Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00038679 | ||
Relator: | FERNANDO BAPTISTA | ||
Descritores: | USUCAPIÃO FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA DIREITO DE PREFERÊNCIA | ||
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Nº do Documento: | RP200601120536437 | ||
Data do Acordão: | 01/12/2006 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | REVOGADA A SENTENÇA. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I- Sendo a usucapião uma forma de aquisição originária (ex novo) do direito real - rompendo, por isso, com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto, tornando o direito imune dos vícios que anteriormente pudesse ter --, a aquisição do direito de propriedade por usucapião pode incidir sobre uma parcela de um terreno, mesmo em violação das normas respeitantes a fraccionamento de terrenos. II- Para que os proprietários de prédios confinantes gozem reciprocamente do direito de preferência, basta que um dos prédios possua uma área inferior à da unidade de cultura. Mas, pelo menos, um deles tem de a possuir. III- Ao titular do direito de preferência -- enquanto autor numa acção de preferência ou numa acção em que vise a obtenção de uma indemnização por violação do seu direito -- cabe fazer a prova da sua qualidade de preferente. Mas já não é sobre o preferente que impende o ónus de provar a falta da comunicação a que se reporta o nº 1 do artº 416º CC. IV- Aliás, à mesma conclusão (em termos práticos) se chega, considerando que a ausência da realização do aviso para preferir constitui um facto negativo. É que, sendo de extrema dificuldade a prova deste facto negativo, o ónus da sua produção deve ter-se por invertido, relativamente à regra geral vertida no art. 342º, nº1 CC. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto I. RELATÓRIO: No ...º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, vieram B....... e mulher C...... instaurar acção declarativa– acção de preferência – na forma sumária contra 1ºs - D....... e marido E........; 2ºs - F....... e mulher G........; 3º - H.........; 4º - I.........; 5ºs - J...... e marido L........; 6ºs - M....... e mulher N.......... Alegam que: os sextos Réus adquiriram aos restantes Réus um prédio rústico; os Autores são proprietários de um prédio rústico confinante com o que foi objecto desta venda, pelo que detinham direito de preferência na aquisição deste; não foi permitido aos Autores exercerem o seu direito de preferência. Pedem que: seja reconhecido o seu direito de preferência na invocada venda; sejam os sextos Réus condenados a abrir mão do prédio a favor dos Autores entregando-lho no estado em que se encontrava à data da realização da escritura; seja ordenado o cancelamento de quaisquer registos de aquisição a favor dos compradores e entretanto efectuados. Contestaram apenas os sextos Réus. Na contestação os Réus invocaram a excepção da ilegitimidade activa, a falta/irregularidade do mandato, impugnando a factualidade alegada pelos Autores. Responderam os autores, reiterando o já afirmado na petição inicial. Foi regularizado o mandato, com ratificação do processado. Os Autores vieram requerer a redução do pedido na parte relativa ao cancelamento dos eventuais registos a favor dos compradores, o que foi deferido a fls. 120. Foi comprovado o registo da acção. Proferiu-se despacho saneador, julgando-se improcedente a excepção de ilegitimidade activa invocada, tendo-se ainda fixado a factualidade assente e a base instrutória. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do ritualismo legal, após o que se decidiu sobre a matéria de facto vertida na base instrutória, conforme o despacho de fls. 263-266. Por fim, foi proferida sentença, julgando-se a acção improcedente, com a consequente absolvição dos réus do pedido. Inconformados com o sentenciado, interpuseram recurso os Autores, apresentando alegações que rematam com as seguintes “CONCLUSÕES: 1. De acordo com o Acórdão Uniformizador do STJ (Pleno) de 14.05.96 (Diário da Republica, 2a Série, de 24.06.96, pág. 8409), podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa. 2. Não tendo sido, embora, dados como provados os factos atinentes ao animus alegados pelos autores, tal animus presume-se, uma vez que tal presunção não foi ilidida. através da prova de que quem exerce o poder de facto o faz sem intenção de agir como beneficiário do direito. 3. Assim sendo, e uma vez que se provou o corpus da posse, e que esta durou pelo menos por vinte anos, verificam-se os pressupostos de facto e de direito para ser declarado que os autores adquiriram por usucapião o prédio. Sem prescindir, 4. Os autores alegaram factos consubstanciadores do corpus, e do animus da posse e alegaram que esta durou pelo menos vinte e sete anos. 5. Ao dar como não provados os quesitos 4º e 6º da base instrutória atinentes ao animus da posse e ao dar como provado que tal posse durou pelo menos cerca de vinte anos, o Tribunal recorrido fez errada avaliação da prova produzida, ou seja, dos depoimentos prestados pelas testemunhas. 6. Tais depoimentos foram prestados pelas testemunhas O......., testemunha arrolado pelos autores e cujo depoimento ficou gravado na cassete áudio n.º1 de voltas 0010 a 4600, lado A) até voltas 4585, lado B); P......, cujo depoimento ficou gravado na cassete áudio n.º 1 de voltas 4570 a 0634 lado B; Q......., cujo depoimento encontra-se gravado na cassete áudio n.º l de voltas 0532 até 0002 lado B e cassete áudio n.º2 de voltas 0015 a voltas 4900 lado A até voltas 4582 lado B); R......, cujo depoimento ficou gravado na cassete áudio n.º3 de voltas 4820 a 9134 lado B); S......, cujo depoimento ficou gravado na cassete áudio nº 4 de voltas 0010 a 2230 lado A). 7. Dos depoimentos daquelas testemunhas cujos trechos transcritos constam destas alegações, resulta provado que os actos possessórios praticados pelos autores ocorreram não há cerca de 20 anos reportados à data da propositura da acção, mas há pelo menos 25 anos reportados àquela data. 8. Mais resultaram inequivocamente provados os quesitos 4º e 6º, de onde se conclui que os autores praticaram os actos materiais de posse na convicção de exercerem o direito de propriedade sem lesarem direitos de outrem. 