Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
200/22.2PHMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: AUTO DE NOTÍCIA
VALOR PROBATÓRIO
Nº do Documento: RP20250212200/22.2PHMTS.P1
Data do Acordão: 02/12/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: NÃO PROVIDO O RECURSO DO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Importa distinguir, em termos de relevância probatória, entre os autos de notícia em que a autoridade presencia a prática de um crime e aqueles em que simplesmente recolhe os relatos de terceiros quanto a essa prática; só o documento de onde constem factos presenciados, relatados, narrados e descritos pela autoridade judiciária, órgão de policia criminal ou outra entidade policial, se reveste de um valor probatório de confiança e verosimilhança com a realidade que permite ao tribunal, na mensuração e ponderação das provas, atribuir-lhe um valor probatório superior ao que atribui a outros documentos em que as mesmas entidades procedem ao relato de ocorrências.
II - Neste último caso, embora o auto de notícia de nada sirva para a comprovação do crime comunicado, já que a autoridade que elaborou o auto, como no caso dos autos, não assistiu aos factos, tal documento autêntico tem ainda a virtualidade de permitir a comprovação – caso não seja contestada – da data da participação, de quem participou e do que foi comunicado, elementos que podem e devem ser concatenados com a demais prova produzida, no sentido de permitir completar a avaliação da prova por parte do Tribunal de julgamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 200/22.2PHMTS.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de Matosinhos – Juiz 2

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

No âmbito do Processo Comum Singular n.º 200/22.2PHMTS, a correr termos no Juízo Local Criminal de Matosinhos, Juiz 2, por sentença de 14-02-2024 foi decidido:

«a) Absolver a arguida AA da acusação como autora material da prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º do CP;

b) Absolver a arguida AA da prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, 1 do CP;

c) Absolver a arguida do pedido de indemnização civil contra si deduzido;

d) Custas pela assistente, que se fixam em 2 UC’s, na parte criminal, e na parte civil também pela mesma, considerando o valor do pedido.»


*

Inconformada, a assistente BB, interpôs recurso, solicitando a revogação da sentença proferida e a sua substituição por outra que altere a matéria de facto dada como não provada, para provada, e, em consequência, condene a arguida pela prática dos crimes de ameaça e injúria, e bem assim no pedido de indemnização civil deduzido, ou, assim não se entendendo, que julgue verificado o vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, devendo o processo ser reenviado para novo julgamento quanto à totalidade do objeto do processo.

Apresenta em apoio da sua pretensão as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):

«I – Funda-se o presente recurso, não só na discordância perante o sentido absolutório da sentença recorrida, no tocante aos crimes de ameaça e de injúria imputados à arguida, como na constatação de que, na sentença recorrida foram dados como não provados, factos que deveriam ter sido dados como provados face à prova produzida.

II - Concretos pontos de facto que a recorrente considera incorretamente julgados (artº 412º nº 3 al. a) CPP) por terem sido dados como não provados:

a) No dia 24 de fevereiro de 2022, cerca das 13:00 horas, a arguida conduzia o automóvel da marca Toyota, com a matrícula ..-CB-.. na Rua ..., em Matosinhos.

b) Na mesma rua, data e hora, no passeio, junto a uma paragem de autocarros, encontrava- se a assistente BB.

c) Enquanto fazia uma manobra de marcha -atrás, ao ver a assistente, a arguida conduziu o ..-CB-.. na direção desta, mas não a conseguiu atingir uma vez que a primeira se refugiou atrás de uns postes ali existentes.

d) Todavia, logo de seguida, a arguida abriu o vidro da janela do automóvel que conduzia e disse à assistente “anda puta que não vais desta mas hás- de ir na próxima”, querendo com esta expressão afirmar que pretendia atingir a assistente com aquele automóvel em momento posterior.

e) As afirmações acima referidas, produzidas naquelas circunstâncias, eram objetivamente adequadas a causar, como efetivamente causaram, receio e perturbação na pessoa visada - e de tal a arguida tinha perfeito conhecimento - sendo certo que a assistente ficou com medo de que a autora da expressão supra referida concretizasse o propósito anunciado de atentar contra a sua integridade física, atendendo, designadamente, o tom sério e intimidador com que a proferiu.

f) Agindo da forma descrita, tinha a arguida a vontade livre e a perfeita consciência de estar a assustar e amedrontar a assistente, como efetivamente conseguiu fazer;

g) Previu e quis a arguida atuar do modo descrito, com intenção de dirigir à assistente palavras ofensivas da sua honra e consideração, como logrou fazer

h) Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

i) Na sequência da atuação da arguida a assistente sentiu-se humilhada publicamente;

j) Tanto que a expressão foi proferida na presença de outras pessoas que se encontravam no local;

III- Concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (Cfr. artº 412º, nº 3 al. b) CPP):

-declarações em audiência de julgamento de 06.02.2024, da assistente BB, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, com início pelas 14:58:18 horas e termo pelas 15:21:04 horas (cfr. ata de audiência de discussão e julgamento de 06.02.2024), declarações essas supra transcritas no artº 12º, pontos 1º a 10º, deste recurso.

-declarações em audiência de julgamento de 06.02.2024, da testemunha CC, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, com inicio pelas 15:22:56 horas e termo pelas 15:56:54 horas(cfr. ata de audiência de discussão e julgamento de 06.02.2024), depoimento esse supra transcrito no artº 12º, pontos 1º a 10º, deste recurso .

IV- Das declarações da assistente e do depoimento da testemunha, supra transcritos, bem como do auto de denúncia, resultou provada a data da ocorrência dos factos (dia, mês e ano), o local onde ocorreram os factos e a identificação de quem conduzia o veículo. Pelo que os factos não provados constantes da al. a), terão que ser dados como provados.

V- Das declarações da assistente, supra transcritas, resulta a prova de que a assistente nessa data e hora, estava no local dos factos, junto a uma paragem de autocarros. Pelo que, os factos constantes da al. b) dos factos não provados na sentença recorrida, terão necessariamente de ser dados como provados.

VI- A matéria de facto constante da al. c) dos factos não provados, resultou igualmente provada das declarações prestadas pela assistente e pela testemunha e supra transcritas, onde facilmente o Tribunal pode concluir que quer a assistente quer a testemunha referem que a arguida conduziu o carro na direção da assistente, e que só não a atingiu porque esta estava junto a uns postes ali existentes. Ambas referem que a intenção da arguida era atingir a assistente, e que a arguida fez efetivamente uma manobra de marcha- atrás encima da passadeira. Pelo que, os factos constantes da al. c) dos factos não provados na sentença recorrida, terão necessariamente de ser dados como provados.

VII- Quanto à matéria de facto constante da al. d) dos factos não provados, terá que concluir- se dos depoimentos da assistente e da testemunha supra transcritos, que resultaram provados, pois resultou inequívoco daquelas declarações que a arguida abriu o vidro da janela do automóvel que conduzia e disse à assistente “anda puta que não vais desta mas hás -de ir na próxima”, ficando quer a assistente quer a testemunha presencial com a nítida sensação que a arguida pretendia atingir a assistente.

VIII- Ora, das declarações da assistente e da testemunha supra transcritas e proferidas em audiência de julgamento, resulta claro que a atuação da arguida foi objetivamente adequada a causar, como efetivamente causou, receio e perturbação na pessoa da assistente. A assistente ficou com medo que a arguida atentasse contra a sua integridade física. Com a conduta que empreendeu (conduzindo o veiculo e direcionando-o à assistente e inclusive galgando o passeio onde esta se encontrava) a arguida agiu de modo livre e tinha perfeito conhecimento que com isso ia perturbar a assistente, como perturbou e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei. Pelo que, os factos constantes da al. e), f) e h) dos factos não provados na sentença recorrida, terão necessariamente de ser dados como provados.

IX- Das declarações supra referidas e transcritas resultou provado que a arguida chamou a assistente de “puta” (a assistente e a testemunha ouviram), que quis fazê-lo e fê-lo sabendo que esse comportamento era proibido e punido por lei. Tendo também sido demonstrado que a assistente se sentiu ofendida e humilhada. Pelo que os factos constantes da al. g) e h) dos factos não provados na sentença recorrida, terão necessariamente de ser dados como provados.

X- Resulta dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, que a assistente se sentiu humilhada com a expressão que lhe foi dirigida, e que a testemunha ouviu a arguida chamar a assistente de “filha da puta” e que no local da ocorrência estavam pessoas que iam a passar, e que até berraram “ai que ela mata a mulher” e disseram à assistente para chamar a policia, pessoas essas que embora não estando com a assistente, nem esta as conhecendo, ouviram, pois a expressão foi dita em voz alta. Pelo que, os factos constantes da al. i) e j) dos factos não provados na sentença recorrida, terão necessariamente de ser dados como provados

XI- Resulta, assim, inequivocamente das declarações da assistente e do depoimento da testemunha, bem como da queixa apresentada na PSP, no mesmo dia dos factos, que a arguida praticou os factos integradores quer do crime de ameaça quer do crime de injúria de que vinha acusada.

XII- A assistente relatou de forma objetiva, a forma como tudo se passou, confirmando a factualidade descrita na acusação e as suas declarações foram confirmadas no essencial pelo depoimento da testemunha de acusação, na medida daquilo que lhe era exigido saber.

XIII- Nenhuma dúvida nos resta, salvo o muito respeito devido por opinião diversa, que a douta sentença recorrida efetuou uma incorreta aplicação da prova e violou, como vê do supra alegado, o disposto no artigo 127º nº 1 do CPP.

XIV- impõe-se, assim, no nosso modesto entendimento, alterar a matéria de facto constante da douta sentença recorrida, devendo constar dos factos provados, todos os factos que na sentença em análise foram dados como não provados.

XV- Da conjugação dos supra referidos elementos probatórios resulta a demonstração dos factos integradores da prática do crime de ameaça e do crime de injúria, p. e p. pelos artigos 153º e 181º nº 1, todos do Código Penal.

XVI- Da fundamentação jurídica constante da douta sentença recorrida, decorre que o único fator que obstaculizou à condenação da arguida pelos referidos crimes, foi uma dúvida sobre o ocorrido, sobre se os factos ocorreram ou não.

XVII- Dissecando a prova produzida e conjugando-a com as regras da experiência, da lógica e da normalidade das coisas, facilmente se conclui que tal dúvida não pode subsistir.

XVIII- Ficando, a nosso ver, comprovados todos os supra referidos elementos típicos, impõe-se a condenação da arguida pela pratica, e autoria material do crime de ameaça e do crime de injúria, p. e p. pelos artigos 153º e 181º nº 1, todos do Código Penal.

XIX- Ao decidir da forma constante da douta sentença que se recorre, a MMª Juíza violou, no nosso modesto entendimento, o preceituado nos artigos 153º e 181º nº 1, todos do Código Penal e no artigo 127º do Código de Processo Penal pelo que deverá ser proferida douta sentença pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, condenando a arguida em conformidade com a alteração da decisão da matéria de facto supra exposta.

Sem prescindir,

XX- Tendo a conclusão da falta de credibilidade que o tribunal assacou às declarações da assistente e ao depoimento da testemunha, estado na base do recurso do tribunal ao principio in dúbio pro reo para ter dado como não provada a matéria de facto não provada, há que concluir que o tribunal usou indevidamente tal princípio e incorreu no vicio do erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410 nº 2 al. c) do CPP, pelo que deverá o processo ser reenviado para novo julgamento à totalidade do objeto do processo.»


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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da sentença recorrida.

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Também a arguida AA respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência e aduzindo em abono da sua posição as seguintes conclusões (transcrição):

«1) Vinha a Arguida, ora Recorrida acusado da prática de um crime de ameaça e um de injúria, ambos previstos no Código Penal.

2) Ora, por sentença proferida em primeira instância pelo Douto Tribunal a quo, foi a Arguida, ora Recorrida, absolvida da prática daqueles crimes, porquanto não os cometeu.

3) Consequentemente, também o pedido de indemnização cível formulado pela Assistente, ora Recorrente, improcedeu.

4) A Sentença proferida pelo Douto Tribunal a quo é absolutamente inatacável, não enfermando de qualquer erro ou vício que lhe possa ser apontada.

5) Aliás, a apreciação efectuada pelo Julgador, a qual é amplamente descrita na Sentença proferida, é cabal e inequívoca, sendo a convicção daquele baseada na prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento.

6) A decisão proferida em primeira instância foi suficientemente balizada pelos princípios da livre apreciação da prova e da imediação, bem como do Direito.

7) Princípios amplamente difundidos na jurisprudência dos tribunais superiores portugueses.

8) O que ora pretende a Assistente, ora Recorrente é um quase segundo julgamento, carreando, inclusivamente, para as Alegações transcrições truncadas e descontextualizadas, com o claro sentido e objectivo de desvirtuar a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.

9) Ouvidas todas as testemunhas arroladas, decidiu o Douto Tribunal a quo, fazendo-o com justa ponderação.

10) E o julgador do Douto Tribunal a quo não só fez, em sede de Sentença, uma correcta avaliação da prova produzida, como transpondo para os crime em questão, bem verificou que não estavam preenchidos quaisquer elementos da sua verificação, pelo que, a decisão não poderia ser outra que não a absolvição da Arguida, ora Recorrida.

11) Pelo que, por tudo o quanto vem exposto deverá o Douto Acórdão a proferir pelo Douto Tribunal validar a Sentença proferida em primeira instância, nos seus exactos termos.

12) Assim, e nestes termos, bem andou o Douto Tribunal a quo ao absolver a Arguida, ora Recorrida dos crimes de que vinha acusada, não sendo, estamos em crer, e salvo melhor e mais ajuizada opinião, a Sentença proferida em primeira instância minimamente atacável, não sendo, pois, consequentemente, também atacável a decisão fundamentada que esteve na génese da improcedência do pedido de indemnização cível formulada pela Assistente, ora Recorrente.»


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Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá ser julgado improcedente e a sentença recorrida mantida, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido.

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Cumprida a notificado a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, não foram apresentadas respostas.

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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.

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II. Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].

As questões que a recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:

- Erro de julgamento em sede de matéria de facto, com violação do art. 127.º do CPPenal;

- Erro notório na apreciação da prova, com referência ao art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPPenal;


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Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respectiva motivação constantes da sentença recorrida (transcrição):

«II. FUNDAMENTAÇÃO.

A) Factos Provados.

Com relevo para a decisão final, provou-se que:

1. A arguida reside com o marido, em casa própria pela qual pagam de prestação mensal devida por empréstimo, €360,00;

2. A arguida está de baixa médica, mas trabalha como auxiliar de limpeza num jardim de infância, auferindo o salário mínimo;

3. O marido da arguida é trolha e aufere €500,00 mensais;

4. Tem o 4.º ano de escolaridade;

5. A arguida já foi condenada no TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO PORTO, MATOSINHOS - JL CRIMINAL - JUIZ 2, PROCESSO: 477/21.0PHMTS, por sentença de 2022/10/18, com TRÂNSITO JULGADO: 2022/11/17, por 1 CRIMES(S) DE INJÚRIA, P.P. PELOS ART.ºS 181º Nº 1 DO C. PENAL, praticado em 2021/05/22, em 60 DIAS DE MULTA, À TAXA DIÁRIA DE 6,50, QUE PERFAZ O TOTAL DE 390,00 EUROS.


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B) FACTOS NÃO PROVADOS.

Com interesse para a causa, não se provou que:

a) No dia 24 de fevereiro de 2022, cerca das 13:00 horas, a arguida conduzia o automóvel da marca Toyota, com a matrícula ..-CB-.. na Rua ..., em Matosinhos.

b) Na mesma rua, data e hora, no passeio, junto a uma paragem de autocarros, encontrava-se a assistente BB.

c) Enquanto fazia uma manobra de marcha-atrás, ao ver a assistente, a arguida conduziu o ..-CB-.. na direção desta, mas não a conseguiu atingir uma vez que a primeira se refugiou atrás de uns postes ali existentes.

d) Todavia, logo de seguida, a arguida abriu o vidro da janela do automóvel que conduzia e disse à assistente “anda puta que não vais desta mas hás-de ir na próxima”, querendo com esta expressão afirmar que pretendia atingir a assistente com aquele automóvel em momento posterior.

e) As afirmações acima referidas, produzidas naquelas circunstâncias, eram objetivamente adequadas a causar, como efetivamente causaram, receio e perturbação na pessoa visada - e de tal a arguida tinha perfeito conhecimento - sendo certo que a assistente ficou com medo de que a autora da expressão supra referida concretizasse o propósito anunciado de atentar contra a sua integridade física, atendendo, designadamente, o tom sério e intimidador com que a proferiu.

f) Agindo da forma descrita, tinha a arguida a vontade livre e a perfeita consciência de estar a assustar e amedrontar a assistente, como efetivamente conseguiu fazer;

g) Previu e quis a arguida atuar do modo descrito, com intenção de dirigir à assistente palavras ofensivas da sua honra e consideração, como logrou fazer;

h) Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

i) Na sequência da atuação da arguida a assistente sentiu-se humilhada publicamente;

j) Tanto que a expressão foi proferida na presença de outras pessoas que se encontravam no local;


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C) FUNDAMENTAÇÃO DA CONVICÇÃO DO TRIBUNAL.

A decisão acerca da matéria de facto fundou-se no conjunto da prova produzida e analisada em audiência de julgamento, interpretada conjugada e criticamente, mais concretamente:

- auto de denúncia relativa a deslocação da assistente ao posto da PSP, a denunciar factos relativos à mesma data (24-2-2022), sendo que nada foi presenciado, permitindo situar no tempo a queixa.

- atendeu-se aos documentos de pesquisa, no sentido de não identificar a testemunha apresentada pela assistente como tendo já sido indicada por aquela no âmbito de outros processos.

- a arguida, confirmando ter um veiculo que é o identificado nos autos, nega integralmente os factos que lhe são imputados.

Esclarece que durante o trabalho, fica no jardim de infância, no qual entra às 7:30 e saí às 17:30 horas, durante o horário do almoço, que está incluído.

Que eventualmente passa naquela rua para ir trabalhar.

Refere estar zangada com a assistente, sua vizinha, já há uns anos.

Diz que vai fazer uma cirurgia ao pé está de baixa médica há 10 dias, mas fala sobre a situação pessoal e económica, no que mereceu credibilidade por parte do tribunal.

Quanto aos factos, foi peremptória, pelo que, conforme abaixo melhor se analisa, não tendo o depoimento da assistente e testemunha sido escorreitos e coerentes, deixaram o tribunal na dúvida sobre o ocorrido e, assim, tal dúvida beneficiou a arguida, dando-se os factos por não provados.

- a assistente BB, nascida a 22-3-1951, conta a sua versão dos factos, sendo certo que, quando questionada sobre pormenores, acaba por ser incongruente, como quando descreve que a arguida colocou o carro de frente para o passeio, com as duas rodas da frente encima do passeio, que indica como sendo curto no local, de máximo um metro. As suas declarações, além de denotaram animosidade latente e carregarem juízos conclusivos, não são compatíveis com o depoimento da testemunha que indica e que abaixo se valora, em vários pormenores, e mesmo retendo eventuais falhas de memória decorrentes da rapidez do relatado e lapso de tempo decorrido, não se apresentam naturais, coerentes ou escorreitas.

Assim, e retendo a negação do ocorrido por parte da arguida, o tribunal fica em dúvida acerca da prova da atuação da arguida e necessariamente, atento o princípio in dúbio pro reu, dá tal atuação por não provada.

- a testemunha CC, nascida a 11-6-1951, conhecida da assistente, segundo as próprias, de tomarem café naquela zona, refere ter visto a arguida a conduzir o carro, mas ao contrário da assistente, que a mesma colocou a roda de trás encima do passeio, mas com o carro paralelo à estrada, e o lugar de condutor virado para a estrada e não para o passeio, versão diferente da da assistente. Também questionada sobre pormenores, não revelu um depoimento escorreito, sendo que a sua versão sobre reconhecer a arguida, que não conhecia, por ter colocado a cabeça fora do carro para falar para a assistente, quando estava virada para o lado da estrada e a assistente no passeio na zona do lugar do passageiro, portanto, surge algo incoerente. Assim aliado às demais incoerências do seu depoimento e a uma notória falta de isenção, decorrente da postura e modo como falou, tal não permite, em conjugação com o depoimento da assistente, afastar a dúvida do tribunal sobre se os factos ocorreram ou não, assim se dando os mesmos, como acima referido, por não provados.

- atendeu-se ao crc da arguida para respectiva prova.»


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Vejamos então.

Por razões de precedência lógica das questões colocadas, iniciaremos pela apreciação do vício do erro notório na apreciação da prova, com referência ao art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPPenal.

Na perspectiva da recorrente, o Tribunal a quo cometeu o vício do erro notório na apreciação da prova porquanto fundou a falta de credibilidade das declarações da assistente em incongruências inexistentes ou irrevelantes, relativamente às suas próprias declarações e também na sua conjugação com o depoimento da testemunha CC, e na falta de isenção que dessa prova emanou, e por via disso usou erroneamente o princípio in dubio pro reo.

Ainda neste segmento, a recorrente invoca que o Tribunal a quo i) devia ter permitido a deslocação ao local para que a assistente e a testemunha esclarecessem in loco a dinâmica dos acontecimentos, ii) que o Tribunal a quo não teve em conta o auto de denúncia, quando ali se identifica a data, a hora, o local da ocorrência, o veículo e a arguida, iii) que não ponderou que a arguida mentiu deliberadamente sobre a circunstância de a testemunha CC ser testemunha noutros processos da assistente; e iv) que não foi bem valorado o CRC da arguida, pois a condenação da mesma no crime de injúrias indicado foi contra a aqui assistente, sendo certo que a certidão estava desactualizada à data da prolação da sentença, por ter mais de 90 dias, acrescentando ainda que a arguida já sofreu outra condenação por crime de injúrias contra a assistente, decisão que transitou em julgado a 24-02-2024 e, por isso, não contava do CRC à data da prolação da sentença recorrida.

É pacífico o entendimento de que quanto à impugnação da matéria de facto pode o recorrente seguir um de dois caminhos: ou invoca os vícios de lógica da sentença previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, devendo, neste caso, ater-se apenas ao texto da decisão e às incoerências que aí possam ser encontradas, ou apresenta uma impugnação alargada, que lhe permite analisar a prova produzida em julgamento, extrapolando o espaço limitado do texto da decisão recorrida.

Em qualquer das opções impõe-se ao recorrente o cumprimento de regras para que o recurso possa ser apreciado e tenha viabilidade de sucesso em termos formais.

Quanto à primeira perspectiva, que abarca, em abstracto, o invocado vício do erro notório na apreciação da prova, importa deixar bem claro que estão em causa defeitos que têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum. São falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detectáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente perceptíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.

Relativamente ao vício do erro notório na apreciação da prova é uma falha que resulta, como se referiu, do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum, e traduz-se numa deficiência lógica na apreciação da prova, num «erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio.»[2]

É o caso, por exemplo, de as provas tal como se descrevem na decisão apontarem em determinado sentido e depois se concluir em termos opostos, o que revela um juízo ilógico e é passível de ser detectado por qualquer pessoa de mediana formação[3].

Contudo, a mera divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida e a convicção do Tribunal não configura qualquer um dos vícios em apreço[4].

Ora, o principal argumento apresentado pela recorrente neste segmento do recurso assenta nas críticas que realiza à avaliação do Tribunal a quo relativamente às declarações da assistente e depoimento da testemunha CC, considerando que não tem razão nesse ajuizamento.

Porém, nesta sede, só uma avaliação despropositada, patentemente desconforme às regras da experiência comum e contaminada por raciocínio ilógico poderia conduzir a bom porto a pretensão da recorrente.

Ora, lida a sentença recorrida, e em concreto a sua motivação, supratranscrita, não encontramos aí juízos ilógicos na avaliação das provas, nem qualquer tipo de avaliação que atente contra as regras da experiência comum.

A recorrente simplesmente discorda da concreta leitura que o Tribunal a quo realizou da prova, o que, sendo legítimo, não permite identificar o vício do erro notório na apreciação da prova.

Por outro lado, a recorrente, para fundamentar a sua alegação, foi introduzindo amiúde menções a excertos da gravação das declarações da assistente e depoimento da testemunha CC, cujo teor considera traduzir a verdade dos acontecimentos e corroborar a sua pretensão.

Porém, quando alinhamos nos argumentos usados a prova produzida já não nos encontramos no âmbito dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, mas sim no do erro de julgamento em sede de matéria de facto.

A verdade é que, tendo presente os contornos legais do vício imputado, compulsado o texto da decisão recorrida e vista a matéria de facto provada e não provada e respectiva motivação, bem como a decisão proferida, não se detecta qualquer falha lógica evidente, qualquer interferência no percurso lógico do texto que seja patente à leitura pelo cidadão mediano e que leve a concluir pela existência de uma falha evidente de raciocínio.

Na sequência da antecedente conclusão, mostra-se infundada a alegação da recorrente de que «tendo a conclusão da falta de credibilidade que o tribunal assacou às declarações da assistente e ao depoimento da testemunha, estado na base do recurso do tribunal ao princípio in dúbio pro reo para ter dado como não provada a matéria de facto não provada, há que concluir que o tribunal usou indevidamente tal princípio e incorreu aqui no vicio do erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º nº 2 al. c) do CPP.

O princípio in dúbio pro reo” não constitui uma regra probatória em sentido próprio, i.e, uma regra relativa à produção ou valoração da prova, nomeadamente à dúvida sobre a credibilidade de um dado meio de prova individualmente considerado, reportando-se, antes, às consequências da não realização de prova suficiente sobre a verdade ou falsidade de um facto, depois de concluído o processo de valoração da prova produzida. (Ac. da Relação de Évora de 16.10.2007)

Ou seja, para que o princípio in dúbio pro reo possa funcionar, é necessário que as provas submetidas à apreciação do tribunal não permitam a tomada de decisão sobre a ocorrência ou não de determinado facto, o que não é o caso.»

Mais uma vez a recorrente confunde a sua própria leitura dos factos e a decisão que em seu entender devia ter sido proferida com a que o Tribunal a quo efectivamente prolatou.

A falta de credibilidade das declarações da assistente e do depoimento da testemunha não resultou do funcionamento do princípio in dubio pro reo, antes das deficiências que a sentença recorrida lhes aponta.

O mencionado princípio só foi invocado, e bem, quando o Tribunal a quo, face às deficiências que apontou à prova que corroborava a acusação e à ausência de outra prova que a sustentasse, entendeu que a dúvida que se formou quanto à culpabilidade da arguida teria de ser ponderada a seu favor, à luz do princípio in dubio pro reo.

É esta, e nenhuma outra, a interpretação resultante da sentença recorrida quando ali se afirma «[a]s suas declarações [da assistente], além de denotaram animosidade latente e carregarem juízos conclusivos, não são compatíveis com o depoimento da testemunha que indica e que abaixo se valora, em vários pormenores, e mesmo retendo eventuais falhas de memória decorrentes da rapidez do relatado e lapso de tempo decorrido, não se apresentam naturais, coerentes ou escorreitas» e depois se conclui que «[a]ssim, e retendo a negação do ocorrido por parte da arguida, o tribunal fica em dúvida acerca da prova da atuação da arguida e necessariamente, atento o princípio in dúbio pro reu, dá tal atuação por não provada.»

O Tribunal de julgamento realizou correcta utilização do princípio in dubio pro reo, não incorrendo, por isso, em erro notório na apreciação da prova no sentido em que é configurado pelo at. 410.º, n.º 2, al. c), do CPPenal.

E igual resultado obtemos no que concerne aos demais itens invocados a propósito deste vício.

Assim, no que se refere à alegação de que o Tribunal a quo devia ter permitido a deslocação ao local para que a assistente e a testemunha esclarecessem in loco a dinâmica dos acontecimentos, cumpre salientar que tal matéria não é, sequer, mencionada na sentença recorrida, pelo que nunca poderia estar em causa o vício invocado.

Por outro lado, se a recorrente pretendia pôr em causa a decisão do Tribunal a quo de não realizar uma deslocação ao local teria de, na devida altura, ter reagido ao indeferimento que menciona, dele recorrendo.

Em suma, não sendo patente da sentença recorrida, como não é, que era indispensável para a boa decisão da causa a visualização in loco pelo Tribunal de julgamento do local dos factos imputados e espaços adjacentes, em conjugação com as declarações da assistente e depoimento da testemunha CC, soçobra necessariamente a pretensão apresentada.

Alega ainda a recorrente que o Tribunal a quo não teve em conta o auto de denúncia, quando ali se identifica a data, a hora, o local da ocorrência, o veículo e a arguida, apenas se referindo na sentença recorrida que «teve em consideração o auto de denuncia relativa a deslocação da assistente ao posto da PSP, a denunciar factos relativos à mesma data (24-2-2022»), e acrescentando-se que “nada foi presenciado”».

A sentença recorrida, inicia a sua motivação referindo que «[a] decisão acerca da matéria de facto fundou-se no conjunto da prova produzida e analisada em audiência de julgamento, interpretada conjugada e criticamente, mais concretamente:

- auto de denúncia relativa a deslocação da assistente ao posto da PSP, a denunciar factos relativos à mesma data (24-2-2022), sendo que nada foi presenciado, permitindo situar no tempo a queixa.»

Ao contrário do que a recorrente pretende, o Tribunal a quo não podia retirar do auto de denúncia quaisquer considerações sobre a prática do crime.

Neste sentido, já se pronunciou a aqui relatora no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-07-2023, no âmbito do Proc. n.º 536/21.0T9AGD.P1[5] (onde se mencionam outras fontes), e em cujo sumário se firmou o seguinte entendimento:

«I - Importa distinguir, em termos de relevância probatória, entre os autos de notícia em que a autoridade presencia a prática de um crime e aqueles em que simplesmente recolhe os relatos de terceiros quanto a essa prática; só o documento de onde constem factos presenciados, relatados, narrados e descritos pela autoridade judiciária, órgão de policia criminal ou outra entidade policial, se reveste de um valor probatório de confiança e verosimilhança com a realidade que permite ao tribunal, na mensuração e ponderação das provas, atribuir-lhe um valor probatório superior ao que atribui a outros documentos em que as mesmas entidades procedem ao relato de ocorrências

II - Neste último caso, embora o auto de notícia de nada sirva para a comprovação do crime comunicado, já que a autoridade que elaborou o auto, como no caso dos autos, não assistiu aos factos, tal documento autêntico tem ainda a virtualidade de permitir a comprovação – caso não seja contestada, como não foi – da data da participação, de quem participou e do que foi comunicado, elementos que podem e devem ser concatenados com a demais prova produzida, no sentido de permitir completar a avaliação da prova por parte do Tribunal de julgamento.»

Seguindo esta posição, que também aqui se acolhe, impõe-se concluir que bem andou o Tribunal a quo ao não retirar do auto de denúncia qualquer ilação quanto ao cometimento pela arguida do crime que lhe era imputado.

Assim, naturalmente, improcede também este segmento do recurso.

De seguida, alega a recorrente que o Tribunal a quo não ponderou que a arguida mentiu deliberadamente sobre a circunstância de a testemunha CC ser testemunha noutros processos da assistente.

Sobre esta questão o Tribunal a quo consignou que «atendeu-se aos documentos de pesquisa, no sentido de não identificar a testemunha apresentada pela assistente como tendo já sido indicada por aquela no âmbito de outros processos».

A sentença não menciona o que a arguida disse ou não disse sobre essa matéria, nem se debruça sobre a forma como, na primeira hipótese, a referiu.

Encontrando-nos no âmbito de um vício de lógica da sentença, apenas detectável do texto da decisão, e pressupondo a questão suscitada, ao invés, a análise das gravações das declarações da arguida naturalmente que falece in limine a pretensão da recorrente.

Deve acrescentar-se, aliás, que o que resulta da acta de julgamento do dia 06-02-2024 quanto a esta matéria é contrário ao invocado, sendo do seguinte teor:

«De seguida, pelo ilustre defensor da arguida foi pedida a palavra e sendo-lhe concedida, pelo mesmo foi requerido, entre o mais, e na sequência das declarações da assistente quanto à testemunha arrolada CC, seja ordenada pesquisa na base de dados da secretaria central de todos os processos movidos pelas partes, sendo gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 15:21:02 horas e o seu termo pelas 15:22:56 horas.

Após ter sido dada a palavra à Digna Magistrada do M.º P.º e à ilustre mandatária da assistente, as quais declararam nada ter a opor, pela Mm.ª Juíza foi proferido o seguinte:

DESPACHO

Uma vez que a diligência ora requerida se afigura pertinente para aferir da credibilidade da testemunha indicada e a ouvir de seguida, defere-se o requerido, determinando-se que a final seja efetuada pesquisa nas bases de dados disponíveis do tribunal no sentido de aferir se em processos nos quais figura como partes a aqui arguida e assistente, a testemunha em causa foi indicada pela ora assistente como testemunha.»

Ainda assim, e mesmo que a alegação fosse verdadeira, sempre se dirá que a conclusão que a recorrente pretende alcançar é, ela sim, um erro notório, pois a condenação da arguida no caso concreto nunca poderia decorrer da hipotética circunstância de ter mentido sobre a participação da testemunha CC em outros processos em que a assistente e a arguida têm ambas a mesma qualidade.

A inveracidade desse facto não torna a testemunha mais isenta. A sua verificação é que a torna menos isenta.

Não procede, pois, a argumentação invocada.

Por último, alega a recorrente que não foi bem valorado o CRC da arguida, pois a condenação da mesma no crime de injúrias indicado foi contra a aqui assistente, sendo certo que a certidão estava desactualizada à data da prolação da sentença, por ter mais de 90 dias, acrescentando ainda que a arguida já sofreu outra condenação por crime de injúrias contra a assistente, decisão que transitou em julgado a 24-02-2024 e, por isso, não contava do CRC à data da prolação da sentença recorrida.

O CRC dos arguidos não é meio de prova válido para permitir a comprovação dos elementos típicos de um crime que está a ser julgado, e tal ilação seria, ela sim, também aqui, erro notório na apreciação da prova.

Por isso, é irrelevante para a comprovação do crime o teor do CRC ou o que poderia ou devia lá constar.

E no que concerne à validade do CRC dos autos, mostra-se incorrecta a alegação da recorrente, pois a 04-01-2024 foi junto aos autos CRC actualizado, e válido pelo período de 90 dias, pelo que à data da prolação da sentença, a 14-02-2024, era perfeitamente válido e conforme ao facto provado n.º 5 o CRC da arguida.

Improcede também esta questão.

Em face do exposto, e porque, como já se referiu, não se detecta que a decisão padeça de qualquer outra falha de lógica, impõe-se concluir pela improcedência do recurso quanto à invocação do vício do erro notório na apreciação da prova, sendo de manter na íntegra, por esta via, a sentença recorrida.


*

Erro de julgamento em sede de matéria de facto

Entende a recorrente que o Tribunal a quo errou ao julgar como não provados os factos elencados nas alíneas a) a j) dos factos não provados, que considera deviam ter sido dados como provados, uma vez que a avaliação que realizou da falta de credibilidade das declarações da assistente e do depoimento da testemunha CC não merece acolhimento, transcrevendo depois, quanto a cada facto não provado impugnado, os segmentos daquela prova que, no seu entender, permitem dar como provados cada um desses factos.

Vejamos.

É jurisprudência pacífica que resulta do texto do art. 412.º, n.º 3, do CPPenal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto.

As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração que for efectuada pelo Tribunal a quo, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.

Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo Tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.

Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.

É necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada e não à consignada pelo Tribunal.

E na análise da prova que apresenta na sua impugnação da matéria de facto (alargada) tem o recorrente de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.

Esta ideia sobressai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2017, onde se afirmou[6]:

«I - Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum».

II - Percorrido este caminho na fundamentação, a impugnação dos factos há-de ser feita com a indicação das concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida sob pena de tal impugnação redundar em mera discordância acerca da apreciação da prova desses mesmos factos, respeitável decerto, mas sem consequências de índole processual.»

E esta posição está igualmente associada à ideia – que é preciso não perder de vista – de que o reexame da matéria de facto não de destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância.

Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[7]:

«I - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova, uma nova ou uma suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP.

II - O recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida.»

Contextualizado, de forma sumária, o quadro legal e jurisprudencial em que assenta o reexame da matéria de facto pelos Tribunais da Relação, passemos à análise em concreto da impugnação da matéria de facto (alargada) apresentada pela assistente.

A recorrente coloca em causa toda a factualidade dada como não provada e justifica a sua posição com os segmentos que apresenta das declarações da assistente e do depoimento da testemunha CC, afirmando que o Tribunal a quo foi muito além do que lhe era permitido pelo princípio da livre apreciação da prova, violando assim o art. 127.º do CPPenal, no fundo, porque não fez uma análise crítica em conformidade com as regras da experiência, não havendo razão para considerar aquelas declarações e depoimento não escorreitos, coerentes, congruentes ou não isentos.

Lida a sentença recorrida, logo nos apercebemos que o problema da não comprovação dos factos impugnados não está na inexistência de prova que objectivamente confirme, grosso modo, aqueles factos da acusação. O Tribunal a quo não nega que a prova que a recorrente invoca como suficiente para dar como provados os factos não provados permite objectivamente esse resultado.

O problema reside na credibilidade que o Tribunal a quo conferiu a essa prova e que, em seu entender, sendo a única que confirma os factos da acusação, evidenciava fragilidades que não lhe foi possível ultrapassar e que foram suficientes para não superar a dúvida razoável que o princípio in dubio pro reo obriga a afastar.

No fundo, tudo se resume a saber se a falta de credibilidade afirmada na sentença está sustentada de forma objectiva e em coerência com as regras da experiência comum, pois só no quadro de uma resposta negativa é possível reverter a decisão em sede de matéria de facto como pretende a assistente.

Neste sentido afirmou-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-07-2007[8], que «[o] princípio da livre apreciação da prova é um princípio atinente à prova, que determina que esta é apreciada, não de acordo com regras legais pré-estabelecidas, mas sim segundo as regras da experiência comum e de acordo com a livre convicção do juiz, uma livre convicção que não pode ser arbitrária ou subjectiva e, por isso, deve ser motivada. A motivação da convicção apresenta-se, pois, como o meio de controlo da decisão de facto, em ordem a garantir a objectividade e a genuinidade da convicção formada pelo tribunal.»

Ouvida a prova indicada pela recorrente, desde já, adiantamos que não encontramos razões jurídicas para reverter a decisão do Tribunal a quo em sede de matéria de facto não provada.

Com efeito, embora a audição da referida prova não permita a este Tribunal de recurso identificar, na mesma, a intensidade da adjectivação inscrita na sentença quando se afirma, por exemplo: “não tendo o depoimento da assistente e testemunha sido escorreitos”; ou que as declarações da assistente “denotaram animosidade” ou a testemunha “notória falta de isenção”, a verdade é que também ali são detectadas incongruências que fragilizam a prova a ponto de não permitir ultrapassar a dúvida razoável sobre a realidade dos factos nos termos descritos na acusação.

E apesar de a percepção deste Tribunal de recurso não coincidir, pelo menos com a mesma veemência, com a do Tribunal a quo, nos termos indicados, no que à percepção da prova respeita, a verdade é que não beneficia a 2.ª Instância da imediação e oralidade, sendo muitas vezes mais reveladora uma expressão, um gesto, um movimento do que a simples gravação da voz.

Tanto é assim, que a sentença também fundamenta a sua percepção quanto à testemunha CC na sua “postura”.

Por isso, teremos de admitir, que a avaliação do Tribunal do julgamento esteja mais próxima da realidade ocorrida em sala de audiência.

De todo o modo, a prova apresentada pela recorrente como justificadora de decisão diversa da que consta da sentença recorrida apresenta incongruências objectivas que a fragilizam a ponto de não sustentar a acusação.

E não se trata de pormenores como refere a recorrente. É toda a lógica da conduta que está em causa.

Assim, a assistente descreve que a arguida entrou com o carro pelo passeio adentro de frente a si (00:18:28 a 00:18:34), concretizando que a arguida atravessa o carro na rua e mete o carro em cima do passeio de frente (00:18:48 a 00:18:53) … contra si (00:19:32 a 00:19:35). Afirma de seguida que a arguida pôs o carro quase todo em cima do passeio (00:20:09 a 00:20:11), para depois confirmar que o carro ficou com os dois pneus da frente no passeio e os de trás na via, na passadeira (00:20:40 a 00:20:50).

Referiu ainda que a arguida, após galgar o passeio, abriu o vidro do lado direito e disse “anda minha puta, tu não vais desta mas ha-des ir da próxima” (00:02:35 a 00:02:45).

Por seu turno, a testemunha CC referiu que a arguida ia com o carro para trásvi o carro a ir para o lado aqui da Dona BB e vinha para mim, para me bater (00:04:02 a 00:04:10 e 00:05:06 a 00:05:25). Reafirmou mais à frente que o carro não se dirigiu de frente para a assistente, mas com a traseira (00:06:56 a 00:07:02). Referiu ainda que o carro galgou um bocado o passeio com as duas rodas (00:05:38 a 00:05:46), referindo mais a diante que achava que o carro estava só com uma roda de trás em cima do passeio (00:06:30 a 00:06:42), concretizando depois que o carro estava com a traseira da roda do lado direito em cima (00:07:22 a 00:07:30).

Referiu ainda que quando a arguida arrancou meteu a cabeça de fora e disse que não dava agora, mas que levava para a outra vez, apelidando-a [à assistente] de filha da puta (00:08:34 a 00:08:52).

Também esclareceu que a arguida pôs a cabeça de fora de lado do condutor, e por isso é que a viu, esclarecendo que tinha a janela aberta do lado do condutor e que tinha as duas até (00:10:24 a 00:10:36).

A testemunha também esclareceu que o passeio, no local, onde foi galgado, não devia ter mais de meio metro, pois andavam lá em obra (00:19.00 a 00:19:33).

Ou seja, numa versão o carro travessou a via e ficou com as rodas da frente em cima do passeio (ignorando-se, até, a alusão ao carro quase todo no passeio) e as de trás na via, na passadeira, e na outra versão o carro vinha de marcha-atrás e ficou com a roda direita traseira em cima do passeio (ignorando-se, até, a alusão às duas rodas traseiras no passeio).

Numa versão a arguida abriu a janela do lado direito e gritou por aí a expressão imputada e na outra versão a arguida tinha as duas janelas abertas e gritou a expressão imputada pela janela do condutor.

Estas são duas histórias diferentes e não a mesma versão da mesma história com uns pormenores não totalmente coincidentes.

Por outro lado, partindo do princípio de que o passeio tinha cerca de meio metro, como referiu a testemunha, no máximo um metro como se consignou na sentença, mostra-se difícil perceber como as rodas da frente do veículo ficaram, as duas, dentro do passeio.

Por outro lado ainda, causa alguma perplexidade o facto de a testemunha não conhecer anteriormente a arguida, mas de ter conseguido rapidamente identificá-la em julgamento apenas pela circunstância de a ter visualizado, num instante, a colocar a cabeça de fora do vidro do carro e a gritar para a assistente como descreveu.

Aliás, se o vidro da janela do lado direito estava aberto e a assistente no passeio desse mesmo lado, não faz sentido que tivesse gritado pela janela do lado esquerdo.

Estas narrações, cada uma por si e as duas em conjunto, não se mostram conformes às regras da experiência comum, sendo, por isso, totalmente legítima e objectivamente fundamentada a decisão recorrida, nenhum fundamento ocorrendo para que a mesma seja revogada.

Assim, analisados os argumentos do recorrente e a prova indicada não encontramos aí fundamentos para alterar a decisão do Tribunal a quo, onde são explicados de forma racional, e sustentada, e não subjectiva, os motivos pelos quais tal prova não é suficiente para assegurar a demonstração dos factos não provados.

O exercício levado a cabo pelo recorrente constitui-se tão-somente como uma diferente leitura da prova, com a qual pretende substituir a convicção do Tribunal do julgamento, sem que verdadeiramente sejam apontados concretos erros de julgamento que imponham a solução apresentada.

Nesse sentido, é jurisprudência pacífica a que considera que «[a] censura dirigida à convicção do julgador «não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão» e que, por isso, «para que a impugnação de facto proceda, é necessário que as provas indicadas pelo recorrente imponham, quanto à matéria impugnada, uma decisão diversa da proferida, não bastando que permitam uma diferente leitura, consoante a pessoa que as analisa e valora.»[9]

Em suma, avaliada a prova invocada pela recorrente – e a apreciação levada a cabo pelo Tribunal a quo na sua motivação –, percebe-se que aquela apenas pretendeu substituir a convicção do Tribunal do julgamento pela sua própria leitura da prova, procurando impor uma versão dos factos perante outra, apenas porque é sua.

Ora, apesar de a sua versão dos acontecimentos e análise da prova ser possível, ainda que não se afigure a mais correcta, razão pela qual ela também não rebate a convicção do Tribunal recorrido, a mesma nunca permitirá concluir que a solução por si [recorrente] proposta seria a única que se impunha em face da prova produzida.

O Tribunal de julgamento não erra ao avaliar a prova só porque interpreta os relatos produzidos e os conjuga entre si de forma diferente da que faz a assistente. E a recorrente não ultrapassou este limite argumentativo.

Em face do exposto, impõe-se concluir que a decisão recorrida não revela a ocorrência de qualquer erro de julgamento e não violou qualquer norma legal ou constitucional que devesse ter acolhido, sendo de manter os pontos de facto impugnados como não provados.


*

III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pela assistente BB e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça (arts. 515.º, n.º 1, al. b), do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).


Porto, 12 de Fevereiro de 2025
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Pedro Afonso Lucas
Paula Natércia Rocha
______________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Cf. acórdão do STJ de 28-06-2018, relatado por Souto de Moura no âmbito do Proc. n.º 687/13.4GBVLN.P1.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[3] Cf. acórdão do TRL de 01-06-2016, relatado por Albertina Pereira no âmbito do Proc. n.º 24 781/15.8T8LSB.L1-4, acessível in www.dgsi.pt.
[4] Cf. acórdão do STJ de 15-01-2015, relatado por Helena Moniz no âmbito do Proc. n.º 92/14.5YFLSB, acessível in www.dgsi.pt.
[5] Acessível in www.dgsi.pt.
[6] Proc. n.º 146/14.8GTCSC.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[7] Proc. n.º 772/10.4PCLRS.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[8] Relatado por Maia Costa no âmbito do Proc. n.º 1611/07 - 3.ª, acessível in www.dgsi.pt.
[9] Cf. acórdão do TRL de 10-07-2018, relatado por José Adriano no âmbito do Proc. n.º 485/16.3GDTVD.L1-5, acessível in www.dgsi.pt.