Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO | ||
Descritores: | CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO IMPUTAÇÃO GENÉRICA E CONCLUSIVA | ||
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Nº do Documento: | RP20211124304/20.6PAVLG.P1 | ||
Data do Acordão: | 11/24/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO. | ||
Indicações Eventuais: | 4ª. SECÇÃO (CRIMINAL) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - As imputações conclusivas, genéricas, abrangentes e difusas, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o mau trato físico e/ou psíquico, com menção do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, devem ter-se como não escritas, não podendo servir de suporte à qualificação da conduta do agente. II - Contudo, relativamente ao momento e lugar da prática do crime não tem necessariamente de se reportar a uma concreta data e sitio; o direito ao contraditório, à defesa e ao processo equitativo fica assegurado quando, na impossibilidade da datação de todas as condutas ofensivas, integradoras dos maus tratos, se fixarem apenas balizas temporais da sua verificação. III - Resulta da experiência comum, haver comportamentos humanos, sancionados penalmente, em relação aos quais não é possível (ou humanamente exigível) a concretização, quanto ao dia e à hora, de todos os atos que os integram; relativamente a comportamentos reiterados que se vão prolongando ao longo dos anos não é exigível de ninguém, sequer a vítima, que fixe/memorize o dia e o lugar concretos em que ocorreu cada um dos comportamentos ofensivos do agente. IV - Ainda assim, a descrição fáctica sempre terá que ter alguma concretização, de forma a que seja possível localizar as imputações no tempo e no espaço com suficiente precisão, ainda que por referência apenas ao ano, a algum momento festivo, a algum acontecimento, com mais ou menos significado; a solução terá de ser encontrada caso a caso, o que passará por ponderar se a factualidade descrita tem a densidade suficiente para permitir uma defesa eficaz por parte do arguido, ao nível do exercício do seu direito ao contraditório. V - Relevando a concretização dos factos ao exercício do contraditório, não se vê como este possa ter-se como violado se o arguido, apesar da imprecisão temporal, confessa parcialmente um dado facto, identificando de forma clara e esclarecida o evento relatado na acusação, contextualizando-o, ainda que também ele não consiga situá-lo no tempo e lhe dê uma versão diferente da que lhe é imputada. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Reclamação no Recurso Penal nº 304/20.6PAVLG.P1 Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: 1. RELATÓRIO Após realização da audiência de julgamento no Processo nº 304/20.6PAVLG do Juízo Local Criminal de Valongo - Juiz 1, foi em 13 de julho de 2021 proferida sentença, e na mesma data depositada, na qual se decidiu (transcrição): “IV. DISPOSITIVO: Nestes termos e pelos fundamentos acima expostos, o Tribunal decide: 1. Condenar o arguido B... pela prática em autoria material, na forma consumada e concurso real de três crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e d) e n.º 2, al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles. 2. Condenar o arguido B... na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão. 3. Suspender a execução dessa pena de prisão por igual período de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses. 4. Subordinar a suspensão da execução da pena, nesse período, a regime de prova, conforme o previsto no artigo 53º do mesmo código, a qual assentará em plano individual de readaptação a elaborar pelos serviços da DGRSP, conforme o disposto no artigo 494º, n.º 3 do Código de Processo Penal, sujeitando-se ainda o arguido, nos termos dos artigos 52º, n.º 3 e 54º, n.º 2 do Código Penal, às seguintes obrigações e deveres, que se revelam com interesse na execução do plano individual de readaptação: - Responder a convocatória do tribunal e do técnico de reinserção social durante o período de suspensão de execução da pena; - Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso. - Cumprimento das penas acessórias fixadas infra (proibição de contacto com a ofendida C... pelo período de três anos e com a ofendida D…, pelo período de um ano). - Frequência do programa para agressores de violência doméstica (PAVD), nos termos do artigo 52º, n.º 1, al. b) do Código Penal. 5. Condenar o arguido na pena acessória de proibição de contactos com C..., incluindo da sua residência e local de trabalho pelo período de 3 (três) anos devendo o cumprimento de tal condição ser fiscalizado, caso se verifiquem os legais pressupostos, por meios técnicos de controlo à distância, mediante a motorização telemática posicional ou outra tecnologia idónea, de acordo com os sistemas tecnológicos adequados, com exceção do tratamento de questões relacionadas com as responsabilidades parentais da filha menor E…. 6. Condenar o arguido na pena acessória de proibição de contactos com D..., incluindo da sua residência, estabelecimento de ensino universitário e local de trabalho (prevendo a possibilidade da mesma arranjar um emprego) pelo período de 1 (um) ano devendo o cumprimento de tal condição ser fiscalizado, caso se verifiquem os legais pressupostos, por meios técnicos de controlo à distância, mediante a motorização telemática posicional ou outra tecnologia idónea, de acordo com os sistemas tecnológicos adequados. 7. Condenar o arguido B... no pagamento da quantia para ressarcimento dos prejuízos não patrimoniais sofridos pela ofendida C..., a que acrescem os respetivos de mora à taxa supletiva de 4% devidos até efetivo e integral pagamento. 