.A., no âmbito da qual são formulados os seguintes pedidos:
a. Condenação dos réus a reconhecerem que a autora é arrendatária, há mais de dois anos, da fracção autónoma identificada no artigo 2.º da petição inicial.
b. Declaração da nulidade da venda objectivada pela escritura de 16/05/2022, a folhas 61 a 63 verso do livro 411A no Cartório de AA, por violação do direito de preferência da sociedade autora – aqui requerida -, nos termos dos artigos 1091.º e 416.º e seguintes do C.C.
c. Cancelamento de quaisquer inscrições feitas a favor dos réus ou de terceiros com fundamento no putativo direito destes em relação ao dito imóvel.
d. Substituição da segunda ré na titularidade e posse da aludida fracção, posição essa que será ocupada pela autora.
e. Reconhecimento da autora como dona e legítima proprietária, com efeitos desde 16/05/2022, do imóvel identificado no artigo 2.º da petição inicial.
f. Declaração do contrato de arrendamento identificado no artigo 1.º da petição inicial extinto por confusão em 16/05/2022.
g. Condenação solidária dos réus a restituírem tudo o que houverem recebido da autora a título de rendas desde essa data até ao trânsito em julgado da presente, a liquidar oportunamente, mas que à data da propositura da acção se cifra em 3.716,94€.
h. A fixação de uma sanção pecuniária compulsória para a entrega material do imóvel e da quantia que for devida a título de rendas, no montante de dez unidades de conta por cada mês de atraso.
B. Por sentença proferida a 22/09/2023, ainda não transitada em julgado, foi julgada procedente a excepção peremptória da caducidade e os réus absolvidos dos pedidos.

V. Matéria de Direito:
Como vimos, a requerida opôs-se ao procedimento especial de despejo mediante a invocação de que antes da instauração deste já ela havia instaurado contra o requerente e o anterior proprietário da fracção arrendada uma acção tendo por objecto, entre outras coisas contraditórias e juridicamente incorrectas, a declaração do direito de preferência na compra e venda da fracção celebrada pelos ali demandados e a sua substituição na posição de adquirente da fracção.
Com essa oposição, a requerida pretendeu que o procedimento especial de despejo fosse suspenso até à decisão definitiva da acção (que por simplicidade designaremos acção de preferência embora não seja só esse o seu objecto), uma vez que se a mesma vier a ser julgada procedente, a requerente é substituída pela aqui requerida na posição de adquirente e senhoria e o contrato de arrendamento extingue-se por confusão.
O tribunal a quo parece ter entendido que entre aquela acção e este procedimento existe uma relação de causa prejudicial porque, diz, o decretamento do despejo está dependente da decisão definitiva da acção de preferência.
Não obstante isso, em vez de aplicar a norma que rege sobre a existência de causa prejudicial, entendeu que esse facto «consubstancia uma excepção dilatória inominada que obsta ao conhecimento do mérito do pedido» por ser de momento controvertido quem é o proprietário do arrendado e, como tal, o senhorio, caso em que «não se vislumbra fundamento para o prosseguimento de acção declarativa comum (despejo), nem procedimento especial de despejo, até que tal preferência se decida».
Acrescentou que o procedimento tem «natureza urgente», que isso «é absolutamente incompatível com a discussão da acção de preferência», e que «enquanto durar a dita acção, a requerente não poderá fazer valer o seu direito nesta forma de processo especial». E terminou expressando que se assim não for entendido «sempre se estaria perante a mesma excepção, mas com base no uso indevido do procedimento».
Com todo o devido respeito, deve dizer-se de forma peremptória que nenhum destes argumentos procede ou constitui uma forma juridicamente aceitável de equacionar e decidir a questão colocada.
A existência de uma causa prejudicial, se existir, jamais se traduz, converte ou consubstancia uma excepção dilatória, nominada ou inominada, porque uma excepção dessa natureza nunca advirá da mera circunstância de entre a acção e outra acção se estabelecer uma relação de prejudicialidade.