9. Verificam-se assim os pressupostos de facto e de direito para a aquisição por usucapião do prédio dos autores. 10. Prédio esse composto por uma faixa de terreno, de terra de sequeiro afecta à cultura de castanheiros, com a área de pelo menos 15000 m2 do terreno referido em H) dos factos assentes, sita no ......, a confrontar do Norte com T.........., a Sul com o prédio referido em C) e C), ou seja, o prédio vendido, a Nascente com caminho público e a Poente com U...... . 11. Não se verifica qualquer impedimento ou fraccionamento uma vez que os autores adquiriram o prédio por usucapião, forma de aquisição originária. 12. Vêm provados os factos constitutivos do direito de preferência invocados pelos autores exigidos pelo artigo 13800 do CC e pelo nº1 do artigo 18 do DL 384º/88 de 25 de Outubro. 13. Sendo que não foi provado pelos réus qualquer facto impeditivo ou extintivo desse direito de preferência. 14. Foram violadas as normas dos artigos 350º, 1251º, 1252º nº2, 1260º, 1262º, 1296º e 1380º do CC e nº1 do artigo 18º do DL 384º 188 de 25 de Outubro. NESTES TERMOS E COM 0 DOUTO SUPRIMENTO, DEVE 0 PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROVADO E PROCEDENTE E POR VIA DELE SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, COMO É DE JUSTIÇA.”. Contra-alegaram os recorridos, sustentando a manutenção da sentença. Foram colhidos os vistos. II. FUNDAMENTAÇÃO II. 1. AS QUESTÕES: Tendo presente que: - O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil); - Nos recursos se apreciam questões e não razões; - Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, as questões a resolver consistem em saber: Se deveriam ser dados como “provados” os quesitos 4º e 6º da base instrutória, bem assim que os actos praticados pelos autores referidos nas respostas aos quesitos 1º, 2º e 8º ocorreram “há pelo menos 25 anos”, atenta a data da propositura da acção: Se estão verificados os pressupostos (de facto e de direito) para a aquisição pelos autores do direito de propriedade, por usucapião, sobre o prédio referido na petição inicial (arts. 8º e segs.); Se se verificam os requisitos legais para ser concedido aos autores o direito de preferência que pretendem exercer. II. 2. FACTOS PROVADOS: No tribunal recorrido deram-se como provados os seguintes factos: 1.- D......., por si e na qualidade de procuradora de F..... e mulher G......, H...... e I......, e marido E....... e J......, por um lado, e M......, casado sob o regime da comunhão de adquiridos com N......, por outro, declararam, por escritura pública, de 19 de Fevereiro de 2003, as primeiras, vender, pelo preço de € 5 486,78, já recebido, ao segundo, o prédio rústico, composto de cultura com castanheiros, sito no ....., freguesia de ....., concelho de Bragança, omisso na respectiva matriz, mas tendo sido pedida a sua inscrição em 22/11/2002, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança sob o n.º 395, da referida freguesia, onde está registada a sua aquisição a seu favor e dos seus representados, o que aquele M...... declarou aceitar, tendo declarado o referido E...... que dava o seu consentimento à sua mulher para tal venda, como resulta da certidão de fls. 7-11. (A) 2.- D......, por si e na qualidade de procuradora de F...... e mulher G......, H...... e I......, e marido E..... e J......, por um lado, e M......, casado sob o regime da comunhão de adquiridos com N......, por outro, declararam, por escritura pública, de 1 de Setembro de 2003, rectificar a escritura referida em A), no sentido de dela passar a constar que o prédio objecto da venda se encontrava inscrito na respectiva matriz sob o art.º 236, sendo o valor patrimonial de € 2,39, e não omisso como na citada escritura foi indicado, mantendo tudo o mais nela contido, como resulta da certidão de fls. 85-88. (B) 3.- D......., por si e na qualidade de procuradora de F....... e mulher G......., H......... e I......., e marido E....... e J......., por um lado, e M......., casado sob o regime da comunhão de adquiridos com N......., por outro, declararam, por escritura pública, de 16 de Setembro de 2003, rectificar as escrituras referidas em A) e B), no sentido de delas passar a constar que o prédio vendido é o prédio rústico, situado no lugar do ....., freguesia de ....., concelho de Bragança, composto por terra de pastagem e castanheiro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança sob o n.º 376 da referida freguesia de Espinhosela, e inscrito na matriz sob o art.º 236, mantendo tudo o mais nelas contido, como resulta da certidão de fls. 89-92. (C) 4.- O prédio referido na escritura referida em C) está descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança sob o n.º 00376/120203 da freguesia de Espinhosela, sendo composto de terra de pastagem e castanheiro, com a área de 4 900 m2, confrontando a Norte com comissão fabriqueira, a Sul com caminho, de poente com V......., de Nascente com X......., estando aí inscrito a favor dos Réus M....... e mulher N....... pela inscrição G-2 – Ap. 26/180903. (D) 5.- Em despesas com a escritura referida em A) os sextos réus gastaram a quantia de € 144,87, e na sisa a quantia de € 438,94; gastando € 144 com a rectificação aludida em B) e € 58,74 com o registo da aquisição a seu favor. (E) 6.- O prédio vendido é um terreno de sequeiro, afecto à cultura de castanheiros. (F) 7.- Os Réus não são donos de nenhum prédio confinante com o prédio vendido. (G) 8.- Encontra-se inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Espinhosela sob o art.º 247 um prédio rústico, composto de terra de pastagem, sito no ....., freguesia de Espinhosela, com a área de 36 500 m2, a confrontar de Norte com T......., Poente com Y......., Sul com X...... e outros e de Nascente com Z......., onde está inscrito em nome de B....... e da Junta de Freguesia de Espinhosela, na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente, e não descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança. (H) 9.- Os Autores depositaram à ordem destes autos as quantias de € 6 070,59, e de € 202,74, como consta de fls. 56 e 109. (I) 10.