Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2202/21.7T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO
ENTREGA DO LOCADO
PRESUNÇÃO
Nº do Documento: RP202212142202/21.7T8VNG.P1
Data do Acordão: 12/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos termos do art. 1044º CC e art. 342º/2 CC, recai sobre o locatário o ónus de ilidir a presunção que o bem objeto de locação foi entregue em bom estado de manutenção.
II - Não se tendo ilidido a presunção, só não assistiria ao locador o direito a obter a reparação dos bens, se o locatário provar que o estado em que eles se encontravam à data da entrega se devesse a uma prudente utilização; ou, se, ainda que se devesse a uma imprudente utilização, não fosse o mesmo imputável ao locatário ou a terceiros a quem tenha permitido a utilização dos bens.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Aluguer-Danos-2202/21.7T8VNG.P1
*
*
SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
………………………………
………………………………
………………………………
---
Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação declarativa que segue a forma de processo comum em que figuram como:
- AUTORA: C..., S.A., sociedade anónima com o número de pessoa coletiva ... e com sede na Avenida ..., ... VILA NOVA DE GAIA; e
- RÉ: R..., LDA, sociedade por quotas, pessoa coletiva ..., com sede na Travessa ... - ... Vila Nova de Gaia
veio a autora peticionar a condenação da ré a pagar à A. a quantia em dívida de 6.177,37 € (capital) (Seis mil cento e setenta e sete euros e trinta e sete cêntimos), bem como, os correspondentes juros vencidos e vincendos à taxa anual legal, desde o vencimento de cada uma das faturas até ao seu efetivo e integral pagamento.
Alegou para o efeito, que tem por objeto a atividade de compra e venda de automóveis ligeiros e pesados, novos e usados, o transporte dos mesmos e a sua reparação e assistência técnica, a venda de peças e acessórios, venda de óleos, gasolina e atividades congéneres, o aluguer de equipamentos auto, o aluguer de veículos de curta ou de longa duração, com ou sem condutor, bem como a intermediação de crédito, designadamente vinculado ou a título acessório e ainda a mediação de seguros.
No decurso do aluguer à ré de três viaturas de marca Toyota de modelo ..., com as matrículas ..-US-.., ..-TO-.. e ..-VD-.., a ré é responsável pelo estado em que as viaturas são devolvidas, sendo que, aquando das suas entregas à autora as referidas 3 viaturas apresentavam-se, cada uma delas, com vários danos, tendo as ditas viaturas sido objeto de peritagem efetuadas por uma entidade externa (D...) que apurou os danos aquando da receção de cada uma das viaturas entregues pela ré que são exclusivamente da sua responsabilidade.
Mais alegou que na sequência a autora faturou à ré os danos conforme constam das faturas emitidas e enviadas à ré, no valor total de € 6.177,37 (seis mil, cento e setenta e sete euros e trinta e sete cêntimos): a fatura ..., datada de 24-10-2018, referente à viatura ..-TO-.., no montante de €821,96, com vencimento imediato; a fatura ..., datada de 01-03-2019, referente à viatura ..-US-.., no montante de €1.238,19, com vencimento imediato; a fatura ..., datada de 02-07-2019, referente à viatura ..-VD-.., no montante de €4.117,22, com vencimento imediato.
Por fim, alegou que interpelou a ré para efetuar o pagamento, mas a ré não pagou.
-
Citada a ré, contestou, defendendo-se por impugnação.
Alegou, em síntese, que no que toca à viatura de matrícula ..-TO-.., o valor em causa são €668,26, após reclamação da ré, quanto ao valor inicialmente apresentado de €1327,66.
A viatura ..-VD-.. foi entregue para reparação, tendo a autora retido a viatura, não mais a entregando à ré, que ficou com o seu serviço todo pendente, o que lhe causou um enorme prejuízo. Os danos que se invocam ter sido necessário reparar, não correspondem à realidade. A viatura ..-VD-.. foi entregue para reparar umas pequenas coisas, sendo a ré confrontada com danos muito diferentes em quantidade e qualidade, não sendo dada a possibilidade à ré de reclamar e/ou contestar tais valores, o que a ré sempre fez com a consequência de diminuição dos valores para cerca de metade.