Qualquer questão que numa acção tenha a natureza de questão incidental ou prejudicial do objecto principal da acção é, em princípio, igualmente da competência do tribunal que tem de julgar a acção, aplicando-se-lhe o regime dos artigos 91.º e 92 do Código de Processo Civil, que não tratam essa situação como uma excepção dilatória.
A circunstância de o arrendatário ao contestar a acção de despejo impugnar a existência, validade ou titularidade do direito de quem ocupa no contrato a posição do senhorio nunca impedirá o senhorio de, havendo incumprimento do contrato de arrendamento, instaurar a acção de despejo. A ser invocado, esse meio de defesa terá de ser apreciado na acção, nos termos e condições consagrados no artigo 91.º e 92.º do Código de Processo Civil.
Por conseguinte, tratar a dedução de um meio de defesa baseado na impugnação de um dos pressupostos do direito do autor como uma excepção dilatória (que, naturalmente, na impossibilidade de a caracterizar, teve de se catalogar como inominada) é, com todo o devido respeito, totalmente errado.
Aspecto algo diferente é o de estar pendente acção na qual a questão que é usada como meio de defesa noutra acção surge como questão principal a decidir, situação que remete para a figura da causa prejudicial.
Nos termos do n.º 1 do artigo 272º do Código de Processo Civil, o tribunal pode (sublinha-se, pode, não deve) ordenar a suspensão da instância, entre outras situações, quando a decisão da causa esteja dependente do julgamento de outra já proposta. Segundo o n.º 2 da norma, não obstante a pendência de causa prejudicial, a suspensão não deve ser ordenada se houver fundadas razões para crer que ela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as suas vantagens.
A lei define a relação de prejudicialidade entre duas acções como sendo aquela que se estabelece quando a decisão de uma está dependente do julgamento da outra. Dito de outro modo, uma acção é prejudicial quando o seu objecto inclui uma questão que condiciona necessariamente a apreciação de outra questão em qualquer acção que tenha como objecto a questão dependente.
Verifica-se essa situação quando um dos pressupostos do direito que está a ser exercido na acção (pressupostos do direito ou da situação jurídica que o permitiu ou gerou) está a ser questionado e a ser colocado directamente em crise na outra acção, de modo que se esta for julgada procedente aquele pressuposto desaparece e consequentemente a outra acção fica destituída de fundamento, tendo de ser julgada improcedente.
Segundo Manuel de Andrade, in Lições de Processo Civil, págs. 491 e 492, só existe verdadeira prejudicialidade e dependência quando na primeira causa se discute, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental. Segundo o autor, nada impede, todavia, que se alargue a noção de prejudicialidade, de maneira a abranger outros casos, podendo considerar-se prejudicial, em relação a outro em que se discute a título incidental uma dada questão, o processo em que a mesma questão é discutida a título principal.
Segundo Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, volume 3º, páginas 205, 206 e 268 e segs., uma causa – subordinada – está dependente do julgamento de outra – prejudicial – quando o julgamento ou decisão de questão a apreciar nesta possa interferir ou prejudicar o julgamento ou decisão daquela, nomeadamente modificando, afectando ou inutilizando os seus efeitos, destruindo os seus fundamentos ou despindo-a de razão de ser. O fundamento essencial da suspensão por pendência de causa prejudicial radica na economia e coerência de julgamentos.
Uma causa depende do julgamento da outra quando nesta se aprecia uma questão cuja solução, por si só, pode modificar os pressupostos jurídicos que têm de ser reconhecidos na decisão daquela para que o direito possa ser exercido.
Causa prejudicial é aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir com a decisão da causa dependente, influenciando essa decisão através da destruição ou modificação dos fundamentos em que esta se baseia. Haverá essa relação quando na acção prejudicial se discute em via principal uma questão essencial para a decisão da acção dependente.
De referir que a prejudicialidade pressupõe a coincidência parcial de objectos processuais simultaneamente pendentes em causas diversas. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.02.1993, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 424, pág. 587, citando Teixeira de Sousa, in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXIV, a prejudicialidade a que se refere o citado art. 279º, nº 1, verifica-se quando a dependência entre objectos processuais é acidental e parcialmente consumptiva e pode definir-se como a situação proveniente da impossibilidade de apreciar um objecto processual (o objecto processual dependente) sem interferir na análise de um outro (o objecto processual prejudicial).
