Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | PAULO DIAS DA SILVA | ||
| Descritores: | MEIO DE PROVA FERRAMENTA INFORMÁTICA GOOGLE EARTH NULIDADE PROCESSUAL NULIDADE DE DECISÃO | ||
| Nº do Documento: | RP2024102456/23.8T8ALB.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/24/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | ANULAÇÃO | ||
| Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Na utilização oficiosa, pelo Juiz, da ferramenta informática Google Earth como um meio de prova dos factos em discussão, deve o Tribunal observar os princípios processuais que presidem à produção de prova, desde logo o princípio da audiência contraditória, consagrado no artigo 415º do Código de Processo Civil. II - A utilização da ferramenta acima aludida, nos termos ali expostos, sem observância do disposto nos artigos 415º, 491º e 493º do Código de Processo Civil configura uma nulidade processual, decorrente da omissão de actos e formalidades legalmente prescritos, visto que tais irregularidades podem influir na decisão da causa, sempre que o facto averiguado com recurso a tais ferramentas seja de qualificar como facto essencial (artigo 195º, nº 1, do Código de Processo Civil). III - Quando o tribunal profere uma decisão depois da omissão de um acto obrigatório, tendo essa omissão relevância para o exame ou decisão da causa verifica-se não só uma nulidade secundária (artigo 195º do Código de Processo Civil), mas também a nulidade da decisão, por excesso de pronúncia (artigo 615º, nº 1, al. d)), uma vez que, ao proferir tal decisão, o Tribunal que conhece de matéria de que, naquelas circunstâncias, não podia apreciar.” | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2024:56/23.8T8ALB.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório AA, residente na Rua ..., lugar de ..., freguesia ..., ..., instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum contra BB, residente na Avenida ..., ... ..., Espanha e CC, residente na Rua ..., ..., ... ..., ..., onde concluiu pedindo que fossem os Réus condenados a reconhecer a propriedade da Autora sobre o prédio urbano, composto de armazém destinado a actividade industrial, com a área coberta de 125 m2, logradouro com 110 m2 e quintal com 1935 m2, a confrontar do norte com herdeiros de DD, do sul com EE e FF, do nascente com CC (o 2º Réu) e do poente com estrada (Rua ...), inscrito na matriz sob o artigo nº ...20, descrito na competente conservatória sob o nº ...68; e do prédio urbano, composto de casa destinada a habitação, com a área coberta de 178 m2, dependências com 20,80 m2 e logradouro com 437 m2, a confrontar do norte com herdeiros de DD, do sul com GG e HH; do nascente com II e do poente com a Rua ..., inscrito na matriz sob o artigo urbano nº ...37, descrito na respectiva conservatória sob o nº ...83, quer pela aquisição derivada, quer pela aquisição originária por usucapião, abstendo-se de praticar qualquer acto que ponha em causa a sua posse e os limites actuais do seu prédio, a sua composição e configuração. Subsidiariamente, pediu que os Réus sejam condenados a reconhecerem que a Autora é a dona e legítima possuidora do prédio rústico, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., composto de terreno de cultura, a confrontar do norte com herdeiros de JJ, do sul com herdeiros de KK, do nascente com CC, primeiro réu e do poente com AA, autora, inscrito na matriz respectiva sob o artigo ...11, com o VPT de € 904,09 e descrito sob o nº ...41 na competente conservatória, por o ter adquirido por usucapião. Alega, em síntese, que adquiriu dois prédios urbanos por contrato de compra e venda a LL, exercendo actos de posse sobre os mesmos, por si e seus antepossuidores, há mais de vinte ou trinta anos e que no passado dia 6 de Outubro de 2022, os Réus celebraram uma escritura de compra e venda de um prédio rústico que já não existe fisicamente, tendo sido integrado num dos prédios urbanos por si adquiridos. * Citados, os Réus contestaram a acção, impugnando os factos alegados na petição inicial, defendendo que os factos alegados pela Autora são falsos, tanto é que, nos últimos anos, a Ré tem encetado negociações com aquela a fim de adquirir o dito prédio rústico, não tendo sido possível, no entanto, acertar um preço. Acrescenta que, demonstrando definitivamente que não estava interessada na compra, a Ré vendeu o prédio rústico ao Réu. * Fixado o valor da causa em € 5.500,00, foi dispensada a realização de audiência prévia, proferido despacho saneador, fixaram-se o objecto do litígio e dos temas da prova e admitiram-se os requerimentos probatórios. * Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal. * Foi proferida sentença que julgou procedente a acção e, em consequência, condenou os Réus BB e CC: a) a reconhecerem o direito de propriedade da Autora, AA, sobre o prédio urbano, composto de armazém destinado a actividade industrial, com a área coberta de 125 m2, logradouro com 110 m2 e quintal com 1 935 m2, descrito na matriz sob o artigo nº ...20 e inscrito na competente conservatória sob o nº ...68; e sobre o prédio urbano, composto de casa destinada a habitação, com a área coberta de 178 m2; dependências com 20,80 m2 e logradouro com 437 m2, descrito na matriz sob o artigo urbano nº ...37, e inscrito na respectiva conservatória sob o nº ...83”; b) a reconhecerem que cerca de 560m2 do prédio rústico, sito em ..., freguesia ..., deste concelho ..., composto de terreno de cultura, inscrito na matriz respectiva sob o artigo ...11 e descrito sob o nº ...41 na competente conservatória, integrou o prédio urbano ...68, perdendo autonomia; c) a absterem-se de praticar qualquer acto que ponha em causa a posse da Autora e os limites actuais dos seus prédios, a sua composição e configuração.”. * Não se conformando com a sentença proferida, os recorrentes BB e CC vieram interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações concluem da seguinte forma: I. O Tribunal “a quo”, oficiosamente, socorreu-se da ferramenta informática Google Earth para dar como provadas as áreas do prédio ...11, em concreto, que o mesmo foi «absorvido pelo prédio da Autora (…) em cerca de 560m2 e do Réu (…) em cerca de 500m2», sem que as partes pudessem intervir nesta produção de prova.