8. Condenar o arguido B... no pagamento da quantia para ressarcimento dos prejuízos não patrimoniais sofridos pela ofendida D..., a que acrescem os respetivos de mora à taxa supletiva de 4% devidos até efetivo e integral pagamento. 9. Condenar o arguido B... no pagamento da quantia para ressarcimento dos prejuízos não patrimoniais sofridos pela ofendida E..., a que acrescem os respetivos de mora à taxa supletiva de 4% devidos até efetivo e integral pagamento”. Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o arguido B... para este tribunal da Relação do Porto, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem: A - O presente recurso tem como objecto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos; B – O arguido foi acusado, e condenado, pela prática de três crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo art. 152º.-1 a) e d) e 2 CP; C - Com efeito, entre os factos que resultaram provados e levaram à condenação do arguido, contam-se factos resultantes do que o tribunal considerou uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação; D - Mas houve alteração substancial dos factos descritos na acusação; E - O descrito nos números 28., 48., 49., 50., 51. e 52. dos factos provados, não estava, não existia, não constava da acusação pública, não podendo o Tribunal a quo sanar tal vício por recurso aos meios previstos no artigo 358º. do CPP, porque o objeto do processo penal é o objeto da acusação, constituindo ela, acusação, as balizas do julgamento; F - É nula a sentença, por ter condenado por factos diversos dos descritos na acusação; G - Os factos 4, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 42, 43,44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53 e 54 dados como provados, contêm meras imputações genéricas, sem uma precisa especificação das condutas, não se indicando o lugar, nem se precisando cabalmente as datas concretas, nem a motivação, nem as circunstâncias relevantes em que ocorreram, pois só assim se pode atingir o facto global, deste tipo concreto e específico de crime submetido a julgamento, impedindo o exercício do contraditório por parte do arguido, pelo que devem considerar-se não escritos; H - Ainda que assim não seja entendido - o que não se admite- sempre tais factos, por conterem conceitos vagos, gerais e indeterminados, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do arguido, nem relevar para o efeito do enquadramento jurídico-penal dos factos (não podendo ser avaliados para qualquer outro acto ilícito criminal), pois este tipo de crime especial impõe particulares exigências ao nível da certeza, da clareza e da precisão e da completude dos actos imputados ao arguido acusado, para que deles se possa eficazmente defender, direito de defesa constitucionalmente consagrado (art.º 32ºn.º 1 da CRP); I - Os 'factos provados 4, 53 e 54' nada têm de factos, antes configurando não mais que meras conclusões e juízos; J - O facto 5 não pode ser considerado crime, nem à data em que terá sido praticado integrava as situações típicas (de vivência) previstas no art º 152º da CP; K - Os factos 8, 9, 10, 11, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 27, 33 e 39 não foram apreciados "segundo as regras da experiência", não havendo no processo prova suficiente para justificar a consideração deles como provados; L - Quanto aos factos - tal como devem ser apreciados e juridicamente valorados-referentes à ofendida C..., a que o Tribunal atendeu apenas recorrendo ao depoimento desta, sem qualquer outra prova que corroborasse a sua versão, não revelaram tais factos um tratamento insensível ou degradante na ofendida C..., nem o domínio ou a subjugação da mesma, nem tão pouco se provou que o arguido quisesse e tivesse conseguido afectar de modo grave, a saúde física, psíquica ou emocional daquela, pondo em causa a sua dignidade como pessoa; M - Quanto à ofendida D... - dando-se por não escritos face à alteração da matéria de facto verificada-, restam como suporte à qualificação jurídica da conduta do arguido as situações descritas nos pontos 29. a 41. da matéria de facto dada como provada; N - E, quanto a este último, a dar-se por provado que o arguido lhe disse que saíssem de imediato de casa, se não "era hoje”, bastaria reparar nas declarações proferidas pela própria ofendida D... (gravadas no local acima referido) - “a minha mãe disse para nos prepararmos para sair de casa”-, que com medo do arguido fugiram de casa e foram resgatadas por uma vizinha- “vinha a vizinha, a F…, buscar-nos, saímos e a vizinha já estava lá à porta”- e que foram perseguidas pelo arguido- e nas declarações da ofendida C... (gravadas no local acima referido) “ele disse para nós não irmos, sentou-se no chão a chorar, eu e as meninas caminhamos e ele seguiu-nos pelo corredor fora e quando entramos no elevador ele pediu Oh E…! Fica! (…) e ele ficou em cima “-, pelo que aquele entendimento é meramente conclusivo, sem nenhum suporte factual que possa levar a essa conclusão. Logo, nunca poderia ser dado como provado; O - Quanto à ofendida E..., a dar-se como provados os número 26. e 46., o arguido bateu-lhe com as mãos /o arguido desferiu uma bofetada na face da menor, tal entendimento é meramente conclusivo, sem nenhum suporte testemunhal, pois “uma marca na cara” da E… - e não uma marca de dedos na face - , não permite chegar àqueles factos provados, àquelas conclusões. Assim, nunca poderia ser dado como provado tais “agressões”, sendo incorrectamente julgados tais factos e, a ser dada como provada- que não pode ser-, não é susceptível de integrar a qualificação de um crime de violência doméstica sobre a menor E...; P - A factualidade apurada nos pontos 29. a 41.