-
Dispensou-se a realização de audiência prévia.
Proferiu-se despacho saneador e dispensou-se a fixação do objeto do litígio e dos temas da prova.
-
Realizou-se o julgamento, com observância do legal formalismo.
-
Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“Em face do exposto, vistas as já indicadas normas jurídicas e os princípios indicados, julga-se a presente ação procedente e, por isso, condena-se a ré a pagar à autora o montante de €6.177,37 (seis mil, cento e setenta e sete euros e trinta e sete cêntimos), acrescido dos juros vencidos e dos vincendos, à taxa legal, sobre a data de vencimento de cada uma das faturas, até efetivo e integral pagamento.
Custas pela ré”.
-
A ré veio interpor recurso da sentença.
-
Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
- A Douta sentença não faz a correta aplicação do direito aos factos.
2º - O presente recurso tem por objeto a douta Sentença, na parte em que condenou a R. «R..., LDA» a pagar à A. o montante de € 6.177,37 ( seis mil centos e setenta e sete euros e trinta e sete cêntimos, acrescido dos juros vencidos e vincendos, à taxa legal, sobre a data de vencimento de cada uma das faturas, até efetivo e integral pagamento.
- Com relevância para a boa decisão da causa, estão provados, os seguintes factos:
a) A autora tem por objeto a atividade de compra e venda de automóveis ligeiros e pesados, novos e usados, o transporte dos mesmos e a sua reparação e assistência técnica, a venda de peças e acessórios, venda de óleos, gasolina e atividades congéneres, o aluguer de equipamentos auto, o aluguer de veículos de curta ou de longa duração, com ou sem condutor, bem como a intermediação de crédito, designadamente vinculado ou a título acessório e ainda a mediação de seguros.
b) A autora alugou à Ré três viaturas de marca Toyota de modelo ..., com as matrículas ..-US-.., ..-TO-.. e ..-VD-...
c) Aquando da entrega das ditas viaturas estas foram peritadas pela D... que apurou, relativamente a cada uma delas, os danos elencados e descritos nos documentos junto aos autos sob os n.ºs 1, 2 e 3 juntos com a PI e cujo teor aqui se tem por integrado.
d) A autora faturou à ré o custo dos identificados danos, no valor de € 6.117,37 (seis mil, cento e sete euros e trinta e sete cêntimos), pela missão da fatura ..., datada de 24-10-2018, referente à viatura ..-TO-.., no montante de €821,96, com vencimento imediato; da fatura ..., datada de 01-03-2019, referente à viatura de ..-VD-.., no montante de €4.117,22, com vencimento imediato.
e) A autora interpelou a ré para efetuar o pagamento.
- A discordância prende-se apenas com o veículo de matrícula ..-VD-.., cujos danos a aqui recorrente discordou desde o início.
- Efetivamente, a viatura em causa foi entregue para reparação, tendo a recorrida retido a viatura, não mais a entregando, o que causou inúmeros prejuízos ao serviço da mesma.
- A principal questão é o facto dos danos invocados e relatados na peritagem efetuada não corresponderem aos que na realidade apresentava, pois, a viatura em causa foi entregue para reparar umas pequenas coisas.
- Com efeito, a recorrente foi confrontada com danos muito diferentes em quantidade e qualidade, não lhe sendo dada a possibilidade, como aconteceu com os outros veículos de reclamar e/ou contestar tais valores, o que é relevante, pois sempre que reclamou os valores apresentados diminuíram para cerca de metade!
- Entendemos assim, salvo melhor opinião, que o relatório no qual se baseia a Douta decisão em crise, não é preciso.
- Acresce que a peritagem foi feita 3 dias depois da viatura ser entregue, inexistindo prova nos autos que possa suportar o valor pelo qual foi agora condenada a recorrente a pagar.
10º- Assim não entendeu a douta decisão em crise.
11º - Pelo que concluímos que não foi feita prova suficiente para condenar a R, na quantia referente à viatura de matrícula ..-VD-.., devendo nesta parte ser absolvida.
