Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
618/22.0T8SJM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MIRANDA
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CAUSA DE PEDIR
FALTA
FACTOS ESSENCIAIS
Nº do Documento: RP20240710618/22.0T8SJM.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A ineptidão, por falta de causa de pedir, pressupõe uma omissão absoluta dos factos essenciais que suportam a tutela jurisdicional apresentada em juízo pelo autor, distinguindo-se da mera insuficiência do quadro factual, nomeadamente na hipótese de faltar a articulação de factos complementares ou concretizadores de algum aspecto relacionado com aqueles que integram o núcleo principal da causa petendi.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 618/22.0T8SJM.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda

Adjunta: Maria Eiró

Adjunto: João Proença


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Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO

AA e mulher BB intentaram contra o “Condomínio ...”, n.º ..., com sede na Avenida ..., ... São João da Madeira, representado por “A... Lda”, a presente acção de anulação de deliberação da assembleia de condóminos, realizada em 06 de Junho de 2022, do prédio sito no n.º ... da Avenida ..., em S. João da Madeira, que aprovou a realização de obras no edifício.

Para tanto, alegaram ser proprietários de duas fracções autónomas, designadas pelas letras D (comércio) e G (escritório) do edifício denominado ... afeto ao regime da propriedade horizontal, a primeira fração com entrada n.º ... da Avenida ..., em S. João da Madeira e a segunda fração com entrada nº ... da Rua ..., ... (composta apenas por frações residenciais), é administrada pela empresa “A... Lda, e o referido edifício é composto por várias entradas com os nºs ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., as quais têm administrações autónomas; foram convocados pelo Réu para uma assembleia ordinária de condomínio para o dia 20.07.2021, e, ao contrário do que é referido na acta, os Autores não votaram a favor da constituição do condomínio geral, nem da execução de obras no edifício, nem da forma de regulamentar os custos já despendidos e a despender na execução de obras no edifício. Pese embora a sua surdez, aperceberam-se que se falava em obras e manifestaram de imediato que só se pronunciariam acerca da eventual realização das obras após a análise de orçamentos e da forma como se pretenderá a comparticipação. Não assinaram a acta nem a declaração de subscrição que lhes foi remetida pelo Condomínio.

Com a acta, os Autores ficaram a perceber que participaram numa assembleia de condóminos, relativamente às frações residenciais, com entrada n.º ..., administrada pela Ré, sendo que, as frações dos Autores (de comercio e escritório com a entrada ... e ...) não fazem parte dessa entrada, não tendo estes, portanto, o estatuto de condómino para aquela assembleia. Como é o caso dos restantes condóminos do 1.º andar do edifício, com entrada pelo n.º ..., onde se situam várias frações destinadas a serviços (escritórios), cujos representantes nem sequer foram convocados, nem considerados.

Ao serem convocados, para a assembleia, foram os Autores induzidos em erro pela administração do condomínio, a qual notificava já anteriormente os Autores para pagar prestações de condomínio indevidas, sendo que algumas foram pagas pelos Autores convencidos que estavam a pagar ao condomínio correto.

Ademais uma obra, sendo relativa à fachada de todo o edifício, tinha de ser, também, aprovada por mais condóminos, ou seja, pela maioria dos condóminos do Edifício total, e não só pelas entradas ... e ..., que não representa essa maioria do edifício.

Como diziam respeito ao edifício na sua totalidade (obras na fachada, na cobertura, nas paredes, no terraço, etc), eram obras que não poderiam ser aprovadas apenas pelos presentes, os quais nem um quarto representava a totalidade do edifício.

Os Autores manifestaram-se que só se pronunciariam acerca da eventual realização das obras após a análise de orçamentos e da forma como se pretenderá a comparticipação mas nada disso ficou registado em Acta.


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No saneador foi julgada procedente a excepção de ineptidão da petição inicial.