(mas apenas a que deva ser apreciada e juridicamente valorada), não é suficiente para qualificar a actuação do arguido como autor do crime de violência doméstica cometido sobre as ofendidas C..., D... e E..., pois, nenhum daqueles factos, cada um por si ou em conjunto, têm “gravidade” suficiente para integrar o crime de violência doméstica; Q - Os actos alegadamente praticados pelo arguido não revelam crueldade, insensibilidade, desejo de vingança, em suma, gravidade suficiente para levar à condenação dele pela prática dos crimes por que foi acusado e condenado; R - Não são todas as ofensas corporais que cabem na previsão criminal do art.º 152º, mas apenas aquelas que se revistam de uma certa gravidade e que traduzam crueldade ou insensibilidade, ou até vingança do agente, e que sejam aptas a lesar o bem jurídico protegido com o crime de violência doméstica – a saúde física, psíquica e emocional e a dignidade da pessoa humana; S - O Tribunal a quo ao dar como provados os factos provados, na versão que consta da fundamentação da sentença, violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.127º. do CPP; T - Por outro lado, ao dar como provados os factos 28., 48., 49., 50., 51. e 52, que não constavam da acusação pública, nem de narração sintética, violou, ainda, o disposto nos arts. 283º., nº.3, b), art. 358º. e art. 379º., nº.1, b), todos do CPP; U - Sem prescindir do supra alegado e admitindo, por mera hipótese académica, como provados os factos em que assentou a sentença objecto de recurso, constatamos, claramente, que o recorrente não praticou os crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art.152º., do CP, porquanto da prova produzida em julgamento não resultou que os actos praticados pelo arguido, assumissem a gravidade que se exige, por forma a traduzirem-se em crueldade e insensibilidade, em posição de domínio, de subjugação com as ofendidas, afectando a dignidade delas enquanto pessoas, elementos fundamentais para o preenchimento daquele tipo de ilícito legal; V - Pelo exposto, é inequívoco que o Recorrente não cometeu os crimes em que foi condenado e deles deverá ser absolvido, bem como, e em consequência, das respectivas indemnizações arbitradas, por não estarem verificados os pressupostos de que depende a sua procedência; X - Caindo os crimes, inexiste, pois, justificação para o arbitramento de indemnização cível; Z - Decidindo pela condenação do arguido pela prática dos crimes de violência doméstica, violou a douta sentença recorrida o disposto nos arts. 21º. Lei 112/2009, de 16 de Setembro, 32º.-1 CRP, 152º.-1 a) e d) e 2 CP, e 127º., 283º.-3 b), 308º.-2, 358º.-1 e 379º.-1 e 2 CPP, pelo que é ilegal e, como tal, conhecendo-se da nulidade invocada, deve ser substituída por outra que decrete a absolvição do arguido. Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida e, em consequência, ser o recorrente absolvido da prática dos crimes de violência doméstica em que foi condenado, bem como das respectivas indemnizações arbitradas”. Por despacho foi o recurso apresentado pelo arguido regularmente admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo. Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo às motivações de recurso vindas de aludir, entendendo que o recurso interposto pelo arguido deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente o douto Acórdão proferido. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, acompanhando os considerandos constantes da resposta do Ministério Público na 1ª instância, pugna pela improcedência do recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida. Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o arguido, discordando do referido parecer, reiterou a posição anteriormente assumida. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência. Cumpre apreciar e decidir. * 2. FUNDAMENTAÇÃO Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior. Entre outros, pode ler-se no Ac. do STJ, de 15.04.2010, in http://www.dgsi.pt.: “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso”. Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal são: 1ª Da nulidade da sentença por alteração substancial dos factos descritos nos pontos 28., 48., 49., 50., 51. e 52. dos factos provados 2ª Da violação do princípio do contraditório: - por imputação genérica dos factos 4, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 42, 43,44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53 e 54 dados como provados; e - por imputação de meras conclusões e juízos relativos aos pontos 4,53 e 54. 3ª Do princípio da livre apreciação e a impugnação ampla dos factos 8, 9, 10, 11, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 27, 33 e 39 dados como provados 4ª Da impugnação da matéria de direito, inclusivamente quanto ao ponto 5 à data da respetiva ocorrência; 5ª Do arbitramento oficioso da indemnização civil Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa, a fundamentação de facto da decisão recorrida, que é a seguinte (transcrição): 1.1. Factos Provados: Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos: - Da acusação pública: 1. A ofendida C... e o arguido B... conheceram-se há cerca de 23 anos atrás, tendo iniciado uma relação de namoro pouco tempo depois. 2. No dia 17.06.2000, a ofendida e o arguido contraíram matrimónio, tendo fixado residência na Rua …, .., … Valongo. 3. Fruto desta relação, nasceu E..., no dia 22.08.2010 e D..., no dia 10.02.2002. 4. Ao longo da relação o arguido foi manifestando perdas de controlo ao nível emocional, tornando-se agressivo e intempestivo para com C..., bem como mais tarde para as suas filhas menores. 5. Assim, na fase de namoro, em data não concretamente apurada, quando C... conduzia o veiculo automóvel do arguido, este, sem mais, puxou o travão de mão durante uma discussão, tendo o veículo se atravessado no caminho e ficado imobilizado. 