12º - A Douta sentença recorrida, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos arts.º 1.043º,1044º CC e art.º 13º CRP.
Termina por pedir o provimento do recurso, com revogação da sentença recorrida.
-
A Autora apresentou resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
a) - a douta sentença recorrida e bem condenou a Recorrente no pagamento à Recorrida do montante peticionado,
b) - tal fi cou a dever-se ao facto de os factos alegados na contestação terem sido considerados como não provados,
c) - uma vez que a Recorrente não logrou fazer prova do que alegou,
d) - sendo que nos termos dos Arts. 342º do C.C. e Arts. 412º e 413º ambos do C.P.C.,
e) - o tribunal decidiu mediante a prova carreada para os autos,
f) - decidindo de forma correta e aplicando corretamente o estipulado nos Arts. 1043º, 1044º do C.C.,
g) - por sua vez no presente Recurso a Recorrente nada de novo traz em matéria de prova (possível) que possa levar o presente Tribunal (salvo melhor opinião em contrário) a alterar a decisão tomada em sede de 1ª Instância,
h) - devendo para tanto ser negado provimento ao presente recurso.
Termina por pedir que se negue provimento ao presente recurso.
-
O recurso foi admitido como recurso de apelação.
-
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
-
II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação das provas;
- se assiste à autora o direito a reclamar a indemnização peticionada, em relação aos danos no veículo com matrícula ..-VD-..;
- da violação do art. 13º da Constituição da República Portuguesa.
-
2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
A) A autora tem por objeto a atividade de compra e venda de automóveis ligeiros e pesados, novos e usados, o transporte dos mesmos e a sua reparação e assistência técnica, a venda de peças e acessórios, venda de óleos, gasolina e atividades congéneres, o aluguer de equipamentos auto, o aluguer de veículos de curta ou de longa duração, com ou sem condutor, bem como a intermediação de crédito, designadamente vinculado ou a título acessório e ainda a mediação de seguros.
B) A autora alugou à ré três viaturas de marca Toyota de modelo ..., com as matrículas ..-US-.., ..-TO-.. e ..-VD-...
C) Aquando da entrega das ditas viaturas estas foram peritadas pela D... que apurou, relativamente a cada uma delas, os danos elencados e descritos nos documentos junto aos autos sob os n.ºs 1, 2 e 3 juntos com a PI e cujo teor aqui se tem por integrado.
D) A autora faturou à ré o custo dos identificados danos, no valor total de € 6.177,37 (seis mil, cento e setenta e sete euros e trinta e sete cêntimos), pela missão da fatura ..., datada de 24-10-2018, referente à viatura ..-TO-.., no montante de €821,96, com vencimento imediato; da fatura ..., datada de 01-03-2019, referente à viatura ..-US-.., no montante de €1.238,19, com vencimento imediato; da fatura ..., datada de 02-07-2019, referente à viatura ..-VD-.., no montante de €4.117,22, com vencimento imediato.
E) A autora interpelou a ré para efetuar o pagamento.
-
- FACTOS NÃO PROVADOS
a) Relativamente à viatura de matricula ..-TO-.., o valor em causa são €668,26, após reclamação da ré, quanto ao valor inicialmente apresentado de €1327,66.
b) A viatura ..-VD-.. foi entregue para reparação, tendo a autora retido a viatura, não mais a entregando à ré, que ficou com o seu serviço todo pendente, o que lhe causou um enorme prejuízo.
c) Os danos que se invocam ter sido necessário reparar, não correspondem à realidade.
d) A viatura ..-VD-.. foi entregue para reparar umas pequenas coisas, sendo a ré confrontada com danos muito diferentes em quantidade e qualidade, não sendo dada a possibilidade à ré de reclamar e/ou contestar tais valores, o que a ré sempre fez com a consequência de diminuição dos valores para cerca de metade.
-
Não se provaram outros factos com interesse para a apreciação da causa.
-
3. O direito
- Reapreciação da decisão de facto -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 8 a 11, a apelante insurge-se contra o segmento da sentença que condenou a ré a pagar à autora a indemnização pelos danos causados na viatura com matrícula ..-VD-.., por não ter sido feita prova suficiente. Refere que o relatório em que se baseia a decisão não é preciso e a peritagem foi realizada três dias após a viatura ser entregue.