Em síntese, pode afirmar-se que:
a- «I- Para efeitos do disposto no art. 279º, nº 1 do CPC, uma causa está dependente do julgamento de outra já proposta, quando a decisão desta pode afectar e prejudicar o julgamento da primeira, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando, na causa prejudicial, esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito. II - Entende-se, assim, por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.» - Acórdão da Relação do Porto de 07.01.2010, in www.dgsi.pt -.
b- «I - A suspensão da instância não exige uma dependência total entre as duas acções, sendo suficiente uma dependência parcial. II - Trata-se de um poder-dever a ser utilizado apenas quando for justificado por razões ponderáveis.” - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.03.1998, in www.dgsi.pt -.
c- «Não se verifica tal nexo (de prejudicialidade ou dependência entre duas causas) “quando a decisão da alegada causa prejudicial não pode entrar em rota de colisão com a proferida na causa subordinada, cuja suspensão da instância foi determinada.» - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.01.2010, in www.dgsi.pt -.
Dito isto cabe perguntar se existe uma relação de prejudicialidade entre uma acção de despejo (ou um procedimento especial de despejo, tanto faz) e uma acção de preferência interposta pelo arrendatário para passar a ocupar a posição de adquirente do bem arrendado na venda que o anterior senhorio fez ao terceiro que instaurou a acção de despejo invocando precisamente a aquisição da posição de senhorio através do negócio jurídico no qual o arrendatário reclama ter direito de preferência.
Numa primeira abordagem a resposta parece ser afirmativa porque a acção de preferência tem por objecto a titularidade do direito de propriedade sobre o arrendado e na acção de despejo é o proprietário/senhorio que se apresenta a resolver o contrato de arrendamento e a exigir a entrega do locado. Logo seríamos levados a pensar que o pressuposto desta acção/procedimento de despejo (ter a resolução sido declarada pelo senhorio e o pedido de entrega do arrendado deduzido por este) está em discussão na outra acção podendo, em caso de procedência da mesma, deixar a acção/procedimento de despejo de ter como autor o … senhorio.
Todavia, vendo melhor só aparentemente isto é assim.
Na verdade, a acção de preferência não tem por objecto, a título principal ou incidental, saber quem é o proprietário do imóvel (arrendado); o que se discute nessa acção são os pressupostos do direito de preferência do terceiro num determinado negócio jurídico. A decisão que será proferida nessa acção ou mantem o adquirente da coisa na titularidade do direito adquirido (em caso de improcedência da acção) ou opera a sua substituição pelo terceiro que se apresentou a exercer o direito de preferência e que viu esse direito ser-lhe reconhecido (em caso de procedência da acção). Nessa medida a acção de preferência é compatível com a acção/procedimento especial de despejo e não a prejudica em nada.
O que sucede é que se a acção de preferência proceder e for decretado que o preferente passe a ocupar a posição do adquirente da propriedade do bem arrendado, o contrato de arrendamento se extinguirá nessa ocasião. Mas isso não sucederá por razões que resultem da acção de preferência ou por efeito da sua decisão, sucederá por aplicação do instituto da confusão (entre a posição de senhorio e de arrendatário) com base em circunstâncias que se prendem com algo diverso, isto é, com o facto exterior à acção de preferência de o preferente reunir, em simultâneo, qualidades que determinem a aplicação daquele instituto (dar-se a circunstância de o preferente ser o arrendatário).
A acção de preferência tem natureza constitutiva. A modificação que, caso seja procedente, ela opera na esfera jurídica depende e produz-se por efeito da sentença e no momento em que a sentença transita em julgado. Até lá, enquanto isso não ocorrer, não há modificação da esfera jurídica do autor e do réu e a titularidade do bem continua a caber a quem celebrou com o transmitente o contrato de alienação, no qual o autor da acção pretende exercer o direito potestativo de preferência; portanto, é também ele, por sucessão ex lege, o senhorio no contrato de arrendamento.