7. Após terem contraído matrimónio, no período de gravidez da filha D..., no decurso de uma discussão, o arguido desferiu um encontrão na ofendida C..., desvalorizando de seguida o sucedido e dizendo-lhe que não tinha sido nada de especial e que até tinha sido desferido devagar. 8. Cerca de 2 a 3 anos mais tarde, após o nascimento de D..., no interior da casa de morada de família, o arguido, que tinha a menor ao colo, recusou-se a entrega-la à C.... Mas, a dada altura, a menor lançou-se para os braços da mesma, tendo o arguido agarrado esta pelo pescoço, fazendo força de modo a que a mesma ficasse ajoelhada no chão diante de si. 9. Em data não concretamente apurada, mas quando a D... teria cerca de 8/10 anos de idade, durante uma discussão, sem motivo aparente, o arguido pegou no fio das chaves do seu carro e colocou-o à volta do pescoço de C..., apertando-o, só tendo parado por a D... ter gritado. 10. Ainda quando D... era uma criança, em data não concretamente apurada, na casa de morada de família, na presença da menor, o arguido, sem mais, puxou os cabelos de C... e empurrou-a para o chão, estando ela a tentar fugir dele. 11. Quando a menor D... tinha cerca de 5 anos, o arguido pegou-a pela roupa que ela envergava e abanou-a com força, dizendo-lhe que a ia matar, enquanto C... gritava para que ele parasse com tal agressão. 12. Durante a infância de D..., por diversas vezes, o arguido perseguiu a menor e a sua cônjuge C... pela residência, desferindo murros e pontapés pela casa fora. 13. Também, ao longo da relação, por inúmeras vezes, o arguido criticou C..., acusando-a de não cumprir com as suas obrigações de mulher como manter a casa limpa ou cozinhar e cuidar das filhas sem o seu auxilio e apelidou-a, bem como às suas filhas, de “filhas da puta”. 14. Numa época em que C... se encontrava desempregada, o arguido passou a controlar os quilómetros que ela fazia na sua viatura quando ia levar as filhas à escola e outras atividades extracurriculares. 15. Nessa altura, o arguido acusou C... de comer à sua custa e disse-lhe que todos os problemas financeiros existentes na família eram da sua responsabilidade. 16. Em data não concretamente apurada, o arguido começou aos gritos com a menor D..., exigindo-lhe que saísse de casa e fosse procurar a sua progenitora que tinha saído, trazendo-a de volta para a habitação. 17. Com medo do arguido, a menor telefonou para C..., mas sem sucesso. 18. De seguida, D... vestiu-se, saiu à rua para procurar a sua progenitora, mas foi seguida pelo arguido que, por seu turno, continuava aos gritos consigo. 19. Todavia, ao aperceber-se que uma vizinha estava a observá-los, o arguido regressou à habitação, levando consigo a sua filha D... e, uma vez no seu interior, pisou-lhe os pés. 20. Mas, ao ser novamente surpreendido pela tal vizinha, o arguido cessou com a sua conduta, libertando a menor. 21. Nesse dia, com medo de voltar a casa, a menor dirigiu-se a pé para casa dos seus avós maternos. 22. No ano de 2019, após ter sido sujeito a uma intervenção cirúrgica, o arguido permaneceu mais tempo na casa de morada de família, importunando verbal e fisicamente as ofendidas com maior assiduidade. 23. Em data não concretamente apurada, quando D... estava na cozinha a confecionar a refeição, o arguido começou a ficar irritado com a sua filha mais nova, E..., porque a menor não conseguia fazer os trabalhos escolares de forma correta. 24. Ao ver o arguido a ficar mal-humorado e zangado, D... disse-lhe que ia ajudar a sua irmã. 25. Sem mais, o arguido começou aos gritos, vociferando que sabia o que ela estava a fazer e que o pretendia era não arrumar a cozinha. Depois, ordenou-lhe que fosse imediatamente arrumar tudo pois, caso contrário, não sabia o que lhe fazia. 26. De seguida, o arguido dirigiu-se à menor E... e bateu-lhe com as mãos. 27. Em data não concretamente apurada, quando os avós maternos se encontravam a lanchar na casa de morada de família, o arguido dirigiu-se à cozinha e, sem mais, empurrou D... contra a porta de vidro e, agarrando-a pelos cabelos, ordenou-lhe que lhe desse o telemóvel, o que assim fez. 28. Em data não concretamente apurada do verão de 2019, na casa de morada de família, por a D... não ter feito determinada coisa que o arguido lhe tinha pedido, agarrou-a por trás, pelo pescoço e braço, tendo aquela ficado encostada à porta da cozinha, mais lhe dizendo “sua filha da puta, estás na minha casa e aqui fazes o que eu mando”. 29. No dia 18.12.2019, porque a ofendida C... pediu ao arguido que fosse buscar a filha E... ao Tankidoo, aquele disse-lhe que merda de mulher era ela para não ter o jantar do marido pronto. 30. Passados uns minutos, a ofendida C... tentou contatar telefonicamente com a sua filha D... para aferir do ambiente em casa, mas esta recusou-lhe a chamada. 31. Com receio do que pudesse estar a ocorrer na residência, a ofendida C... contatou com dois vizinhos seus, pedindo-lhes para aí se deslocarem e acolherem as suas filhas menores até à sua chegada. 32. Entretanto, no interior da residência, o arguido começou a gritar com as suas filhas menores, dizendo que “não tem jeito nenhum um homem vir do trabalho e não ter o jantar feito”, atirando objetos pelo ar e dizendo-lhes que saíssem de imediato de casa, se não “era hoje”. 33. Com medo do arguido, as duas menores fugiram de casa, tendo sido resgatadas por uma vizinha, de nome F…, que as acolheu na sua residência. 34. Posteriormente, a ofendida C... pediu ao arguido que saísse de casa para aí regressar com as suas filhas. 35. De imediato, o arguido recusou-se e insultou a ofendida C..., dirigindo-lhe as seguintes palavras “puta”, “és uma grande merda”. 36. Mas, passados uns minutos, o arguido ligou para C... e, com um tom de voz calmo e cordato, declarou que nada de especial se tinha passado, tentando convencê-la de que poderia regressar a casa. 37. Após uma troca de palavras, o arguido concordou em sair de casa momentaneamente, para que C... e as menores fossem buscar os seus pertences pessoais à dita habitação. 