Cumpre ter presente antes de entrar na apreciação dos argumentos da apelante, que a autora veio peticionar a indemnização pelos danos causados no veículo com matrícula ..-VD-... O veículo com matrícula ..-VD-.. apenas é referenciado pela apelante na contestação.
Nos autos não ficou esclarecido se se trata do mesmo veículo e apenas por lapso de escrita se escreveu “..-VD-..”.
Contudo, quer se trate do mesmo veículo ou de outro veículo, não se justifica proceder à reapreciação da prova.
Efetivamente, a apelante não veio requerer a reapreciação da decisão de facto, mas assenta os fundamentos da impugnação em erro na apreciação da prova, sendo certo que apenas pela via da impugnação da decisão de facto se justifica reapreciar a prova.
O art. 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso com indicação dos meios de prova que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto – fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No caso concreto, apesar das referências à peritagem, a apelante não deu cumprimento ao ónus de alegação, pois não indicou os concretos factos impugnados, nem a alteração da decisão que sugere.
Nos termos do art. 640º/1/2 do CPC não se consideram reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.
Porém, nos termos do art. 662º/1 CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:
“[…]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
No caso presente, também não se justifica que oficiosamente o tribunal de recurso proceda à alteração da decisão de facto, porque os factos assentes não consentem outra interpretação e a apelante não procedeu à junção superveniente de qualquer documento.
As considerações tecidas a respeito do documento junto com a petição - relatório de peritagem - não permitem avaliação distinta, sendo certo que na decisão o juiz levou em consideração toda a prova produzida e não apenas o referido relatório. Acresce que tal meio de prova descreve de forma precisa os danos verificados no veículo com matrícula ..-VD-.., únicos que constituem objeto da pretensão indemnizatória formulada pela autora.
Conclui-se que não estão reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto e perante os elementos que constam dos autos não se justifica, ainda que a título oficioso, a alteração da decisão de facto.
Improcedem, as conclusões de recurso sob os pontos 8 a 11.
-
- Indemnização dos danos no veículo com matrícula ..-VD-.. -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 7 e 12, insurge-se a apelante contra a decisão por entender que a sentença viola por errada interpretação a aplicação dos art. 1043º e 1044º CC.
Na sentença considerou-se que por efeito do contrato de aluguer celebrado entre as partes, assistia à autora o direito à indemnização dos danos causados no veículo com matrícula ..-VD-.., com fundamento nos art. 1043º e 1044º CC.
A questão que se coloca consiste em apurar se restituído, pela ré à autora, o veículo automóvel no termo do contrato de aluguer, assiste à autora o direito a receber a indemnização pelos danos verificados no veículo.
A ação insere-se no âmbito das ações de indemnização por responsabilidade contratual, enquadramento jurídico que não é posto em causa pela apelante.
Em tese geral, os contratos devem ser pontualmente cumpridos, e o devedor que falte culposamente ao cumprimento da sua obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que cause ao credor (artigos 406º, nº 1, e 798º do Código Civil).
Assim, se o devedor, em geral, não realizar pontualmente a sua prestação, por culpa, e se com isso gerar ao credor prejuízo, constitui-se na obrigação de o indemnizar no quadro da responsabilidade civil contratual.
Temos, pois, que a responsabilidade civil contratual decorre do incumprimento de uma obrigação anterior, como que em quadro de modificação do dever de prestar em dever de indemnizar.
Os seus pressupostos são, assim, o facto ilícito contratual, a culpa, o dano ou prejuízo reparável e o nexo de causalidade adequada entre este e aquele (artigos 562º, 563º, 564º, n.º 1, 566º, 798º, 799º e 808º, n.º 1, do Código Civil).