Por outro lado, a transmissão do bem arrendado não gerou a extinção do contrato de arrendamento, pelo que este continua em vigor e subordinado ao respectivo regime jurídico, designadamente no tocante à exigibilidade dos direitos e obrigações das partes. Em consequência, também a instauração da acção de preferência não pode ter a virtualidade de suspender o contrato de arrendamento enquanto não transitar em julgado a respectiva sentença, deixando os direitos e as obrigações dos respectivos contraentes numa espécie de … estado de hibernação
Se assim fosse, então bastaria ao inquilino demandado na acção de despejo instaurar, por exemplo, uma acção de preferência, uma acção de reivindicação, uma acção de declaração de nulidade por simulação da aquisição pelo senhorio do direito de propriedade sobre a coisa arrendada, ou sucessivamente cada uma delas, para obter de imediato e por tempo indeterminado a suspensão das obrigações que resultam da relação de arrendamento.
Ora não é esse o objectivo da figura da causa prejudicial e da suspensão da instância que ela determina.
Aquela solução levaria a que suspensão acabasse por se traduzir não apenas numa suspensão da instância, ou seja, numa paralisação da tramitação de uma acção até que outra seja decidida e essa decisão (sendo procedente) exclua directamente um dos pressupostos do direito reclamado na acção suspensa conduzindo à respectiva improcedência imediata, mas essencialmente na suspensão do regime jurídico do contrato que constitui a causa de pedir da acção suspensa.
O objectivo da figura da causa prejudicial (daí o regime do artigo 92.º do Código de Processo Civil que permite ao tribunal decidir questões prejudiciais para as quais não seria sequer competente) é evitar decisões contraditórias, evitar que numa acção se profira uma decisão partindo de um pressuposto que está a ser discutido noutra acção e na qual ele pode vir a ser afastado.
Da acção de preferência instaurada pelo arrendatário poderá vir a resultar a constituição de uma nova situação, de uma modificação na esfera jurídica, mas ainda que a opere esta será sempre uma nova situação que não invalida ou prejudica a actual, apenas a substitui. O pressuposto da instauração da acção de despejo não desaparece, não é eliminado; só muda o seu titular.
É certo que a decisão que reconheça e concretize o direito de preferência tem efeito retroactivo. Todavia, o efeito retroactivo não significa que tudo se deva passar como se a sentença já existisse … enquanto não existe sequer, como se mais do que ser retroactivo, o efeito já existisse quando … nem há ainda qualquer sentença que o declare!
Os pressupostos do direito de preferência têm, em regra, de estar reunidos no momento da celebração do negócio no qual se tem direito de preferência e, excepto quando o contrário resultar dos próprios termos em que a preferência legal é atribuída e/ou do fim social da norma que o atribui, para o direito ser declarado bastará que o estejam nessa altura.
O efeito retroactivo significa apenas que após a consolidação da modificação na ordem jurídica da substituição do adquirente pelo preferente haverá que passar a tratar o preferente como se ele fosse o adquirente desde o momento da celebração do negócio jurídico onde tinha direito de preferência, restituindo o que houve que restituir e repondo a posição jurídica decorrente dessa nova qualidade.
Isso tanto ocorre se o preferente ainda se encontrar no gozo da coisa na qualidade de arrendatário, caso em que o seu direito se converte, com efeitos à data referida, em direito de propriedade, consumindo o direito de arrendatário, como se ele já tiver perdido esse gozo por extinção da relação contratual de arrendamento por causa prevista no respectivo regime jurídico (sem prejuízo dos casos em que essa perda possa determinar igualmente a extinção ou perda do direito de preferência), caso em que ele recupera a coisa já não ao abrigo do direito (obrigacional) de gozo do arrendatário, mas do direito (real de aquisição) do proprietário.
E até pode dar-se o caso de haver prestações realizadas que tenham de ser restituídas para assegurar essa retroactividade, obrigando à restituição por enriquecimento sem causa, sem que isso impeça que a constituição da modificação na esfera jurídica do preferente só ocorra por efeito da sentença e aquando do respectivo trânsito em julgado[2].