38. Porém, uma vez na residência, as ofendidas foram surpreendidas pelo arguido que lhes pediu para ficarem, chorando e afirmando que sem elas não era nada. 39. Mas, as ofendidas acabaram por sair da habitação, vindo a ser perseguidas pelo arguido pela escadaria do prédio que lhes pedia continuamente para ficarem com ele. 40. Durante o percurso, a menor E... começou a chorar compulsivamente, pedindo à sua mãe e irmã que regressassem a casa, alegando que o pai poderia espetar uma faca no peito e matar-se. 41. A menor apenas se conteve quando C... pediu ao arguido que prometesse à filha que não faria tal coisa, o que assim ele fez. 42. Após o sucedido, C... e as suas filhas foram residir para a casa dos pais da mesma, local onde permaneceram até dia 13 de junho de 2020. 43. Posteriormente, as ofendidas foram residir para uma habitação arrendada, sita em …, na cidade de Paredes. 44. Após a separação de facto, o arguido continuou a fazer pressão na ofendida C..., não comparticipando nas despesas das suas filhas menores, mas, concomitantemente, se opondo à separação e partilha dos bens do casal, o que a obrigou a desembolsar os seus parcos recursos financeiros nas despesas relativas ao fornecimento de água, luz e gás da habitação sita em Valongo, não obstante já aí não residir. 45. Em data não concretamente apurada, a ofendida C... telefonou ao arguido, pedindo-lhe que entregasse a filha E... em casa, tendo o mesmo reagido mal e começando a discutir com ela. 46. De seguida, após a chamada, o arguido desferiu uma bofetada na face da menor, alegando ter sido por culpa da sua mãe, a ofendida C.... 47. Após uma hora, o arguido entregou a menor E... que apresentava uma marca de dedos na face e um ligeiro inchaço. 48. Em datas não concretamente apuradas, mas frequentemente, o arguido dizia à ofendida C... que a casa parecia uma pocilga, um antro, mais lhe dizendo que era uma grande merda, uma vaca, que fazia a vida dele num inferno, que não fazia nada de jeito, que só dava trabalho, que não sabia educar as filhas e que era uma badalhoca. 49. Em data não concretamente apurada, mas quando a D... teria cerca de 15 anos, o arguido partiu-lhe a unha do pé com o cabo do aspirador. 50. Em data não concretamente apurada, mas quando a D... teria cerca de 16/17 anos, o arguido tentou colocá-la na rua. 51. Em datas não concretamente apuradas, o arguido empurrava a mesa contra a cadeira onde estava sentada a D..., por forma a assim a manter presa. 52. Em datas não concretamente apuradas, mas frequentemente, o arguido dizia à ofendida D... que era uma badalhoca, uma malandra, que não queria fazer nada, mais a apelidando de filha da puta. 53. O arguido quis maltratar psicologicamente as ofendidas, sua cônjuge e suas duas filhas menores, sabendo que com tal conduta lhes causava dor física e psíquica, em particular angústia e tristeza, pretendendo que se sentissem menorizadas, receosas e humilhadas, o que assim logrou, bem sabendo que as afetava na sua saúde, querendo, ainda, atingi-las na sua dignidade pessoal, o que também alcançou. 54. Também, ao expor as menores D... e E... à violência a que submetia a sua progenitora, ao longo de todos estes anos, sabia que ia causar nas mesmas um sentimento de permanente receio e de inquietação, atentando, assim, contra a sua saúde e bem-estar psíquico, o que assim o logrou. 55. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, desinteressando-se por completo pelo bem-estar da sua cônjuge e das suas filhas menores. 56. O arguido atuou livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. …………………. …………………. …………………. Daí a necessidade de um especial cuidado na seleção dos factos nestes contextos, considerando que art.30.º manda atender ao número de crimes efetivamente cometidos pelo agente, mas também ao número de vezes que a mesma norma é preenchida pelo comportamento do agente. A problemática do concurso não se esgota no concurso heterogéneo, havendo ainda de atentar no concurso homogéneo, determinando quantas vezes cada tipo de crime é efetivamente realizado. Ora, em relação a cada uma das referidas vitimas, a acusação imputava ao arguido uma série de comportamentos perpetrados nesse mesmo contexto. Uma vez constatada uma situação de múltiplos episódios violentos, perpetuados ao longo do tempo, tal circunstância, sem mais, serve para preencher o “modo reiterado” e, por conseguinte, todos os episódios perdem autonomia e são considerados globalmente. Os factos novos provados sob pontos 28., 48., 49., 50., 51. e 52. são atos isolados que se inserem, como habitual, no contexto factual mais amplo correspondente ao conjunto de maus tratos físicos e/ou psíquicos desenhados na acusação em relação a cada uma das ofendidas, durante um determinado espaço de tempo, num mesmo contexto motivacional. Sendo assim, bem andou o tribunal a quo ao comunicar tal alteração não substancial dos factos, nos termos e para efeitos do art.358º, nº1, do Código Processo Penal, não se verificando o vício de nulidade previsto no art.379º, nº1, al.b), do Código Processo Penal. Na verdade, tratando-se de uma alteração simples ou não substancial, por não alterar o objeto do processo, “o tribunal pode investigar e integrar no processo factos que não constam da acusação e que tenham relevo para a decisão do processo. A lei exige apenas, como condição de admissibilidade, que ao arguido seja comunicada…a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo necessário para a preparação da defesa”[1] . Nestes termos, improcedendo a arguição de nulidade da sentença, carece de fundamento a pretensão recursiva. 