Dir-se-á, em síntese, que a responsabilidade civil contratual ou obrigacional é a situação em que se encontra alguém que, tendo praticado um ato ilícito e culposo, é obrigado a indemnizar outrem dos prejuízos que lhe causou (artigos 483º, nº 1, 762º, nº 1 e 798º do Código Civil)
Entre os factos derivantes da responsabilidade civil obrigacional contam-se o não cumprimento de obrigações, a mora no seu cumprimento, o seu cumprimento defeituoso e a impossibilidade da prestação imputável ao devedor (artigos 798º, 801º, nº 1, 804º, nº 1, 898º, 899º, 908º, 913º e 1223º do Código Civil).
Na sentença o juiz do tribunal “a quo” qualificou o contrato como “contrato de aluguer” e a apelante não questiona este segmento da decisão e face aos factos provados, decisão essa que também não nos merece reparo, perante os factos provados e o princípio da liberdade contratual e normas que regem o contrato de aluguer e que foram aplicadas no caso concreto.
De acordo com o disposto no artº 1038º do CC (al. g)) constitui obrigação do locatário “não fazer da coisa uma utilização imprudente”.
A tal dever se refere também o artº 1043º, nº 1 do CC, ao estipular que, na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvando as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.
Nos termos do nº 2 do mesmo preceito, presume-se que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção, quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado ao tempo da entrega.
A presunção ali estabelecida é uma presunção “juris tantum”, ilidível por prova em contrário (artº 350º do CC).
Determina o artº 1044º do CC que o locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não excetuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização desta.
Em comentário a este preceito referem PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA: “[…]a expressão imputável ao locatário ou a terceiro, usada no artº 1044º, significa apenas devida a facto do locatário ou de terceiro, pois não é necessário que haja culpa do locatário na perda ou deterioração da coisa; basta que elas sejam devidas ao locatário ou a qualquer pessoa a quem ele tenha autorizado a utilização. É uma espécie de responsabilidade objetiva, que tem alguma justificação, quer por ser o locatário quem utiliza a coisa no seu próprio interesse, quer como estímulo legal a uma utilização prudente da coisa que lhe não pertence”[2].
Neste sentido se pronunciou, entre outros, o Ac. Rel. Porto 03 de março de 2011, Proc. 3837/06.3TBSTS.P1 (acessível em www.dgsi.pt).
No caso presente, tendo o contrato de aluguer sido celebrado verbalmente, conforme resulta dos factos provados, presume-se que o veículo com matrícula ..-VD-.. foi entregue à apelante em bom estado de manutenção.
A fim de ilidir a referida presunção, impunha-se que tivesse sido descrito o estado do veículo à data da entrega – o que não foi feito.
Não se tendo ilidido a presunção, só não assistiria à autora o direito a obter a reparação dos bens, se:
- o estado em que eles se encontravam à data da entrega do veículo pela ré-apelante se devesse a uma prudente utilização; ou,
- se, ainda que se devesse a uma imprudente utilização, não fosse o mesmo imputável a ré-apelante ou a terceiros a quem tenha permitido a utilização dos bens.
A apelante não alegou factos suscetíveis de ilidir tal presunção.
Por outro lado, não decorre dos factos apurados que os danos no veículo resultem da normal e prudente utilização.
Nada foi alegado no sentido de os danos não serem imputáveis ao locatário ou a terceiros por ele autorizados a usar os bens.
Acresce que a apelante, nos pontos 5 a 7 das conclusões de recurso, entra em consideração com factos que não se provaram, sendo certo que constituía ónus da apelante-ré a prova de tal matéria, na medida em que configuram factos extintivos do direito da autora (art. 342º/2 CC)[3].
Resta referir, mais uma vez, que a indemnização peticionada não se reporta a danos causados no veículo com matrícula ..-VD-.., referenciado no ponto 4 das conclusões de recurso.
Neste contexto, provado que o veículo com matrícula ..-VD-.. foi cedido à ré mediante contrato de aluguer e quando restituído apresentava diversos danos, cuja reparação ascende ao montante de € 4117,22, não logrando a ré apelante provar factos extintivos, impeditivos ou modificativos do direito da autora, deve concluir-se, como fez a sentença, que assiste à autora o direito à indemnização peticionada.
A autora logrou provar o prejuízo e o nexo causal entre os factos (violação dos deveres impostos ao locatário) e o prejuízo (danos no veículo).