Em suma, a instauração da acção de preferência pelo arrendatário nem assume verdadeiramente a natureza de uma causa prejudicial da acção de despejo, nem, ainda que se considere que tem essa natureza, justifica a suspensão da instância até à decisão definitiva daquela porque até lá e enquanto a acção de preferência não vier a ser julgada procedente, o senhorio é e continua a ser o adquirente da posição de proprietário do bem arrendado e o contrato de arrendamento não ficou suspenso com a instauração da acção de preferência.
Em qualquer circunstância a pendência simultânea de duas acções não configura de modo algum uma excepção dilatória que obste a que o tribunal conheça do mérito da causa na acção de despejo e dê lugar à absolvição da instância.
Para justificar a absolvição da ré da instância e a extinção do procedimento especial de despejo independentemente do que se passar na acção de preferência (onde por acaso já existe decisão de improcedência, ainda que não transitada em julgado), o Mmo. Juiz a quo invocou ainda, de modo esforçado, a natureza urgente do procedimento especial de despejo e aquilo que designa por uso indevido do procedimento, expressão que interpretamos como querendo designar o «erro na forma de processo».
Cremos bem que nenhum dos argumentos procede.
Em primeiro lugar não se percebe o que se pretende com o argumento da urgência.
Afinal de contas a decisão de extinção do procedimento especial de despejo acabou com o próprio procedimento, portanto, não só não respeitou o sentido da atribuição de urgência, como teve mesmo subjacente a sua paralisação por tempo indeterminado até à decisão da outra acção. Invocar a urgência para adoptar uma decisão que impede em absoluto e irreversivelmente a urgência, com todo o devido respeito, não faz qualquer sentido.
Em segundo lugar, a urgência do procedimento não impede que neste se tenha de discutir o que houver que discutir, nem, tão pouco que nele não se possam praticar as diligências necessárias para que as mesmas possam ser decididas de forma cabal.
O que sucede é apenas que nos termos do artigo 15.º-S do NRAU, na versão ainda em vigor e aplicável aos autos, aos prazos do procedimento especial de despejo aplicam-se as regras previstas no Código de Processo Civil, não havendo lugar à sua suspensão durante as férias judiciais, nem a qualquer dilação (n.º 5), e os actos a praticar pelo juiz no âmbito do procedimento especial de despejo assumem carácter urgente (n.º 8). O que estas disposições nos dizem é somente que os prazos processuais não se suspendem durante as férias judiciais e que os actos a praticar pelo juiz têm preferência na sua realização relativamente aos actos a praticar noutros processos[3].
De todo o modo, havendo oposição do requerido (artigo 15.º-F do NRAU) e não sendo extinto o procedimento pela desocupação do locado, por desistência ou por morte do requerente ou do requerido (artigo 15.º-G do NRAU), distribuídos os autos o juiz pode «convidar as partes para, no prazo de 5 dias, aperfeiçoarem as peças processuais, ou, no prazo de 10 dias, apresentarem novo articulado sempre que seja necessário garantir o contraditório», e «não julgando logo procedente alguma excepção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou não decidindo logo do mérito da causa, o juiz ordena a notificação das partes da data da audiência de julgamento” (artigo 15.º-H, nº 2 e 3, do NRAU).
Tem, pois, aplicação o princípio geral de que o demandado não está sujeito a qualquer limitação do seu direito de defesa podendo deduzir os meios de defesa que entender, designadamente questões substantivas, as quais devem ser apreciadas no procedimento em causa. Se o requerido vem invocar que a extinção do contrato não se produziu de forma válida, caberá discutir no procedimento tudo quanto esteja implicado no mérito da pretensão, sem que a urgência referida o impeça ou altere.
É o que resulta, aliás, do artigo 15.º-I, que rege sobre a audiência de julgamento, estabelecendo que se as partes estiverem presentes ou representadas na audiência, o juiz procura conciliá-las, frustrando-se a conciliação, produzem-se as provas que ao caso couber, que a audiência é gravada, que as provas são oferecidas na audiência, podendo cada parte apresentar até três testemunhas, que havendo necessidade de realizar prova pericial esta é realizada mas apenas por um perito, que o juiz pode suspender a audiência se for indispensável para a boa decisão da causa que se proceda a alguma diligência de prova, que finda a produção de prova, cada um dos mandatários pode fazer uma breve alegação oral, que a sentença carece de fundamentação, ainda que sucinta, sendo logo ditada para a acta.