2ª Da violação do princípio do contraditório: imputação genérica e conclusiva Pretende o recorrente que os factos por si elencados sejam considerados não escritos, atento o seu conteúdo genérico e vago, com a sua consequente absolvição dos crimes de violência doméstica. Concretamente, - por imputação genérica dos factos 4, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53 e 54 dados como provados; e - por imputação de meras conclusões e juízos relativos aos pontos 4, 53 e 54 dados como provados. Ora, nos termos do artigo 374º, nº2, do C.P.Penal, a fundamentação da sentença consiste, nomeadamente, na enumeração dos factos provados e não provados. Na seleção da matéria de facto, seja provada ou não provada, o tribunal deve ater-se a factos, entendidos estes no sentido naturalístico e histórico, como acontecimentos ou comportamentos devidamente individualizados ou localizados no espaço e no tempo, não se devendo aí incluir conceitos de direito, proposições normativas ou juízos de valor. Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante. Como vem sendo pacificamente entendido pela jurisprudência, as imputações conclusivas, genéricas, abrangentes e difusas, habitualmente com recurso a expressões vagas, imprecisas, nebulosas e obscuras, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o mau trato físico e/ou psíquico, com menção do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado [2], devem ter-se como não escritas, não podendo servir de suporte à qualificação da conduta do agente» [3] . Com efeito, para além do direito à tutela penal que assiste à vítima, o arguido tem o direito a conhecer os factos imputados, os concretos factos em que assenta a imputação do crime em apreço, para os rebater e, desse modo, se poder defender, exercendo o seu direito ao contraditório, constitucionalmente garantido (art.32º, nº5, da C.R.P.). Assim, não são factos suscetíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado. Uma imputação de factos tem de ser precisa e não genérica, concreta e não conclusiva, recortando com nitidez os factos que são relevantes para caracterizarem o comportamento ilícito, incluindo as circunstâncias de tempo e de lugar. Contudo, relativamente ao momento e lugar da prática do crime não tem necessariamente de se reportar a uma concreta data e sitio. Como defende Plácido Conde Fernandes, in Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, Estudos, Revista do CEJ, 1º Semestre 2008, nº8, pág.305, o direito ao contraditório, à defesa e ao processo equitativo fica assegurado quando, na impossibilidade da datação de todas as condutas ofensivas, integradoras dos maus tratos, se fixarem apenas balizas temporais da sua verificação. Neste mesmo sentido refere o Ac RC 25/02/2015 (Maria José Nogueira), em www.dgsi.pt: “Se é certo que a acusação, além de outros elementos, deve, em princípio ser precisa relativamente a «quando» foi cometido o crime, tal não significa que essa indicação tenha necessariamente de se reportar a uma concreta data”. Com efeito, tal como se diz no Ac RE 3/06/14, em www.dgsi.pt: “A indicação das circunstâncias de tempo e de lugar não é, pois, obrigatória (tem de ser feita apenas se for possível), admitindo-se que, caso não seja possível mencionar o lugar e o tempo dos factos com inteira precisão, se refira, por exemplo, “em lugar desconhecido” ou “em local cuja localização exata não foi possível apurar”, e, quanto ao tempo, por exemplo, “em datas que, em concreto, não foi possível apurar”. Consabidamente, resulta da experiência comum, haver comportamentos humanos, sancionados penalmente, em relação aos quais não é possível (ou humanamente exigível) a concretização, quanto ao dia e à hora, de todos os atos que os integram. É o que sucede no caso destes autos, em que ocorre uma imputação de um comportamento reiterado, durante um período de tempo longo, num local determinado, mas que é o habitual (casa de habitação), e por um motivo concretizado. Como se referiu no acórdão do STJ 20/2/2019 (Júlio Pereira, processo 25/17.7GEEVR.S1) www.dgsi.pt: “… a falta de elementos mais circunstanciados respeitantes à localização temporal dos maus tratos tem que ser compreendida no contexto em que este tipo de crime ocorre, em dinâmica intrafamiliar, a maioria das vezes sem a presença de outras pessoas para além do ofensor e da ofendida (…). Acresce que, perante práticas reiteradas ao longo de dezenas de anos, os episódios em concreto diluem-se na fita do tempo, ganhando antes relevo a visão global da conduta do arguido, um pouco à semelhança de cada árvore que vê a sua individualidade ocultada na floresta. (…). A questão central que se coloca a respeito do crime de violência doméstica consiste em saber qual o grau de precisão e concretização factual, designadamente temporal e espacial, que se exige para a integração de tal ilícito, no qual a reiteração e a intensidade da ação do agente está no centro da sua definição e se vai prolongando ao longo de muitos anos e, por outro, em que medida é que tal se compatibiliza com o direito de defesa do arguido. Como sobredito, relativamente a comportamentos reiterados que se vão prolongando ao longo dos anos não é exigível de ninguém, sequer a vítima, que fixe/memorize o dia e o lugar concretos em que ocorreu cada um dos comportamentos ofensivos do agente. Ainda assim, a descrição fáctica sempre terá que ter alguma concretização, de forma a que seja possível localizar as imputações no tempo e no espaço com suficiente precisão, ainda que por referência apenas ao ano, a algum momento festivo, a algum acontecimento, com mais ou menos significado. A solução terá de ser encontrada caso a caso, o que passará por ponderar se a factualidade descrita tem a densidade suficiente para permitir uma defesa eficaz por parte do arguido, ao nível do