- Pelo menos há cerca de 20 anos, atenta a data da propositura da acção, que os Autores vêm plantando castanheiros, que enxertaram, podaram, lavraram, apanhando as castanhas e vigiando, numa faixa do terreno referido em H), sita no ....., freguesia de Espinhosela, com a área de, pelo menos, 15 000 m2, a confrontar de Norte com T......, Poente com U......, Sul com o prédio referido em C) e D) e de Nascente com o caminho público. (respostas aos 1º, 2º e 8º quesitos) 11.- Os actos referidos em 10. vêm sendo praticados à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém. (quesitos 3º e 5º) 12.- A faixa de terreno referia em 10. é de sequeiro, afecta à cultura de castanheiros. (resposta ao quesito 7º) 13.- Os demais prédios confinantes com o prédio referido em C) e D) têm área inferior à deste. (resposta aos quesitos 9º e 10º) 14.- Em 19/12/1995, foi apresentada na Repartição de Finanças de Bragança a guia para liquidação de sisa, assinada pelo Presidente da Junta de Freguesia de Espinhosela, na qual consta o seguinte: “Vai B......., casado, residente em ...... (…) apresentar-se na repartição de Finanças do Concelho de Bragança para ser liquidada a sisa com referência à venda efectuada pela Junta de freguesia de Espinhosela de um prédio rústico sito no lugar do ....., com a área de 3,65 ha, a confrontar de Norte com T......, do Nascente com Z......, do sul com X...... e Outros e do Poente com Y......, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Espinhosela sob o art.º n.º 247.º, pelo preço de 30 000$00 (trinta mil escudos)”, constando ainda aí que “foi arrematado em hasta pública em 30 de Novembro de 1995”, tendo sido efectuada a respectiva liquidação n.º 1599, conforme documento de fls. 251-253. III. O DIREITO: Vejamos, então, as questões suscitadas. 1ª questão: se deveriam ser dados como “provados” os quesitos 4º e 6º da base instrutória, bem assim que os actos praticados pelos autores referidos nas respostas aos quesitos 1º, 2º e 8º ocorreram há pelo menos 25 anos, atenta a data da propositura da acção: Impugna-se, desta forma, a decisão da matéria e facto. Que dizer? Como é sabido, fixada a matéria de facto, através da regra da livre apreciação das provas consagrada no artº 655º nº 1 do CPCivil, em princípio essa matéria de facto é inalterável. Resulta dos autos que a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento foi gravada. Para poder ser impugnada a matéria de facto, tem o impugnante, antes de mais, que dar integral cumprimento ao preceituado nos arts. 690º-A, nºs 1 e 2 e 522º-C, ambos do CPC, na redacção (aqui aplicável) emergente do DL nº 183/2000, de 10.0 - ónus que os autores cumpriram. Como tal, a decisão de facto podes ser modificada por esta Relação ao abrigo do estatuído no artº 712º, nº2 CPC. Deve, porém, dizer-se, desde já, o seguinte, em especial no que tange à maior ou menor credibilidade que o tribunal deu ou deveria ter dado a esta ou àquela testemunha ou parte: A apreciação da prova na Relação envolve "risco de valoração" de grau mais "elevado" que na 1ª instância, onde são observados os princípios da imediação, da concentração e da oralidade. Quando o juiz tem diante de si a testemunha ou o depoente de parte, pode apreciar as suas reacções, apercebe-se da sua convicção e da espontaneidade, ou não, do depoimento, do perfil psicológico de quem depõe: em suma, daqueles factores que são decisivos para a convicção de quem julga, que, afinal, é fundada no juízo que faz acerca da credibilidade dos depoimentos. Conforme ensina, a propósito da imediação, o Prof. Antunes Varela (in "Manual de Processo Civil, 2ª Ed., págs. 657): "Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar". Talvez não tenham cuidado os apelantes que foi o Sr. Juiz, em primeira instância, que viu a face, os olhos, a mãos, a postura e o olhar das pessoas que depuseram em audiência de julgamento e que terá sido em vista do depoente no seu todo, que o Sr. Juiz decidiu. Pelo que nesta Relação se pode avaliar as palavras, os documentos, mas não o rosado da face, os olhares para o advogado e um sem número de trejeitos que não podem ser dissociados. De facto, é hoje pacífico que o intérprete, entenda-se, o julgador, ignora o significado de um sorriso e, ou de uma lágrima, as quais, nas gravações fonográficas são absolutamente imperceptíveis!. No domínio da prova testemunhal, vigora o princípio da livre apreciação das provas - art. 396º do CC - segundo a convicção que o julgador tenha formado acerca de cada facto - art. 655º, nº1 - sem embargo do dever de as analisar criticamente e especificar os fundamentos decisivos para a convicção adquirida - art. 653º, nº 2, do CPC. Portanto esta Relação só deverá alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, reapreciada a mesma, for evidente a grosseira apreciação e valoração que foi feita na instância recorrida, isto pelo facto de o julgador da 1ª instância dispor de um universo de elementos (não apreensíveis na mera gravação áudio dos depoimentos) que são decisivos para o processo íntimo de formação da convicção, que se não satisfaz com a, diríamos, insípida audição daquela gravação, não tendo a 2ª instância possibilidade de intuir ou de apreciar para lá daquilo que se mostra gravado, o que é deveras redutor no processo de formação da convicção. Lemos com atenção a decisão da 1ª instância sobre a fundamentação das respostas à matéria de facto ( fls. 263 ss). Mas será que a mesma analisou criticamente as provas, especificou, de forma racional, coerente e lógica e com respeito pela prova (incluindo a documental) produzida, os fundamentos que foram decisivos para a respectiva convicção? É o que cumpre decidir. Para tal, ouvimos atentamente as gravações dos depoimentos prestados em audiência de julgamento. E dessas gravações parece resultar razões mais que suficientes para alterar algumas das respostas aos quesitos tal como foram dadas pelo tribunal a quo. Vejamos melhor. Perguntava-se nos quesitos 4º e 6º da base instrutória se os actos (materiais de posse) referidos nas respostas aos quesitos 1º e 2º -- isto é, que os Autores “vêm plantando castanheiros, que enxertaram, podaram, lavraram, apanhando as castanhas e vigiando, numa faixa do terreno referido em H), sita no ....., freguesia de Espinhosela, com a área