Não há, pois, absolutamente nenhum argumento que se possa retirar do disposto nos n.os 5 e 8 do artigo 15.º-S do NRAU, que justifique a recusa de decidir qualquer questão que, tendo sido invocada ou sendo de conhecimento oficioso, deve obrigatoriamente ser conhecida pelo tribunal na sentença, ou que impeça que havendo uma causa prejudicial o procedimento especial de despejo possa ser suspenso à espera da decisão da outra acção, se for caso disso. Muito menos que a partir desse dado o tribunal inclusivamente se abstenha de conhecer do mérito e absolva o demandado da instância.
Também não colhe minimamente o argumento do «uso indevido do procedimento».
O n.º 1 do artigo 15.º do NRAU estabelece que o procedimento especial de despejo é um meio processual que se destina a efectivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes. E o n.º 2 estabelece, na parte aplicável ao caso, que apenas podem servir de base ao procedimento especial de despejo, independentemente do fim a que se destina o arrendamento, em caso de cessação por oposição à renovação, o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no n.º 1 do artigo 1097.º ou no n.º 1 do artigo 1098.º do Código Civil.
O procedimento apresentado serve o objectivo que lhe é assinalado pela norma e tem por base os documentos que a norma fixa, pelo que não se vislumbra onde e com que fundamento se pode considerar que o seu uso é indevido, sendo certo que a parte goza do direito legal e constitucional de acção e, portanto, tem o direito potestativo de instaurar as acções que entender necessárias para a defesa dos seus direitos, só necessitando para isso de observar a forma legal especialmente fixada para o objecto a que se propõe. E, como é evidente, esse uso (pelo autor) não pode ser ou tornar-se indevido em função dos meios de defesa que o demandado vier a opor à pretensão do autor!
Refira-se, ex abundanti, que o regime do erro na forma do processo está consagrado no artigo 193.º do Código de Processo Civil e não só não possui o regime das excepções dilatórias como, por regra obedece precisamente ao oposto, ou seja, em vez de anular o processo que enferma de erro na forma, o que o juiz deve, excepto se tal implicar a diminuição das garantias do réu (caso em que então sim a anulação é total e se pode falar em excepção dilatória), é anular unicamente os actos que não possam ser aproveitados e ordenar a prática dos que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.
A regra é, pois, em homenagem ao princípio da economia processual e do aproveitamento dos actos, a convolação do processo para a forma adequada, praticando-se oficiosamente os actos estritamente necessários para tal, ainda que isso não implique absoluta coincidência.
Em conclusão, a decisão recorrida deve ser revogada, de modo a que o procedimento especial de despejo possa prosseguir os seus termos legais.

VI. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida de absolvição da requerida da instância e ordenam que o procedimento especial de despejo prossiga os seus termos legais.

Custas do recurso pela recorrida, a qual vai condenada a pagar à recorrente, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça por aquela suportada.
*

Porto, 11 de Janeiro de 2024.
*
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 789)
Ana Luísa Gomes Loureiro
Francisca Mota Vieira



[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]
______________
[1] Cf. nesse sentido Agostinho Guedes, in O exercício do direito de preferência, Publicações Universidade Católica, Porto, 2006, ou a propósito do artigo 1410º do Código Civil, Elsa Sequeira Santos, in Código Civil Anotado, Volume II, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 222, sublinhando que se trata de uma «acção de natureza constitutiva, mediante a qual o tribunal se substitui à declaração de vontade do obrigado à preferência. Deste modo, procedendo a acção, a sentença produz o efeito translativo do direito sobre a quota, sem necessidade de qualquer forma adicional».
[2] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-04-2010, proc. n.º 81/05.OTBMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[3] Curiosamente, nas alterações já aprovadas pelo artigo 34.º da Lei n.º 56/2023, de 6 de Outubro, mas que apenas produzirão efeitos a partir do dia 7 de Fevereiro de 2024, essas disposições são eliminadas