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Inconformados com a decisão, os Autores interpuseram recurso finalizando com as seguintes

Conclusões

1. Os Recorrentes não podem conformar-se com o teor da decisão proferida pelo Tribunal a quo, a qual julgou “procedente a alegada ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir e em consequência verifica-se a nulidade de todo o processo, o que se declara”, pelo que vêm dela recorrer.

2. Isto porque, salvo melhor opinião, o Tribunal a quo não se encontrava em condições de proferir o despacho saneador nos termos em que o veio a fazer, o que levou o Tribunal a quo a fazer um errado enquadramento legal da situação que aqui nos traz, absolvendo, sem mais, o Réu do pedido, devendo outrossim ter prosseguido com os autos para julgamento, com vista ao real apuramento dos factos.

3. Deste modo, os Recorrentes encontram-se convictos de que Vossas Excelências, reapreciando a matéria de facto provada, e subsumindo-a nas normas legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue a acção totalmente procedente, por provada ou que, caso assim não se considere, que ordene a remessa dos autos para julgamento.

4. Atentemos: na presente acção, vieram os Autores, aqui Recorrentes, requerer a anulação, nos termos do disposto no n.º 1 e no n.º 4 do artigo 1433.º do Código Civil, da deliberação da assembleia de condóminos realizada em 06.06.2022, do prédio sito no n.º ... da Avenida ..., em São João da Madeira, que aprovou a realização de obras no edifício e a constituição de um condomínio geral.

5. Para tanto, os Recorrentes alegaram ser proprietários de duas fracções do edificio em causa, que foram convocados pelo Recorrido para a referida assembleia de 06.06.2022 e que, quando receberam a acta daquela assembleia em que estiveram presentes, aperceberam-se que as respectivas deliberações continham vários vícios, formais e substantivos (ou materiais), que insanavelmente atingem a sua validade e eficácia e que, por via disso, as tornam anuláveis, tendo, para o efeito, procedido à descrição destes vícios.

6. Senão vejamos: ao contrário do que é referido na acta em causa (junta como Doc. 4 na petição inicial), os Recorrentes não votaram a favor da constituição do condomínio geral, nem da execução de obras no edifício, nem da forma de regulamentar os custos já despendidos e a despender na execução de obras no edifício.

7. Na verdade, os Recorrentes, ao aperceberam-se que se falava na execução de obras, manifestaram de imediato que todos os condóminos presentes somente se deveriam pronunciar depois da análise de orçamentos apresentados e da forma como se pretenderia a comparticipação.

8. Isto porque os Recorrentes nunca pretenderam de todo impedir a realização de obras no edifício mas estão contra a deliberação tomada nos termos em que o foi e contra a execução das obras nos moldes propostos pela administradora do Condomínio, a qual pretende a realização de todas as obras de uma só e única vez, ao passo que os Recorrentes propuseram a realização de obras parceladas no tempo, estabelecendo-se as respectivas prioridades de obras e com orçamentos adaptados à medida das possibilidades dos condóminos.

9. Mas nada disso, incluindo as intervenções dos Recorrentes, ficou registado em acta, razão pela qual não assinaram a acta em causa, pois não poderiam assinar uma acta que dizia que votaram a favor de uma deliberação quando tal não é verdade!

10. Aliás, no artigo 60.º da contestação, o Recorrido confessa que a Recorrente BB “participou também novamente, tendo inclusive debatido todas as questões, para as quais tomou a palavra” mas, repita-se, em acta não consta qualquer menção a uma intervenção da mesma.

11. Pelo que é totalmente falso que tais deliberações tenham sido aprovadas por unanimidade.

12. Na verdade, o Recorrido, crendo que estes assinariam cegamente a acta sem lerem e confiando na palavra da administradora do Condomínio, deliberadamente mencionaram que aqueles votaram a favor das várias deliberações discutidas, o que é totalmente falso!!