de, pelo menos, 15 000 m2, a confrontar de Norte com T......, Poente com U......, Sul com o prédio referido em C) e D) e de Nascente com o caminho público”. (respostas aos 1º, 2º e 8º quesitos ) - vêm sendo praticados “na convicção de não lesarem direitos de outrem” (quesito 4º) e “na convicção de exercerem um direito próprio” (quesito 6º). A resposta foi de “não provado” (fls. 263) Que dizer? É patente que a matéria contida nos aludidos quesitos é de capital importância, pois consubstancia um dos elementos da posse, precisamente o animus possidendi. Daqui o “ataque” que os apelantes procuram fazer às respostas aos aludidos quesitos, pela importância que tais respostas podem ter para a apreciação do mérito da causa. Pergunta-se, então: - Será que dos depoimentos testemunhais produzidos se pode concluir pela verificação do aludido animus possidendi -- isto é, que, na verdade, os autores vinham utilizando a parcela de terreno que ocupam (que confronta do lado Sul com o prédio vendido pelos 1º a 5º RR ao 6º Réu) convencidos que a mesma lhes pertencia e, portanto, “na convicção de não lesarem direitos de outrem”, “na convicção de exercerem um direito próprio” ? - Será, por outro lado, que dos mesmos depoimentos se pode concluir que a ocupação pelos autores do aludido terreno ocorre desde há, pelo menos, 25 anos, à data da propositura da acção? Pretende-se, portanto, reavaliar os depoimentos prestados no que tange ao ao animus, por um lado e, por outro, à duração da posse -- sustentando os apelantes que possuíam o prédio há pelo menos 25 anos à data da acção e que exerceram a sua posse na convicção de não lesarem direitos de outrem e na convicção de exercerem um direito próprio como proprietários, tal como vinha por eles alegado na petição inicial. Vejamos, então, o que disseram de relevante as testemunhas ouvidas pelo tribunal. Quanto ao período de tempo em que os autores executaram os actos possessórios referidos na resposta ao quesito 2º: Cremos que a resposta do tribunal de que tais actos materiais praticados pelos autores ocorreram “pelo menos há cerca de 20 anos” não está correcta, pois não corresponde ao teor dos aludidos depoimentos. Vejamos. - O O.......... -- que disse ter uma “terra pegada” aos “castanheiros” que foram vendidos ao réu M......, sendo certo que ao falar em “castanheiros” se referia ao prédio rústico no seu todo (terra e castanheiros ali plantados) --, referiu que em 1980 lavrou aquela terra para o autor, mas logo acrescentando que “ele já tinha o prédio há anos”. Referiu ainda que quando lavrou a terra para o autor já lá havia castanheiros plantados, acrescentando que os castanheiros tinham a aparência de mais de 20 anos. E quando o mandatário do autor pergunta à testemunha se o autor estará no prédio há volta de 30 anos, responde: - “Deve trabalhar aquilo, estar de posse daquilo garantidamente deve passar os 25 anos”. “Planta aquilo há mais de 25 anos”. A forma segura e serena como a testemunha prestou o depoimento - apesar de ter referido estar em litígio com os 6ºs RR - deixou-nos convencidos da autenticidade do mesmo. - O P........, reformado da GNR, disse que sendo a aldeia pequena toda a gente sabe o que lá se passa. Referiu que anda “por lá” há 42 anos - embora tivesse trabalhado fora durante alguns anos, vinha à terra com muita frequência -- e disse - e redisse -- que os castanheiros (do autor, que este plantou) já lá estão há 26/27 anos. Teve o cuidado de esclarecer, que – como já anotado supra -- quando na zona se diz “comprei um castanheiro”, quer-se significar que se comprou o prédio rústico (… com os castanheiros). - O Q...... - Presidente a Junta de Freguesia vai para o 4º mandato, sendo certo que já antes ali exerceu funções, como tesoureiro (2 anos) e, antes, tinha sido Presidente da Assembleia de Freguesia (ano e meio) --, quando o mandatário dos autores lhe pergunta se “o autor está na posse daquele prédio há 27/28 anos”, responde - de forma rápida, clara, convicta e convincente, procurando justificar a resposta e mostrando ter um conhecimento directo dos factos: - “Sim, Sim!”. ”Não tenho dúvidas nenhumas que há 27 anos o Sr. B...... possui essa propriedade!”. Esclareceu, quanto à área do terreno que há um lapso na “guia para liquidação de sisa” com cópia a fls. 252. Mas acrescenta não ter dúvidas de que o prédi é o que detinha e detém o autor. - O K........ nada de relevante trouxe para a matéria que importa examinar - sendo certo que nem sequer foi indicado aos quesitos aqui em questão (1º a 3º e 4º e 6º). - O R......., quando a mandatária dos réus lhe observa constar dos autos que os autores praticam os actos materiais de posse referidos no quesito 2º há 27 anos, responde, sem qualquer hesitação: - “Ele há mais que fabrica aquilo !…”. Esclarece - a instâncias do Sr. Juiz-- que, “há volta de 25 anos” chegou a lavrar o terreno do autor, “um ou dois anos”, mas acrescenta que logo que “já tinha sido lavrado por outras pessoas” (isto é, noutros outros anos). - O BB........ - que disse viver na ..... há cerca de 56 anos e que ali trabalhou na agricultura --, foi peremptório em afirmar que “há 27 anos que ele” - o autor - “possui aquele terreno”. “Ou mais. A passar…!”-- acrescentou, tendo esclarecido que foi o autor quem plantou os castanheiros lá existentes. - O BC......., embora tendo dito não ser verdade que o autor tenha a terra durante os 27 anos, disse-o de uma forma não convincente, sem justificar minimamente tal afirmação. - O S....... corroborou que o autor “há vinte e tal anos” que arroteava o terreno, extraindo-se do seu depoimento que tal teria corrido há pelo menos 25 anos à data da acção. Face aos depoimentos prestados e forma como decorreram, fica-nos a firma convicção de que os apelantes têm, de facto, razão ao sustentarem que os autores praticaram os actos materiais de posse referidos na resposta (conjunta) aos quesitos 1º, 2º e 8º, há pelo menos 25 anos. Assim sendo, altera-se as resposta aos quesitos 1º, 2º e 8º, nas quais, onde se refere “pelo menos há cerca de 20 anos”, deve escrever-se “há pelo menos 25 anos”. Quanto ao animus possidendi, referido nos quesitos 4º e 6º: Cremos que também neste ponto muito mal andou o tribunal a