II. Acresce que os Recorrentes não tiveram acesso aos limites utilizados pela Mma. Juíza para chegar àquelas áreas, dado que tal imagem (ou imagens) nunca foi junta aos autos (e, tão pouco, à sentença), sabendo-se apenas a conclusão retirada pelo Tribunal “a quo”, o que torna a sentença obscura no que a este facto diz respeito.
III. Assim, a sentença em crise utilizou a ferramenta Google Earth em violação do disposto nos artigos 415.º, 491.º e 493.º do Código de Processo Civil, o que, em virtude de estar em causa um facto essencial, consubstancia nulidade processual, decorrente da omissão de atos e formalidades legalmente previstos, uma vez que tais irregularidades podem (como o fizeram) influir na decisão.
IV. A sentença recorrida, tendo proferido uma decisão depois da omissão de um ato obrigatório, o qual tem relevância para a decisão da causa, é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil, o que inviabiliza a produção dos seus efeitos jurídicos (neste sentido, v. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/04/2023 – Proc. n.º 4017/20.0T8GMR.G1.S1 e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30/05/2023 – Proc. n.º 568/20.5T8MTJ.L1-7).
V. A sentença de que ora se recorre padece de manifesto lapso de identificação dos prédios nas imagens que nela vêm plasmadas.
VI. O prédio ...12 encontra-se do lado esquerdo (lado norte) do prédio ...11 e, do lado direito deste (lado sul) está o prédio que, em tempos, foi o ...10 (depoimentos das Testemunhas MM, que se encontra registado com recurso à aplicação H@bilus Media Studio, das 09h56m34s às 10h28m12s, do dia 25/10/2023, minutos 05:56 aos 07:00; NN, que se encontra registado com recurso à aplicação H@bilus Media Studio, das 10h29m11s às 11h13m31s, do dia 25/10/2023, minutos 07:10 aos 07:31 e 08:12 aos 09:29 e OO, que se encontra registado com recurso à aplicação H@bilus Media Studio, das 11h28m13s a 12h08m10s, do dia 25/10/2023, minutos 04:45 aos 06:45).
VII. Destes depoimentos resulta que o prédio identificado pela sentença como prédio rústico ...10, no raciocínio do Tribunal “a quo” corresponde, na realidade, ao prédio rústico ...11, sendo que do lado esquerdo deste (lado norte) se encontra o prédio ...12, pertencente, atualmente, à D.ª PP.
VIII. A localização do prédio identificado pela sentença como prédio rústico ...11 corresponde, no raciocínio do Tribunal “a quo”, ao prédio rústico ...10.
IX. Este lapso de identificação da localização dos prédios pode ter enviesado o raciocínio levado a cabo pelo Tribunal “a quo”, pelo que se impõe, desde logo, uma análise cuidadosa de toda a sentença de que se recorre.
X. Apesar de o Tribunal “a quo” ter concluído «que o prédio rústico ...11 não se localiza onde, convenientemente a Ré apontou (em frente à pocilga)», o certo é que não procedeu a uma concreta identificação do espaço indicado pelas partes como correspondendo ao prédio n.º ...11, limitando-se a referir que a Ré indicou que o terreno era «em frente à pocilga», nada dizendo em relação ao local em concreto indicado pelo Réu.
XI. Aliás, tendo em consideração que a pocilga pertença do Réu (prédio n.º ...33), segundo o raciocínio do próprio Tribunal “a quo”, foi construída sobre dois prédios (prédios n.ºs ...10 e ...11), fica-se sem saber a que “frente” é que o mesmo se refere. Será à “frente” da pocilga, no prédio que o Tribunal entende como ...10? Ou à “frente” da pocilga, no local identificado como sendo o prédio ...11?
XII. A conclusão do Tribunal de que o prédio ...11 «não se encontra no local indicado pelo Réu. Caso contrário, não teria como confrontação nascente - II», não faz sentido atenta a demais fundamentação da sentença e a realidade dos factos.
XIII. O prédio ...11, de acordo com a inscrição matricial e a escritura de compra e venda não tem como confrontação nascente II.
XIV. A parcela indicada pelo Réu como correspondendo ao prédio rústico ...11 tem, atualmente, como confrontações reais, as seguintes: a norte com D.ª PP (prédio ...12, que pertenceu, em tempos, a JJ) a sul com a Autora, AA (prédio ...20 proveniente do prédio ...10), a nascente com o Réu CC e a poente com a Autora (prédio ...37).
XV. Para dar como provado o facto 10), o Tribunal “a quo” refere expressamente que se baseou na certidão judicial junta aos autos. Acontece que as confrontações que resultam daquela certidão não são as indicadas por aquele. Razão pela qual o facto provado 10) deve passar a ter a seguinte redação: «Em tempos, o prédio identificado em 4 a) e o prédio descrito em 9) constituíram uma única unidade predial, com a seguinte composição e confrontações: Casa ampla, destinada a armazém e barracão de rés do chão com oito divisões, destinado a pocilga, sito em ... - ..., deste concelho e comarca de Albergaria-a-Velha, a confrontar do norte com DD, do sul com EE, nascente e poente com Rua».
XVI. A sentença recorrida refere que deu os factos 14), 15) e 16) como provados pelo que decorre do verificado no local e pelas escrituras de compra e venda e cópias das matrizes.
XVII. O certo é que para além de as delimitações existentes no local não terem sido devidamente esclarecidas pelo Tribunal “a quo”, o prédio ...33 (onde se situa a pocilga) do Recorrente encontra-se devidamente delimitado, em todo o seu perímetro, dos demais prédios com muros (ver depoimento da testemunha MM, dos minutos 04:34 aos 04:50).
XVIII. Por sua vez, a casa da Autora, conforme foi possível verificar na inspeção judicial ao local, tem um pequeno muro de tijolos que a separa da parcela identificada pelo Réu como sendo o prédio ...11. Esta parcela encontra-se vedada com rede, separando-a do prédio ...12 e do prédio ...10, a qual já se encontra no local desde a altura em que QQ era vivo e conhecido como dono de todos os prédios, tendo sido o mesmo quem a colocou, o que se compreende, dado ser o dono do prédio.
XIX. Quando QQ era dono de ambos os prédios (...10 e ...11) tratou de os delimitar devidamente, delimitações essas que permanecem até aos dias de hoje e que se consubstanciam nas redes e muros que se encontram no local (v. declarações do Réu CC, que se encontram registadas com recurso à aplicação H@bilus Media Studio, das 15h19m16s a 16h27m47s, do dia 09/10/2023, minutos 47:53 aos minutos 48:04; depoimentos de MM, minutos 07:10 aos 07:21; NN, minutos 30:06 aos 30:25; RR, que se encontra registado com recurso à aplicação H@bilus Media Studio, das 12h09m10s a 12h25m56s, do dia 25/10/2023, minutos 08:45 aos 09:06).
XX. O tribunal “a quo” desprezou, ainda, as áreas dos vários prédios, previstas nos documentos juntos aos autos, o que lhe permitiria concluir que o falecido QQ não fez qualquer confusão com os prédios ...11 e ...10. Aquele QQ sabia o terreno que estava a dividir – o prédio ...10 –, motivo pelo qual não inseriu nem a área, nem a descrição do prédio ...11.
XXI. E isto porque, a área total do antigo prédio rústico ...10 era de 3.470m2; na ação de divisão de coisa comum foi adjudicada à Autora a parcela descrita no facto provado 4) a), a qual tem um total de 2.170m2, e ao Réu a parcela descrita no facto provado 9), com uma área total de 1.300m2. Nesta ação de divisão de coisa comum, o prédio unificado (...10) foi descrito como sendo composto por «Casa ampla, destinada a armazém e barracão de rés do chão com oito divisões, destinado a pocilga», não havendo qualquer referência a uma parte rústica que pudesse corresponder ao prédio ...11.
XXII. A soma daquelas áreas (2.170m2 +1.300m2) perfaz 3.470m2, o que corresponde à área total do prédio ...10.
XXIII. O prédio ...11 tem uma área total de 1.060m2, a qual não foi incluída nos prédios ...33 (com 1.300m2) e ...20 (com 2.170 m2).
XXIV. Acresce que as delimitações existentes no local permitem identificar, autonomamente, quatro parcelas: i) o prédio onde está implantada a pocilga do Réu, correspondente ao artigo n.º 1133; ii) o barracão e logradouro da Autora, correspondente ao prédio ...20 (localizado do lado sul do caminho de acesso à pocilga); iii) a casa da Autora, correspondente ao artigo ...37; iv) a parcela remanescente, localizada entre o prédio ...37 e o prédio ...33, a qual corresponde ao prédio ...11, adquirido pelo Réu, enquanto terceiro de boa-fé, à Ré.
XXV. Foi o próprio QQ que, em vida, contou ao Réu que tinha reservado um «bocado de terreno» para a sua filha (declarações do Réu CC, minutos 05:51 aos minutos 06:12, 07:27 aos minutos 07:50; minutos 35:44 aos minutos 36:53).
XXVI. As parcelas de terreno em causa sempre tiveram a mesma configuração e sempre estiveram divididas da mesma forma, pelo que a Autora não alterou nada, limitando-se a aceitar as divisões que o seu ex-companheiro estabeleceu em vida.
XXVII. Face à prova produzida, impõe-se a conclusão de que o prédio ...11 tem existência física e não foi absorvido por qualquer outro prédio.
XXVIII. Assim, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil, os factos provados 14), 15) e 16) devem ser tidos como não provados.
XXIX. A única prova produzida relativamente aos alegados atos de posse da Autora sobre a parcela em discussão nos autos, remonta aos anos 2021, 2022 e 2023 (depoimento de NN (encontra-se registado com recurso à aplicação H@bilus Media Studio, das 10h29m11s às 11h13m31s, do dia 25/10/2023, minutos 04:00 aos 04:29, 05:05 aos 05:48 e 24:38 aos 25:02).
XXX. Acontece, contudo, que nestes anos a Autora já tinha sido interpelada pela Ré para comprar o prédio ...11, o que significa que sabia que a Ré se arrogava proprietária desta parcela de terreno e que não se encontrava a residir em Portugal, pelo que não se poderia opor a tais atos, dado nem sequer ter conhecimento dos mesmos.
XXXI. Quanto ao animus possidendi, as testemunhas que afirmaram que a Autora cuidava do terreno, não têm qualquer conhecimento sobre a que título o fazia, isto é, se o fazia na convicção de estar a exercer um direito próprio ou se, pelo contrário, sabia que existia ali uma parcela de terreno que era do falecido QQ e, consequentemente, pertencia à filha do mesmo, aqui Ré (depoimentos das testemunhas NN, dos minutos 31:21 aos 31:50 e 17:27 aos 18:26; MM, dos minutos 22:07 aos 22:30; SS, que se encontra registado com recurso à aplicação H@bilus Media Studio, das 11h14m39s a 11h27m19s, do dia 25/10/2023, minutos 09:15 aos 09:22).
XXXII. A testemunha RR, a quem o Tribunal “a quo” se refere como «amiga e confidente da Autora», referiu que a mesma lhe confessou que não era proprietária do terreno todo e que havia lá «um bocado» que não estava em nome dela e que a Ré BB foi oferecer esse “bocado” à Autora que não o quis pelo dinheiro que aquela se encontrava a pedir (ver depoimento nos minutos 04:37 aos 05:33, 05:50 aos 06:44 e 07:03 aos 07:53).
XXXIII. Quanto à testemunha OO, cujo depoimento foi considerado pelo Tribunal “a quo” como «essencial», relatou a reunião de 2022 tida entre o mesmo, a Autora e a Ré, na qual a Autora deu a entender que, efetivamente, o prédio ...11 não lhe pertencia, sendo que, a ser vendido pela Ré, aquela teria direito a metade do valor, alegadamente por também ser herdeira (minutos 19:42 aos 30:05).
XXXIV. Também foi explicado pela Testemunha OO que, em 2017, a Autora estava disposta a adquirir à Ré o prédio ...11, mas por um valor inferior ao pedido por esta.
XXXV. Este depoimento vem corroborado pelas declarações da Ré BB, que explica a “reunião” tida com a Autora em 2022 (declarações de parte 52:23 aos 55:33)
XXXVI. Esta preocupação da Autora denota-se ainda mais, se atendermos ao facto de ter ido desabafar com RR, a quem assumiu imediatamente que havia lá um bocado de terreno que não lhe pertencia.
XXXVII. Não é lógico que alguém, convicto de que é dono de um determinado terreno, que, na tese do Tribunal, exerce atos de posse sobre o mesmo na convicção de se tratar de coisa sua, tenha o comportamento que a Autora teve.
XXXVIII. Decorre, assim, da prova produzida que à morte de QQ, a Autora tomou posse dos terrenos que tinha em seu nome, sabendo que existia uma parcela que não lhe pertencia, mas sim aos herdeiros de QQ – a aqui Ré.
XXXIX. Importa, ainda, referir que o Tribunal “a quo” dá como provado, no facto n.º 7, aspetos relativamente aos quais não foi feita qualquer prova: i) não se provou que tipo de árvores e culturas a Autora levou a cabo no prédio identificado em 4) a); ii) também não se provou que uma parte do prédio descrito em 4 a) «está afecto a caminho, de pé e de carro, que serve a parte mais a sul do seu prédio, onde tem nogueiras e produtos hortícolas e o prédio do 2º réu, situado a nascente do prédio da ora autora». A inclusão de tais aspetos no facto n.º 7 demonstra que o Tribunal “a quo” extravasou a prova produzida.
XL. Nos termos do artigo 640.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil, devem ser dados como provados os seguintes factos: 7) E usa o prédio identificado 4) a), na parte urbana, para arrendar e na parte rústica como horta, para plantar e colher couves, alfaces, cebolas, batatas e outros produtos; para plantar árvores de fruto, como nogueiras, laranjeiras, tangerineiras, limoeiros, macieiras e colher os respectivos frutos, plantar carvalhos e outras árvores de várias espécies. 22) E posteriormente à morte daquele QQ, ocorrida em ../../1999, passou a Autora a usar os prédios – casa de habitação e prédio urbano identificados em 4) desta petição, bem como alguns pinhais e matos – como se de coisa sua se tratasse. 28) (facto a acrescentar) A Autora, no ano 2020, mandou proceder à poda das árvores de fruto existentes no prédio descrito em 1), após ter sido inquirida pela Ré BB quanto ao seu interesse nesse prédio. D) Ao longo dos anos existiram diversas negociações entre a Autora e a Ré para a aquisição por aquela do prédio descrito em 1), ainda que nunca tivessem chegado a um entendimento, quanto ao preço. E) A Autora sempre agiu no convencimento de que o prédio descrito em 1) não lhe pertencia, na realidade, tratando daquele prédio, tão só, na convicção de que a Ré não o exigiria, ou que, caso tal ocorresse, acabaria por o comprar. F) Em 2017, a Autora manifestou interesse na aquisição do prédio descrito em 1), oferecendo o preço de €2.500,00, valor que a Ré, por o considerar desajustado da realidade, não aceitou. E como não provados: 23) Em parte do prédio identificado em 1) desta petição, a autora plantou árvores de fruto, como laranjeiras e limoeiros, que tratou e colheu os respectivos frutos, bem como ervas, que usou para alimentar os animais domésticos que cria nos anexos da sua habitação. 24) Tudo isto é feito à vista de toda a gente, nomeadamente do réu, que por ali passa e anda diariamente, para entrar e sair do prédio onde se encontra instalada a pocilga. 25) A autora exercia os actos referidos em 23) sem oposição, como se de coisa sua se tratasse, que realmente era, de forma pública, pacífica, com o conhecimento de generalidade das pessoas do lugar e da freguesia, incluindo o actual 2º réu.
XLI. Analisada a P.I., verifica-se que a Autora faz dois pedidos, sendo um principal e outro subsidiário, pretendendo que lhe seja reconhecido, em primeiro grau, que o artigo matricial ...11 foi absorvido pelo seu prédio, dele passando a fazer parte integrante. E, apenas se assim não se entendesse, e se considerasse a existência física do mesmo, então fosse reconhecida a sua aquisição por usucapião.
XLII. O Tribunal “a quo”, na fundamentação que apresenta, para além de considerar que o artigo 5011 integrou o prédio urbano ...20, perdendo aquele autonomia face a este, cumula os dois pedidos da Autora, considerando que esta adquiriu aquele 5011 por usucapião.
XLIII. Das duas uma: ou o prédio ...11 deixou de ter existência física, sendo integrado no prédio da Autora (descrito no facto 4 a)), não podendo, por isso, ser adquirido por aquisição originária; ou tem existência autónoma, podendo ser alvo de atos de posse e da consequente aquisição por usucapião.
XLIV. A decisão torna-se ainda mais ininteligível quando, confrontando a fundamentação, toda ela baseada na aquisição da Autora por usucapião, e o seu dispositivo, se verifica que, no mesmo, apenas se reconhece a integração de cerca de 560m2 do prédio rústico ...11, no prédio urbano ...20, nada referindo já quanto à aquisição por usucapião.
XLV. É nula a sentença, por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d) CPC), na parte em que conheceu do pedido subsidiário formulado pela Autora, simultaneamente com o pedido principal.
XLVI. Da prova produzida e supra transcrita ressalta a ausência de animus possidendi, já que a Autora nunca se opôs, verdadeiramente, ao facto de a Ré se arrogar proprietária do prédio ...11, o que levou a que, por intermédio do seu mandatário, fizesse uma proposta de aquisição daquele prédio pelo valor de € 2.500,00 e em 2022, se a Autora acreditasse, efectivamente, ser proprietária daquele prédio ...11, ou ter adquirido o mesmo por usucapião, arrogar-se-ia como proprietária e não como herdeira do falecido QQ, com direito a metade do valor da venda do prédio.
XLVII. Nestes termos, a sentença recorrida viola, entre outros, o disposto nos artigos 415.º, 491.º e 493.º, 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil e 1253.º do Código Civil. * Foram apresentadas contra-alegações, que não foram admitidas por extemporaneidade. * A 04.04.2024 foi proferido o seguinte despacho: “Nos termos do disposto no artigo 614º, n.º1, do Código de Processo Civil, na parte que aqui nos interessa, o legislador prevê eu se a sentença (…) contiver erros de escrita (…) ou quaisquer inexactidões devidas a (…) lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz. Lido as alegações de recurso e de resposta, verifica-se que, efectivamente, ocorreu um erro de escrita na sentença, mais concretamente, na identificação dos prédios em causa nos presentes autos, nas fls.15 e 16 (versão digital), que cumpre aqui corrigir. Dito isto e ao abrigo do citado normativo, determina-se que, a fls. 15 da sentença, se lê: «Assim, é seguro localizar o prédio rústico ...10 no seguinte local:(…)» Deverá passar-se a ler “Assim, é seguro localizar o prédio rústico ...11 no seguinte local:” Consigna-se que esta correcção é meramente material, o que facilmente se confirma pelo resto da fundamentação apresentada na sentença em apreço. Efectivamente, menciona-se que a confrontação norte do prédio ...11 é o prédio ...12 e que a confrontação a sul, é o prédio ...10, pelo que o prédio identificado na imagem não poderia ser o mesmo prédio ...10 (ver fls. 14). Do mesmo modo, a fls. 16, onde se lê: «Sem prejuízo, resultou da documentação junta aos autos que o prédio rústico ...11 localiza-se aqui:» Deverá passar-se a ler: “Sem prejuízo, resultou da documentação junta aos autos que o prédio rústico ...10 localiza-se aqui:” Mais uma vez, facilmente se confirma que ocorreu um mero lapso de escrita, na medida em que, nas confrontações do referido prédio ...10, é indicado, a norte, o prédio ...11. Notifique e, oportunamente, imprima a sentença e corrija em local próprio.”. * Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir. * 2. Factos O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos: 1. Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial ..., a cargo da Drª TT, em seis de Outubro de 2022, no Livro nº 282ª de escrituras diversas, fls 90, a ora primeira ré declarou vender ao ora segundo réu, que declarou comprar, o seguinte: “Prédio rústico, sito em ..., freguesia ..., deste concelho ..., composto de terreno de cultura, a confrontar do norte com herdeiros de JJ, do sul com herdeiros de KK, do nascente com CC, o primeiro réu e do poente com AA, a ora autora, na matriz respectiva sob o artigo ...11, com o VPT de € 904,09 e descrito sob o nº ...41 na competente conservatória”. 2. O preço indicado para a venda atrás indicada foi de € 5 500,00 (cinco mil e quinhentos euros). 3. Mais referem na mesma escritura que o prédio em causa pertencia a QQ, falecido em ../../1999, do qual a ora ré vendedora se arrogou única e universal herdeira, conforme escritura de habilitação de herdeiros do mesmo dia da escritura, lavrada no mesmo cartório. 4. A Autora é dona e legítima proprietária dos seguintes prédios, situados em ..., ..., concelho ..., que confinam com a referida Rua ...: a) “Prédio urbano, composto de armazém destinado a actividade industrial, com indicação matricial da área coberta de 125 m2, logradouro com 110 m2 e quintal com 1 935 m2, a confrontar do norte com herdeiros de DD, do sul com EE e FF, do nascente com CC (o 2º Réu) e do poente com estrada (Rua ...), na matriz sob o artigo nº ...20, descrito na competente conservatória sob o nº ...68; b) Prédio urbano, composto de casa destinada a habitação, com indicação matricial da área coberta de 178 m2; dependências com 20,80 m2 e logradouro com 437 m2, a confrontar do norte com herdeiros de DD, do sul com GG e HH; do nascente com II e do poente com a Rua ..., na matriz sob o artigo urbano nº ...37, descrito na respectiva conservatória sob o nº ...83”. 5. Os prédios descritos em 4) vieram à posse da ora Autora por os ter comprado a LL - em escritura de compra e venda de 27 de Setembro de 1991, lavrada no cartório Notarial ... – que, por sua vez, tinha adquirido os referidos prédios a QQ. 6. A Autora, por si e antepossuidores, há mais de vinte e de trinta anos que está na posse pública, à vista de toda a gente, pacífica e de boa fé, dos prédios identificados em 4), usando o prédio descrito em 4) b) para nele habitar permanentemente, juntamente com o seu agregado familiar, nele preparando e comendo as refeições, onde dorme e passa os seus períodos de laser, de forma permanente, onde guarda os seus pertences, mobílias, roupas e outros objectos de adorno da casa e de uso pessoal; utiliza as dependências para guardar lenhas e outros produtos agrícolas e para criar animais domésticos, como frangos, galos, galinhas, patos e perus, e o logradouro para guardar o seu veículo automóvel. 7. E usa o prédio identificado 4) a), na parte urbana, para arrendar e na parte rústica como horta, para plantar e colher couves, alfaces, cebolas, batatas e outros produtos; para plantar árvores de fruto, como nogueiras, laranjeiras, tangerineiras, limoeiros, macieiras e colher os respectivos frutos, plantar carvalhos e outras árvores de várias espécies; sendo que uma parte do terreno do prédio está afecto a caminho, de pé e de carro, que serve a parte mais a sul do seu prédio, onde tem nogueiras e produtos hortícolas e o prédio do 2º réu, situado a nascente do prédio da ora autora. 8. Tudo à vista de toda a gente do lugar, sem oposição de ninguém, na convicção, que era certeza, de estar a usar coisa sua, exclusivamente. 9. O segundo réu é dono e legítimo possuidor do prédio urbano, composto de barracão destinado a pocilga, com indicação matricial da superfície coberta de 1000m2 e logradouro com 300 m2, situado no mesmo lugar – ..., ..., ..., a confrontar do norte com DD, do sul com EE, do nascente com herdeiros de UU e do poente com AA, a autora, inscrito na matriz sob o artigo urbano nº ...33 e descrito na competente conservatória sob o nº ...82. 10. Em tempo, o prédio identificado em 4) a) e o prédio descrito em 9) constituíam uma única unidade predial, com a seguinte composição e confrontações: “Casa ampla destinada a armazém, com 125 m2; logradouro com 110 m2 e quintal com 1935 m2; e barracão de rés do chão com oito divisões, destinado a pocilga, com 1000 m2 e logradouro com 300 m2, a confrontar do norte com DD, do sul com EE, nascente com II e Poente com AA e Rua, na matriz predial da freguesia ... sob o artigos ...20 e ...33, descrito na competente conservatória sob o nº ...82”. 11. O prédio descrito em 10) veio a ser dividido em dois, na acção de divisão de coisa comum que correu termos pelo então tribunal Judicial da Comarca de Albergaria a Velha, em que foi autora a ora autora e réu o ora segundo réu, CC, com o nº 46/1992 - 2ª Secção. 12. Naquela acção, reconhecida a possibilidade de divisão do prédio em substância, veio o mesmo a ser dividido em duas parcelas – a parcela 1, que corresponde ao prédio identificado 4) a) e que foi então adjudicado à ora autora; e a parcela 2, que corresponde ao prédio identificado no precedente artigo 9), que foi adjudicado ao ora réu CC. 13. Tendo a parcela 1, que constitui o prédio adjudicado à ora Autora, sido desanexado do prédio mãe, descrito sob o nº ...82, passando a estar descrito sob o nº ...68. 14. Naquele local, dentro do perímetro compreendido pelas confrontações indicadas em 10), e que abrange a totalidade da área existente dentro daquelas confrontações, limitada a norte pelo prédio de DD; a sul pelo prédio de EE (...), a nascente por Herdeiros de II e poente pela Autora e pela Rua ..., não existe actualmente qualquer área de terreno que possa constituir outro prédio, autónomo e independente, rústico ou urbano, além dos indicados em 4) e 9). 15. A área total destes prédios 4) a) e 9) corresponde à área total dos prédios, antes da divisão referida em 11) e à totalidade da área compreendida pelas confrontações indicadas no precedente artigo 10). 16. Pelo que o prédio identificado em 1) já não tem existência física que corresponda ao artigo matricial indicado da referida freguesia ... – ...11 e à descrição – nº ...14, tendo sido absorvido pelo prédio da Autora, descrito em 4) a) (em cerca de 560m2) e do Réu, descrito em 9) (em cerca de 500m2). 17. O prédio identificado em 1) pertencia ao casal de QQ e mulher, VV, ou VV ou VV, entretanto dissolvido por morte da mulher. 18. Passando a pertencer exclusivamente ao marido, viúvo, por lhe ter sido adjudicado em partilha que efectuou com BB, a 1ª ré. 19. A Autora passou a viver maritalmente com aquele QQ a partir do ano de 1991, na casa identificada em 4) b). 20. Viviam na mesma casa, prédio identificado em 4) b) deste articulado, comiam e dormiam juntos, passeavam e passavam os momentos de laser em conjunto, como se de marido a mulher se tratasse. 21. Tratavam das propriedades do casal – os prédios identificados em 4) deste articulado e em parte do prédio identificado em 1), além de outros prédios a pinhal e mato - em conjunto, habitando na casa de habitação e plantando árvores, que cortavam, juntamente com os matos, plantavam e colhiam produtos agrícolas, como couves, alfaces, cenouras, batatas, ervas e plantavam árvores de fruto, nos terrenos aptos e destinados a estas culturas, colhendo os respectivos frutos. 22. E posteriormente à morte daquele QQ, ocorrida em ../../1999, passou a Autora a usar os prédios – casa de habitação, prédio urbano identificados em 4) desta petição e parte do prédio identificado em 1), bem como alguns pinhais e matos – como se de coisa sua se tratasse. 23. Em parte do prédio identificado em 1) desta petição, a autora plantou árvores de fruto, como laranjeiras e limoeiros, que tratou e colheu os respectivos frutos, bem como ervas, que usou para alimentar os animais domésticos que cria nos anexos da sua habitação. 24. Tudo isto é feito à vista de toda a gente, nomeadamente do réu, que por ali passa e anda diariamente, para entrar e sair do prédio onde se encontra instalada a pocilga. 25. A autora exercia os actos referidos em 23) sem oposição, como se de coisa sua se tratasse, que realmente era, de forma pública, pacífica, com o conhecimento de generalidade das pessoas do lugar e da freguesia, incluindo o actual 2º réu. 26. Em 2017, através de correspondência, a RÉ inquiriu a Autora quanto ao seu interesse no prédio descrito em 1). 27. Antes de efectuar o negócio com o Réu, a Ré, pessoalmente, dirigiu-se à Autora, em Agosto de 2022, e novamente lhe propôs a venda do prédio. * 2.2. Factos não provados O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos: a) Pagando as contribuições atinentes aos prédios. b) As áreas totais dos prédios referidos no artigo anterior, como das respectivas descrições e matrizes consta, são as seguintes: Artigo urbano ...20 - nº descrição ...68 (4) a)) - 2 170 m2; Artigo urbano ...33 - nº descrição ...82 (9)) - 1 300 m2; TOTAL: 2 170 + 1 300 = 3 470 m2. c) QQ e a Autora pagavam os impostos sobre os prédios identificados em 4) e 1). d) Ao longo dos anos existiram diversas negociações entre a Autora e a Ré para a aquisição por aquela do prédio descrito em 1), ainda que nunca tivessem chegado a um entendimento, quanto ao preço. e) A Autora sempre agiu no convencimento de que o prédio descrito em 1) pertencia, na realidade, à Ré, tratando daquele prédio, tão só, por tolerância dela e na perspectiva de que a Autora acabaria por o comprar. f) Em 2017, a Autora manifestou interesse na aquisição do prédio descrito em 1), oferecendo o preço de €2.500,00, valor que a Ré, por o considerar desajustado da realidade, não aceitou. g) Embora a Autora chegasse a manifestar disponibilidade para pagar o valor de €5 000,00 (que ainda assim a Ré entendia abaixo do valor real do prédio) marcou com a Ré data e hora para dar uma resposta definitiva, mas na data marcada pela Autora esta não recebeu a Ré, dessa forma manifestando o seu desinteresse pela compra. * 3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir: Das conclusões formuladas pelos recorrentes as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso são as seguintes: - Da nulidade da decisão por excesso de pronúncia; - Da impugnação da matéria de facto; - Do mérito da decisão. * 4. Conhecendo do mérito do recurso: 4.1. Da nulidade da sentença Invocaram os Apelantes a nulidade da sentença recorrida por excesso de pronúncia, alegando para o efeito que o Tribunal a quo, oficiosamente, socorreu-se da ferramenta informática Google Earth para dar como provado as áreas do prédio ...11, ou seja, que o mesmo foi «absorvido pelo prédio da Autora (…) em cerca de 560m2) e do Réu (…) em cerca de 500m2» [facto provado 16)], utilizando o referido instrumento como meio de prova. Acrescentam que, fê-lo sem a observância dos formalismos legais, violando o princípio do contraditório. Vejamos, então, se a sentença sob recurso é nula. As causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece que é nula a sentença: - Quando não contenha a assinatura do juiz (al. a)). - Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b)). - Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)). - Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d)). - Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (al. e)). No caso vertente, na motivação da decisão sobre a matéria de facto o Tribunal a quo reporta-se à utilização da ferramenta informática Google Earth. Todavia, nenhuma das partes requereu a realização da referida diligência probatória, sendo, ainda, certo que também nenhuma das partes teve oportunidade de verificar como o tribunal a quo a utilizou, bem como de contraditar o resultado da diligência. De facto, na sentença apelada, sob o título “Motivação da Decisão sobre a Matéria de facto”, o Tribunal a quo consignou, designadamente e a este propósito, o que segue: “Os factos constantes da matéria dada como provada e não provada resultam dos articulados juntos aos autos, tendo sido retirado tudo quanto seja inútil para a decisão da causa, conclusivo, juízos de valor, considerações de direito ou repetido. Para fundar a sua convicção, o Tribunal atendeu à prova documental junta aos autos, conjugada com a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, assim como os depoimentos de parte de Réus e Autora. A deslocação ao local foi ainda essencial para verificar a configuração actual dos prédios que, segundo os depoimentos prestados e as imagens do Google Earth, se mantem idêntica nos últimos vinte anos. (…) Por todo o exposto, conclui-se que, ainda em vida de QQ, este construiu a sua pocilga no prédio ...10 e no prédio ...11, ocupando sensivelmente e sem prejuízo de melhor levantamento topográfico, cerca de 500m2(1) do prédio ...11: (1) Medida retirada utilizando as ferramentas disponíveis no Google Earth Pro. (…) Pelos fundamentos já acima descritos - designadamente, pelo facto de ser consensual que foi QQ que construiu a pocilga, vendendo-a posteriormente ao Réu e que, ao construí-la ocupou parte dos prédios ...11 e ...10, sem nunca, no entanto, fazer qualquer referência ao prédio ...11 nas escrituras celebradas a 27 de Setembro de 1991 – deu-se o facto 16) como provado. As áreas indicadas nesse artigo resultam da utilização das ferramentas do Google Earth, tendo por referência os 20 a 25 metros de largura do prédio ...12 (que fica a norte dos prédios ...11 e ...37) que, em tempos, pertenceu aos pais de QQ e foi deixado a DD. (…).” Assim, pese embora o Tribunal a quo não tenha devidamente esclarecido as circunstâncias em que recorreu à referida ferramenta informática e as medições que em concreto realizou, do inciso citado resulta que a referida ferramenta foi usada para observar o local e proceder a medições. Ou seja, o Tribunal a quo, oficiosamente, socorreu-se da ferramenta informática Google Earth para dar como provadas as áreas do prédio ...11, em concreto, que o mesmo foi «absorvido pelo prédio da Autora (…) em cerca de 560m2) e do Réu (…) em cerca de 500m2» [facto provado 16)]. Fê-lo, porém, sem a observância dos formalismos legais que, nestas circunstâncias, se impõem. Ora, tendo em consideração que a cibernavegação (medição de áreas), no caso em concreto, foi realizada oficiosamente e sem qualquer notificação às partes de que iria servir como meio de prova, ficou vedada às mesmas a intervenção no acto de produção desta prova. De resto, resulta das regras da experiência comum, que as medições realizadas na aplicação Google Earth é superficial e sem o devido rigor, sendo impossível determinar, com certeza, os limites e extremas dos terrenos e, consequentemente, a área dos mesmos, existindo para o efeito os levantamentos topográficos. Além disso, os Apelantes não tiveram acesso aos limites utilizados pela Sr.ª Juiz a quo para advir àquelas áreas, dado que a suposta imagem (ou imagens) não foram juntas aos autos, sabendo-se, apenas, a conclusão retirada pelo Tribunal a quo, sendo, ainda, certo que está em causa a área do prédio objecto do litígio e não um qualquer facto acessório. Ora, o recurso às referidas ferramentas, visando observar locais e efectuar medições é susceptível de ser qualificado como uma modalidade de prova por inspecção judicial, sujeita, por isso, à disciplina dos artigos 439º e segs. do Código de Processo Civil, bem como às regras gerais do direito probatório formal, previstas nos artigos 411º e segs. do referido diploma, máxime o consagrado no artigo 415.º do referido código[1]. Assim, ao actuar de tal modo, a Sra. Juiz a quo recorreu ao meio de prova inspecção na modalidade de cibernavegação, o qual não prescinde da observância dos princípios processuais que presidem à produção de prova, a começar pelo princípio da audiência contraditória, consagrado no artigo 415º do Código de Processo Civil. De facto, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas (nº 1 do artigo 415º) e, tratando-se de prova constituenda (como é o caso), a parte é notificada para todos os actos de preparação e produção da prova, sendo também admitida a intervir nesses actos nos termos da lei (nº 2 do artigo 415º). De resto, a observância do princípio do contraditório na produção da prova «destina-se a permitir que à produção de prova por uma das partes a outra possa responder com uma contraprova (artigo 346º do Código Civil) ou com prova do contrário (artigo 347º do Código Civil)»[2]. No caso vertente, sendo a cibernavegação resultado da actuação oficiosa da Sra. Juiz a quo (artigo 411º), deve na mesma ser garantida a intervenção de ambas as partes na produção da prova e a apreciação dos elementos recolhidos deve ser precedida do contraditório[3]. Destarte, a sentença em crise utilizou a ferramenta Google Earth em violação do disposto nos artigos 415.º, 491.º e 493.º do Código de Processo Civil. E fazendo-o, há quem defenda que a omissão de formalidade essencial seguida da prolação de sentença configura uma nulidade processual, nos termos do disposto nos artigos 195º e segs. do Código de Processo Civil e não uma nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, al. d) do mesmo diploma[4] Ancorava-se esse entendimento na consideração de que a génese da nulidade se situava a montante da prolação da sentença e bem assim na circunstância de o regime da nulidade da sentença não prever a possibilidade de o processo retroceder a fase anterior à da prolação da decisão final (v.g. à audiência de julgamento, à audiência prévia, ou mesmo aos articulados). Contudo, alguma jurisprudência vem salientando que a preterição do direito ao contraditório seguida da prolação de sentença pode configurar simultaneamente uma nulidade processual, e uma nulidade da sentença, por excesso de pronúncia[5]. Cremos, porém, que a ponderação de tais situações como de concurso das duas nulidades, com eventual conjugação de regimes permite alcançar respostas satisfatórias àquelas interrogações, respeitando a letra e espírito dos preceitos que regulam as duas figuras [6]- Cf., neste sentido acórdão do TRL de 30-05-2023, processo 568/20.5T8MTJ-L1-7, consultável in www.dgsi.pt. Assim sendo, acreditámos ser de considerar que se poderá falar em concurso dos dois vícios nas situações em que a primeira nulidade por omissão de uma formalidade legal anterior à prolação da sentença não deva considerar-se sanada por falta de invocação atempada. Tal sucederá em todas as situações em que tal nulidade apenas se revela com a prolação da sentença, como se verifica no caso em análise. Nesta conformidade, conclui-se que a sentença apelada é nula, por excesso de pronúncia, devendo ser anulada e que, na impossibilidade de este Tribunal se substituir ao Tribunal a quo, nos termos previstos no artigo 665º do Código de Processo Civil, devem os autos ser remetidos ao Tribunal a quo, a fim de reabrir a audiência para a realização de cibernavegação, com observância das normas aplicáveis, nomeadamente o disposto nos artigos 415º, 491º e 493º do Código de Processo Civil. Atento o exposto no ponto que antecede, fica prejudicada a apreciação da impugnação da decisão sobre matéria de facto, e do mérito da causa - artigo 608º, nº 2 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 663º, nº 2 do mesmo código.
Impõe-se, por isso, o provimento da apelação. * Sumariando, em jeito de síntese conclusiva: …………………………………………….. …………………………………………….. …………………………………………….. ……………………………………………..
5. Decisão Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar provido o recurso e, em consequência, anular a sentença proferida, devendo o tribunal a quo reabrir a audiência para a realização de cibernavegação, com observância das normas aplicáveis, nomeadamente o disposto nos artigos 415º, 491º e 493º do Código de Processo Civil. * Custas a cargo da apelada. * Notifique.
Porto, 24 de Outubro de 2024 Relator: Paulo Dias da Silva 1.º Adjunto: Paulo Duarte Teixeira 2.º Adjunto: Francisca Mota Vieira
(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem) ___________________________________ |