Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1947/11.4JAPRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MELO LIMA
Descritores: FLAGRANTE DELITO
Nº do Documento: RP201202011947/11.4japrt-B.P1
Data do Acordão: 02/01/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Configura uma situação de flagrante delito aquela em que, a juntar às fundadas suspeitas decorrentes da pendência de um inquérito contra o arguido, instaurado por uma filha da vítima e às informações prestadas pela esposa da vítima de que o agressor era "um indivíduo jovem, na fase etária dos vinte aos trinta anos de idade, trajando uma camisola escura e calças de ganga", a Polícia, cerca de 2 ou 3 horas depois da prática do homicídio, encontra o arguido e este na posse, na mala do carro em que acabava de se fazer transportar, de uma faca com uma lâmina de 19,3 cm de comprimento, que possuía vestígios hemáticos, sendo certo que a morte da vítima fora provocada por ferimentos causados por golpes de arma branca.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO Nº1947/11.4japrt-B.P1

Relator: Melo Lima

Acordam em Conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

1. B…, filho de C… e de D…, nascido em 09-05-1987, natural de …, Porto, solteiro, residente na Rua …, .., ..º Dto., …, Porto, sujeito, em 24.10.2011, no Tribunal Judicial da Maia (1º Juízo Competência Criminal), a 1º Interrogatório Judicial, findo este, viu ser proferida decisão, na qual, posto que considerando ilegal a detenção, determinou a prisão preventiva do arguido, fundamentando a ilegalidade daquela nos seguintes termos:
«Validação da detenção:
Da validade/invalidade da detenção do arguido:
Antes de mais, apreciemos o que se entende por detenção, por questão de precedência lógica.
Noção de detenção:
A detenção de alguém visa sempre as finalidades previstas no artigo 254º. Este artigo e os seguintes ocupam-se da detenção, a qual é efectuada ou — a) para, no prazo máximo de 48 horas o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para 1º interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção; ou — b) para assegurar a presença imediata ou, não sendo possível, no mais curto prazo, mas sem nunca exceder 24 horas, do detido perante a autoridade judiciária em acto processual.
Esta alínea b) compreende sempre a detenção fora de flagrante delito e concretiza, ao nível processual, a excepção contida na alínea f) do nº 3 do artigo 27º da Constituição.
Trata-se, neste caso, de uma medida de polícia do processo, permitida para evitar a perturbação dos trabalhos e as faltas sucessivas e é aplicável não só ao arguido, mas também a qualquer outra pessoa regularmente convocada para comparecer em diligência processual; neste caso, a detenção só poderá ser ordenada pelo juiz.
No caso de detenção fora de flagrante delito para aplicação ou execução da medida de coacção de prisão preventiva o arguido, nos termos do artigo 254º, nº 2, é sempre apresentado ao juiz.
A detenção é uma medida cautelar, não é uma medida de coacção processual. A noção de detenção envolve um sentido de precariedade numa tripla ordem de considerações: pela possível natureza não judicial da ordem, pela medida do tempo de duração a que está imperativamente conformada e pela imediata finalidade processual que a justifica e faz com que nessa finalidade se esgote. A detenção tem, pois, finalidades específicas, cautelares e de polícia, que a distinguem de outras formas de privação da liberdade; não é necessariamente dependente de mandado judicial, não pressupõe a qualidade processual de arguido, e tem uma limitação temporal absolutamente inultrapassável. O rigor da análise das condições da detenção, e o estrito respeito por prazos legais curtos, está muito presente, por exemplo, na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Cf. o Parecer nº 35/99 da PGR, publicado no DR—II Série de 24 de Janeiro de 2000. A detenção, traduzindo-se, embora, numa privação da liberdade — e muitas vezes funciona como prelúdio da prisão preventiva — não constitui uma medida de coacção processual, como a prisão preventiva, mas antes uma medida meramente cautelar, votada a certos e exclusivos fins (cf. Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, II volume, 2ª ed., 2000, p. 44). A detenção não deve ser confundida, como já se advertiu, com as medidas cautelares de polícia previstas no artigo 250º. Inclusive, a obrigação de identificação perante a autoridade competente não se considera medida de coacção (artigo 191º, nº 1). A detenção também não deverá confundir-se com a prisão preventiva. A detenção tem a ver com as fases preliminares do processo e a correspondente privação da liberdade só se prolonga se vier a ser confirmada por intervenção judicial, “isto para acentuar o carácter precário e condicional da detenção, sujeita à condição resolutiva da homologação judicial” (Maia Gonçalves, p. 521). A prisão preventiva é sempre imposta pelo juiz (artigo 202º, nº 1, do CPP).
A detenção fora de flagrante delito pode também ser ordenada por entidade diferente do juiz, mas sempre que qualquer entidade policial proceder a uma detenção comunica-a de imediato ou ao juiz, se for o caso da alínea b) do artigo 254º, ou ao MP, nos restantes casos.
No artigo 256º a lei distingue entre flagrante delito, quase flagrante delito e presunção legal de flagrante delito.
A detenção fora de flagrante delito só pode ser efectuada por mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público, desde que verificadas alguma das circunstancias prevista no nº 1 do artº 257º do CPP ou então nos casos previstos no artº 257º, nº 2, do CPP e desde que verificadas todas as circunstâncias aí referidas.
Por iniciativa das autoridades de polícia criminal (directores, oficiais, inspectores e subinspectores de polícia e todos os funcionários policiais a quem as leis respectivas reconhecerem aquela qualificação: artigo 1º, nº 1, alínea d)), a detenção fora de flagrante delito pode ainda realizar-se, se concorrerem os restantes pressupostos enumerados no nº 2 do artigo 257º do CPP (pressupostos de verificação cumulativa).
Visto o regime legal, apreciemos.
O arguido, conforme declarações que prestou, foi detido nas circunstâncias seguintes:
- Conforme se alcança de fls. 4, considerou-se que pela 00.00 horas, a P.S.P. informou que tinha interceptado o suspeito B…, quando este estacionava a sua viatura junto à sua residência.
- O arguido, conforme referiu, imediatamente depois de ter saído da viatura que conduzia e ter estacionado em frente à sua residência, foi abordado por elementos da P.S.P. que lhe ordenaram que colocasse as mãos em cima do carro e perguntaram-lhe se tinha alguma coisa que o comprometia, ao que arguido respondeu que não.
- Seguidamente revistaram-no e como nada encontraram, abriram a mala do carro, onde aí encontraram a faca apreendida ao arguido. Seguidamente algemaram o arguido e disseram-lhe que se encontrava detido e colocaram-no no carro da P.S.P., onde permaneceu, sempre algemado, durante cerca de duas horas.
- Inquirido respondeu que se quisesse sair não o poderia fazer, porque além de algemado, se ele se mexesse os agentes da P.S.P. perguntavam o que estava a fazer.
- Ainda algemado foi conduzido para as instalações da P.J. no carro da P.S.P.
- Já nas instalações da Polícia Judiciária permaneceu sempre algemado, excepto quando lhe recolheram impressões digitais e quando teve necessidade de ir à casa de banho.
- Na Polícia Judiciária, onde permaneceu sempre algemado, disseram-lhe para estar sentado.
- A partir do momento em que foi abordado por elementos da P.S.P. ou utilizando a expressão de fls. 4, "interceptado", deixou de ter qualquer liberdade de movimentos.
Conforme se alcança do despacho que ordena a emissão de mandados de detenção, de fls. 36 a 38, e execução do mesmo, a fls. 39, formalmente ocorreu a detenção do arguido no dia 23-10-2011, pelas 8.30 horas. Dizemos formalmente porquanto e quanto a nós o arguido, porque privado da liberdade, conforme se alcança, desde logo, pelas suas declarações e de fls. 4, quando refere que "a P.S.P. informou que tinha "interceptado" o suspeito", encontrava-se privado da liberdade, pelo menos, desde o momento em que foi detido pela P.S.P., quando tinha acabado de estacionar o seu carro em frente ao prédio onde reside.
Note-se que no dia 23-10-2011, pelas 5.00 horas, prestou T.I.R. (fls. 18).
Face ao teor de fls. 4, concatenado com o que resulta das declarações do arguido, entendemos que o arguido, desde o momento que foi abordado por elementos da P.S.P. e logo de seguida algemado e colocado no carro da P.S.P., se encontrava em situação de verdadeira detenção porque privado da respectiva liberdade de locomoção. Ocorreu pois situação de verdadeira detenção.
Com os fundamentos de fls. 36 a 38, mormente pela “hora actual (05:15 horas) resulta inviável suscitar a intervenção da autoridade judiciária competente” e foram emitidos pelo coordenador de investigação criminal da Polícia Judiciária, ao abrigo do disposto no art.º 257.º, n.º 2, al.s a), b) e c), mandados de detenção em relação ao arguido, cuja execução formal ocorreu pelas 08.30 horas do dia 23-10-2011 (conferir fls. 39, verso).
Quanto a nós e conforme referido, o arguido B… já se encontrava em situação de detenção quando abordado por elementos da PJ (conferir fls. 4):
● Encontrava-se factualmente na situação de detido, por privado da sua liberdade e do jus ambulandi.
Só posteriormente, e com os fundamentos de fls. 36 a 38, a PJ emite mandados de detenção, cuja execução teve lugar no dia 23-10-2011, pelas 8.30 horas.
Não tendo a detenção do arguido - dizemos detenção porque de verdadeira privação da liberdade se tratou e não de qualquer medida cautelar ou de polícia, nomeadamente a prevista no artº 250º do C.P.P. (identificação do suspeito e pedido de informações, até porque o suspeito já estava identificado e foi tal facto com que o mesmo fosse "interceptado pelas 00.00 horas pela PSP") – ocorrido em situação de flagrante delito, tal detenção só poderia ocorrer nos precisos termos do artº 257º, nº 2 do C.P.P. e desde que verificados cumulativamente todas as circunstâncias aí consignadas. Ora, conforme referido, o arguido já se encontrava privado da liberdade logo após a sua abordagem por elementos da PSP.
Excluída a situação de flagrante delito, a detenção do arguido fora de flagrante delito apenas poderia ter ocorrido com a prévia emissão de mandados de detenção, nos termos do Art.º 257.º, nº 1 ou nº 2, als. a), b) e c) do C.P.P. A emissão dos mandados de detenção ao arguido, fora de flagrante delito, pela PJ, com execução do mesmo pelas 8.30 horas do dia de ontem, veio apenas formalmente assegurar uma detenção ocorrida fora de flagrante delito e que já havia sido previamente efectuada aquando da abordagem do arguido por elementos da PSP (conferir fls. 4).
Desde o momento da efectiva detenção – (que reitera-se teve lugar logo após a abordagem do arguido por elementos da PSP do dia 22.10.2011 até que fossem emitidos os competentes mandados de detenção e efectiva execução dos mesmos, o arguido encontrava-se em situação de verdadeira detenção, sem que para tal houvesse o competente mandado de detenção, nos termos do Art.º 257.º, do C.P.P. Conforme referido, a emissão dos mandados de detenção fora de flagrante delito, nos termos ordenados pelo despacho de fls. 36 e seguintes, veio apenas, quanto a nós, regularizar uma detenção que já havia sido efectivada aquando da abordagem do arguido pelos elementos da PSP, situação que a letra da lei e o seu espírito não consente, nem admite. Outra interpretação do art.º 257.º, do C.P.P., permitiria que qualquer arguido detido fora de flagrante delito pudesse ser detido por órgão de polícia criminal ou mesmo por populares e mantido na situação de detido fora de flagrante delito, até que tal situação viesse a ser formalmente legitimada com emissão dos mandados de detenção, nos termos do Art.º 257.º, do C.P.P., o que, quanto a nós, atendendo aos princípios gerais de direito, direitos, liberdades e garantias, a estrutura acusatória do processo penal e o princípio segundo o qual aos arguidos deverão ser assegurados todos os direitos para a sua defesa, será de todo de afastar. Tal situação configuraria uma cobertura legal a uma situação factual de detenção efectiva, fora de flagrante delito, com posterior emissão de mandados de detenção, para validação de uma verdadeira detenção anterior e fora de flagrante delito.
Por todo o exposto, entendemos que o arguido B… foi detido fora de flagrante delito (nas circunstâncias acima descritas), sem que previamente ao acto efectivo de detenção tenham sido emitidos os competentes mandados de detenção, fora do flagrante delito, nos termos do Art.º 257.º, do C.P.P. (quer nos termos do nº 1, quer nos termos do nº 2).
Por consequência, o mandado de detenção emitido com os fundamentos de fls. 36 e ss, não mais veio formalmente assegurar uma detenção que já havia ocorrido previamente.
Por todo o exposto, julgo ilegal a detenção do arguido B….
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Entendemos, contudo, que uma detenção ilegal não obsta à aplicação de uma medida de coacção, nomeadamente da prisão preventiva - no mesmo sentido vejam-se os seguintes Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto
● Relator: António Cabral; Descritores: Detenção Ilegal Data do Acórdão: 06-01-93; Votação: Unanimidade; Sumário: É ilegal a detenção do arguido pela Polícia Judiciária, fora de flagrante delito, sem a emissão de mandados de detenção, pelo que, apresentado aquele a interrogatório, o juiz de instrução criminal não deve validar a detenção, embora possa ordenar que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo em prisão preventiva se considerar verificados os respectivos pressupostos.
● Relator: Fonseca Guimarães; Descritores: Detenção Ilegal; Data do Acórdão: 22-02-95; Votação: Unanimidade; Sumário: Os requisitos previstos no nº 2 do artº 257º do C.P.P. para a detenção fora de flagrante delito têm de verificar-se cumulativamente. A falta de um deles leva à ilegalidade da detenção; Mas mesmo em tal caso, sempre o juiz pode ordenar a prisão preventiva desde que presente o condicionalismo previsto, em termos gerais, nos artigos 196 a 202, 204 e 205 daquele diploma, para aplicação das medidas de coacção e verificada a inadequação ou insuficiência de qualquer outra.
● Relator: Castro Ribeiro; Descritores: Detenção Ilegal; Data do Acórdão: 11-12-91; Votação: Unanimidade; Sumário: apesar de a detenção levada a cabo pela GNR ter sido considerada ilegal, por não ter ocorrido em flagrante delito, nada impede, designadamente o n. 1 do Art. 261 do C.P.P., que o juiz, no mesmo despacho determine a prisão preventiva. Havendo indícios de que os arguidos cometeram um crime de homicídio p. e p. pelo Art. 131, do C.P., devem aguardar os ulteriores termos do processo sob prisão preventiva porque: a) o Art. 209 do C.P.P. estabelece “como que uma presunção de insuficiência de qualquer medida de liberdade provisória”; e b) a indiciada falta de verdade das versões que os arguidos apresentaram permite concluir pelo concreto perigo de, postos em liberdade, procurarem dificultar a obtenção de provas no sentido do apuramento da verdade.
● Relator: Vaz dos Santos; Descritores: Privação da Liberdade; Detenção; Prisão Preventiva, Suspensão; Substituição; Pressupostos; Flagrante delito; Indícios suficientes; Data do Acórdão: 30-10-91; Votação: Unanimidade; Sumário: o actual C.P.P. diferencia os conceitos de detenção e de prisão preventiva atenta a sua finalidade, o período de duração e a qualidade processual dos sujeitos passivos.
A detenção é a privação da liberdade para, no prazo de 48 horas, o detido ser submetido a julgamento sob a forma sumária ou ser presente ao juiz competente para o primeiro interrogatório ou para assegurar a sua presença imediata perante o juiz em acto processual…
Em caso de ilegalidade do acto de detenção por essa ter tido lugar fora de flagrante delito por ordem da autoridade de polícia criminal sem ocorrerem os requisitos do artigo 257 do Código de Processo penal, o juiz, não obstante, pode manter a privação da liberdade do detido impondo-lhe a sujeição a prisão preventiva se estiver verificado o respectivo condicionalismo.
Flagrante delito por extensão ou presumido quando o agente é perseguido imediatamente a seguir à prática do crime ou encontrado com objectos ou sinais claramente demonstrativos de que acabou de o cometer ou de nele participar.1
Factualidade indiciada:
Os autos indiciam, desde já, a factualidade supra descrita, que por razões de economia processual aqui se dá por reproduzida.
Motivação:
A matéria de facto tida por fortemente indiciada tem por fundamento os seguintes elementos de prova:
- Inquirição da testemunha E…, de fls. 10 a 12;
- Auto de apreensão, de fls. 13 e 14;
- Documento de fls. 15 e 16;
- Reportagem fotográfica de fls. 19 a 34;
- Documentos de fls 43 a 49, 58 e 59 e 65 a 77;
- C.R.C. de fls. 61; e
- Declarações do arguido (que confessou, em regra, os factos que lhe são imputados, com a excepção da intenção de matar. alegando que agiu em legítima defesa).
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Incriminação e aplicação da medida de coacção:
A factualidade acima indiciada é susceptível de consubstanciar a prática de:
- Um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 2, als. h) e i), do Código Penal; e
- Um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 86.º, n.º 1 al. d), e 2.º, n.º1 al. m), do Regime Jurídico das Armas.
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Cumpre desde já referir que no que concerne à invocada causa de exclusão de ilicitude, nomeadamente a legítima defesa, entendemos, desde já, que a mesma não se verifica, porquanto não se verifica a ilicitude da conduta do ofendido, ou seja, o pressuposto previsto no art.º 32.º do C. Penal (agressão ilícita). Note-se que foi o próprio arguido quem invadiu a propriedade do ofendido e, desde logo, munido com a arma branca que lhe foi apreendida com lâmina de 19,3 cm de comprimento.
Tal circunstância revela, desde logo, que a conduta do arguido revela uma especial censurabilidade ou perversidade, nomeadamente porque se traduz na prática de crime de perigo comum (al. h), do n.º 2, do art.º 132.º, do C.P. Penal), uma vez que a utilização de tal arma revela um meio particularmente perigoso e dificulta significativamente a defesa da vítima, com a criação para um perigo de lesão de bens importantes.
Para estarmos perante o tipo legal acabado de referir, para além da verificação do resultado morte de outra pessoa, é necessário se torna que a conduta do agente revele uma censurabilidade acrescida, “uma especial censurabilidade ou perversidade”, para utilizar a expressão do legislador, e que se mostra susceptível decorrer de uma das circunstâncias previstas nº nº 2 do artº 132º, entre outras.
As circunstâncias constantes do artº 132º, nº 2 constituem elementos do tipo de culpa que, contudo, é sempre mediada pela especial censurabilidade ou perversidade.
Mesmos nos casos em que as várias alíneas do nº 2 consubstanciam, por si só, uma acção desvaliosa e não uma atitude merecedora de maior censura, ainda aí, o maior desvalor da acção é mediada pelo desvalor da atitude, isto é, pela especial perversidade ou censurabilidade.
Como afirma Teresa Serra, “Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena”, Coimbra, 1990, pág. 127, “(...) a enumeração exemplificativa concretiza e determina o critério generalizador e o critério generalizador delimita a enumeração exemplificativa, numa interacção decisiva estabelecida entre as duas partes do preceito do artº 132º (...)”.
Nas palavras de Eduardo Correia, como autor do projecto do Código Penal na Comissão Revisora, “(...) a enumeração das várias alíneas do nº 2 não é taxativa, antes meramente enunciativa e exemplificativa. Referem-se nelas apenas alguns dos indícios ou elementos que permitam revelar a censurabilidade ou perversidade do agente. Daqui se retiram dois efeitos. Por um lado, as circunstâncias não são elementos do tipo, e antes elementos da culpa. Portanto, não são de funcionamento automático; pode verificar-se qualquer das circunstâncias referidas nas alíneas e nem por isso se pode concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente. Por outro lado, como a enumeração é meramente exemplificativa, outras circunstâncias não descritas são susceptíveis de revelar a perversidade e censurabilidade pressupostas no nº 1.”
De tudo o exposto, conclui-se que o tipo base do homicídio é o artº 131º, constituindo o 132º uma forma agravada do crime.
Em face da factualidade fortemente indiciada, entende o Tribunal que o arguido agiu com especial censurabilidade ou perversidade. Com efeito, o arguido, saltando o muro da propriedade da vítima mortal e munido de uma faca de 19,3 cm, que se encontrava à sua cintura, desferiu vários golpes no hemitorax esquerdo e direito, bem como no pescoço da vítima, tendo pois atingido uma zona nobre do corpo - o pescoço, onde se encontram as carótidas e cujo corte é potencialmente letal, facto com que o arguido, pelo menos, se conformou.
A conduta do arguido revela, pois, uma censurabilidade acrescida, “uma especial censurabilidade ou perversidade”- repare-se que o arguido provocou a morte de outra pessoa e, para concretizar os seus intentos, colocou-se em posição de desleal vantagem em relação ao ofendido, não se coibindo de utilizar aquele instrumento (faca com 19,3 cm de comprimento) que, quer pelas suas características cortantes perfurantes, quer pelo modo como foi manobrado, foi adequado a provocar as lesões descritas, razões pelas quais se mostra fortemente indiciado pela prática de um crime de homicídio qualificado.
Dispõe o artº 132º, nº 2, al. i) que “É susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade (...) entre outras: al. i) “utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso.
Tradicionalmente, o recurso a uma faca como arma que é tem sido considerado como uma utilização cobarde e insidiosa que é sinónimo de traiçoeiro (Acs. do STJ, de 14/4/94, CJ, I, pág. 263 e de 1/10/98, CJ, III, pág. 180).
No Cód. Penal anterior esta agravante ocorreria quando o crime era praticado com espera, emboscada, disfarce, surpresa, traição, ou aleivosia, devendo o conceito de “meios insidiosos” abranger todas estas situações-assim, Leal Henriques e Simas Santos, in Cód. Penal Anotado, Ed. Rei dos Livros, 1982, vol. II, pág. 30; “não foram particularizados quaisquer meios para não retirar elasticidade ao conceito”- Maia Gonçalves, Cód. Penal Anotado, Almedina 1994, pág. 132.
O factualismo imputado ao arguido integra a traição e aleivosia; “traição significa perfídia, deslealdade. Cometer um crime com traição é praticá-lo sem defesa do ofendido (...)”; aleivosia é a maquinação contra a vida ou a pessoa de alguém (...) com mostras de amizade (...). “A aleivosia é uma das maiores vilezas a que pode rebaixar o delinquente e também um dos perigos que mais alarma a sociedade inteira.”- cfr. Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal II, pág. 361/362.
Dadas por indiciadas tais circunstâncias, não pode deixar de ter-se como verificada a especial censurabilidade e perversidade da conduta do arguido na produção da morte da infeliz vitima. É que existe especial censurabilidade quando “as circunstâncias em que as ofensas foram praticadas são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal com os valores e uma especial perversidade supõe uma atitude profundamente rejeitável no domínio de ter sido determinada e constituir um indício de motivos e de sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade”- Teresa Serra, Homicídio Qualificado, ob. cit. pág. 63/64.
A utilização da referida traduz, quanto a nós, um meio insidioso, com carácter enganador, uma vez que o arguido a fazia transportar junto à sua cintura, revelando um comportamento sub-reptício, dissimulado ou oculto, em função, até, pelas características da vítima, pessoa idosa, logo particularmente vulnerável.
Invocou o arguido, ainda, que não teve qualquer intenção de matar.
Uma vez que a intenção de matar, seja na forma de dolo directo, seja de dolo eventual, importa a prova de um elemento do foro íntimo do agente, essa descoberta só é alcançável através de dados exteriores, designadamente, a violência da agressão, a arma utilizada, a parte do corpo da vítima atingida, a personalidade do agressor, a motivação do crime, assim se chegando à verdade prático-jurídica que sirva de suporte à decisão (acórdão do STJ de 12 de Novembro de 1986, BMJ-361-244). O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial impõe-se, em princípio, ao julgador, que o tem que aceitar. Se dele divergir terá de fundamentar a sua discordância e, não o fazendo, viola o artigo 163º do CPP, que leva à anulação do julgamento (acórdão do STJ de 5 de Maio de 1993). O juízo sobre a intenção de matar não é um juízo técnico, científico ou artístico, nem tão pouco um juízo de técnica médica. A presunção de intenção de matar é apenas um juízo de probabilidade sobre aquela intenção, pelo que não se lhe aplica o disposto no artigo 163 do CPP (acórdão do STJ de 3 de Julho de 1996, processo nº 8/96 - 3ª Secção Internet). Cf. também Fernando Oliveira Sá, As ofensas corporais no Código Penal: uma perspectiva médico legal, RPCC 3 (1991), p. 409. J. Pinto da Costa, Intenção de matar, Revista de Investigação Criminal, nº 2 (1981).
Tendo em conta os factores supra referidos, entendemos que o arguido ao agir conforme lhe é imputado, pelo menos a título de dolo eventual, agiu com intenção de matar.
Atente-se, sobretudo, no meio utilizado, arma branca com 19,3 cm de comprimento, número de golpes desferidos e zonas atingidas, sobretudo o pescoço, que como referido contém as carótidas que se seccionadas poderão conduzir à morte.
Verifica-se pois, em última instância, dolo eventual, porquanto o arguido ao agir conforme lhe é imputado, representa o cúmulo possível da sua conduta, a morte de uma pessoa, e ainda assim agiu conformando-se com tal resultado.
Circunstâncias concretas previstas no art.º 204.º do C.P.P. que justificam a aplicação ao arguido de uma medida de coacção mais gravosa que o simples T.I.R.:
O tipo de crime em causa é o que salvaguarda o bem supremo que é a vida humana e cuja moldura penal é a mais elevada no nosso ordenamento jurídico-penal, de 12 a 25 anos de prisão.
O arguido, conforme resulta dos autos, levianamente tirou a vida a outra pessoa, sendo certo que o facto de ter regressado a casa após o cometimento do crime, não equivale a concluir que não exista perigo de fuga, uma vez que mediante um juízo de experiência e face à gravidade dos factos imputados, é legítimo formular um juízo de ocorrência de perigo concreto de fuga, até porque a liberdade de circulação de pessoa na União Europeia facilitaria a fuga e dificultaria a detenção do arguido e a sua submissão à justiça, caso saísse de Portugal. Note-se que agora o arguido passou a ser esclarecido de todos os elementos de prova que contra si existem, pelo que ocorre perigo de fuga.
Conforme referido, o crime de homicídio atenta contra o bem supremo que é a vida humana, pelo que considero que existe perigo, em razão da natureza do crime, de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
Tratou-se de um crime muito violento, que foi objecto de acompanhamento noticioso na imprensa escrita e a ocorre perigo de os próprios familiares da vítima atentarem contra a vida do próprio arguido, ou efectuarem represálias, pelo que para salvaguarda da ordem pública e do interesse do próprio arguido, impõe-se que ao mesmo seja aplicada uma medida restritiva da liberdade.
Atenta a natureza do crime e a forma de execução do mesmo que consubstanciam factos geradores de grande instabilidade na população em geral, ocorrendo, pois, perigo em razão da natureza e das circunstâncias do crime, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, se ao arguido não for aplicada uma medida restritiva da sua liberdade – art. 204, al. c) do CPP.
Deve, pois, ser imposta uma medida de coacção que responda de forma adequada às exigências cautelares que o caso requer e proporcional à gravidade do crime fortemente indiciado e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada, sendo certo que, não obstante a ausência de antecedentes criminais do arguido, a pena que lhe vier a ser aplicada nunca será suspensa na sua execução.
Considero que não obstante a sua subsidiariedade (art. 28º, CRP, art. 193º CPP e 202º do CPP) é de aplicar ao arguido a prisão preventiva, única medida adequada às exigências cautelares e proporcional à gravidade do crime e da sanção que previsivelmente lhe venha a ser aplicada.
Entendemos não ser de aplicar, conforme requereu a defensora do arguido, obrigação de permanência na habitação, mediante vigilância electrónica, porquanto a mesma, por um lado, não obviar ao aludido perigo de fuga, uma vez que o arguido poderá, a qualquer momento, cortar o dispositivo e ausentar-se para parte incerta e furtar-se à acção da justiça e às instâncias formais de controlo, logo potenciado pela já referida liberdade de circulação de pessoas e bens pela União Europeia, e por outro lado porque a aplicação de tal medida não salvaguardaria a própria integridade física do arguido (uma vez, que conforme supra referido, poderá ser alvo de actos de vingança e represálias por parte dos familiares da vítima) e não acautelava, devidamente, o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
Assim, e porque no presente caso se verificam as condições gerais de aplicação de qualquer medida de coacção (art.º 204º) e os pressupostos específicos da prisão preventiva (artigos 202.º, n.º 1, al. a), e 204.º, al. a) e c) ambos do C. P. Penal, determino, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 191.º, 193.º, 196.º, 202.º, n.º 1 al. a) e b) - criminalidade violenta, por referência ao art.º 1.º, al. j) - e e), 204.º, al. a) e c), todos do C. P. Penal, que o arguido B… aguarde os ulteriores termos processuais sujeita à seguinte medida de coacção: Prisão preventiva.
Passe mandados de condução ao Estabelecimento Prisional.
Cumpra o disposto no Art.º 194.º, n.º 8, segunda parte, do C.P.P.»

2. Inconformado, interpôs recurso desta decisão o Ex.mo Procurador Adjunto, impetrando a revogação da mesma e respetiva substituição por outra que considere válida a detenção do arguido, rematando a motivação com as seguintes conclusões:
2.1 Em sede 1º interrogatório Judicial, o Exmo. Juiz de Instrução Criminal entendeu existirem fortes indícios da prática de um crime homicídio qualificado, previsto e punido pelos arts. 131º e 132º n.º 2 al. h) do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos arts. 86º n.º 1 al. d), e 2º n.º1 al. m) do Regime Jurídico das Armas, decidindo aplicar a medida de coação de prisão preventiva, mas julgou ilegal a sua detenção efectuada pela PSP ou pela Polícia Judiciária.
2.2 O homicídio, através de esfaqueamento, ocorreu por volta das 22h00 do dia 22 de Outubro de 2011, na residência da vítima e passadas menos de duas horas, pelas 00h00, foi encontrada na posse do arguido, designadamente no seu veículo junto da sua residência, uma faca de mato, com uma lâmina de 19,3 cm com vestígios de sangue.
2.3 O mandado de detenção fora de flagrante delito foi validamente emitido pela autoridade de polícia criminal, o coordenador da Polícia Judiciária dentro do condicionalismo previsto no art. 257º n.º2 do Código de Processo Penal, pelo que não deveria ter sido julgada inválida a detenção do arguido.
2.4 Na verdade, a forma altamente violenta como foi praticado o crime e ainda a gravidade da pena prevista para o crime de homicídio qualificado (25 anos) são elementos que tornam razoável supor o perigo efectivo de o arguido fugir à acção da justiça.
2.5 A moldura penal do crime de homicídio qualificado admite a aplicação da medida de prisão preventiva.
2.6 Os mandados de detenção fora de flagrante de delito foram emitidos às 5h00 de um Domingo, muito para lá do horário de funcionamento dos tribunais, sendo, por isso, inviável suscitar a intervenção de autoridade judiciária.
2.7 Não existe prova de que o arguido em nenhum momento dos autos esteve contra a sua vontade nas instalações da Polícia Judiciária ou que em algum momento foi impedido por agentes da Polícia Judiciária ou da PSP de se ausentar daquele local, nem tal facto é referido pelo arguido.
2.8 Mesmo a entender-se que o arguido esteve detido de facto desde a abordagem pela PSP, tal facto per si não prejudica a validade do mandado de detenção fora de flagrante delito emanado pelo Exmo. Coordenador de Investigação Criminal por ter sido emitido dentro do condicionalismo legal. Todavia e para o caso de assim não se entender,
2.9 Ou seja, a considerar-se que esteve detido de facto desde a abordagem da PSP até à sua deslocação às instalações da Polícia Judiciária, há que ter em conta que o arguido, fortemente indiciado da prática de um crime de homicídio qualificado por esfaqueamento, foi encontrado com uma faca de 19 cm de lâmina, sem que tivesse justificado a sua posse, com vestígios de sangue, pelo que sempre existiria uma situação de flagrante de delito, em relação ao crime de detenção de arma proibida, e num circunstancialismo de quase flagrante delito, quanto ao crime de homicídio qualificado, nos termos do art. 256º n.ºs 1 e 2 do Código do Processo Penal.
2.10 Assim sendo, sempre teria a PSP e Polícia Judiciária legitimidade para deter o arguido, nos termos do disposto no art. 255º n.º1 al. a) do Código do Processo Penal e apresentá-lo, como apresentou, no prazo de 48 horas para primeiro interrogatório judicial e aplicação de medida de coacção mais gravosa que o TIR – cf. artigo 254.º, n.º1, al. a) do Código do Processo Penal.
2.11 O presente recurso tem como fundamento a violação, pela decisão recorrida, do disposto nos arts. 254º n.º2, 257º nºs 1 e 2, 261º n.º1, 249º e 250º do Código de Processo Penal; ou caso assim não se entenda, as normas constantes dos art. 254º n.º1. al. a) e 256º n.º1 e 2 do Código do Processo Penal e art. 95.º A, n.º1 e 2 do Regime Jurídico das Armas e Munições.

3. O Arguido não respondeu.

4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Prcurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer no sentido de que o Recurso merece provimento.

5. Colhidos os vistos, realizada a Conferência, cumpre decidir.

II Fundamentação

1. Delimitação objectiva do recurso. [1]

De acordo com as conclusões do recurso, a questão matriz a conhecer tem a ver com a decisão que julgou ilegal a detenção do arguido B…: incorretamente proferida?
São, todavia, daquela decorrentes, sub-questões a conhecer e a decidir: i. A configuração jusprocessual da “intercepção”levada a efeito pela Policia de Segurança Pública (PSP); ii. A detenção fora de flagrante delito e a exigibilidade da prévia emissão de mandados de detenção; iii. A confirmação, in casu, quanto à ocorrência de flagrante delito/quase flagrante delito/ fora de flagrante delito.

2. Conhecendo

2.1 Delimitação fáctica.
Da documentação que integra o presente recurso emergem duas versões fácticas relativas ao ponto que subjaz ao dissenso que alimenta o presente recurso: ora a versão oficial, decorrente da documentação emitida pelas autoridades policiais – seja a Polícia Judiciária, seja a PSP -; ora a versão dada pelo arguido no momento suplementar adrede suscitado pelo Exmo. Juiz de Instrução, quando do 1º Interrogatório Judicial de Arguido Detido.
2.1.1 De acordo com a primeira, a versão oficial:
A. Auto de Notícia emitido pela Polícia de Segurança Pública, às 01.16H de 23.10.2011:
a. Pelas 21.15H de 22.10.2011, “em virtude de haver notícia de um roubo”, a PSP deslocou-se à residência particular sita na Rua …, …., …, Maia, aí vindo a verificar que “a vítima encontrava-se deitada no solo, …, jorrando sangue de várias partes do corpo, encontrando-se vários populares à sua volta na tentativa de o ajudar.
b. Apesar dos socorros prestados pela … e emergência média, a vítima viria a falecer, ali.
c. Foram questionadas várias pessoas e “para o local foi accionada uma equipa da Divisão de Investigação Criminal “da PSP, Peritos Legais, bem como “uma equipa da Polícia Judiciária”
B. Informação de Serviço emitida pela Polícia Judiciária:
a. Recebida, pelas 22.30H de 22.10.2011, a comunicação da ocorrência de um homicídio
b. Uma brigada desloca-se à residência sita na Rua …, …., …, Maia, constatando que “o acesso à referida residência estava devidamente preservado pelos elementos da PSP” e aí deparando com “um corpo coberto por um lençol”, corpo que “apresentava-se morno ao toque, sem rigidez cadavérica e livores sem fixação”
c. Nas diligências levadas a efeito, a mulher da vítima conta ter visto “um rapaz jovem” “que lhe desferia (na vítima) golpes com a mão”; a PSP, de sua vez, informou da existência de um inquérito contra B…, na sequência de uma queixa apresentada por F…, filha da vítima, por assédio a G…, neta da vítima.
d. Pelas 00.00H, a PSP informou que tinha intercetado o suspeito B… quando este estacionava a sua viatura junto à residência.”
e. Deslocando-se os elementos da PJ “para o local”, procederam à “remoção da viatura de marca Renault, modelo …,.., de matrícula ..-..-SU, em que o mesmo se fazia transportar”, para a Diretoria da PJ do Porto, “a fim de ser examinada”, “assim como foi conduzido o suspeito, no sentido de se procederem a diligências de investigação”.
f. No porta-bagagens da viatura “foi encontrada uma faca com uma lâmina de 19,3 cm de comprimento, que possuía vestígios hemáticos – instrumento do crime”, bem assim “umas calças de fato de treino pretas, que o suspeito disse usar quando praticou o crime” e “uma notificação da 3ª Esquadra de Investigação Criminal da PSP do Porto, com referência ao inquérito 1295/11.0PIPRT para o suspeito comparecer naqueles serviços no dia 02.112011 pelas 15.00h a fim de intervir em ato processual na qualidade de denunciado.”
g. Constatou-se que a faca apreendida era “perfeitamente idónea e compatível – dada a largura e tipo de lâmina – a produzir os ferimentos visualizados na vítima”, tudo levando a crer tratar-se do instrumento do crime.
h. Em “conversa informal com o suspeito B…”, este narrou como os factos tinham decorrido, nomeadamente como tinha “golpeado com a faca” a vítima.
i. Verificou-se, outrossim, “que o suspeito apresentava escoriações no pescoço, presumivelmente causadas pela vítima, no confronto que antecedeu o esfaqueamento”
j. Foi, então, em face dos elementos recolhidos que apontavam o suspeito B… como autor do homicídio, constituído arguido e, pelas 5.00H de 23.10.2011, sujeito a TIR [Fls.17 e 18]
C. Detenção fora de flagrante delito do arguido.
a. Às 05H 15 de 23.10.2011, na consideração de que “resultava inviável suscitar a intervenção da Autoridade Judiciária competente para a apreciação e eventual promoção de outras medidas de coação que não o TIR”, a PJ determinou a “detenção fora de flagrante delito do Arguido B…”, a sua condução ao Estabelecimento Prisional anexo à Diretoria da PJ e a sua recondução para os Serviços do MºPº junto do Tribunal Judicial da Maia, “na próxima segunda-feira, tão cedo quanto possível”. [Fls. 37, 38, 39 e 40 (Mandado de detenção)

2.1.2 Relativamente à versão transmitida pelo arguido, vale o que consta do despacho ora sob apreciação, dizer:
«Conforme se alcança de fls. 4, considerou-se que pela 00.00 horas, a P.S.P. informou que tinha interceptado o suspeito B…, quando este estacionava a sua viatura junto à sua residência.
O arguido, conforme referiu, imediatamente depois de ter saído da viatura que conduzia e ter estacionado em frente à sua residência, foi abordado por elementos da P.S.P. que lhe ordenaram que colocasse as mãos em cima do carro e perguntaram-lhe se tinha alguma coisa que o comprometia, ao que arguido respondeu que não.
Seguidamente revistaram-no e como nada encontraram, abriram a mala do carro, onde aí encontraram a faca apreendida ao arguido. Seguidamente algemaram o arguido e disseram-lhe que se encontrava detido e colocaram-no no carro da P.S.P., onde permaneceu, sempre algemado, durante cerca de duas horas.
Inquirido respondeu que se quisesse sair não o poderia fazer, porque além de algemado, se ele se mexesse os agentes da P.S.P. perguntavam o que estava a fazer.
Ainda algemado foi conduzido para as instalações da P.J. no carro da P.S.P.
Já nas instalações da Polícia Judiciária permaneceu sempre algemado, excepto quando lhe recolheram impressões digitais e quando teve necessidade de ir à casa de banho.
Na Polícia Judiciária, onde permaneceu sempre algemado, disseram-lhe para estar sentado.
A partir do momento em que foi abordado por elementos da P.S.P. ou utilizando a expressão de fls. 4, “interceptado”, deixou de ter qualquer liberdade de movimentos.

2.2 As sub-questões in singulos.

2.2.1 A configuração jusprocessual da “intercepção”levada a efeito pela Policia de Segurança Pública (PSP)
A partir da versão oficial que ora se deixa enunciada, ocorre efetivamente uma intercepção do B… levada a cabo pela Polícia de Segurança Pública, quando aquele estacionava a sua viatura junto à sua residência.
De acordo com a mesma versão a PJ deslocou-se ao local, conduziu o suspeito à Diretoria da mesma PJ, recolheu dele informações e recolheu elementos de prova relativos ao homicídio cometido, havia escassas horas.
Destarte e de acordo com este quadro fáctico não ocorreu qualquer detenção, como aliás resulta da Informação de Serviço atrás deixada elencada, visto a detenção ter efetivamente apenas ocorrido pelas 5H15 de 23.10.2011, nas instalações da PJ e determinada com o respetivo mandado de detenção.
Nesta perspetiva, a dita intercepção não passa de mera providência cautelar consentida pela norma ínsita no artº 249º/1 do CPP: “Compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os atos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”.
A PSP, chamada ao local e tendo por suficientemente indiciada a prática de um homicídio, além de ter “preservado o acesso à referida residência”, estava ciente da existência de um inquérito contra o B… na sequência de uma queixa contra ele apresentada pela filha da vítima F… e veio a interceptá-lo como suspeito.
Competia-lhe, na estrita observância da norma citada, “praticar os atos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, nomeadamente, se necessário, “ordenar que uma pessoa não se afaste do local do exame e mantê-la no local, se necessário com auxílio da força” [2]
Na estrita consideração da versão oficial, inexiste qualquer correspondência entre a dita intercepção e a detenção do suspeito B….

Entendeu, todavia, o Exmo. Juiz dar prevalência à versão reproduzida pelo recorrido B….
Que importa reproduzir no seguinte instante:
«O arguido, ….., imediatamente depois de ter saído da viatura que conduzia e ter estacionado em frente à sua residência, foi abordado por elementos da P.S.P. que lhe ordenaram que colocasse as mãos em cima do carro e perguntaram-lhe se tinha alguma coisa que o comprometia, ao que arguido respondeu que não.
Seguidamente revistaram-no e como nada encontraram, abriram a mala do carro, onde aí encontraram a faca apreendida ao arguido. Seguidamente algemaram o arguido e disseram-lhe que se encontrava detido e colocaram-no no carro da P.S.P., onde permaneceu, sempre algemado, durante cerca de duas horas»

Tomando por certo que o B…, como diz, foi algemado, impõe-se como necessária a conclusão de que a dita intercepção traduziu-se numa verdadeira detenção, visto dever entender-se esta, no âmbito jusprocessual penal, como a privação da liberdade fora do âmbito das medidas de coação.

Detenção ilegal, como se diz na decisão recorrida?

Argumenta o Exmo. Juiz:
«Excluída a situação de flagrante delito, a detenção do arguido fora de flagrante delito apenas poderia ter ocorrido com a prévia emissão de mandados de detenção, nos termos do Art.º 257.º, nº 1 ou nº 2, als. a), b) e c) do C.P.P. A emissão dos mandados de detenção ao arguido, fora de flagrante delito, pela PJ, com execução do mesmo pelas 8.30 horas do dia de ontem, veio apenas formalmente assegurar uma detenção ocorrida fora de flagrante delito e que já havia sido previamente efectuada aquando da abordagem do arguido por elementos da PSP (conferir fls. 4).
Desde o momento da efectiva detenção – (que reitera-se teve lugar logo após a abordagem do arguido por elementos da PSP do dia 22.10.2011 até que fossem emitidos os competentes mandados de detenção e efectiva execução dos mesmos, o arguido encontrava-se em situação de verdadeira detenção, sem que para tal houvesse o competente mandado de detenção, nos termos do Art.º 257.º, do C.P.P.

Eis-nos chegados à segunda sub-questão.

2.2.2 A detenção fora de flagrante delito e a exigibilidade da prévia emissão de mandados de detenção.

Admitindo - por ora, e na atenção à argumentação expendida - a ocorrência de uma detenção fora de flagrante delito, seria exigível, como se diz na decisão sub specie, a prévia emissão de mandados de detenção?
As diferenças decorrentes dos números 1 e 2 do artigo 257º do C.P.Penal, apontarão, primo conspectu, no sentido da bondade desta posição no que tange à medida cautelar da detenção feita pelas autoridades de polícia criminal, por iniciativa própria, fora de flagrante delito.
A leitura conjugada das normas ínsitas nos artigos 257º e 258º poderá levar mesmo à conclusão mais segura a respeito da obrigatoriedade dos Mandados de Detenção.
Não obstante, entende-se - salvaguardado o devido respeito p.m.o – que não violará a ortodoxia de tais normas o entendimento de que “O mandado de detenção deve ser entregue ao detido imediatamente, isto é, durante o acto de detenção ou logo que o acto de detenção termine”, sendo certo que “só não será assim em caso de urgência e de perigo na demora, caso em que a detenção pode ser requisitada pela autoridade competente por meio de telecomunicação (telefone, telegrama, fax ou correio eletrónico), seguindo-se-lhe imediatamente a confirmação com entrega do mandado escrito original” [3]

No caso concreto com referência ao delineamento fáctico decorrente da versão dita oficial, dúvidas não subsistem de que a detenção ocorreu com o estrito cumprimento do mandado de detenção.
Sobra a questão por referência à versão fáctica transmitida pelo arguido B….
A partir daqui, admitida que seja esta, a questão prender-se-á com a legalidade ou ilegalidade da detenção mas vista agora à luz da ocorrência ou não de flagrante delito.

2.2.3 A confirmação, in casu, quanto à ocorrência de flagrante delito/quase flagrante delito/ fora de flagrante delito.

São normas que importa tomar em linha de conta:
● Artigo 255º/1 al. a) do CPP: «Em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão: qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção.»
● Artigo 256º do CPP:
- 1. É flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer.
- 2. Reputa-se também flagrante delito o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objetos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou nele participar»

É verdade que a Polícia Judiciária considerou ter procedido à detenção “fora de flagrante delito”. [4]
Este nomen iuris não obriga o tribunal, por óbvio.
De todo o modo, ele tinha a ver com a sequência fáctica decorrente da dita “versão oficial”.
Questiona-se, aqui e agora, porém, a intercepção/detenção a que, na versão do arguido acolhida pelo Tribunal, terá procedido a Polícia de Segurança Pública.
Ilegal, conforme judicialmente considerado?
Entende-se que não.
A razão está do lado do Digno Recorrente.
Resumidamente:
i. Detenção legal desde logo com referência à verificação do flagrante delito (na versão quase flagrante delito) relativamente ao indiciado crime de homicídio.
Há flagrante delito, como flui da norma transcrita, quando, logo após a consumação, a pessoa tiver sido de imediato perseguida ou encontrada com objetos ou sinais que mostrem claramente que acabou de cometer o crime.
A juntar às fundadas suspeitas decorrentes da pendência de um inquérito contra o arguido, instaurado por uma filha da vítima, conjugadas com a informação prestada pela esposa da vítima de que o agressor era “um indivíduo jovem, na fase etária dos vinte aos trinta anos de idade, trajando uma camisola escura e calças de ganga”, a Polícia, escassas horas decorridas (2-3) sobre a prática do homicídio, encontrou o arguido e este na posse, na mala do carro em que acabava de se fazer transportar, de uma faca com uma lâmina de 19,3 cm de comprimento, que possuía vestígios hemáticos, sendo certo que a morte da vítima fora provocada pelos ferimentos causados com golpes de arma branca [“jorrava sangue de várias partes do corpo”]
Este quadro não pode deixar de configurar uma situação de quase flagrante delito, de acordo com os sobreditos termos normativos.
Como pertinentemente pondera o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, «No conceito de flagrante delito que o artigo refere pretende-se apenas “dar um sentido de atualidade e não de visibilidade da infração”. Tal atualidade existiu no caso vertente, atenta a continuidade e uniformidade temporal que existiu entre o crime, as imediatas diligências policiais e a consequente intercepção do suspeito ainda na posse da arma do crime, com vestígios de sangue.»

ii. Detenção legal, pari passu, com referência ao crime de detenção de arma proibida.
No despacho sob recurso, o Exmo. Juiz considerou que a factualidade indiciada - quando foi interceptado, o arguido tinha em sua posse uma faca com uma lâmina de 19,3 cm - era suscetível de consubstanciar a prática de um crime de detenção de arma proibida, pºepº pelos artigos 86º nº1 al. d) e 2º nº1 al. m) do Regime Jurídico das Armas.

Ora, se o arguido foi Interceptado na posse de arma proibida, resulta óbvia a situação de flagrante delito!
Passível, de sua vez, de detenção, nos sobreditos termos do artigo 255º/1 al.a) do CPP, visto a punibilidade do crime com prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias [Artigo 86º nº1 al. d) do Regime Jurídico de Armas e Munições (Red. Lei n.º 12/2011, de 27 de Abril)]

Nesta conformidade, mesmo na consideração da versão transmitida pelo arguido e acolhida pelo tribunal, manifesto se torna que a detenção (a ter sido efetuada) não foi ilegal.

III Decisão
São termos em que, na procedência do recurso, revoga-se parcialmente a decisão recorrida, declarando-se a conformidade legal da detenção.
Sem tributação

Porto, 1 de Fevereiro de 2012
Joaquim Maria Melo de Sousa Lima
Élia Costa de Mendonça São Pedro
______________
[1] Passível de discussão o pressuposto processual do Interesse em agir. Sob apreciação não está um decisum que comporte um efeito útil, mediato ou imediato e/ou comporte uma providência que tenha ínsita uma determinada forma de tutela. No caso concreto, a decisão a proferir não tem repercussão direta sobre o processo. Todavia, na atenção à específica função constitucionalmente conferida ao MºPº a respeito da preservação da legalidade democrática, entende-se dever considerá-lo como verificado.
[2] Neste sentido: PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, COMENTÁRIO DO CPP à luz da CRP e da CEDH – 2ª Ed., Lx. 2008, pág. 652
[3] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 2ªEd. Actualizada, Universidade Católica Editora, Lx.2008, fls.685
[4] Pertinente, a respeito da referência pela PJ à situação de fora de flagrante delito, a consideração tecido pelo Digno Recorrente no sentido de que a Polícia Judiciária “atuou num primeiro momento como medida cautelar de polícia, nos termos previstos no Artº 250 do CPP, tendo emitido posteriormente o mandado nos termos do disposto no artº 257 nº2 do CPP”