quo - o que é tanto mais grave quanto é certo que estamos perante um ponto de capital importância na apreciação do mérito da acção, pois trata-se de saber se está, ou não, preenchido um dos dois elementos em que se desdobra o conceito de posse (corpus e animus), imprescindível para a usucapião pelos autores do prédio de que alegam ser donos. O que se perguntava nos quesitos em apreço era se os autores vinham praticando os actos materiais de posse referidos na resposta ao quesito 2º “na convicção de não lesarem direitos de outrem” (quesito 4º) e “na convicção de exercerem um direito próprio” (quesito 6º). Vejamos, então, o que resulta dos depoimentos das testemunhas. É para nós mais que claro que os depoimentos das testemunhas, no essencial, foram de molde a justificar resposta positiva aos aludidos quesitos. - O O........ disse, de forma clara e peremptória, que o autor se considerava dono do terreno. - “Mas ele dizia isso?”—pergunta o Mmº Juiz? - “Ele dizia: “vai ali ver os meus castanheiros…” - responde. Insiste o Sr. Juiz: - “Ele dizia “castanheiros” e não dizia “a minha terra”…. - “Estava tudo em comum, Sr. Dr. Juiz”; “Ele fazia-se dono de tudo, Sr. Dr. Juiz!” - O P......., começa por esclarecer que quando se fala de castanheiros do autor se fala da terra. Refere que quando se diz “comprei uns castanheiros” está a dizer-se “comprar o prédio”. Acrescenta que jamais alguém teve intervenção no terreno do “Sr. B......” - o autor; que “no Povo toda a gente sabe como foi o negócio” com o Sr. B...... . À pergunta se “acha que o Sr. B...... nestes anos todos esteve na posse daquilo como se fosse dono”, responde: “- acho que sim. Trazia aquilo granjeado, limpo, trabalhado. Se não fosse dono não fazia aquilo!”. E termina dizendo que “toda a gente sabe como é que foi aquilo” - ou seja, que o autor é reconhecido como único dono do prédio. À pergunta da mandatária da parte contrária: - “O Sr. B....... era proprietário do terreno onde estão estes castanheiros?”, responde: - “O Sr. B...... é que plantou, ele é que os trata, ele é que apanha. É dele!”. - O Q........ também disse que o terreno é do autor. À pergunta: “Toda a gente tratava o Sr. B....... como dono do prédio?”, responde: - “Sim, Sim!”. Ou seja, esta testemunha - presidente da Junta de Freguesia durante tantos anos, foi peremptória em dizer que os autores executaram os actos materiais de posse sobre o terreno sempre convencidos de que não lesavam direitos de outrem e convencidos de que eram os únicos donos do prédio - o que jamais teria sido posto em causa por quem quer que seja na terra. - O BB....... tocou pela mesma tecla. Efectivamente, quando se lhe pergunta “ele considerava-se proprietário daquilo”, responde: - “Toda a gente sabe bem que aquilo era dele”. “Aquilo não foi encoberto” - acrescenta. E diz ainda: “Fabricava sempre aquilo como aquilo fosse dele sempre. Foi sempre dele!. “Não há dúvida nenhuma” de que toda a gente sabe que o terreno é do autor, remata. - O R...... também confirmou que sempre o autor actuou como dono da terra, o mesmo tendo dito o S........ . Portanto, dos depoimentos prestados parece não restarem dúvidas que os autores desde que tomaram conta do terreno - há pelo menos 25 anos - sempre exerceram os actos de posse referidos na resposta ao quesito 2º “na convicção de não lesarem direitos de outrem” - que jamais ninguém invocou --, sempre actuando “na convicção de exercerem um direito próprio”, pois sempre actuaram e se apresentaram perante todos como únicos donos do terreno, assim sendo reconhecidos por toda a gente. Falaram as testemunhas que o terreno teria sido vendido “pelo Povo” ao autor, tal como outros terrenos a outras pessoas, que, como o autor, a eles se “agarraram”, para com o dinheiro dessas vendas se construir a Casa do Povo - como, e facto, viria a ser construída. Esclareceram que não mais se fez do que regularizar a situação de facto que já existia, reconhecendo o autor e demais pessoas que “agarraram” os terrenos como efectivos donos dos mesmos. Por outro lado-- e trata-se de um aspecto de bastante importância, considerando a questão jurídica atinente à usucapião de baldios --, grande foi a confusão que se gerou à volta da natureza do terreno do possuído pelos autores: se era, ou não, baldio. Para uns assim era, para outros não seria. Assim, se uns disseram que o terreno foi vendido pelo “Povo”, já outros dizem que o foi pela Junta de Freguesia, que dele seria dona. Paradigmático desta grande confusão é o depoimento do Sr. Presidente da Junta de Freguesia, Q....... . Efectivamente, do seu (crucial) depoimento não se percebe se a Junta era, ou não, a dona do terreno, pois se, por um lado, fala no pagamento pelo autor para a construção da Casa do Povo, por outro lado acaba por dizer que “Os terrenos há 30 e tal anos que estão em nome da Junta”. Diz que o terreno -- com o artº matricial 247º -- “está matriciado em nome da Junta. E que quando foi para a Junta “legalizaram o terreno… Depois puseram o terreno em nome do Sr. B.......”. Muita, muita confusão! Isto, apesar das muitas considerações de natureza jurídica vertidas pelo Mmº Juiz, que, francamente, não vemos terem qualquer interesse, atenta a matéria alegada nos autos e consequente objecto do processo. É que a questão da natureza do terreno acaba por não ter especial relevo, uma vez que a possível natureza de baldio do terreno em causa nos autos não foi suscitada em parte alguma dos autos por quem quer que seja, designada e especialmente pelos réus na sua contestação (cfr. fls. 140 ss). Apenas em sede de recurso é que se fala na questão dos Baldios (cfr. fls. 326 verso). Mas, como é sabido, o tribunal da Relação não pode conhecer de questões não invocadas nem decididas no tribunal recorrido (Acs. do STJ, Bol. M.J., 364º-849, CJ, 1990-13º-14º,31, Col. Jur., 1993, III, 101, Relação de Lisboa, Col. Jur., 1985, II, 109, 1995-5-98 e de Évora, Col. 1986,IV,313). Ou seja, as questões que não foram suscitada em 1ª instância não têm que ser ali tratadas, como o não têm que ser na instância de recurso, conforme resulta claramente do disposto nos arts. 676º, nº1, 680º, nº1 e 690º, do CPC, sendo jurisprudência, tanto anterior, como posterior à Reforma