13. Nesse seguimento, após receberem a acta, os Recorrentes solicitaram à Administração do condomínio, por carta datada de 15.06.2022, a rectificação da referida acta, bem como a cópia da notificação da Câmara Municipal ... que impunha um prazo para a realização das ditas obras, tendo o Recorrido, no dia 29.06.2022, apenas respondido aos Recorrentes que “não concorda com o teor da missiva apresentada” (cfr., respectivamente, o Doc. 6 e 7 juntos na petição inicial), não propondo qualquer alternativa compatível com as possibilidades económicas de muitos dos condóminos.

14. Ademais, nesta acção os Recorrentes chamaram à colação a circunstância de que, debruçando-se a ordem de trabalhos com a constituição de um condomínio geral e com a execução de obras no edifício, deveriam todos os condóminos, de todas as entradas, ser convocados para deliberar, sem a qual qualquer decisão tomada não é válida, pelo que aquela assembleia nunca poderia decidir unilateralmente a realização de obras por falta de legitimidade.

15. Tendo ainda sido invocado, naquela sede, que o capital representado na assembleia de condóminos presentes não representa a maioria de votos representativo, bem como que a constituição do condomínio geral e a execução das obras não poderiam ser aprovadas apenas pelos presentes, os quais nem representava um quarto da totalidade do edifício.

16. Mas mais: muito menos poderia uma deliberação desta natureza ser aprovada sem unanimidade, relembrando, a este propósito, que, contrariamente ao plasmado na acta, os Recorrentes não votaram a favor, nem assinaram a declaração de subscrição da acta, perdendo a mesma qualquer validade legal.

17. Por outro lado, a missiva da Câmara Municipal ..., que o Condomínio tem usado como justificação para fazer as obras no edifício, não é conclusiva porquanto não refere que obras devem ser realizadas (cfr. o Doc. 8 junto na petição inicial), a que acresce a circunstância de apenas ter competência para ordenar obras por razões de salubridade.

18. A este propósito, em momento posterior à instauração da presente acção, os Recorrentes consultaram o processo camarário que alegadamente ordenou a realização destas obras, tendo verificado que a vistoria em causa foi apenas efectuada e subscrita por uma única técnica, desconhecendo-se até se tinha competência e habilitação para tal, sendo certo que sozinha nunca o poderia fazer, conforme rege o n.º 1 do artigo 90.º do RJUE.

19. Ademais, esta notificação da Câmara Municipal a que respeita o ponto um da ordem de trabalhos é, a nosso ver, bastante duvidosa - dado que viola, nomeadamente, o disposto no n.º 1 do artigo 90.º e no n.º 2 do artigo 89.º do RJUE -, daqui resultando que a existência do processo camarário serviu apenas como meio de pressionar os condóminos a uma realização de obras que não se impunha como urgente, sobretudo nos moldes em que vieram a ser impostos pela administração do condomínio.

20. Dito isto, não obstante a invocação dos vícios de que padecem estas deliberações, invocadas ao abrigo do n.º 1 do artigo 1433.º do Código Civil, nada disto foi tido em consideração pelo Tribunal a quo. Muito pelo contrário, pois erroneamente referiu na sua decisão que “não foi efectivamente alegado pelos Autores de que forma é esta deliberação em si mesma contrária à lei ou a regulamentos” para daqui, também erroneamente, concluir que "não se sendo também arguida a falsidade da acta no pedido, então não poderiam os autores sequer requerer a anulação por terem aprovado a deliberação”.

21. Ora, a acta, conforme dispõe o n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de Outubro, configura um documento em que, por escrito, se relata, se descreve e se regista fielmente tudo o que se passa nas assembleias de condóminos, ou seja, que tem como finalidade reproduzir aquilo que ali se passou (veja-se, a titulo de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30.05.2016, proferido no âmbito do Proc. n.º 45/14.3TBVFR.P1).

22. Por conseguinte, não reproduzindo a acta fielmente o que sucedeu na assembleia de condomínios aqui em discussão, estamos perante uma clara violação da lei, violação esta que constitui fundamento do pedido de anulabilidade das deliberações, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 1433.º do Código Civil, pelo que, também nesta matéria, e salvo o devido respeito, não compreendemos a decisão proferida pelo Tribunal a quo.