Assiste, assim, à autora o direito à reparação do veículo, por força do disposto nos citados art. 1038º, al. g), 1043º, nº 1 e 1044º, todos do CC, cujo montante ascende a 4117,22.
Improcedem, desta forma, as conclusões de recurso sob os pontos 1 a 7.
-
- Da violação do art. 13º da Constituição da República Portuguesa-
No ponto 12 das conclusões de recurso defende a apelante que a sentença viola a interpretação e aplicação dos art. 1043º, 1044º CC e art. 13º da Constituição da República Portuguesa.
A respeito da conformidade da interpretação das normas jurídicas com o direito constitucional refere GOMES CANOTILHO: “[o] princípio da interpretação das leis em conformidade com a constituição é fundamentalmente um princípio de controlo (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autónoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissémicas ou plurisignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição”[4].
A inconstitucionalidade deve ser suscitada de forma processualmente adequada junto do tribunal que proferiu a decisão, de forma a obrigar ao seu conhecimento (art. 72º LTC).
Recai sobre o recorrente o ónus de colocar a questão de inconstitucionalidade, enunciando-a de forma expressa, clara e percetível e segundo os requisitos previstos na lei.
Por outro lado, pretendendo questionar certa interpretação de um preceito legal, deverá o recorrente especificar claramente qual o sentido ou dimensão normativa do preceito ou preceitos que tem por violador da Constituição, enunciando com precisão e rigor todos os pressupostos essenciais da dimensão normativa tida por inconstitucional.
Esta tem sido a interpretação desenvolvida pelo Tribunal Constitucional, como disso dá nota, entre outros, o Ac. do Tribunal Constitucional nº 560/94 (acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) quando observa:”[d]e facto, a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo, quando tal questão se coloca perante o tribunal recorrido a tempo de ele a poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver – o que, obviamente, exige que quem tem o ónus da suscitação da questão de constitucionalidade a coloque de forma clara e percetível.
Bem se compreende que assim seja, pois que, se o tribunal recorrido não for confrontado com a questão da constitucionalidade, não tem o dever de a decidir. E, não a decidindo, o Tribunal Constitucional, se interviesse em via de recurso, em vez de ir reapreciar uma questão que o tribunal recorrido julgara, iria conhecer dela ex novo.
A exigência de um cabal cumprimento do ónus da suscitação atempada – e processualmente adequada – da questão de constitucionalidade não é, pois –[…]-, uma “mera questão de forma secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se, sobre a questão de constitucionalidade e para que o Tribunal Constitucional, ao julga-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão”.
No caso presente o apelante não indica as concretas normas jurídicas que contrariam os preceitos constitucionais enunciados (art. 13º da Constituição da Republica Portuguesa), ou, o segmento interpretativo adotado e que contraria tais preceitos constitucionais, o que impede a apreciação da constitucionalidade.
Por outro lado, a mera afirmação que a sentença recorrida “violou o art. 13º da CRP”, não equivale a suscitar, validamente, uma questão de inconstitucionalidade normativa.
A válida imputação de inconstitucionalidade a uma norma (ou a uma sua dimensão parcelar ou interpretação), impõe, a quem pretende atacar, na perspetiva da sua compatibilidade com normas ou princípios constitucionais, determinada interpretação normativa, indicar concretamente a dimensão normativa que considera inconstitucional, o que também não ocorre no caso concreto.
Nesta perspetiva, considera-se que o apelante não suscitou, validamente, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, pelo que, improcedem, nesta parte as conclusões de recurso.

Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela apelante.
-
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença.
-
Custas a cargo da apelante.
*
Porto, 14 de dezembro de 2022
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
______________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA CÓDIGO CIVIL ANOTADO, vol. II, 4ª edição revista e atualizada, reimpressão, Coimbra Editora Wolters Kluwer, Portugal, pag. 381
[3] Cfr. Ac. STJ 21 de novembro de 2019, Proc. 4672/16.6T8LRS.L1.S2 (acessível em www.dgsi.pt)
[4] J.J.GOMES CANOTILHO Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, (7ª Reimpressão) Coimbra, Almedina, 2003, pág.1226.