d Cód. Proc. Civil de 1995/96 (cfr. Rodrigues Bastos, Notas, vol. III, pág. 266 e Dr. Armindo Ribeiro Mendes, in Recursos no Cód. Proc. Civil Revisto, pág. 52; Ac. STJ, de 29.4.98, n BMJ 476-400, Acs. STJ de 2.7.91, Bol. M.J. 409º-690 e de 18.01.94, Bol. M.J. 433-536). Assim sendo, ter-nos-emos de cingir à questão da verificação, ou não - face à matéria de facto provada - da aquisição pelos autores do direito de propriedade sobre o terreno em questão nos autos -- que vêm ocupando e granjeando --, por via da usucapião - forma legítima da aquisição de tal direito (ut artº 1316º CC). Se a alguém interessava (ou interessa) obstar a que os autores invocassem o direito de propriedade por usucapião, por entender estar-se perante terreno de baldio, então devia - desde que lhe assistisse legitimidade para tal, naturalmente -- fazer valer em juízo tal posição, que, então, seria devidamente apreciada e decidida. Não foi suscitada matéria a ela atinente, razão porque extravasava do âmbito das questões a apreciar e decidir nos autos. Atento o explanado, concluímos que as respostas aos quesitos 4º e 6º devem ser de “provado”, bem assim que na resposta ao quesito 2º onde se escreveu “pelo menos há cerca de 20 anos..”, deve escrever-se “pelo menos há 25 anos…” Procede, assim, esta primeira questão suscitada pelos apelantes (impugnação da matéria de facto). Consigna-se que se não vislumbra qualquer outra alteração à decisão de facto ao abrigo do disposto nos demais números do artº 712º do CPC. Segunda questão: se se verificam os pressupostos (de facto e de direito) para a aquisição pelos autores do direito de propriedade, por usucapião, sobre o prédio referido na petição inicial (arts. 8º e segs.): Face às alterações nas respostas aos quesitos da base instrutória, cremos que esta questão deve merecer resposta positiva. Efectivamente, está provado que: 1) - Pelo menos há cerca de 25 anos, atenta a data da propositura da acção, que os Autores vêm plantando castanheiros, que enxertaram, podaram, lavraram, apanhando as castanhas e vigiando, numa faixa do terreno referido em H), sita no ...., freguesia de Espinhosela, com a área de, pelo menos, 15 000 m2, a confrontar de Norte com T......, Poente com U......, Sul com o prédio referido em C) e D) e de Nascente com o caminho público; 2) - Os actos referidos em 2) vêm sendo praticados à vista de toda a gente, 3) - …na convicção de não lesarem direitos de outrem, 4) - Sem oposição de ninguém e 5) - na convicção de exercerem um direito próprio. Daqui resulta provada a aquisição pelos autores (por usucapião) do direito de propriedade sobre o “prédio” rústico constituído pela “faixa de terreno referida em H)” (1) supra). Efectivamente, verificados estão todos os pressupostos para que tal forma de aquisição do direito de propriedade se verifique. Questão que aqui se pode suscitar é saber se a aquisição do direito de propriedade por usucapião podia incidir sobre uma parcela de um terreno, mesmo em violação das normas respeitantes a fraccionamento de terrenos. O mesmo é perguntar se apesar da indivisão formal de um prédio - v.g., por via de loteamento em conformidade com as normas legais --, se pode autonomizar-se uma parte do mesmo prédio em virtude do instituto da usucapião. A esta questão respondemos afirmativamente. Efectivamente, cremos que a jurisprudência, pelo menos maioritária, vem no sentido de que é possível chegar-se à divisão de facto de um prédio através do aludido instituto da usucapião, mediante a prática de actos de posse exclusivos sobre determinada parte do imóvel. Este não é, ao que parece, o entendimento do Sr. Juiz a quo, quando refere que “além disso, o alegado fraccionamento de prédios rústicos fora dos pressupostos legais, a ter existido, sempre seria proibido e, por isso, nulo e de nenhum efeito, nos termos dos arts. 1376º e 280º do C. Civil”. Mas não tem razão - salvo o devido respeito, naturalmente. Efectivamente, não se pode olvidar que a usucapião é uma forma de aquisição originária do direito (no caso, de propriedade). O que está aqui em causa é a valorização de uma situação meramente possessória e suas consequências - a sua conversão em verdadeiro direito. Ou seja, o instituto da usucapião sobrepõe-se a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais, relativamente a actos de alienação ou de oneração de bens. Independentemente da natureza do vício que afecta a posição do possuidor face ao bem, pela usucapião, após a prova da realidade substancial de que depende, o sistema jurídico confere a legitimidade de que o possuidor carecia. Portanto, pela usucapião o direito que corresponde à posse exercida sobre o bem é adquirido ex novo, pelo que se encontra imune dos vícios que anteriormente pudesse ter (Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 207; Ac. STJ, de 19.10.2004, www.dgsi.pt). O que de facto releva na aquisição por usucapião é definir com exactidão a extensão da parcela de terreno sobre que recaíram os actos de posse (RC, 11.01.94, Bol. MJ, 433º-634). Em termos materiais, a usucapião, assente na excelência duma posse qualificada e com prazos alongados, surge como fonte legitimadora do domínio. O possuidor mostrou merecer ser proprietário, atenta a prática dos actos de posse e nas demais condições para o reconhecimento da usucapião (ver Menezes Cordeiro, Da Usucapião de imóveis em Macau, ROA, 53º (1993), a pág. 38). Portanto, a usucapião, como forma originária de aquisição de direitos reais, rompe com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto (por exemplo, a exigência de forma para partilha de uma herança e a proibição de divisão de um prédio)- cfr. Rel. De Coimbra, Ac. de 2.5.89, BMJ, nº 387º-671). Da mesma forma, por exemplo, não obsta à aquisição por usucapião de parte de prédio, dividido verbalmente pelos anteriores comproprietários, o facto de a sua superfície ser inferior a determinada área (Castro Mendes, Teoria Geral, 1979-II-235). Para que a usucapião opere é necessária a posse, que se adquire pelo facto e pela intenção, definindo-se pelos elementos essenciais que são o corpus na aquisição unilateral ou a traditio na aquisição derivada, e o animus, devendo além disso, ser-se titular de