23. Mais: foi nestes autos realizada uma Tentativa de Conciliação no dia 16.05.2023, em cuja acta consta que “a Mm.ª Juiz de Direito propôs uma solução às partes – irão tentar no prazo de quinze dias ver se é possível a sua concretização e findo tal prazo informarão os autos o resultado ou se necessário requererão a prorrogação do referido prazo.”

24. A referida solução passaria, assim, por tentar encontrar algum empreiteiro que tivesse disponibilidade para fazer as obras no edifício de forma parcelada, pelo que, com esse objectivo, os Recorrentes dirigiram, em vão, requerimentos aos autos no dia 22.06.2023 e 10.07.2023 (referências 45935172 e 46073181, respectivamente), sem que tais requerimentos tenham sequer sido considerados.

25. Impõe-se referir, com relevância para estes autos, que Mm.ª juiz a quo sabia, pois isso foi-lhe transmitido na tentativa de conciliação, que o condomínio estava a impor aos aqui Recorrentes um encargo mensal de quase €3.000,00, durante 14 meses consecutivos, dado que, não obstante as deliberações terem sido objecto de impugnação na presente acção, numa assembleia posterior, realizada no dia 13.10.2022, foi imposto aos Recorrentes o pagamento de €35.915,15 (fracção D) e de €6.391,68 (fracção G) em 14 prestações mensais e sucessivas, o que não vai de encontro aos critérios de razoabilidade que aqui deveriam vigorar.

26. Da mesma forma, foi também alegado na petição inicial que, se por mera hipótese não procedessem as invalidades invocadas, estaríamos na presença de uma clara situação típica de abuso de direito, o que, mais uma vez, também não foi considerado pelo Tribunal a quo na sua decisão.

27. Efectivamente, “é exactamente porque esses direitos têm esse mais elevado nível de protecção ética, institucional e legal (constitucional), que a sua violação constitui uma ofensa à ordem pública e aos bons costumes, logo, um abuso de direito” (cfr. o citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa).

28. Desta forma, parece-nos evidente que a acta deve reproduzir, com verdade e boa fé, tudo o que se passou na assembleia, pelo que, assim não sucedendo, estamos perante uma típica situação de abuso de direito e de má fé por parte de quem a redigiu: o condomínio.

29. Posto isto, voltando-nos para a figura da ineptidão da petição inicial prevista no n.º 2 do artigo 186.º do CPC, impõe-se referir que contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial, somente ocorre quando se verifique uma incompatibilidade formal entre o pedido e a causa de pedir reveladora de uma absoluta falta de nexo lógico, ou seja, quando o pedido e a causa de pedir se neguem reciprocamente.

30. Ademais, a incompatibilidade substancial de pedidos, geradora de ineptidão da petição inicial, verifica-se quando as pretensões se excluem mutuamente e sejam contrárias entre si de tal forma que uma impede o exercício da outra, levando a que o juiz se veja impossibilitado de decidir face à ininteligibilidade do pensamento dos Autores (cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31.10.2019, atinente ao Proc. n.º 4180/18.0T8BRG.G1).

31. Efectivamente, “A ineptidão da petição inicial existe quando ocorrer uma falta de exposição essencial da causa de pedir e não apenas mera deficiência ou lacuna de alegação” (cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.11.2019, proferido no âmbito do Proc. n.º 20935/18.3T8PRT.P1).

32. A figura da ineptidão da petição inicial implica que, por ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o processo careça, em bom rigor, de um objecto inteligível, o que não sucede no caso vertente.

33. Efectivamente, no caso vertente, e no que concerne à causa de pedir e ao pedido de anulação da deliberação, não existe qualquer oposição, contrariedade ou incompatibilidade substancial entre ambos, pelo que não estamos perante pedidos substancialmente incomparáveis e, por conseguinte, a petição inicial não é inepta.

34. Com efeito, e ainda que assim não se considerasse, sempre deveriam os Autores, aqui Recorrentes, serem convidados a aperfeiçoar a sua petição inicial, nos termos conjugados da alínea b) do n.º 2, do n.º 3 e do n.º 4 do artigo 590.º do CPC, o que o Tribunal a quo não fez.

35. Caso se afigurasse existir uma incompatibilidade substancial de pedidos, tal vício seria sanável, designadamente através de um convite dirigido aos Autores para que optassem por um dos pedidos ou que esclarecessem se os mesmos foram formulados em cumulação real, para serem todos eles atendidos em simultâneo (artigo 555.º do CPC), ou em cumulação alternativa (artigo 553.º do CPC) ou subsidiária (artigo 554.º do CPC) (neste sentido, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.09.2021, atinente ao Proc. n.º 4357/19.1T8LSB.L1-7), o que o Tribunal a quo também não fez.

36. Neste sentido, conforme decidido no referido acórdão, “Tal convite dirigido ao autor poderá constituir uma forma de retificar, de forma expedita, um simples lapso ou uma mera deficiência na formulação dos pedidos, cons0tuindo resposta adequada ao princípio da economia processual e ao da prevalência das decisões de mérito sobre as formais”.

37. Todavia, como é bom de ver, o Tribunal a quo em momento ou algum convidou os Recorrentes para clarificar ou corrigir o que quer que fosse.

38. Por fim, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo deveria ter aguardado a produção de prova a realizar nestes autos, mormente em julgamento, por forma a aferir os vícios de que padece a deliberação objecto de impugnação nesta acção.

39. Em bom rigor, face à prova produzida até então, o Tribunal a quo não se encontrava em condições de proferir o despacho saneador nos termos em que o veio a fazer, absolvendo, sem mais, os Réus do pedido, devendo outrossim ter prosseguido com os autos para julgamento, com vista ao real apuramento dos factos.

40. Por tudo quanto ficou exposto, é manifesto que deverá a decisão proferida pelo Tribunal a quo ser totalmente revogada e substituída por outra que julgue a acção totalmente procedente, por provada ou que, caso assim não se considere, que ordene a remessa dos autos para julgamento.


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O Réu respondeu concluindo que:

a) A douta sentença esteve bem ao aferir e decretar a alegada ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir e em consequência verifica-se a nulidade de todo o processo, o que se declara.

b) Verifica-se que da petição inicial não se olvida qualquer fundamentação e/ou facto que seja suscetível de gerar a anulabilidade da assembleia que os Recorrentes se propunham a impugnar, conforme pedido.

c)E, como tal, o recurso apresentado pelos Recorrentes não deve ter qualquer provimento e, consequentemente, deve a douta decisão recorrida ser totalmente confirmada.


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II—Delimitação do Objecto do Recurso

A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se a petição inicial é inepta.


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III—FUNDAMENTAÇÃO (dão-se por reproduzidos os actos acima descritos)

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IV-DIREITO

A única questão que nos cumpre reapreciar consiste em saber se a petição inicial é inepta por falta/contradição entre a causa de pedir e o pedido, como foi defendido pelo Réu e acolhido pelo tribunal.

Do quadro legal

Nos termos do artigo 1433º, n.º 1 do Código Civil, “as deliberações da assembleia contrárias à lei ou a regulamentos anteriores aprovados são anuláveis a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado.”

A petição é considerada inepta, segundo o art. 186º, n.º 2 do Código de Processo Civil:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

Como sabemos, o pedido e a causa de pedir delimitam o objecto do processo.

A causa de pedir caracteriza-se pelo conjunto de factos concretos essenciais alegados pelo autor na petição nos quais fundamenta a sua pretensão- cfr, art. 552.º, n.º 1, al. d) do C.P.Civil.

Mediante a formulação do pedido o autor dá a conhecer ao tribunal a tutela jurisdicional que pretende alcançar, aduzindo, com esse objectivo, a factualidade pertinente e necessária para esse efeito.

O pedido, que deverá ser concluir a narração dos factos (v. art. 552.º, n.º 1, al. e) do CPC) assume relevância, desde logo, por constituir um limite ao poder de conhecimento e de actuação do tribunal, o que decorre do princípio do dispositivo-v. art. 609.º, n.º 1 do CPC..

Nas palavras e A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[1]o pedido é o “meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor” e a causa de pedir “é o facto  concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido.”

Na decisão concluiu-se que “não existe qualquer fundamento fáctico que sustente a causa de pedir bem como o pedido” e que “existe uma clara contradição entre ambos”, pelo que estamos perante uma ineptidão com fundamento nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 186.º do CPC.

Nesta temática, importa salientar que não se pode confundir a ineptidão, que pressupõe uma omissão absoluta dos factos essenciais que suportam a pretensão apresentada em juízo pelo autor com a mera insuficiência do quadro factual, nomeadamente na hipótese de faltar a articulação de factos complementares ou concretizadores de algum aspecto relacionado com aqueles, sendo que, na primeira situação (ao contrário da segunda) estamos perante uma nulidade insanável e, por esse motivo, não é admissível um despacho de aperfeiçoamento.

Os Autores pretendem obter a anulação da deliberação, tomada em assembleia de condóminos, que decidiu a realização de obras no condomínio.

Para fundamentar a anulabilidade da deliberação, os Autores, em resumo, alegaram que não votaram favoravelmente a mencionada deliberação, ao contrário do que ficou a constar da respectiva acta, que não assinaram, e principalmente que essa deliberação carecia de ser aprovada pela maioria dos condóminos e não apenas pelos condóminos das entradas .../... simplesmente porque as obras afectam todo o edifício.

Acrescentaram, com interesse, que as fracções, de que são titulares, não pertencem às referidas entradas (de fracções residenciais) do edifício e sim a outras que têm uma administração autónoma, pelo que ocorreu erro na sua convocação para a assembleia de condóminos em causa.

Na sua perspectiva, ocorreu também falta de quórum da 1.ª convocatória, sendo que a segunda reunião não podia ter sido marcada para 15 minutos depois. Alegaram também que a deliberação baseou-se numa notificação dirigida pela Câmara Municipal mas o seu teor não concretiza se as obras são no exterior, sendo que, só nessa hipótese, a edilidade teria competência para exigir a realização das obras, o que configura uma nulidade e subsidiariamente invocaram o abuso do direito.

Em primeiro lugar, não se verifica qualquer cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis porquanto foi formulado apenas um único pedido; nem de causas de pedir já que a referência à verificação da nulidade da deliberação prende-se com a qualificação jurídica dos factos.

A causa de pedir, perante o alegado pelos Autores, está suficientemente descrita na petição.

Na verdade, como tivemos oportunidade de verificar, são vários os argumentos de natureza factual que os Autores invocaram para conseguirem o desiderato consistente na anulação de uma deliberação que decidiu executar obras no edifício.

Para além de outras alegadas circunstâncias, a deliberação foi tomada sem ter sido obtida a maioria de condóminos.  Colocam, neste ponto, a questão da existência de administrações separadas e autónomas das múltiplas entradas do condomínio, tendo apenas uma delas tomado uma decisão que afecta o edifício.

Questão diferente é a de saber se os fundamentos invocados pelos Autores, na hipótese de se provarem, determinam a nulidade/anulabilidade da deliberação tomada pela assembleia de condóminos, o que contende com o mérito da acção e não com a ocorrência de uma nulidade processual insanável.

Nestes termos, consideramos que a acção pode e deve prosseguir para apreciação do mérito, procedendo, por isso, o recurso.


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V-DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, e em consequência, revogam a decisão, devendo a acção prosseguir os regulares trâmites.

Custas pelo Recorrido.

Notifique.


Porto, 10/7/2024
Anabela Miranda
Maria Eiró
João Proença
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[1] Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág.245.