exercício do seu direito ao contraditório. Na falta de concretização da data ou janela temporal da ocorrência, cuja relevância varia em função do maior ou menor período em que os factos perduraram, essa garantia será assegurada a partir de quaisquer circunstâncias marcantes e individualizadoras que permitam, por si e/ou conjugadamente com outras, no contexto da narração dos factos, localizar e/ou identificar os concretos episódios designadamente pela excecional intensidade ou gravidade do(s) ato(s), a singularidade e/ou narrativa detalhada do seu modo de execução, o contexto dos atos parciais nomeadamente pelos termos espácio-temporais ou motivacionais. Ademais, relevando a concretização dos factos ao exercício do contraditório, não se vê como este possa ter-se como violado se o arguido, apesar da imprecisão temporal, confessa parcialmente um dado facto, identificando de forma clara e esclarecida o evento relatado na acusação, contextualizando-o, ainda que também ele não consiga situá-lo no tempo e lhe dê uma versão diferente da que lhe é imputada. Se a acusação ou a pronúncia revelam insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto, mas a posição processual do arguido, designadamente na contestação e/ou declarações em julgamento demonstra ter claramente identificado, interpretado ou compreendido convenientemente um dado evento a julgar, suscitando a reação da defesa, confessando-o ou negando-o motivadamente. Tendo presente as particularidades do crime em causa, quando praticado no modo reiterado (trato sucessivo), apenas deverão ser tidas como não escritas as descrições que não contenham qualquer referência que permita localizar e/ou identificar os concretos episódios e, bem assim, o período em que perduraram. Aqui a referência temporal mínima é da maior relevância para individualização dos ciclos de violência ou estabelecer a conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente que pratica múltiplos comportamentos reiterados que se prolongam no tempo. Vejamos então se os factos apontados pelo recorrente consubstanciam imputações vagas, genéricas e conclusivas, sem qualquer concretização temporal e se, nessa medida, impediram o efetivo exercício do direito ao contraditório por parte do arguido. Relativamente ao ponto 10º escreveu-se: “Ainda quando D... era uma criança, em data não concretamente apurada, na casa de morada de família, na presença da menor, o arguido, sem mais, puxou os cabelos de C... e empurrou-a para o chão, estando ela a tentar fugir dele”. Quanto ao ponto 12º refere-se: “Durante a infância de D..., por diversas vezes, o arguido perseguiu a menor e a sua cônjuge, C... pela residência, desferindo murros e pontapés pela casa fora”. No ponto 13º afirma-se: “Também, ao longo da relação, por inúmeras vezes, o arguido criticou C..., acusando-a de não cumprir com as suas obrigações de mulher como manter a casa limpa ou cozinhar e cuidar das filhas sem o seu auxílio e apelidou-a, bem como às suas filhas, de “filhas da puta”. No ponto 14º diz-se que: “Numa época em que C... se encontrava desempregada, o arguido passou a controlar os quilómetros que ela fazia na sua viatura quando ia levar as filhas à escola e outras atividades extracurriculares”. E acrescenta-se no ponto 15º: “Nessa altura, o arguido acusou C... de comer à sua custa e disse-lhe que todos os problemas financeiros existentes na família eram da sua responsabilidade”. Escreve-se no ponto 22º: “No ano de 2019, após ter sido sujeito a uma intervenção cirúrgica, o arguido permaneceu mais tempo na casa de morada de família, importunando verbal e fisicamente as ofendidas com maior assiduidade”. No ponto 48º afirma-se: “Em datas não concretamente apuradas, mas frequentemente, o arguido dizia à ofendida C... que a casa parecia uma pocilga, um antro, mais lhe dizendo que era uma grande merda, uma vaca, que fazia a vida dele num inferno, que não fazia nada de jeito, que só dava trabalho, que não sabia educar as filhas e que era uma badalhoca. Acrescenta-se no ponto 51º: “Em datas não concretamente apuradas, o arguido empurrava a mesa contra a cadeira onde estava sentada a D..., por forma a assim a manter presa”. No ponto 52º escreveu-se: “Em datas não concretamente apuradas, mas frequentemente, o arguido dizia à ofendida D... que era uma badalhoca, uma malandra, que não queria fazer nada, mais a apelidando de filha da puta”. Ora, o arguido e a ofendido C... casaram e viveram juntos desde 17.06.2000 até 18.12.2019. A infância é a fase de crescimento do ser humano, a criança, que vai desde o nascimento até os onze anos de idade. Diz-se provado no ponto 14 que “numa época em que a C... se encontrava desempregada” e logo se acrescenta que no ponto 15º que “nessa altura”, mas sem afirmar quando e durante quanto tempo esteve desempregada, o que é relevante considerando que, segundo o arguido, ela teve vários empregos Dada a extensão temporal, imprecisão ou indeterminação do período em que são narrados os factos acima descritos dos pontos 10, 12, 13, 14, 15, 22, 48, 51 e 52, dado ainda que a expressão constante do ponto 22º (“o arguido permaneceu mais tempo na casa de morada de família, importunando verbal e fisicamente as ofendidas com maior assiduidade”) é absolutamente conclusiva, sem outras referências que individualizem e/ou concretizem esses factos, aceita-se que as imputações ali mencionadas são genéricas por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, impossibilitarem o direito de defesa constitucionalmente consagrado no art.32º, nº1, da C.R.P. não podem servir de suporte à qualificação das condutas do agente, devendo ser tidas como não escritas, como é entendimento jurisprudencial generalizado. Trata-se de afirmações genéricas, pouco precisos nos seus contornos espácio-temporais, sem outra concretização, que permita ao arguido contraditá-las. A aceitação dessas afirmações como “factos” inviabiliza o direito de defesa que assiste ao arguido e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.32.º da Constituição”. Nem semelhante grau de incerteza sobre a localização e/ou identificação espácio temporal desses atos ou mesmo sobre o modo de execução destes podia manter-se após o julgamento e na decisão condenatória, não apenas em nome do exercício pleno do direito ao recurso, mas também em função do princípio da presunção da inocência e do in dubio pro reo pro reo, corolário do primeiro, o qual impõe, em matéria de prova, que qualquer dúvida, incerteza, seja superada em favor do arguido. Tal imprecisão da matéria de facto provada, perante a amplitude conferida à conduta do agente, impede que se considere respeitado o princípio do contraditório, dado que o arguido não poderá validamente nestes casos pronunciar-se sobre a afirmação genérica em causa, uma vez que não concretizada ou individualizada noutros pontos. Essa imprecisão inviabiliza a sua aceitação para efeitos penais - excetuados os casos concretizados -, dado que tal constituiria uma violação do direito de defesa do arguido constitucionalmente consagrado. No mais, dir-se-á que no ponto 4º temos uma resenha do substrato factual constante dos pontos seguintes da matéria de facto, visando tão só enquadrar os comportamentos adiante descritos, onde se indicam concretamente os modos de atuação do arguido em relação a cada uma das ofendidas. Também os pontos 53º e 54º mais não são do que a descrição factual do dolo relativo a esse comportamento globalmente considerado em relação a cada ofendida. Quanto aos restantes pontos de facto não vislumbramos que contenham matéria vaga, genérica, sem qualquer concretização. Ainda que muitas destas imputações – perduradas no tempo - não tenham sido descritas por referência a datas determinadas – o que também já não decorria da acusação pública - e, nessa medida, contenham alguma imprecisão temporal, tal materialidade mostra-se balizada por períodos de tempo e/ou circunstâncias de modo e lugar em termos que consideramos esclarecida e suficientemente concretizados para o exercício do contraditório, não se verificando a violação do disposto no art. 283º, nº3, al.b) do Código de Processo Penal, nem tampouco do consignado no art. 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa. Não obstante a indicação de períodos de tempo mais alargados nessas imputações, as circunstâncias que a acompanham quanto ao modo e/ou lugar em que foram praticados tais atos no contexto ali descrito, resulta suficientemente caracterizado, nas diferentes vertentes, o evento a julgar, de modo a permitir a sua perceção e, consequentemente, a reação da defesa. Por conseguinte, não encerrando as descritas atuações, imputações genéricas, vagas, sem qualquer concretização, impeditivas de um exercício efetivo do direito ao contraditório, mas, ao invés, factos, entendidos como acontecimentos ou comportamentos da realidade em apreço, relevantes para aferir da existência dos elementos integrantes dos crimes em causa, carece de fundamento a pretendida eliminação dos restantes pontos da factualidade provada. Em suma, ressalvados os pontos 10, 12,13, 14, 15, 22, 48, 51 e 52 dos factos dados como provados, com a consequente eliminação da referência aos mesmos nos factos não provados, todos os restantes contêm a materialidade suficiente para permitirem o exercício do contraditório, que aliás não seria diferente se outra fosse a formulação da acusação dado que o arguido, conforme documentam os autos, se limitou a negar os maus tratos que lhe eram imputados. …………………….. …………………….. …………………….. 3. DECISÃO Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido B... e em consequência: a) corrigir os factos provados e não provados da decisão recorrida, nos precisos termos constantes da reformulação supra que aqui se dá por inteiramente reproduzida; b) mantendo-se no mais, ressalvada aquela modificação dos factos, a decisão impugnada que, assim, se confirma. Sem custas, por ter havido decaimento parcial do arguido/recorrente (art.513º, nº1, a contrario, do Código Processo Penal). Notifique. Acórdão elaborado pelo primeiro signatário em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelo Excelentíssimo Juíz Adjunto. Porto, 24.11.2021 João Pedro Pereira Cardoso Raúl Cordeiro. ___________________________________ [1] Cfr. Cruz Bucho, in “Alteração Substancial Dos Factos em Processo Penal, (versão desenvolvida e atualizada das comunicações apresentadas no Colóquio “Questões Práticas na Reforma do Código Penal” organizada pelo CEJ e realizada em Lisboa no dia 13/05/2009, pg. 45. [2] Como salientou o Acórdão do STJ de 21.02.2007 (Oliveira Mendes, processo n.o 06P4341), “o princípio ou cláusula geral estabelecido no n. 1 do art. 32.º da CRP significa, ao aludir a todas as garantias de defesa, que ao arguido, como sujeito processual, devem ser assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade da vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia, através de um julgamento imparcial, realizado com total independência do juiz, em procedimento leal e justo, sendo certo que a individualização e clareza dos factos objecto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender. Devendo, por tal, ter-se por não escritas as mencionadas imputações genéricas”. [3] A propósito do crime de violência doméstica afirma-se no ac RP 08-09-2020 (José Carreto) www.dgsi.pt: “I - As imputações genéricas sem indicação precisa do tempo, lugar e circunstancialismo em que ocorreram, inviabilizam um efetivo direito de defesa, pois impossibilitarem o cabal exercício do contraditório, pelo que devem considerar-se não escritas”. |