forma pública, pacífica e contínua. Os restantes caracteres da posse (boa ou má fé, titulada, etc.) apenas influem no prazo (Ver Ac. STJ, de 13.2.79, BMJ, nº 284º-176 e Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967-112). Em suma, atento estarmos perante uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, nada obsta à aquisição de uma parcela de terreno por usucapião, mesmo que se esteja em presença de uma situação de fraccionamento ilegal. Dúvidas não há de que os autores vêm, há, pelo menos vintes anos, exercendo actos materiais de posse sobre a faixa de terreno referida na resposta aos quesitos 1º, 2º e 8º -- ali “plantando castanheiros, que enxertaram, podaram, lavraram, apanhando as castanhas e vigiando” (corpus), actos esses que vêm desde então praticando à vista de toda a gente, “na convicção de não lesarem direitos de outrem”, “sem oposição de ninguém”, “na convicção de exercerem um direito próprio” (animus possidendi). Temos, assim, uma posse (artº 1251º CC) pública e pacífica (arts. 1261º e 1262º CC). Não foi, sequer, alegada a existência de um título com eficácia translativa do direito real em termos do qual os autores possuem. Assim, estamos perante posse não titulada - que se presume de má fé (nº 2 do artº 1260º). Pelo que o período de tempo necessário à aquisição da propriedade da parcela por usucapião é de vinte (20) anos (ut artº 1296º CC). Assim sendo, outra conclusão não resta do que reconhecer que, efectivamente, os autores adquiriram por via da usucapião o direito de propriedade sobre o aludido prédio que ocupam -- usucapião aquela que, como se impunha, foi devidamente invocada (cfr. artº 12º da petição inicial e artº 303º, ex vi do artº 1292º, todos do CC). Atento o explanado, não se vê bem onde foi o Sr. Juiz desenterrar a teoria do “direito de superfície”, referenciado na sentença recorrida (cfr. fls. 274). Assim procede a segunda questão suscitada pelos apelantes. Terceira questão: a subsunção jurídica dos factos provados: o exercício do direito de preferência. Verificado que está o primeiro dos requisitos para poder operar o direito de preferência pelos autores na venda do prédio que os 1ºs a 5ºs réus fizeram aos 6ºs réus, impõe-se verificar se os demais requisitos estão preenchidos. Dispõe o artº 1380º do Cód. Civil: “(Direito de preferência) 1. Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante. 2. Sendo vários os proprietários com direito de preferência, cabe este direito: a) No caso de alienação de prédio encravado, ao proprietário que estiver onerado com a servidão de passagem; b) Nos outros casos, ao proprietário que, pela preferência, obtenha a área que mais se aproxime da unidade de cultura fixada para a respectiva zona. 3. Estando os preferentes em igualdade de circunstâncias, abrir-se-á licitação entre eles, revertendo o excesso para o alienante. 4. É aplicável ao direito de preferência conferido neste artigo o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º, com as necessárias adaptações.” E o artº 1381º preceitua que: “(Casos em que não existe o direito de preferência) Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes: a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura; b) Quando a alienação abranja um conjunto de prédios que, embora dispersos, formem uma exploração agrícola de tipo familiar.” Ora, provado está que o prédio (rústico) dos autores, supra referido, confina com o prédio (rústico) vendido pelos réus, referido nas al.s C) e D) da matéria assente, ou seja, com o prédio rústico situado no lugar do ....., freguesia de Espinhosela, concelho de Bragança, composto por terra de pastagem e castanheiro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança sob o n.º 376 da referida freguesia de Espinhosela, com a área de 4900 m2 e inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia sob o artº 236º. E como é bom de ver, quer a área do prédio vendido pelos réus, confinante com o dos autores, quer a do dos autores, são inferiores à unidade de cultura da região, que é - para terrenos de sequeiro, com é o presente caso -- de 3 hectares (Portaria nº 202/70, de 21.04). De facto, o prédio dos autores tem a área de 15.000 m2 e o vendido pelos réus tem a área de 4.900 m2. Aliás, neste ponto, há que salientar - como, aliás, bem anota a decisão a quo -, que segundo o disposto no artº 18º, nº1 do DL nº 384/88, de 25.10, os proprietários de terrenos confinantes gozam do direito de preferência previsto no artº 1380º CC, “ainda que a área destes seja inferior à unidade de cultura.” Cremos, porém, que a leitura correcta a fazer é a de que basta que um dos prédios confinantes possua uma área inferior à da unidade de cultura. Mas, pelo menos, um deles tem de a possuir para que os respectivos proprietários gozem reciprocamente do direito de preferência (cfr. Ac. S.T.J. de 13 de Outubro de 1993, CJ - Acs. STJ, ano i, t. iii, p. 64; Ac. R.E. de 17 de Novembro de 1994, CJ, ano xix, t. v, p. 283; o Prof. Henrique Mesquita, «Direito de Preferência», in CJ, ano xvi, t. ii, p. 35) [Sobre esta a matéria, ver, ainda, Américo Marcelino, in Da Preferência, Livraria Petrony, o Prof. Agostinho Cardoso Guedes, in A Natureza Jurídica do Direito de Preferência, UCP, 1999, bem como, entre muitos outros, os Ac. do TRC de 01/02/2005 e 11/05/2004, in www.dgsi.pt/jtrc, e os Ac. do TRP de 15/11/2001 e 07/12/2004, in www.dgsi.pt/jtrp.] Verificados estão, assim, todos os requisitos para o exercício do direito de preferência pelos autores na venda que os cinco primeiros réus fizeram aos sextos réus (M....... e mulher), pela escritura pública outorgada a 19 e Fevereiro de 2003, com cópia (certificada) a fls. 7 a 11 dos autos, pelo preço de cinco mil quatrocentos e oitenta e seis euros e setenta e oito cêntimos. Efectivamente, além da supra aludida confinância de terrenos e respectivas áreas, não lograram os réus fazer prova de qualquer das situações impeditivas do direito de preferência, referidas no artº 1381º do CC, maxime a referida na segunda parte da al. a). Da mesma forma que não lograram os réus provar que foi feita aos autores a comunicação a que se refere o artº 416º do CC, ex vi do artº 1380º, nº4, do mesmo Código. É certo que foi quesitado (ponto nºs 11 da base instrutória) se “os réus vendedores não comunicaram aos autores o projecto da venda nem as cláusulas do contrato”. E a resposta a tal quesito foi negativa. No entanto, há que atentar no seguinte: Em primeiro lugar, a resposta negativa ao quesito jamais significava que se tivessem provado o(s) facto(s) contrário(s). Tal falta de prova ou resposta negativa apenas, e só, significa que os factos constantes de tal quesito têm de entender-se como não alegados, sequer (cfr. v.g., Ac. Rel. Porto de 14.04.94, Cil. Jur 1994-II-213 e Jur. e Doutrina ali referidas). Ou seja, apenas significa não se ter provado o facto quesitado e não que se tenha demonstrado o facto contrário (Acs. STJ de 8.2.66, 28.5.68, 30.10.70, 11.6.71, 23.6.73, 5.6.73, 23.10.73, 4.6.74, in Bol. M.J., respectivamente, 154-304, 177-260, 200-254, 208-159, 218-239, 228-195, 228-239 e 238-211). Em segundo lugar, não tinham os autores que alegar, sequer, os factos vertidos no quesito 11º da base instrutória - tal, aliás, como o levado ao quesito 12º da mesma base, pois a sua prova - logo, também, a sua alegação - cabia aos réus, enquanto facto extintivo do direito alegado pelos autores. Efectivamente, ao titular do direito de preferência caberá, nos termos do art. 342º, n.0 1 do Cód. Civil -- enquanto autor numa acção de preferência ou numa acção em que vise a obtenção de uma indemnização por violação do seu direito --, fazer a prova dos factos dos quais dependa a existência do seu direito: a sua qualidade de proprietário, de comproprietário (cfr. art. 1409º CC), de arrendatário (cfr. art. 47º do RAU), de credor num pacto de preferência (cfr. art. 414º CC), etc., etc. Em suma, provar a sua qualidade de preferente [Cfr., entre outros, Cfr., entre outros, os acs. S.T.J., de 11 de Abril de 1972, B.M.J., nº 216, pp. 128 ss., e de 22 de Junho de 1982, B.M.J., nº 318, pp. 415 ss., e os acs. R.C., de 17 de Fevereiro de 1978, e de 7 de Abril, respectivamente, BMJ nºs 276-p. 326 e 366, p. 570, e de 17 de Abril de 1979, Col. Jur., Ano IV, t. 2, 1979, pp. 577-578.] Mas, já não é sobre o preferente que impende o ónus de provar a falta da comunicação a que se reporta o nº 1 do artº 416º. Com efeito, a realização da comunicação para preferir, aliada ao não exercício tempestivo do respectivo direito, constituem factos extintivos do direito invocado pelo preferente. Como tal, a sua prova cabe ao réu. É o que resulta do disposto no n.º 2 do art. 342º do C.C [Neste sentido, entre outros, o Ac. R.C., de 17 de Abril de 1979, I., ano IV, t. 2, 1979, pp. 577-578; o Ac. R.E., de 16 de Fevereiro de 1984 (I., n.º 336, p. 477); o Ac. R.P., de 7 de Julho de 1987 (I ano XII, t. 4, 1987, pp. 201 ss.); os Acs. S.T.J., de 22 de Junho de 1982 (B.M.J., n.º 318, pp. 415 ss.), de 12 de Outubro de 1982 (B.M.J., n.º 320, pp. 416 ss.), de 4 de Dezembro de 1984 (B.M.J., n.º 342, pp. 351 ss.), de 17 de Janeiro de 1985 (B.M.J., n.º 343, pp. 301 ss.) e de 2 de Fevereiro de 1988 (T.J., n.º 40, p. 29), este último, qualificando os factos como impeditivos. Na doutrina, por todos, MANUEL BAPTISTA LOPES, Do Contrato de Compra e Venda no Direito Civil, Comercial e Fiscal, Almedina, Coimbra, 1971, pp. 327 e 348]. Aliás, à mesma conclusão (em termos práticos) têm chegado aqueles que fundamentam a sua posição na consideração de que a ausência da realização do aviso para preferir constitui um facto negativo. Resulta do sistema global, consagrado nos arts. 342º e segs. CC, que em todos os casos em que a prova se apresente de extrema dificuldade -- como acontece aquando da invocação de factos negativos -- o ónus da sua produção deve ter-se por invertido, relativamente à regra geral vertida no art. 342º, nº1 (Cfr. Vaz Serra, em anotação ao Ac. STJ, de 28.Julho de 1972, in Rev. Leg. e Jur., Ano 106º, a pág. 315). Procede, assim, também esta questão suscitada nas conclusões das alegações de recurso. CONCLUINDO: Sendo a usucapião uma forma de aquisição originária (ex novo) do direito real - rompendo, por isso, com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto, tornando o direito imune dos vícios que anteriormente pudesse ter --, a aquisição do direito de propriedade por usucapião pode incidir sobre uma parcela de um terreno, mesmo em violação das normas respeitantes a fraccionamento de terrenos. Para que os proprietários de prédios confinantes gozem reciprocamente do direito de preferência, basta que um dos prédios possua uma área inferior à da unidade de cultura. Mas, pelo menos, um deles tem de a possuir. Ao titular do direito de preferência -- enquanto autor numa acção de preferência ou numa acção em que vise a obtenção de uma indemnização por violação do seu direito -- cabe fazer a prova da sua qualidade de preferente. Mas já não é sobre o preferente que impende o ónus de provar a falta da comunicação a que se reporta o nº 1 do artº 416º CC. Aliás, à mesma conclusão (em termos práticos) se chega, considerando que a ausência da realização do aviso para preferir constitui um facto negativo. É que, sendo de extrema dificuldade a prova deste facto negativo, o ónus da sua produção deve ter-se por invertido, relativamente à regra geral vertida no art. 342º, nº1 CC. IV. DECISÃO: Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença e reconhecendo-se aos Autores o direito de preferirem na venda feita pelos réus D....... e marido E......., F....... e mulher G....., H....., I......., J....... e marido L....... aos réus M....... e mulher N......., pela escritura pública lavrada em 19.02.2003, no Cartório Notarial de Bragança, a fls. 76 a 77 verso, com as ratificações constantes das escrituras públicas lavradas a 4.9.2003 e 16.9.2003 (fls. 85 a 92 dos autos), do prédio rústico ali identificado, descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança sob o nº 00376/120203 da Freguesia de Espinhosa, adjudicando-se o prédio aos autores pelo preço (declarado na escritura) de cinco mil quatrocentos e oitenta e seis euros e setenta e oito cêntimos, acrescido das despesas de escritura e sisa. Custas a cargo dos apelantes. Porto, 12 de Janeiro de 2006 Fernando Baptista Oliveira José Manuel Carvalho Ferraz Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves |