Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1883/22.9JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: CRIME DE HOMICÍDIO
TENTATIVA
DOLO EVENTUAL
Nº do Documento: RP202307051883/22.9JAPRT.P1
Data do Acordão: 07/05/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Relevante para o preenchimento do crime de homicídio, na forma tentada, é que a morte não ocorra por razões alheias à vontade da arguida - como efetivamente sucedeu nos presentes autos-, sendo inócuo que, no caso em apreço, o ofendido não tenha estado em perigo de vida.
II – No caso vertente, foi a assistência médica (designadamente intervenções cirúrgicas) prestado ao ofendido que evitou a sua morte, pois que as lesões que lhe foram infligidas pela arguida eram adequadas a causar esse resultado.
III - Á luz das regras da experiência comum é inequívoco que a arguida conhecia a perigosidade do instrumento com que se muniu e da sua adequabilidade para causar lesões e inclusive tirar a vida; sabia a curta distância que a separava do ofendido; sabia que o golpe que desferisse a essa distância, pelo comprimento da lâmina, poderia ter profundidade.
IV – Não são incompatíveis a tentativa e a atuação com dolo eventual
V - Os factos objetivos provados em conjunto com a atuação da arguida (que exteriorizou a vontade de matar executando atos claramente compatíveis com uma previsão de morte com conformação – note-se que o dolo comprovado foi um dolo eventual) configuram tentativa de homicídio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1883/22.9JAPRT.P1

Relator: Paulo Emanuel Teixeira Abreu Costa
Adjuntos: Maria Luísa Arantes
Pedro Vaz Pato




Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Coletivo, a correr termos no Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira-J2, Comarca de Aveiro, foi proferido acórdão no qual se decidiu:
Face ao exposto, acordam os juízes que compõem este tribunal coletivo em julgar a acusação parcialmente procedente e, consequentemente, em:
a) Absolver a arguida AA, com os demais sinais dos autos, da acusação pela prática de 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p, pelos artigos 131º e 132º, n.º 1 e n.º 2, als. b) e i), 22º e 23º, todos do Código Penal.
b) Condenar a arguida AA pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, agravado, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) n.º 2, al. a) e n.º 4 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, determinando-se todavia, nos termos do 43º do C. Penal e art. 1º, al. b) da Lei n.º 33/2010 de 02/09, que o remanescente da pena de prisão imposta à arguida, ora referida, seja executado em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância - a cumprir na morada indicada na respetiva identificação - com sujeição às seguintes regras de conduta:
i) de se submeter, empenhadamente, a tratamento psiquiátrico e/ou psicológico adequados;
ii) não residir na mesma habitação que o ofendido BB, nem pernoitar na mesma habitação que ele.

b.1) - Autoriza-se, de modo genérico, a arguida a ausentar-se do local da vigilância eletrónica para comparência: - em consultas médicas e em tratamentos de saúde de que justificadamente careça; - em atos e diligências processuais, perante autoridade judiciária ou entidade policial, para que seja devidamente convocada; - em sessões do programa específico de prevenção de violência doméstica, infra aludido em c).
b.2) Autoriza-se, de modo genérico, a arguida a ausentar-se do local da vigilância eletrónica para o exercício de atividade profissional, devidamente formalizada, que venha eventualmente a obter e que o tribunal venha previamente a considerar compatível com a execução da pena e com as finalidades desta.
c) Condenar a arguida AA na pena acessória de obrigação de frequência de programa específico de prevenção de violência doméstica (art. 152º, n.º 4 do Código Penal).
*
Custas (criminais) a cargo da arguida AA, fixando-se a taxa de justiça individual em 3 UC (arts. 374º, nº 4, 513º, 514º, n.º 1 e 524º, todos do Código de Processo Penal, em conjugação com os arts. 1º, n.º 1, 3º, n.º 1 e art. 8º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa a este diploma), sem prejuízo, todavia, do eventual benefício do apoio judiciário.”

Inconformado, o M.P. interpôs recurso, invocando as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
“1º
A prova produzida em sede de audiência de julgamento é a bastante para condenar a arguida AA pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º n.º 1 e n.º 2, als. b) e i), 22º e 23º, todos do Código Penal

O tipo legal de crime de homicídio visa proteger o bem vida.

A arguida AA quis atentar contra a vida do ofendido e só não conseguiu atingir os seus intentos por motivos alheios à sua vontade.

Ao espetar a faca na zona Abdominal do ofendido, a arguida AA agiu de forma fria e calculista.

A arguida AA atentou contra a vida do ofendido agindo com dolo direto e intenso.

Em momento algum a arguida AA desistiu do seu desígnio criminoso.

O ofendido BB apenas não perdeu a vida por motivo alheio à vontade da arguida AA.

O tribunal “a quo” errou na subsunção dos factos apurados, integrando-os na previsão de
uma norma (crime de violência doméstica, agravado, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, al. b)
n.º 2, al. a) e n.º 4 do Código Penal) que ela não comporta.

O facto de a vítima ter, ou não, concretamente corrido perigo de vida não releva para determinar a intencionalidade do agente.

O tribunal “a quo” violou o disposto nos arts. 152º, n.º 1, al. b) n.º 2, al. a) e n.º 4, 131º, 132º, n.º 1 e n.º 2, als. b) e i), 22º e 23º, todos do Código Penal e 127 do Cód. Proc. Penal.
Nestes termos, entende-se ser de dar provimento ao recurso e, em consequência, condenar a arguida AA pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p, pelos artigos 131º e 132º, n.º 1 e n.º 2, als. b) e i), 22º e 23º, todos do Código Penal e determinar o reenvio do processo à 1.ª instância para que, em obediência com o decidido, o tribunal “a quo” aplique uma pena à arguida em conformidade com os critérios plasmados nos artigos 40º e 71º do Código Penal.
Assim decidindo, farão os Excelentíssimos Senhores Desembargadores Inteira e Sã Justiça”

A arguida respondeu ao recurso, concluindo.
“CONCLUSÕES
A. O acórdão recorrido não padece de nenhum vício de conhecimento oficioso, nem da apontada errada subsunção dos factos ao direito como sindica o recorrente.
B. O tribunal “a quo” julgou correctamente quer os factos que deu como provados quer os que considerou não provados e, bem assim, efectuou correcta subsunção dos factos ao direito.
C. A conduta encetada pela arguida não tinha como desiderato matar o ofendido, nem se poderia dar como provado em face da prova produzida e dos relatórios médicos periciais constantes de folhas 253 e 254 e 357 dos autos que a lesão infligida fosse apta a causar a morte ou que o ofendido tivesse estado em perigo de vida ou que a arguida tivesse praticado actos de execução de crime de homicídio que decidiu cometer.
D. Na concepção do recorrente qualquer acto seria sempre em abstrato e no extremo apto a causar a morte – fosse um murro, um pontapé, um empurrão ou até um susto, uma omissão ou uma recomendação para a toma de uma vacina...
E. O tribunal a quo procedeu ao julgamento dos factos provados e não provados em obediência aos princípios a que se encontra adstrito respeitando as regras da experiência comum, da livre apreciação da prova, da imediação e a consideração pela prova pericial coligida.
F. O recorrente parece desconsiderar o circunstancialismo fáctico em que ocorreu a agressão, isto é, espontânea, irreflectida e o espaço envolvente (a existência do objecto utilizado naquele lugar) sem qualquer premeditação ou planeamento.
G. O enquadramento jurídico dos factos é, pois, correcto com o dever ser processual não tendo incorrido o tribunal “a quo” em erro de julgamento na vertente da errada subsunção jurídica dos factos ao direito.
TERMOS EM QUE, DEVERÁ O RECURSO APRESENTADO SER JULGADO NÃO PROCEDENTE MANTENDO-SE NA ÍNTEGRA O ACÓRDÃO PROFERIDO.”
*

Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer onde acolhendo e acrescentando a posição do M.P. a quo no recurso, pugnou igualmente pela respetiva procedência.
*
É do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados, respetiva motivação e medida da pena constantes da decisão recorrida (transcrição):
« 2.1 – De Facto
1. A arguida AA encetou uma relação de namoro com o ofendido BB em data não concretamente apurada, mas situada em data próxima de janeiro de 2012, sem coabitação.
2. Tal relação de namoro foi intermitente, sendo que, pelo menos desde outubro de 2021, a arguida e o ofendido dividiam teto, mesa e cama, residindo ambos na Rua ..., em ..., inexistindo filhos comuns.
3. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde dezembro de 2021, o casal vinha discutindo, designadamente por questões monetárias.
4. No dia 02.12.2021, data de aniversário do ofendido BB, em circunstâncias não concretamente apuradas, a arguida e o referido ofendido encetaram uma discussão motivada por questões financeiras e, nesse contexto, ela abeirou-se dele e arranhou-o.
5. Em data não concretamente apurada, mas situada no mês de março de 2022, a arguida e o ofendido BB discutiram, também por questões relacionadas com dinheiro, tendo aquela, por essa altura, ingerido diversa medicação, alegando pretender suicidar-se.
6. A arguida não trabalhava, vivia sobretudo dos rendimentos do ofendido, que lhe ia entregando quantias de dinheiro para os gastos dela e da casa.
7. No dia 15 de abril de 2022, cerca das 22 horas, no interior da residência do casal, a arguida AA e o ofendido BB jantaram e foram para a sala ver televisão.
8. Nessa altura, a arguida pediu dinheiro ao ofendido, dizendo que pretendia comprar umas alianças, tendo-se este negado a entregar-lhe qualquer quantia pecuniária para o efeito.
9. Descontente com a resposta do ofendido, a arguida encetou uma discussão com ele, no decurso da qual lhe disse que ia embora de casa, tendo-se depois dirigido ao quarto de dormir, trocado de roupa e saído da habitação.
10. Não obstante, decorridos 10 minutos, a arguida voltou à habitação comum, tendo-lhe o ofendido aberto a porta.
11. Nessa altura, ela disse ao ofendido que se esquecera da sua medicação habitual para a depressão e que a vinha buscar.
12. De seguida, dirigiu-se à cozinha e retirou do frigorífico cinco garrafas de vinho branco, colocando pelo menos duas no interior de um saco, assim como a medicação.
13. Presenciando o descrito, temendo que a arguida ingerisse conjuntamente vinho e medicação com vista a colocar a sua vida em perigo, o ofendido retirou o saco com as garrafas à arguida.
14. Dirigiu-se, então, para junto do frigorífico com vista a ali voltar a colocar as garrafas.
15. Nessa altura, aborrecida com a situação, a arguida dirigiu-se a um guarda-facas que se encontrava junto do fogão, em cima da bancada, e dali retirou uma faca (de cozinha) de um só gume, de cor preta, com 32 centímetros de comprimento total, sendo 21 cm de lâmina e 2,7 cm de largura máxima, decidida a atingir o ofendido na sua integridade física.
16. Após, a arguida abeirou-se do ofendido e, munida da referida faca, espetou-lha na zona abdominal, na região do flanco esquerdo, perfurando-a.
17. Nessa altura, o ofendido deixou cair no solo as garrafas de vinho que tinha nas mãos, que se partiram no chão.
18. A arguida espetou a faca no corpo do ofendido de forma totalmente inesperada, o qual, por se encontrar de costas e com as mãos ocupadas com as garrafas, não teve possibilidade de se defender ou reagir ao comportamento daquela.
19. Após espetar a faca no corpo do ofendido, ausentou-se desse local para parte incerta, sem levar consigo qualquer medicação e sem prestar auxílio ao ofendido BB.
20. O ofendido BB retirou a faca da zona corporal atingida e pousou-a, ensanguentada, em cima da placa do fogão da cozinha. 21. Mercê da atuação da arguida, o ofendido sofreu evisceração do intestino delgado e sangramento abundante.
22. Aflito, o ofendido, ao vislumbrar as suas vísceras no exterior do corpo, colocou as mãos na barriga.
23. Em aflição, deslocou-se até à porta de entrada do apartamento dos seus vizinhos CC e DD, residentes no mesmo andar, no 1º Esquerdo.
24. O ofendido tocou insistentemente à campainha dos vizinhos e, depois destes terem aberto a porta de casa, pediu-lhes auxílio, dizendo que tinha sido esfaqueado pela arguida, apodando-a de “maluca”.
25. De imediato, o CC amparou o ofendido BB até ao interior da residência deste, levando-o para a casa de banho, onde agarrou numas toalhas, voltando depois para o hall de entrada, onde o ofendido ficou deitado no chão, em cima de um tapete.
26. Nessa altura, o CC, que tinha conhecimentos de socorrismo por ter sido bombeiro voluntário e técnico do INEM, retirou as vestes do ofendido, e como este apresentava hemorragia ativa e evisceração no quadrante inferior esquerdo do abdómen, utilizou diversas toalhas com vista a estancar a hemorragia.
27. Enquanto isto, a DD efetuou chamada telefónica para o 112, solicitando auxílio médico urgente, isto pelas 22h21m.
28. O CC questionou o ofendido sobre o que tinha acontecido, tendo-lhe este dito que a arguida estava “maluca”, não dizendo mais.
29. Acontece que, após sair da residência comum, a arguida, pelas 22h19, a arguida telefonou para EE, ex-mulher do ofendido, através do nº. ...75, dizendo-lhe que “tinha magoado o BB” e “lhe espetado uma faca”, pedindo-lhe para ela chamar uma ambulância e ir a casa dele, desligando de seguida a chamada.
30. De imediato, a EE dirigiu-se à habitação do ofendido, tendo-o encontrado nas circunstâncias descritas em 25º.
31. Por essa altura, acorreram ao local os bombeiros e autoridades policiais (GNR de Santa Maria de Lamas), tendo aqueles transportado o ofendido ao Hospital 1... em .... A Polícia Judiciária, mais tarde, já depois da meia-noite deslocou-se também à residência do ofendido e da arguida.
32. O ofendido deu entrada no estabelecimento hospitalar pelas 23h10m, tendo sido admitido na sala de emergência com trauma abdominal por arma branca, com evisceração de ansas do delgado e laceração do mesentério, tendo sido de imediato encaminhado para cirurgia urgente – laparotomia exploradora, hemóstase de vaso sangrante do mesentério e encerramento de ferida da parede abdominal.
33. O ofendido foi posteriormente sujeito a uma segunda laparotomia exploratória, constatando-se a presença de perfuração do terço médio do cólon transverso com cerca de 1 cm, com peritonite.
34. O ofendido esteve internado no Hospital 1... cerca de duas semanas, em recuperação operatória, padecendo de dores, pontualmente agudas, mas que foram sendo controladas, com êxito, através de medicação.
35. Mercê do comportamento da arguida, o ofendido apresenta atualmente as seguintes lesões e sequelas:
- No abdómen: cicatriz nacarada e horizontal, linear, situada no quadrante inferior esquerdo, com 9 cm de comprimento, com hiperestesia à palpação. Cicatriz nacarada e vertical, linear, situada abaixo da região umbilical, com 7 cm de comprimento, com várias cicatrizes nacaradas e perpendiculares a esta, com 2 cm de comprimento cada, com hiperestesia à palpação. Abdómen ligeiramente distendido mas sem dor à palpação.
36. Tais lesões determinaram para o ofendido 30 dias para a consolidação médico-legal, todos com afetação da capacidade de trabalho.
37. As cicatrizes que o ofendido agora apresenta são causa de desfiguração permanente.
38. A arguida ao praticar os factos supra descritos, sabia da perigosidade da sua conduta, tendo atuado ciente de que poderia provocar a morte do ofendido, mas nem por isso se inibiu de atuar como atuou, movida por desejo de vingança e desagradada por ter sido contrariada.
39. Agiu a arguida de modo deliberado, voluntário e consciente, com o propósito de atingir a integridade física do ofendido com a suprarreferida faca, depois de ele não a deixar levar as garrafas de vinho, contrariando-a.
40. A arguida atuou ciente das possíveis consequências da sua conduta, para a integridade física e para a vida do ofendido, pois que lhe espetou a faca em região da fisionomia humana sensível, onde se situam o fígado, baço, estômago e cólon, provocando no mesmo, com a sua conduta, entre as mais lesões, perfuração do cólon, com peritonite.
41. A arguida agiu aproveitando-se do facto de o ofendido, mercê de estar de costas para si e com as mãos ocupadas, não se ter apercebido do seu propósito e não se conseguir defender ou reagir por qualquer meio.
42. A arguida agiu sempre de modo voluntário, livre e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade das suas condutas. 43. A arguida sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
*
44. A arguida AA é natural de ... e o seu processo desenvolvimental decorreu no seio do agregado familiar de origem, constituído pelos pais e por uma fratria de 5 irmãos, atualmente com idades entre os 33 e 44 anos de idade, sendo a arguida a descendente mais velha.
45. Aos fins de semana integrava o agregado dos avós maternos, denotando proximidade afetiva aos mesmos, mantendo uma relação afetiva privilegiada com a avó materna até ao presente.
46. Há cerca de 33 anos, o agregado de origem fixou residência em .... Esse agregado familiar projeta uma imagem social positiva, não havendo conhecimento do envolvimento de outros familiares com o sistema de Justiça Penal.
47. O núcleo familiar residia, então, num apartamento, propriedade da família, de tipologia 4.
48. Beneficiava de situação económica favorável, decorrente do enquadramento profissional regular do pai, sendo a família materna abastada. A mãe era doméstica, dedicando o seu tempo aos cuidados e rotinas dos descendentes.
49. Junto do agregado de origem e dos avós maternos, as dinâmicas relacionais eram positivas e afetivamente gratificantes, gerando na arguida a recordação de uma “infância feliz” (sic).
50. A arguida AA beneficiou de uma educação de acordo com os valores sociais vigentes, com imposição de regras, horários e níveis de supervisão ajustados. O pai era visto por ela como a figura de autoridade e a mãe vista como tendencialmente mais permissiva.
51. A arguida AA frequentou o infantário e ingressou no sistema de ensino em idade regular.
52. Teve percurso escolar ajustado, embora com registo de uma retenção no 8º ano de escolaridade, por falta de aproveitamento, mas sem registo de problemas comportamentais.
53. Durante a frequência do 11º ano de escolaridade, a arguida AA engravidou, aos 16 anos de idade, fruto de uma relação de namoro com um colega de escola, um ano mais velho.
54. O conhecimento da gravidez provocou uma reação de choque na própria e nos pais, não obstante estes se terem disponibilizado para lhe prestar apoio.
55. A arguida AA abandonou a escola quando a gravidez começou a ser notória, não tendo concluído o 11º ano de escolaridade.
56. Manteve a relação de namoro com o pai da primeira descendente, FF, nascida em .../.../1996, passando a residir com ele num apartamento arrendado quando a filha tinha cerca de um ano de idade, mantendo o apoio financeiro da família.
57. O relacionamento terminou ao fim de sensivelmente 2 anos de coabitação, por mútuo acordo, devido à imaturidade de ambos.
58. Após a separação, a arguida reintegrou o agregado familiar de origem com a filha, a qual manteve contactos com o progenitor aos fins-de-semana.
59. Em termos profissionais, a arguida AA entrou no mercado de trabalho por volta dos 20/21 anos de idade, numa loja de vestuário infantil, onde permaneceu durante cerca de 3/4 anos com vínculo laboral.
60. Entretanto demitiu-se, devido à oportunidade de trabalhar na ... como monitora, o que fez cerca de um ano.
61. Posteriormente, desempenhou, foi monitora no ... durante cerca de ano e meio, emprego do qual se despediu, alegando insatisfação e a distância entre o trabalho e o domicílio.
62. Em meados de 2000/2001, estabeleceu novo relacionamento afetivo, com GG, com quem se casou em .../.../2003. Dessa união, nasceram dois filhos, em .../.../2002 e .../.../2004.
63. O casal fixou inicialmente residência num apartamento arrendado em ..., e após o nascimento do primeiro filho em comum adquiriram um apartamento, de tipologia 3, em ....
64. A subsistência do agregado familiar era assegurada pelos rendimentos provenientes da atividade profissional do cônjuge, como gerente de um restaurante.
65. Durante o casamento, a arguida AA não esteve profissionalmente ativa, dedicando-se às rotinas e cuidados dos filhos, mas confecionava sobremesas para o restaurante do cônjuge.
66. A descendente mais velha alternava entre o agregado materno e o agregado dos avós maternos.
67. A arguida AA caracteriza a relação conjugal como positiva, mas, na sua perspetiva, terá sofrido degradação por motivos de interferência do sogro, pela preferência do cônjuge por momentos de lazer com os amigos no horário noturno e pela ausência de participação deste nas atividades e rotinas dos filhos, culminando no divórcio, que veio a ser decretado por sentença transitada em 24/09/2012. A arguida, aduz, ainda a instalação da rotina na relação.
68. O ex-cônjuge caracteriza a relação conjugal como positiva, considerando que o divórcio se deveu ao afastamento de ambos, motivado pelo tempo que ele passava no trabalho em detrimento do seio familiar, não sendo uma figura muito presente, enquanto a arguida se centrava nos cuidados/rotinas dos filhos. O ex-cônjuge encara o envolvimento da arguida no presente processo com surpresa.
69. Após a rutura relacional, a arguida AA passou a residir numa habitação em ..., propriedade da avó materna.
70. O processo de divórcio decorreu de forma amigável, tendo sido acordada guarda partilhada dos filhos, com regime de alternância semanal. Este regime manteve-se até estes terem cerca de 15/16 anos de idade, quando tomaram a decisão de fixar residência com o progenitor, decisão que não teve a oposição da arguida, justificando essa posição com a localização da residência do ex-cônjuge (em ...) e a proximidade da mesma com o enquadramento escolar e social dos filhos.
71. Manteve-se inativa profissionalmente até janeiro de 2016, quando começou a trabalhar numa loja de roupa infantil, tendo sido despedida em maio seguinte, devido a incompatibilidade com a patroa.
72. Após um período em que beneficiou do subsídio de desemprego, trabalhou em mais duas lojas na mesma área de atividade, tendo estado desempregada aproximadamente pelo período de 1 ano e 2 meses até ficar em prisão preventiva.
73. Conheceu o ofendido, BB (atualmente com 59 anos de idade) em 2012, tendo a relação de amizade evoluído para uma relação de namoro, com períodos de rutura e de reconciliação. Após um período de duração não concretamente apurado, mas entre um e dois anos sensivelmente, iniciaram coabitação na residência da arguida em ..., sendo o pagamento das despesas fixas assegurado pela avó materna dela, uma vez que se encontrava desempregada.
74. Ao fim de dois anos e meio, deu-se a primeira rutura, cuja responsabilidade a arguida atribuiu a ambos, por não estarem preparados para a manutenção de um relacionamento afetivo, queixando-se ainda da parca contribuição do ofendido para a economia doméstica e de que este, devido à atividade profissional que desenvolvia em stand de automóveis, se deslocava várias vezes para a Alemanha, suspeitando que lhe omitia os ganhos reais que auferia.
75. Em meados de 2014/2015, a arguida arrendou um apartamento em ... e, em data concretamente não apurado, retomou relação afetiva com coabitação com o arguido. O pagamento da renda da habitação, segundo a arguida, era assegurado pela avó, comparticipando o ofendido mais na economia doméstica.
76. Em finais de 2017, o casal voltou a separar-se na sequência de divergências relacionadas com o filho mais novo do ofendido.
77. Retomaram o contacto em meados de setembro de 2020, data a partir da qual a arguida passou a permanecer em casa do ofendido em ... aos fins-de-semana.
78. Nesse período, teve de entregar o apartamento ao senhorio, por razões externas, e regressou ao agregado dos pais.
79. Pelo menos em outubro de 2021, a arguida e o ofendido voltaram a residir juntos, em apartamento arrendado, de tipologia 1, inserido numa zona residencial sem especial incidência de problemáticas sociais e/ou criminais.
80. A arguida AA considerava “boa” a relação afetiva com o ofendido, avaliando a última reconciliação como a mais positiva. O ofendido considerava a relação “saudável”.
81. No entanto, o casal tinha discussões por questões fúteis e devido a dinheiro e a ciúmes de ambos.
82. A ofendida sentia necessidade de ser mais valorizada e estimada pelo ofendido, assumindo sempre ter sido pessoa “carente” e “mimada”.
83. Ocorreu um episódio de agressão mútua em janeiro de 2022, que levou a contacto telefónico para a linha de emergência 112, à qual a arguida não deu seguimento, situação que desvalorizou e minimizou.
84. A alegada tentativa de suicídio da arguida, em março de 2022, é perspetivada pela própria como uma “chamada de atenção”, tendo pretendido “magoar” o ofendido. O ofendido percecionou essa conduta como apelativa, tendo adotado postura de distanciamento e desvalorização.
85. Por iniciativa própria, o ofendido diligenciou por visitar a arguida no Estabelecimento Prisional, tendo-se reconciliado.
86. Não manifesta insegurança ou receio face à arguida, tendo perdoado a conduta agressiva de que foi vítima.
87. A respeito da necessidade de mudança ao nível da relação, apontou pretender maior estabilidade financeira.
88. As despesas fixas do casal estavam relacionadas com a habitação, designadamente a renda, o fornecimento de eletricidade e de água e o serviço de televisão por cabo, perfazendo um gasto mensal de cerca de 408 euros, cujo pagamento era assegurado pelo ofendido.
89. À época, o ofendido encontrava-se a trabalhar como motorista de pesados de mercadorias.
90. A arguida, segundo a própria, comparticipava na alimentação, com o produto da venda de bens pessoais (vestuário e acessórios), mantendo também apoio financeiro por parte da avó.
91. Ambos avaliam a situação económica do casal como suficiente, embora o ofendido vinque a necessidade de uma gestão contida dos recursos.
92. Atualmente, o ofendido recebe subsídio de desemprego, de cerca de 507 euros mensais, ao qual acresce o produto dos trabalhos pontuais, que executa na área de importação de veículos automóveis, cujo valor referiu ser variável.
93. Anteriormente à reclusão, a arguida mantinha-se desempregada e sem atividade estruturada, gostando de conviver com a sobrinha ou com os pais em casa destes.
94. Devido à sua atividade profissional, o arguido encontrava-se ausente do domicílio durante a semana.
95. A arguida tinha previsto iniciar, em 02/05/2022, uma formação pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional de Vila Nova de Gaia, na área de técnica administrativa, em modalidade online e presencial, que lhe conferiria a equivalência ao 12º ano de escolaridade.
96. No campo da saúde, a arguida foi diagnosticada em 2018 com síndrome de Ménière, sendo acompanhada semestralmente com toma de medicação diária, sendo a última crise reportada a 2020.
97. A arguida afirma ter acompanhamento psiquiátrico no Hospital 2 ..., devido a ansiedade e depressão, reportando o início do mesmo pelo menos a meados de 2010, na sequência de crises de ansiedade e ataques de pânico, após o processo de divórcio. Afirma abandono desse acompanhamento, sem alta clínica, há cerca de 4/5 anos, alegando melhoria da sintomatologia e dificuldade no processo de marcação de consulta médica, mantendo a medicação prescrita por médico privado, Dr. HH, até à data de reclusão.
98. Os pais, o ofendido e a filha da arguida têm conhecimento desse acompanhamento psiquiátrico, mas têm pouca informação sobre o mesmo.
99. O acompanhamento pelo referido médico particular era irregular, recorrendo a arguida ao seu apoio quando necessitava de prescrição médica ou quando apresentava queixas de natureza física, não obstante aquele conhecer a arguida desde criança. O referido médico considera que a arguida não é pessoa “estruturalmente agressiva”.
100. Não há notícia de que a arguida consumisse estupefacientes, fazendo um consumo social de bebidas alcoólicas, não abusivo.
101. A arguida está em prisão preventiva desde 20/04/2022, no Estabelecimento Prisional ..., onde se encontra na atualidade.
102. Em meio prisional tem adotado um padrão comportamental adequado ao normativo, não registando nenhuma medida disciplinar, mantendo uma relação adequada com os pares e com os funcionários.
103. Está integrada em atividade profissional desde 06/06/2022, nas oficinas de produção de sacos para cadáveres, mostrando-se satisfeita por lhe proporcionar uma ocupação.
104. Em termos clínicos, beneficia de acompanhamento psiquiátrico e psicológico desde a admissão no estabelecimento prisional, cumprindo adequadamente a terapêutica psicofarmacológica.
105. A arguida apresenta síndrome depressivo reativo e perturbação da ansiedade, mantendo nos serviços clínicos e com os profissionais de saúde comportamento adequado e postura cordata.
106. Não tem evidenciado, em meio prisional, intenção autolesiva.
107. Tem beneficiado de suporte familiar, recebendo visitas semanais da família, nomeadamente da mãe, irmãos e filha, de uma amiga e do ofendido, que gerem entre si o horário das visitas.
108. A arguida não pretende receber visitas dos filhos mais novos como forma de os proteger, embora mantenha contactos telefónicos regulares com os mesmos, com a mãe, os filhos e o ofendido BB.
109. O presente processo constitui o primeiro confronto da arguida com o sistema de administração da Justiça Penal.
110. A atual situação jurídico-penal é vivida por ela com constrangimento e ansiedade, causando consternação e preocupação no seio familiar.
111. Embora os familiares lhe expressem apoio, houve impacto negativo ao nível da relação com o pai, que se recusa a visitá-la, não obstante afirmar disponibilidade para a apoiar.
112. A prisão preventiva da arguida é do desagrado do ofendido BB.
113. Em abstrato, a arguida reconhece a ilicitude de factos da natureza daqueles que são objeto dos presentes autos.
114. Os familiares mais próximos não associam a arguida a condutas agressivas, violentas ou impulsivas, dizendo-a meiga, simpática, calma e carinhosa e não conflituosa.
115. A família não coloca constrangimento à manutenção da relação afetiva entre a arguida e o ofendido.
116. No meio socio-residencial, a arguida não mantinha relação com os vizinhos.
117. A situação jurídico-penal de AA é conhecida no meio da residência, não se tendo verificado indicadores de reatividade generalizada face à sua presença.
118. No Posto Territorial da GNR de Santa Maria de Lamas, não há registo de outras ocorrências, para além daquela que deu origem ao presente processo.
119. No que concerne a projetos de vida, AA pretende retomar a coabitação com o ofendido BB, pretensão correspondida por aquele, e reestruturar o seu projeto de vida, passando pela integração profissional e pelo desempenho de um papel mais ativo na vida dos descendentes.
120. A arguida não evidencia traços de personalidade que possam indiciar psicopatia ou outra perturbação da personalidade ou uma personalidade com especial propensão para comportamentos agressivos/violentos de uma forma geral.
121. Não evidencia um padrão antissocial de vida, mas “apresenta traços de personalidade traduzidos na assunção de comportamentos caracterizados por ausência de remorsos ou de culpa, não acatamento de responsabilidade pelas suas ações, estilo de vida parasita, deficiente controlo comportamental, ausência de objetivos realistas, impulsividade e irresponsabilidade”.
122. “Denota permeabilidade com crenças legitimadoras de violência doméstica, da violência pela conduta da mulher, da violência com causas externas e pela preservação da privacidade familiar”.
123. A “falta de insight para reconhecer a existência de dinâmicas relacionais disfuncionais, que poderá traduzir-se na dificuldade de modificação de comportamento, as fragilidades emocionais, a dependência emocional e económica da arguida, no contexto da atual reconciliação e pretensão conjunta do casal de retomar a vida em comum, sem alteração ou reconhecimento da necessidade de intervenção ao nível da relação conjugal, inalterados os fatores desestabilizantes individuais e conjugais, constituem-se como vulnerabilidades significativas face às quais AA não dispõe de estratégias adaptativas de resolução, o que poderá impactar na eventual adoção de comportamentos de passagem ao ato, auto e heteroagressividade”.
124. Face à natureza dos factos objeto dos presentes, reconhece a sua ilicitude em abstrato. No entanto, tem propensão para se centrar nas consequências para si própria e para os seus familiares, evidenciando um parco juízo crítico, procurando minimizar a gravidade dos seus atos.
125. A arguida declarou, em audiência de julgamento, o seu arrependimento.
126. Não tem antecedentes criminais.
*
Da discussão da causa, não resultaram provados quaisquer outros factos, tendo designadamente resultado não provados os seguintes:
i. A arguida AA perfurou a barriga do ofendido com uma profundidade situada entre 10 e 15 cm, retirando de seguida a faca do corpo daquele.
ii. O ofendido correu risco de vida.
iii. Caso não tivesse sido prontamente socorrido teria perdido a vida.
iv. O ofendido BB apenas não perdeu a vida por motivo alheio à vontade da arguida.
v. A arguida agiu de forma fria e calculista.
*
Motivação:
No ordenamento processual penal vigente, são admissíveis os meios de prova que não forem proibidos por lei (art. 125º do Código de Processo Penal).
O que significa que não são só os meios tipificados, isto é, regulamentados por lei, que são admitidos, mas, diversamente, todos os que não forem proibidos, mesmo sendo atípicos.
Prevalece, porém, no âmbito probatório o princípio da legalidade, que enforma todo o nosso processo penal (art. 2º do Código de Processo Penal).3
3 A legalidade dos meios de prova, as regras da sua produção e as «proibições de prova», são condições de validade processual da prova e por isso, critérios da verdade material (J. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª ed., 1974, reimpressão, p. 197).
A prova deve ser apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (art. 127º do Código de Processo Penal).
A livre apreciação da prova comporta duas vertentes: por um lado, quem decide fá-lo de acordo com a sua íntima convicção em face do rol de provas apresentadas no processo, em especial na audiência de julgamento; por outro lado, essa convicção, objetivamente formada com apoio em regras técnicas e de experiência, não está sujeita, salvo em contados casos especialmente previstos, a critérios legais predeterminados do valor a atribuir às provas.4
4 Cfr. J. A. Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, 2ª ed., p. 428. Com efeito, “a força dos meios de prova não pode ser corretamente aferida a priori, com o carácter de generalidade próprio dos critérios legais, mas só o devem ser com especial atenção às circunstâncias do caso” (J. de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, policop., p. 137).
5 J. de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, policop., p. 140.
6 Cfr. J. de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, policop., p. 158. Afirma, ainda, este autor, na página 160, que só “estes princípios permitem o contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais concretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem, por último, uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso”.
A convicção do(s) juiz(es) deverá ser “uma convicção pessoal – até porque nela desempenha papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - mas, em todo o caso, também ela uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros”.5
A livre apreciação da prova pelo julgador deve ser vista de acordo com os princípios da oralidade e da imediação.
Oralidade, no sentido de “forma oral de atingir a decisão”. Imediação no sentido da “relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma perceção própria do material que haverá de ter como base a sua decisão”.6
«Na verdade, a convicção do Tribunal é formada, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos, perícias e outras provas constituídas, também, pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, “olhares de súplica” para alguns dos presentes, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.
Com efeito, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram».7
7 Ac. do TRL de 01/10/2008, disponível em http://www.dgsi.pt.
Uma nota, ainda, para vincar que o princípio da livre apreciação da prova encontra um desvio na prova pericial.
Com efeito, dispõe o art. 163.º do Código de Processo Penal que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador, o qual deve fundamentar a sua divergência sempre que a sua convicção divergir do juízo contido no parecer dos peritos.
A prova pericial, que «tem lugar quando a perceção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos» - art. 151º do Código de Processo, é portanto, via de regra, de apreciação vinculada.
Prosseguindo, acrescenta-se ainda que, para além da prova direta, a lei admite a comummente denominada prova indireta ou indiciária.
Com efeito, «a realidade das coisas nem sempre tem de ser direta e imediatamente percecionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adoção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial.
Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “as provas que não forem proibidas pela lei” (cf. art. 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art. 349.º do CC).
As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indireta, mediante o qual o julgador adquire a perceção de um facto diverso daquele que é objeto direto imediato de prova, sendo exatamente através deste que, uma vez determinado, usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objeto de prova)».
Para finalizar, refere-se que os autos e aditamentos, nomeadamente de notícia e de apreensão, bem como os relatórios, quando levantados ou exarados por autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal são meios de prova válidos quanto aos factos materiais neles narrados que tenham sido presenciados pelo(s) agente(s) autuante(s), apesar de deverem ser valorados de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (cf. artigos 169 º e 127º do CPP).
Entrando agora na apreciação do presente caso, a convicção do tribunal derivou, em primeira linha, das declarações da arguida AA em audiência de julgamento.
A arguida, contextualizando os acontecimentos e contados reparos, confessou, no essencial, a prática dos factos que lhe são irrogados na acusação, com a ressalva, porém, da intenção de matar o ofendido, seu companheiro. Nunca teve esse propósito, nem preparou nada com essa finalidade.
Esfaqueou o companheiro num ímpeto, dizendo não saber o que lhe passou pela cabeça. Pegou no objeto que tinha à mão. Queria apenas magoá-lo. Logo após, em pânico, saiu de casa. Não retirou a faca do corpo do ofendido.
Ligou, do carro, à ex-mulher dele, que se prontificou a ir ajudá-lo. Está arrependida. O ofendido já a perdoou. Pretende começar uma nova vida, doravante, disse.
As declarações da arguida foram, todavia, ponderadas, à luz de regras de experiência comum, com os depoimentos testemunhais de:
- BB, ofendido nestes autos; referiu-se aos factos em apreço, em termos consonantes, no essencial, com as declarações da arguida, tendo dito designadamente que foi ele que retirou a faca espetada em si pela arguida; referiu-se à ajuda, a seu pedido, dos vizinhos; disse que já perdoou à arguida, que ela tem a porta aberta e que não receia pela sua integridade física;
- CC, vizinho da arguida e do ofendido, que já foi técnico do INEM, tendo narrado como prestou cuidados de socorro ao ofendido, referindo-se aos ferimentos dele e ao modo como o assistiu, até chegarem os bombeiros e a VMER; o ofendido disse, nessa altura, que fora a companheira, ora arguida, que o esfaqueara;
- II, médico do Hospital 1..., que realizou uma cirurgia à pessoa do arguido; subscreveu, disse a testemunha, a nota de alta de fls. 253 e 254, onde que não houve risco de vida para ofendido; reiterou, em retrospetiva, essa afirmação, apesar de a avaliação inicial ao estado de saúde do ofendido, no hospital, fosse - então - a de que estaria em risco de vida; porém, analisando-se a posteriori a situação clínica do ofendido, verifica-se que o mesmo não enfrentou esse risco em concreto; mais disse, em abstrato, que uma agressão do tipo da perpetrada, na zona abdominal de uma pessoa, pode causar lesões aptas a provocar a morte.
Mais se ponderaram, conjugadamente, os seguintes relatórios periciais;
- Relatório de Exame Pericial, elaborado pelo LPC, à faca apreendida nos autos, junto a fls. 323 a 325 (foi detetado na lâmina o perfil de ADN de indivíduo do sexo masculino).
- Relatório de Clínica Forense, elaborado pelo G. M. L. e Forense de Entre o Douro e Vouga, á pessoa do ofendido BB, junto a fls. 357 e seguintes (nesse relatório, entre o mais, estão elencadas as sequelas que o ofendido apresenta, constando expressamente das conclusões do mesmo o seguinte: “O examinado manteve-se hemodinamicamente estável desde a entrada no Serviço de Urgência do Hospital 1... até à data de alta do internamento, não tendo sido necessário suporte transfusional ou amniérgico, entubação ou ventilação mecânica. Segundo a documentação clínica facultada, o examinado foi submetido a intervenção cirúrgica por laceração do mesentério (órgão abdominal), não se encontrando em momento algum com uma situação clínica de prognóstico reservado, não havendo critérios para a existência de um perigo em concreto para a vida” (sublinhado nosso) – cfr. art. 163.º do Código de Processo Penal.
- Relatório de exame Pericial do LPC, à faca e à camisola que o ofendido vestia, junto a cfr. fls. 457 a 459 (tendo-se concluído que a camisola apresentada dano, com características de ter sido causado por apunhalamento utilizando um instrumento com uma lâmina de um gume; não sendo possível estabelecer uma relação unívoca entre a faca e o dano, não se pode excluir que a faca tenha sido utilizada para produzir o dano).
- Relatório de perícia médico-legal de Psiquiatria á arguida, junto a fls. 469 a 472 (concluindo-se que a arguida, no momento dos factos em causa nestes autos, estava capaz de avaliar a ilicitude dos atos por si praticados e de se determinar de acordo com essa avaliação, sendo imputável).
Ainda se ponderaram, devidamente conjugados com os suprarreferidos meios de prova:
- Fichas de identificação civil da arguida e do ofendido, constantes de fls. 13 e 14;
- Relatório do CHEDV para a polícia, constante de fls. 15, onde consta, nomeadamente a hora de entrada do ofendido, transportado pelos bombeiros;
- Auto de apreensão, da face e de roupa do ofendido, constante de fls. 16;
- Exame ao local dos factos, feito pela PJ, com suporte fotográfico, junto a fls. 17 a 57;
- Certidão do auto de nascimento da arguida, junto a fls. 102 e 102 verso;
- Documentação clínica, relativa ao ofendido, junta a fls. 113 a 123, 131 a 135, 160 a 167v, 252 e 253 e 590 a 593 dos autos;
- Auto de notícia, elaborado pela GNR de S. M. de Lamas, junto a fls. 214 a 217, o qual releva unicamente quanto aos factos diretamente constatados pelo militar subscritor;
- Informação da Vodafone, junta a fls. 327 e seguinte, relativa ao número de telemóvel da arguida;
- Print da base de dados da Segurança Social, relativa á pessoa da arguida, junta a fls. 553;
- Faturas do CHEDV, relativas a cuidados de saúde prestados ao ofendido, juntas a fls. 587 e 588 e com a ref. elet. 13968721 de 06/01/2023;
- Relatório de perícia da personalidade à arguida, junto aos autos com a ref. elet. 13964441 de 05/01/2023 (que condensa também a informação relativa à situação familiar, sócio-profissional e económica da mesma);
- CRC com a ref. elet. 14044152, de 23/01/2023;
- Informação social da DGRSP, com a ref. elet. 14153223 de 13/02/2023;
Apreciando criticamente a prova, não há por que duvidar da factualidade confessada pela arguida, que fez a confissão de modo livre e espontâneo.
Pelo contrário, a confissão dos atos praticados coaduna-se com as demais provas produzidas e coligidas nos autos, nomeadamente os demais depoimentos testemunhais.
Da ponderação conjugada de todos os indicados meios de prova resulta, sem controvérsia, a factualidade objetiva dada como provada. Nomeadamente que foi o ofendido quem retirou a faca do seu corpo.
Das condutas da arguida adveio-nos a convicção de que, inequivocamente, quis atingir a integridade física do arguido.
Mas não foi, convenceu-se o tribunal, diretamente norteada pela deliberada intenção de atingir mortalmente o ofendido.
Agiu impetuosamente, sem premeditação ou reflexão prévia. Depois de espetar a faca no ofendido, de pronto se retirou do local, em pânico, disse, tendo de seguida telefonado à ex-mulher dele, para que o socorresse.
Contudo, a conduta de perfurar a zona abdominal com uma faca, fazendo um corte extenso, com perfuração suficiente para, retirada a faca, ocorrer evisceração, inculca a convicção, por apelo a regras de experiência, que a arguida não deixou de realizar que, ao assim proceder, poderia provocar a morte do ofendido, não tendo deixado de atuar - apesar de, como se disse, ter previsto essa possibilidade. Como não poderia deixar de prever, aliás, uma pessoa com a idade e o percurso de vida da arguida.
Posto isto, cumpre dizer que não consta dos elementos de prova dos autos que a arguida tenha perfurado a barriga do ofendido entre 10 a 15 cm (de profundidade). O que consta, que é coisa diferente, é que a ferida no abdómen tinha cerca de 10 cm (cfr. fls. 115 verso), ou seja, era extensa. O que, diga-se, se coaduna com a dimensão da cicatriz de maiores dimensões que o ofendido apresenta como sequela e vai ao encontro ao referido no depoimento da testemunha CC.
Concomitantemente, resulta perentoriamente do relatório pericial, em linha com a nota de alta de fls. 257 e do testemunho do médico II, que não houve, em concreto, perigo de vida para o ofendido. Apesar da gravidade da lesão, o ofendido não esteve, em concreto, em situação de perigo de vida (cfr. art. 163.º do Código de Processo Penal).
Além disso, compulsados os registos clínicos, verifica-se que o ofendido teve dores, por vezes fortes, mas que foram controladas através de medicação, mediante administração de fármacos, por vezes reajustada.
A arguida, como se disse, agiu impetuosamente, agastada com o ofendido. Não agiu de forma fria e calculista
Posto isto, e sem embargo do que se deixou dito, o conhecimento da arguida e a vontade de realização das condutas por ela perpetradas retiram-se da factualidade objetiva apurada, por apelo a regras de lógica e de experiência.
Por outro lado, à luz de regras de lógica e de experiência comum, infere-se que a arguida, pela sua idade e condição, não ignorava, não podia ignorar, o carácter penalmente ilícito das condutas por ela levadas a cabo.
No atinente à situação pessoal, percurso e contexto de vida da arguida, bem como aos seus antecedentes criminais e caracterização da sua personalidade, atendeu-se ao relatório de psiquiatria, ao relatório da perícia de personalidade, à informação social elaborada pela DGRSP e ainda ao CRC, bem como às declarações da própria e, por fim, ainda reflexamente ao depoimento do ofendido.
No que concerne à factualidade dada como não provada, para além do que supra se deixou dito, resulta a resposta do tribunal da ausência de prova bastante e suficiente ou do carácter contrário ou incompatível daquela com factualidade dada como provada ou por esta pressuposta.»
*

II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
- Existência de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
- Erro notório na apreciação da prova.
- Enquadramento jurídico dos factos e medida da pena.
*
Vejamos.

Alega o recorrente que não procedem as razões invocadas no acórdão recorrido para afastar a prova de que a arguida agiu com intenção de tirar a vida ao ofendido (ou admitiu tal possibilidade, conformando-se com ela):o ofendido não esteve numa situação de perigo concreto para a sua vida; a arguida negou a intenção de matar, admitindo até ter ela desistido. Alega que a arguida confessou os demais factos e sempre seria de considerar que a arguida, ao desferir o golpe com uma faca de cozinha e junto do ofendido, admitiu como possível (conformando-se com tal possibilidade) atingir zonas vitais do corpo do ofendido (abdómen) e, assim, causar a morte deste. Alega que o ofendido só não perdeu a vida porque, com uma perfusão abdominal, foi de imediato socorrido e submetido a intervenção cirúrgica. Alega que a ausência de confissão do arguido é irrelevante para a prova da sua atuação dolosa quando esta se pode deduzir de dados objetivos e inequívocos como os que foram neste caso provados.
Alega ainda existir contradição entre os pontos fixados em 15, 38, 39 e 40, e os factos dados por não provados nomeadamente, “ii. O ofendido correu risco de vida. iii. Caso não tivesse sido prontamente socorrido teria perdido a vida. iv. O ofendido BB apenas não perdeu a vida por motivo alheio à vontade da arguida.“ na medida em que o tribunal a quo mencionado a existência de dolo eventual conclui que a arguida estava ciente de poder provocar a morte do ofendido mas nem por isso se inibiu de atuar como atuou, movida por desejo de vingança e desagradada por ter sido contrariada.
Mais alega ter havido um comportamento frio e calculista da parte da arguida ao contrário do que o tribunal concluiu.
Socorre-se ainda do depoimento do médico II indicando as partes do seu depoimento que considera relevantes.
Mais dispõe que o tribunal “a quo” errou na subsunção dos factos apurados, integrando-os na previsão de uma norma (crime de violência doméstica, agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a) e n.º 4 do Código Penal) que ela não comporta; o facto de a vítima ter, ou não, concretamente corrido perigo de vida não releva para determinar a intencionalidade do agente; tribunal “a quo” violou o disposto nos artigos 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a) e n.º 4, 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas b) e i), 22.º e 23.º, todos do Código Penal e 127.º do Código de Processo Penal.

Vejamos.
Considerou o tribunal recorrido na motivação de facto, além do mais, o seguinte: “(…) Apreciando criticamente a prova, não há por que duvidar da factualidade confessada pela arguida, que fez a confissão de modo livre e espontâneo.
Pelo contrário, a confissão dos atos praticados coaduna-se com as demais provas produzidas e coligidas nos autos, nomeadamente os demais depoimentos testemunhais.
Da ponderação conjugada de todos os indicados meios de prova resulta, sem controvérsia, a factualidade objetiva dada como provada. Nomeadamente que foi o ofendido quem retirou a faca do seu corpo.
Das condutas da arguida adveio-nos a convicção de que, inequivocamente, quis atingir a integridade física do arguido.
Mas não foi, convenceu-se o tribunal, diretamente norteada pela deliberada intenção de atingir mortalmente o ofendido.
Agiu impetuosamente, sem premeditação ou reflexão prévia. Depois de espetar a faca no ofendido, de pronto se retirou do local, em pânico, disse, tendo de seguida telefonado à ex-mulher dele, para que o socorresse.
Contudo, a conduta de perfurar a zona abdominal com uma faca, fazendo um corte extenso, com perfuração suficiente para, retirada a faca, ocorrer evisceração, inculca a convicção, por apelo a regras de experiência, que a arguida não deixou de realizar que, ao assim proceder, poderia provocar a morte do ofendido, não tendo deixado de atuar - apesar de, como se disse, ter previsto essa possibilidade. Como não poderia deixar de prever, aliás, uma pessoa com a idade e o percurso de vida da arguida.
Posto isto, cumpre dizer que não consta dos elementos de prova dos autos que a arguida tenha perfurado a barriga do ofendido entre 10 a 15 cm (de profundidade). O que consta, que é coisa diferente, é que a ferida no abdómen tinha cerca de 10 cm (cfr. fls. 115 verso), ou seja, era extensa. O que, diga-se, se coaduna com a dimensão da cicatriz de maiores dimensões que o ofendido apresenta como sequela e vai ao encontro ao referido no depoimento da testemunha CC.
Concomitantemente, resulta perentoriamente do relatório pericial, em linha com a nota de alta de fls. 257 e do testemunho do médico II, que não houve, em concreto, perigo de vida para o ofendido. Apesar da gravidade da lesão, o ofendido não esteve, em concreto, em situação de perigo de vida (cfr. artigo 163.º do Código de Processo Penal).
Além disso, compulsados os registos clínicos, verifica-se que o ofendido teve dores, por vezes fortes, mas que foram controladas através de medicação, mediante administração de fármacos, por vezes reajustada.
A arguida, como se disse, agiu impetuosamente, agastada com o ofendido. Não agiu de forma fria e calculista.
Posto isto, e sem embargo do que se deixou dito, o conhecimento da arguida e a vontade de realização das condutas por ela perpetradas retiram-se da factualidade objetiva apurada, por apelo a regras de lógica e de experiência.
Por outro lado, à luz de regras de lógica e de experiência comum, infere-se que a arguida, pela sua idade e condição, não ignorava, não podia ignorar, o carácter penalmente ilícito das condutas por ela levadas a cabo (…)”.
E considerou o tribunal recorrido na motivação de direito:
“(…) A arguida, apesar de ter atuado impetuosamente, estava ciente de que poderia provocar no ofendido lesões suscetíveis de lhe causar a morte, tendo-se conformado com a possibilidade de produção desse resultado. Atuou, portanto, com dolo eventual (artigo 14.º, n.º 3 do Código Penal).
Porém, o ofendido não chegou a ficar em situação de perigo de vida, tendo a atuação da arguida provocado naquele, a final, lesões determinantes de 30 dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho.
Assim, a arguida representou “como possível o (um) resultado, a que ia associada a conformação com esse mesmo resultado, a mera atuação não tem sustentabilidade dogmática nos quadros do dolo eventual para levar à punibilidade fora da ocorrência efetiva do resultado”.
“O resultado - se, como, quando e no modo como ocorrer - é que dá consistência relevante, objetiva e objetivável, à conformação do agente”.
“O facto apenas se completa na conjugação entre atuação, previsão e resultado, revelando-se o resultado afinal um elemento determinante para a integração do dolo do tipo no direito penal do facto na construção complexa ação-resultado”.
O que significa que, apesar de se ter conformado com a possibilidade do resultado morte, como este não ocorreu, nem tampouco chegou o ofendido a estar em situação de concreto perigo de vida, a arguida não deverá ser punida pela prática do crime de homicídio qualificado tentado. Ou seja, pelo crime com cuja possibilidade de ocorrência que se conformou. Mas apenas pela prática do crime correspondente ao resultado efetivamente verificado e ocorrido. Ou seja, ao crime efetivamente consumado.
Abrindo um parêntesis, deve dizer-se que, mesmo que se entendesse que a arguida praticou atos de execução do crime de homicídio qualificado na forma tentada, haveria a considerar o instituto da desistência.
Com efeito, a lesão concretamente causada não chegou a colocar a vida do ofendido em perigo.
Tratar-se-ia de uma tentativa inacabada.
Ora, a arguida depois de espetar a faca no corpo do ofendido, abandonou o local, quando nada, absolutamente nada, a impedia de prosseguir com a agressão, nomeadamente fazendo uso da faca. E, além disso, depois de sair da habitação telefonou a terceira pessoa, para que socorresse o ofendido.
Ou seja, teria ocorrido uma desistência da tentativa, juridicamente relevante, por parte da arguida (artigo 24.º, n.º 1 do Código Penal).
Pelo que, também sob esta perspetiva, a arguida não poderia ser punida pela prática de um crime de homicídio qualificado tentado (…)”.

Ora, na verdade, a arguida quis atingir a zona do corpo do ofendido que atingiu (o abdómen).
Estamos perante zona do corpo vital. O instrumento utilizado (uma faca de cozinha com 21 cm de lâmina) propicia golpes profundos. Os ferimentos causados exigiram duas intervenções cirúrgicas urgentes, sendo a primeira por força da perfuração do órgão mesentério com hemorragia e a segunda na sequência da existência de uma perfuração do Cólon transverso, o qual atravessa a parte superior do abdómen da direita para esquerda, com peritonite, sem as quais seria provável a morte do ofendido BB.
Tanto numa como noutra, exige-se uma intervenção cirúrgica rápida, traduzindo emergências médicas sob pena de serem fatais. O rompimento da parede do intestino provoca extravasamento do conteúdo intestinal para a cavidade abdominal implicando passagem de bactérias que causam peritonite, como foi o caso, inflamação esta que se não fosse tratada imediatamente provocaria septicémia e é fatal. A perfuração do mesentério para além de expor os intestinos, como efetivamente aconteceu, provocando hemorragia ativa, que se verificou, pode por em causa o funcionamento daquele órgão e irrigação dos intestinos com consequências fatais para a pessoa.
Perante estes dados objetivos, as regras da lógica e da experiência comum, também à luz do princípio in dubio pro reo, impõem a conclusão de que a arguida, ao desferir o golpe que desferiu, admitiu como possível que ele viesse a causar a morte do ofendido, conformando-se com tal resultado. E isso foi dado como provado.
Assim sendo, o tribunal entra em manifesta contradição quando afirmando que : - Nessa altura, aborrecida com a situação, a arguida dirigiu-se a um guarda-facas que se encontrava junto do fogão, em cima da bancada, e dali retirou uma faca (de cozinha) de um só gume, de cor preta, com 32 centímetros de comprimento total, sendo 21 cm de lâmina e 2,7 cm de largura máxima, decidida a atingir o ofendido na sua integridade física.
- Após, a arguida abeirou-se do ofendido e, munida da referida faca, espetou-lha na zona abdominal, na região do flanco esquerdo, perfurando-a.
- Nessa altura, o ofendido deixou cair no solo as garrafas de vinho que tinha nas mãos, que se partiram no chão.
- A arguida espetou a faca no corpo do ofendido de forma totalmente inesperada, o qual, por se encontrar de costas e com as mãos ocupadas com as garrafas, não teve possibilidade de se defender ou reagir ao comportamento daquela.
- Após espetar a faca no corpo do ofendido, ausentou-se desse local para parte incerta, sem levar consigo qualquer medicação e sem prestar auxílio ao ofendido BB.
- O ofendido BB retirou a faca da zona corporal atingida e pousou-a, ensanguentada, em cima da placa do fogão da cozinha. - Mercê da atuação da arguida, o ofendido sofreu evisceração do intestino delgado e sangramento abundante.
- Aflito, o ofendido, ao vislumbrar as suas vísceras no exterior do corpo, colocou as mãos na barriga.
- Em aflição, deslocou-se até à porta de entrada do apartamento dos seus vizinhos CC e DD, residentes no mesmo andar, no 1.º Esquerdo.
- O ofendido tocou insistentemente à campainha dos vizinhos e, depois destes terem aberto a porta de casa, pediu-lhes auxílio, dizendo que tinha sido esfaqueado pela arguida, apodando-a de “maluca”.
- De imediato, o CC amparou o ofendido BB até ao interior da residência deste, levando-o para a casa de banho, onde agarrou numas toalhas, voltando depois para o hall de entrada, onde o ofendido ficou deitado no chão, em cima de um tapete.
- Nessa altura, o CC, que tinha conhecimentos de socorrismo por ter sido bombeiro voluntário e técnico do INEM, retirou as vestes do ofendido, e como este apresentava hemorragia ativa e evisceração no quadrante inferior esquerdo do abdómen, utilizou diversas toalhas com vista a estancar a hemorragia.
- Enquanto isto, a DD efetuou chamada telefónica para o 112, solicitando auxilio médico urgente, isto pelas 22h21m.
- O CC questionou o ofendido sobre o que tinha acontecido, tendo-lhe este dito que a arguida estava “maluca”, não dizendo mais.
- Acontece que, após sair da residência comum, a arguida, pelas 22h19m, a arguida telefonou para EE, ex-mulher do ofendido, através do n.º ...75, dizendo-lhe que “tinha magoado o BB” e “lhe tinha espetado uma faca”, pedindo-lhe para ela chamar uma ambulância e ir a casa dele, desligando de seguida a chamada.
- De imediato, a EE dirigiu-se à habitação do ofendido, tendo-o encontrado nas circunstâncias descritas.
- Por essa altura, acorreram ao local os bombeiros e autoridades policiais (GNR de Santa Maria de Lamas), tendo aqueles transportado o ofendido ao Hospital 1... em .... A Polícia Judiciária, mais tarde, já depois da meia-noite deslocou-se também à residência do ofendido e da arguida.
- O ofendido deu entrada no estabelecimento hospitalar pelas 23h10m, tendo sido admitido na sala de emergência com trauma abdominal por arma branca, com evisceração de ansas do delgado e laceração do mesentério, tendo sido de imediato encaminhado para cirurgia urgente – laparotomia exploradora, hemóstase de vaso sangrante do mesentério e encerramento de ferida da parede abdominal.
- O ofendido foi posteriormente sujeito a uma segunda laparotomia exploratória, constatando-se a presença de perfuração do terço médio do cólon transverso com cerca de 1 cm, com peritonite.
- O ofendido esteve internado no Hospital 1... cerca de duas semanas, em recuperação operatória, padecendo de dores, pontualmente agudas, mas que foram sendo controladas, com êxito, através de medicação.
- Mercê do comportamento da arguida, o ofendido apresenta atualmente as seguintes lesões e sequelas:
- No abdómen: cicatriz nacarada e horizontal, linear, situada no quadrante inferior esquerdo, com 9 cm de comprimento, com hiperestesia à palpação. Cicatriz nacarada e vertical, linear, situada abaixo da região umbilical, com 7 cm de comprimento, com várias cicatrizes nacaradas e perpendiculares a esta, com 2 cm de comprimento cada, com hiperestesia à palpação. Abdómen ligeiramente distendido, mas sem dor à palpação.
- Tais lesões determinaram para o ofendido 30 dias para a consolidação médico-legal, todos com afetação da capacidade de trabalho.
- As cicatrizes que o ofendido agora apresenta são causa de desfiguração permanente.
- A arguida ao praticar os factos supra descritos, sabia da perigosidade da sua conduta, tendo atuado ciente de que poderia provocar a morte do ofendido, mas nem por isso se inibiu de atuar como atuou, movida por desejo de vingança e desagradada por ter sido contrariada.
- Agiu a arguida de modo deliberado, voluntário e consciente, com o propósito de atingir a integridade física do ofendido com a suprarreferida faca, depois de ele não a deixar levar as garrafas de vinho, contrariando-a.
- A arguida atuou ciente das possíveis consequências da sua conduta, para a integridade física e para a vida do ofendido, pois que lhe espetou a faca em região da fisionomia humana sensível, onde se situam o fígado, baço, estômago e cólon, provocando no mesmo, com a sua conduta, entre as mais lesões, perfuração do cólon, com peritonite.
- A arguida agiu aproveitando-se do facto de o ofendido, mercê de estar de costas para si e com as mãos ocupadas, não se ter apercebido do seu propósito e não se conseguir defender ou reagir por qualquer meio.
-A arguida agiu sempre de modo voluntário, livre e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade das suas condutas.
- A arguida sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, a arguida pretendeu apenas afetar a integridade física do ofendido e também quando afirma que estava ciente de que poderia provocar a morte do ofendido e conclui não ter havido perigo para a vida do mesmo e ao mesmo tempo afirma lhe espetou a faca em região da fisionomia humana sensível, onde se situam o fígado, baço, estômago e cólon, provocando no mesmo, com a sua conduta, entre as mais lesões, perfuração do cólon, com peritonite e não dando como provado que caso não tivesse sido prontamente socorrido teria perdido a vida afirmaPor essa altura, acorreram ao local os bombeiros e autoridades policiais (GNR de Santa Maria de Lamas), tendo aqueles transportado o ofendido ao Hospital 1... em .... A Polícia Judiciária, mais tarde, já depois da meia-noite deslocou-se também à residência do ofendido e da arguida.
- O ofendido deu entrada no estabelecimento hospitalar pelas 23h10m, tendo sido admitido na sala de emergência com trauma abdominal por arma branca, com evisceração de ansas do delgado e laceração do mesentério, tendo sido de imediato encaminhado para cirurgia urgente – laparotomia exploradora, hemóstase de vaso sangrante do mesentério e encerramento de ferida da parede abdominal.
- O ofendido foi posteriormente sujeito a uma segunda laparotomia exploratória, constatando-se a presença de perfuração do terço médio do cólon transverso com cerca de 1 cm, com peritonite e ainda não dando por provado que o ofendido BB apenas não perdeu a vida por motivo alheio à vontade da arguida. Como acima referimos este tipo de lesões exigem intervenção médica imediata sob pena de serem fatais.
Perante estes dados objetivos, as regras da lógica e da experiência comum, também à luz do princípio in dubio pro reo, impõem a conclusão de que a arguida, ao desferir aquele golpe, admitiu como possível que ele viesse a causar a morte do ofendido, conformando-se com tal resultado.
É certo que a vida do ofendido não esteve em perigo. Mas, como resulta da perícia ao dano corporal que lhe foi efetuada e do testemunho do médico que o acompanhou não esteve em perigo por ter sido prontamente assistido.
De um modo geral, a intenção de matar não resulta necessariamente do facto de a vítima ter, ou não, concretamente corrido perigo de vida. – Essa intencionalidade extrai-se das lesões provocadas, da localização dessas mesmas lesões, do número e extensão das lesões, o instrumento que foi utilizado e bem assim toda a restante factualidade onde decorreram os factos - Ac. Rel. Lisboa, de 2021-09-21 (Rec. nº 1031/20.0PBOER-A.L1-5ª secção, rel. Artur Vargues, in www.dgsi.pt).
Ora, a arguida AA, por espetar a faca no corpo do ofendido de forma totalmente inesperada, o qual, por se encontrar de costas e com as mãos ocupadas com as garrafas, não teve possibilidade de se defender ou reagir ao comportamento daquela e ter causado evisceração do intestino delgado e sangramento abundante e perfuração do cólon com peritonite, revela a intenção conformada de tirar a vida ao ofendido BB.
Ainda sobre a questão do perigo para a vida, o Dr. II, subscritor do documento médico junto a fls. 253v, inquirido no dia 26.01.2023, disse que face às lesões sofridas, o ofendido poderia ter morrido se não fosse prontamente assistido (minuto 10,38 a 10,42). A testemunha Dr. II disse ainda ao tribunal que no abdómen estão alojados órgãos vitais para a vida e que, esfaqueados, poderão levar a morte da pessoa (minuto 11.09 a 11.40).
Tratando-se de uma tentativa (de homicídio), a (in)existência de um perigo concreto para a vida, só por si, não releva para o visado afastamento da tentativa (de homicídio).Pois na configuração da tentativa, mais concretamente na avaliação dos atos de execução em conjunto com o plano do agente, o que releva não é o juízo ex post sobre as consequências concretas dos atos praticados (aquele a que o invocado perigo se refere), mas um juízo ex ante, sobre a potencialidade letal da ação desenvolvida.
É certo que a punição da “tentativa” funda-se sempre em razões “de perigo”. E a conduta de um agente, mesmo que atue imbuído de uma intenção de matar, não será punível perante uma inexistência objetiva de perigo para o bem jurídico. Assim sucede nos casos de tentativa manifestamente impossível.
Como ensina Fernanda Palma, “a grande fronteira que o Direito Penal não pode ultrapassar é, sem dúvida, a da não punição, em si e por si, de meros pensamentos, intenções, resoluções e atitudes” (Da Tentativa Possível em Direito Penal, 2006, p. 35).
Não podemos prescindir de qualquer facto externo significativo (activo ou omissivo). Como decorrência de princípios constitucionais, o Direito Penal reclama que o ilícito se construa a partir do confronto com a Ordem Jurídica de modificações da realidade operadas pela livre vontade e não apenas de puras manifestações de vontade. “A culpa, a censurabilidade pessoal e a ideia imanente de liberdade exigem uma noção de acção voluntária constitutiva da realidade que se confronta com a norma. Por isso, uma análise do acontecimento e das suas consequências é não só apoio da compreensão da acção mas também objecto do juízo de imputação” (Fernanda Palma, loc. cit., p. 40).
Na previsão do art. 22º, nº 1, do CP “há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”.
No nº 2 definem-se “actos de execução” como “os que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime” (al. a)), “os que forem idóneos a produzir o resultado típico (al. b)), ou os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, foram de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores” (al. c)).
Sendo de excluir uma punição da mera intenção, há que proceder à avaliação da conduta externa do agente e determinar se essa conduta consubstancia “acto(s) de execução” do crime que o mesmo agente terá decidido cometer.
Fernanda Palma chama a atenção para a complexidade que os comportamentos podem assumir, referindo que “a complexidade da descrição dos comportamentos pode tornar difícil discernir se não se pune, afinal, apenas uma intenção.”
“O problema surge”, continua a autora, “desde logo com comportamentos cuja identificação enquanto acção de uma certa espécie é equívoca no plano externo-objectivo e que só adquirem significado específico através da compreensão da intenção” (loc. cit. p. 36).
Sempre com interesse para a resolução do caso sub judice, Fernanda Palma nota que “na delimitação dos actos de execução de um crime emerge de imediato a questão de saber quando, como e porque um comportamento susceptível de punição se torna um comportamento de certo tipo” (loc. cit. p. 42).
Os factos objetivos provados em conjunto com a atuação da arguida (que exteriorizou a vontade de matar executando atos claramente compatíveis com uma previsão de morte com conformação – note-se que o dolo comprovado foi um dolo eventual) configuram tentativa de homicídio.
Assim, num juízo ex ante sobre a potencialidade letal da ação desenvolvida, conclui-se pela positiva. Pois tem-na a ação de espetar a faca na zona abdominal, com esventramento e perfuração, detetada posteriormente, do colon. O perigo para a vida não ocorreu porque a vítima foi prontamente assistida, mas esse perigo não seria sequer, para o efeito, imprescindível. Vide AC RE de 25.09.18.
Pelas razões já indicadas no acórdão recorrido, não se verificam factos integradores das alíneas j)do n.º 2, do art. 132º do Código Penal, pelo que não deverá ser o arguido condenado pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º; 132.º, n.º 1 e 2, j); 22.º e 23.º do Código Penal.
O instrumento utilizado não será particularmente perigoso (alínea h)), no sentido em que será mais perigoso do que os que são habitualmente utilizados para a prática do crime de homicídio.
Tendo presente a forma como os factos se desenrolaram, não temos dúvida que a arguida utilizou meio insidioso, ou seja, no dia 15 de abril de 2022, cerca das 22 horas, no interior da residência do casal, a arguida AA e o ofendido BB jantaram e foram para a sala ver televisão.
Nessa altura, a arguida pediu dinheiro ao ofendido, dizendo que pretendia comprar umas alianças, tendo-se este negado a entregar-lhe qualquer quantia pecuniária para o efeito.
Descontente com a resposta do ofendido, a arguida encetou uma discussão com ele, no decurso da qual lhe disse que ia embora de casa, tendo-se depois dirigido ao quarto de dormir, trocado de roupa e saído da habitação.
Não obstante, decorridos 10 minutos, a arguida voltou à habitação comum, tendo-lhe o ofendido aberto a porta.
Nessa altura, ela disse ao ofendido que se esquecera da sua medicação habitual para a depressão e que a vinha buscar.
De seguida, dirigiu-se à cozinha e retirou do frigorífico cinco garrafas de vinho branco, colocando pelo menos duas no interior de um saco, assim como a medicação.
Presenciando o descrito, temendo que a arguida ingerisse conjuntamente vinho e medicação com vista a colocar a sua vida em perigo, o ofendido retirou o saco com as garrafas à arguida.
Dirigiu-se, então, para junto do frigorífico com vista a ali voltar a colocar as garrafas.
Nessa altura, aborrecida com a situação, a arguida dirigiu-se a um guarda-facas que se encontrava junto do fogão, em cima da bancada, e dali retirou uma faca (de cozinha) de um só gume, de cor preta, com 32 centímetros de comprimento total, sendo 21 cm de lâmina e 2,7 cm de largura máxima, decidida a atingir o ofendido. Após, a arguida abeirou-se do ofendido e, munida da referida faca, espetou-lha na zona abdominal, na região do flanco esquerdo, perfurando-a.
Nessa altura, o ofendido deixou cair no solo as garrafas de vinho que tinha nas mãos, que se partiram no chão.
A arguida espetou a faca no corpo do ofendido de forma totalmente inesperada, o qual, por se encontrar de costas e com as mãos ocupadas com as garrafas, não teve possibilidade de se defender ou reagir ao comportamento daquela.
Após espetar a faca no corpo do ofendido, ausentou-se desse local para parte incerta, sem levar consigo qualquer medicação e sem prestar auxílio ao ofendido BB.
O seu comportamento de espetar a faca de forma inesperada numa altura em que o ofendido se encontrava de costas e com as mãos ocupadas com as garrafas, sem possibilidade de se defender ou reagir configura meio insidioso da al. i)- Ac da RP de 25/11/2020, processo 249/14.9TALSD.P1, in www.dgsi.pt:
I – Para efeito do artigo 132º, nº 2, al. i) do Código Penal, constituirá meio insidioso todo aquele que assuma um carácter enganador, dissimulado, oculto, sub-reptício, ou seja, meios traiçoeiros que eliminam qualquer possibilidade razoável de defesa por parte da vítima.
II - Preenche a referida qualificativa quem ataca outrem, agredindo-o de modo súbito e inesperado, numa atuação de surpresa, colhendo a vítima completamente desprevenida e sem qualquer hipótese de fuga ou de defesa por qualquer meio, não lhe tendo sido dado sequer um mínimo de tempo de reação.-já para não falar no preenchimento da al. b) do citado artigo, porquanto mantinha com o ofendido relação análoga à dos cônjuges.
Há que salientar que a jurisprudência vem considerando (na esteira de Figueiredo Dias e contra a opinião da Faria Costa) que são compatíveis a tentativa e a atuação com dolo eventual (ver, neste sentido, entre outros, os acórdãos do Supremo tribunal de Justiça de 10 de novembro de 1993, in C.J.-S.T.J. 1993. III, pgs. 228 e segs, e de 2 de abril de 2009, proc. n.º 08P3277, relatado por Souto Moura, in dgsi.pt, e os acórdãos desta Relação de 25 de fevereiro de 2004, proc. n.º 0344749, relatado por Isabel Pais Martins, de 20 de outubro de 2004, proc. n.º 0413680, relatado por Élia São Pedro, e de 2 de junho de 2013, proc. n.º 267/05.5GBMBR.P2, relatado por Maria dos Prazeres Silva) e de 28 de outubro de 2020, processo n.º 2139/19.0JAPRT.P1, relatado por Pedro Vaz Pato). Na verdade, a “decisão” de cometer o crime, a que se reporta o artigo 22.º, n.º 1, do Código Penal quando define a tentativa, é compatível com qualquer das modalidades de dolo e, portanto, também com a decisão de se conformar com o resultado própria do dolo eventual; este também implica, como as outras modalidades de dolo, representação e vontade, mesmo que esbatidas ou enfraquecidas.
Com efeito, a “decisão” de cometer o crime, a que se reporta o artigo 22.º, n.º 1, do Código Penal quando define a tentativa, é compatível com qualquer das modalidades de dolo e, portanto, também com a decisão de se conformar com o resultado próprio do dolo eventual; este também implica, como as outras modalidades de dolo, representação e vontade, mesmo que esbatidas ou enfraquecidas. Na verdade, dos registos clínicos e do exame médico-legal do ofendido, conclui-se que este só não ficou numa situação de perigo concreto para a vida, porque foi medicamente assistido, com rapidez e de modo adequado, o que logrou evitar a sua morte.
Os elementos clínicos juntos aos autos permitem concluir que o ofendido, por via da perfuração abdominal que sofreu corria perigo para a vida, tanto assim, que foi de imediato naquele dia intervencionado cirurgicamente. E posteriormente foi sujeito a outra intervenção cirúrgica também ela urgente uma vez que foi detetada uma perfuração do cólon com peritonite. E foi essa assistência médica que lhe foi prestada que evitou a sua morte, pois que, as lesões que lhe foram infligidas pela arguida eram adequadas a causar esse resultado.
Acresce que relevante para o preenchimento do crime de homicídio, na forma tentada, é que a morte não ocorra por razões alheias à vontade do arguido - como efetivamente sucedeu nos presentes autos-, sendo inócuo que, no caso em apreço, o ofendido não tenha estado em perigo de vida.
Só poderíamos concluir pela não verificação do aludido crime de homicídio tentado se a conduta da arguida estivesse abrangida pelo n.º 3, do artigo 23.º, do Código Penal, que determina que a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objeto essencial à consumação do crime.
No caso dos autos, nenhuma dessas razões se verificou, pois que, a faca usada pela arguida é um meio idóneo, pela sua perigosidade, a causar a morte- tanto mais, que no caso em apreço foi usada a parte da lâmina para atingir o ofendido- a zona corporal atingida- alojando órgãos vitais-, era idónea a causar a morte e existia o objeto essencial à consumação do aludido crime.
Á luz das regras da experiência comum é inequívoco que a arguida conhecia a perigosidade do instrumento com que se muniu e da sua adequabilidade para causar lesões e inclusive tirar a vida; sabia a curta distância que a separava do ofendido; sabia que o golpe que desferisse a essa distância, pelo comprimento da lâmina, poderia ter profundidade.
Não se vê, por outro lado, que tenha ocorrido desistência, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 24.º do Código Penal. O que aconteceu foi um arrependimento, quando telefonou a avisar uma terceira pessoa para o ir socorrer. Com o abandono do local com a faca espetada no corpo da vítima e sem lhe prestar auxílio imediato ou ali se deslocar, não desistiu.

Relativamente ao calculismo e frieza de ânimo, a matéria fáctica não permite concluir de maneira diferente da do tribunal quo. A descrição fáctica feita pelo tribunal está de encontro com as regras da experiência, a arguida agiu num momento de impetuosidade, na sequência de um desentendimento com o ofendido. Nenhuma prova foi apresentada em sentido contrário por parte do recorrente, pelo que nada temos a alterar neste circunspecto.

Posto isto, perante o erro notório e contradições supramencionadas na apreciação da prova, a existência destes vícios da decisão a quo poderia justificar a reenvio do processo para novo julgamento.
Todavia, a própria análise do texto da decisão em si permite tirar outras ilações mais consonantes com as regras da experiência e com a factualidade dada por assente e sua correta interpretação, art. 431º do CPP, não olvidado que no que diz respeito ao tema do perigo para a vida, ainda que de uma forma incipiente, mas suficiente o recorrente procedeu a impugnação alargada daquele facto ao indicá-lo e fazendo menção da prova e concretas passagens que no seu entender poderiam impor versão diferente da do tribunal.
Em face do exposto e pelas considerações supraexpostas os factos dados como não provados em:
ii. O ofendido correu risco de vida.
iii. Caso não tivesse sido prontamente socorrido teria perdido a vida.
iv. O ofendido BB apenas não perdeu a vida por motivo alheio à vontade da arguida, passam à condição de provados.
Ao ponto nº 15 acrescenta-se “(…) e vida.” e no ponto 39 acrescenta-se (…)atingir a integridade física e vida do ofendido (…)

Subsunção jurídica.

A factualidade provada integra, assim, a prática, pela arguida, de um crime de homicídio qualificado, com dolo eventual, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 14.º, n.º 3), 22.º e 23.º do Código Penal.

Atendendo ao teor do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2016, há que determinar nesta sede a pena a aplicar à arguida, afigurando-se-nos que esta deverá ser condenado em pena próxima do seu limite mínimo, à luz do que dispõe o artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, considerando a gravidade das lesões sofridas pelo ofendido, os períodos de doença e incapacidade para o trabalho por este sofridos, a perigosidade do instrumento utilizado, o desequilíbrio de meios (o ofendido estava desarmado) e o facto da arguida ter desferido um só golpe, a atuação com dolo eventual, o arrependimento, a ausência de antecedentes criminais e a inserção familiar e social.
O crime por que o arguido vai condenado, de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 132º, nº 2, als. b) e i) 22.º, 23.º e 73.º, n.º 1, do Código Penal, é punível com pena de 2 anos, 4 meses e 24 dias de prisão a 16 anos e 8 meses de prisão.
A fixação da medida concreta da pena envolve para o juiz, uma certa margem de liberdade individual, não podendo, no entanto, esquecer-se que ela é, e nem podia deixar de o ser , estruturalmente aplicação do direito , devendo ter-se em apreço a culpabilidade do agente e os efeitos da pena sobre a sociedade e na vida do delinquente, por força do que dispõe o art.º 40.º n.º 1 , do CP.
Na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal deverá ter em atenção as funções de prevenção geral e especial das penas sem, contudo, perder de vista a culpa do agente (artigo 71º, nº 1 do Código Penal).
A medida da pena deverá constituir resposta às exigências de prevenção, tendo em conta na sua determinação certos fatores que, não fazendo parte do tipo legal de crime, tenham relevância para aquele efeito, estejam esses fatores previstos ou não na lei e sejam eles favoráveis ou desfavoráveis ao agente (artigo 71º, nº 2 do Código Penal).
A pena funciona como um meio de prevenção criminal – prevenção geral positiva (de tutela da confiança na validade das normas, ligada à proteção de bens jurídicos, visando a restauração da paz jurídica) e de prevenção especial positiva (de inserção ou reinserção social do agente) (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora, 2007, p. 49 a 57). São as considerações de prevenção geral que justificam que se fale de uma moldura da pena, cujo limite máximo corresponderá ao ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, a pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas.
O limite mínimo da moldura corresponderá ao mínimo da pena que, em concreto, ainda protege com eficácia os bens jurídicos tutelados, o mínimo imprescindível a assegurar as expectativas de proteção da comunidade. A culpa funcionará como pressuposto e limite máximo inultrapassável da medida da pena, nos termos do disposto no artigo 40º, nº 2 do Código Penal – é o Princípio da Culpa, fundado nas exigências irrenunciáveis de respeito pela dignidade da pessoa humana (artigos 1º e 25º da Constituição).
Para além disso, a pena, na sua execução, deverá sempre ter um carácter socializador e pedagógico (artigo 40º, 1, in fine do Código Penal).
A pena deverá, assim, constituir resposta às exigências de prevenção, tendo em conta na sua determinação certos fatores que, não fazendo parte do tipo legal de crime, tenham relevância para aquele efeito, estejam esses fatores previstos ou não na lei e sejam eles favoráveis ou desfavoráveis ao agente (artigo 71º, 2 do Código Penal).

À luz do que dispõe o artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, considerando, como circunstâncias agravantes, a gravidade das lesões sofridas pelo ofendido, os períodos de doença e incapacidade para o trabalho também por este sofridos, a perigosidade do instrumento utilizado, o desequilíbrio de meios (o ofendido estava desarmado) e o facto de arguido ter sido surpreendido; e, como circunstâncias atenuantes, o contexto conflitual em que surge a conduta da arguida, a atuação com dolo eventual, o arrependimento (apesar de a arguida não confessar a atuação dolosa quanto ao homicídio, não deixou de manifestar arrependimento pela sua atuação enquanto ofensa à integridade física), a ausência de antecedentes criminais e a inserção familiar e social, o comportamento desde que se encontra em reclusão; o consentimento para se submeter a tratamento psicológico e psiquiátrico a assunção da responsabilidade pelo pagamento dos custos decorrentes do tratamento hospitalar do ofendido; a reconciliação com o ofendido, que lhe perdoou o seu comportamento entende-se adequado fixar a pena a aplicar à arguida em três anos e seis meses de prisão. No mais subscreve-se o tribunal a quo relativamente ao que teceu a propósito da não suspensão da execução da pena de prisão, da escolha da pena de substituição e regras de conduta, transcrevendo:
Aqui chegados, importa aferir da possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão.
Resulta, do art. 50º do Código Penal, que deve ser decretada a suspensão “se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior e às circunstâncias deste” se puder concluir que “a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos.
A salvaguarda das necessidades de prevenção geral, inerentes ao crime de violência doméstica (substituído por tentativa de homicídio-parêntesis nosso), com a gravidade que teve o perpetrado pela arguida e com as consequências que teve sobre o ofendido BB, inviabilizam, por si só, a suspensão da execução da pena de prisão (art. 50º do Código Penal).
Ademais, tendo em consideração o que dos pontos 119 e 121 a 124 da factualidade provada consta, as vulnerabilidades pessoais que a arguida evidenciam a presença de não despiciendas necessidades de prevenção especial, que cumpre acautelar “e desde logo sublinhado nosso “119. No que concerne a projetos de vida, AA pretende retomar a coabitação com o ofendido BB, pretensão correspondida por aquele, e reestruturar o seu projeto de vida, passando pela integração profissional e pelo desempenho de um papel mais ativo na vida dos descendentes.
120. A arguida não evidencia traços de personalidade que possam indiciar psicopatia ou outra perturbação da personalidade ou uma personalidade com especial propensão para comportamentos agressivos/violentos de uma forma geral.
121. Não evidencia um padrão antissocial de vida, mas “apresenta traços de personalidade traduzidos na assunção de comportamentos caracterizados por ausência de remorsos ou de culpa, não acatamento de responsabilidade pelas suas ações, estilo de vida parasita, deficiente controlo comportamental, ausência de objetivos realistas, impulsividade e irresponsabilidade”. 122. “Denota permeabilidade com crenças legitimadoras de violência doméstica, da violência pela conduta da mulher, da violência com causas externas e pela preservação da privacidade familiar”.
123. A “falta de insight para reconhecer a existência de dinâmicas relacionais disfuncionais, que poderá traduzir-se na dificuldade de modificação de comportamento, as fragilidades emocionais, a dependência emocional e económica da arguida, no contexto da atual reconciliação e pretensão conjunta do casal de retomar a vida em comum, sem alteração ou reconhecimento da necessidade de intervenção ao nível da relação conjugal, inalterados os fatores desestabilizantes individuais e conjugais, constituem-se como vulnerabilidades significativas face às quais AA não dispõe de estratégias adaptativas de resolução, o que poderá impactar na eventual adoção de comportamentos de passagem ao ato, auto e heteroagressividade”.
124. Face à natureza dos factos objeto dos presentes, reconhece a sua ilicitude em abstrato. No entanto, tem propensão para se centrar nas consequências para si própria e para os seus familiares, evidenciando um parco juízo crítico, procurando minimizar a gravidade dos seus atos.”

Torna-se necessário que a arguida repense adequadamente as suas condutas, interiorize suficientemente o desvalor dos seus atos e amadureça o significado da condenação.
Não é, portanto, viável a suspensão da execução da pena de prisão imposta nestes autos.
Posto isto, resulta do n.º 1 do art. 43º do Código Penal que sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:
b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º;
2 - O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas.
3 - O tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para catividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado.
5 - Não se aplica a liberdade condicional quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação.
O pressuposto material de aplicação desta pena de substituição é o da sua adequação às finalidades da punição. A escolha desta pena de substituição, como de qualquer outra, é determinada unicamente por considerações de natureza preventiva, quer de prevenção geral, quer especial. “
No caso vertente, considerando a pena concreta aplicada à arguida, 03 anos e 06 meses de prisão, e que ela está ininterruptamente detida ou sujeita a prisão preventiva desde o passado dia 18/04/2019 e, ainda, que prestou consentimento à utilização da vigilância eletrónica, mostram-se reunidos os requisitos formais desta pena substitutiva.
Cfr. art. 80º, n.º 1 do C. Penal: “A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas”.
Perspetiva-se, ainda, que permitirá acautelar as finalidades da punição, uma vez que tal modo de execução da pena detentiva é suficientemente enérgica para a afirmação da validade da norma violada perante a comunidade, não carecendo da manutenção do recurso a estabelecimento penitenciário.
Ademais, no contexto da presente situação, a pena substitutiva é suficientemente gravosa para vincar perante a arguida a gravidade da sua conduta e para lhe dar ensejo de repensar as suas condutas futuras e, desse modo, se apartar da prática futuro de novos crimes.
A execução da pena em regime de permanência da habitação é um modo privilegiado de a arguida encetar o processo de ressocialização, sem os efeitos nefastos da reclusão penitenciária e reestruturar a sua vida.
Os serviços de reinserção social elaborarão plano de reinserção social, que planificará as atividades e programas visando a preparação da arguida para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes (art. 20º, n.º 2 da Lei n.º 33/2010 de 02/09).
Tendo em vista a reintegração responsável da arguida na comunidade e o reforço do seu processo de autonomização, autoriza-se a mesma a ausentar-se do local da vigilância eletrónica para exercício da atividade profissional formalizada, que eventualmente obtenha e que o tribunal previamente considere compatível com a execução da pena e com as suas finalidades.
De igual modo se autoriza a arguida a ausentar-se do local da vigilância eletrónica para efeitos de comparência: - em consultas médicas e em tratamentos de saúde de que justificadamente careça; - em atos e diligências processuais, perante autoridade judiciária ou entidade policial, para que seja devidamente convocada.
Por outro lado, atentas as suas vulnerabilidades e a necessidade de prevenir recidivas e proteger o ofendido durante o processo de mitigação das referidas vulnerabilidades, impõe-se-lhe, concomitantemente, as seguintes regras de conduta:
- submeter-se, empenhadamente, a tratamento psiquiátrico e/ou psicológico adequados;
- não residir na mesma habitação que o ofendido BB, nem pernoitar na mesma habitação que ele (art. 43º, n.º 4 do C. Penal).
A regra de conduta vinda de referir constitui um condicionamento na liberdade relacional da arguida e do ofendido, mas encontra justificação bastante na prevenção de recidivas e na proteção do ofendido. Para além de, patentemente, se apresentar como um minus relativamente à reclusão penitenciária, que seria bastante mais limitativa da possibilidade relacional.
Em síntese, à arguida é imposta a pena de 03 anos e 06 meses de prisão, mas fazendo o desconto do tempo passado em detenção e prisão preventiva, o remanescente da pena de prisão imposta será executado em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, com sujeição às regras de conduta e ausências consentidas vindas de referir.

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.

Determinam que os factos dados como não provados em:
ii. O ofendido correu risco de vida.
iii. Caso não tivesse sido prontamente socorrido teria perdido a vida.
iv. O ofendido BB apenas não perdeu a vida por motivo alheio à vontade da arguida, passam à condição de provados.
No ponto nº 15 acrescenta-se “(…) e vida.” e no ponto nº 39 acrescenta-se “(…) atingir a integridade física e vida do ofendido (…)”
Condenam a arguida AA pela prática de um crime de homicídio qualificado, com dolo eventual, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 14.º, b), 22.º, 23.º e 73.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de três anos (3) anos e seis meses (6) de prisão, revogando nesta parte a decisão a quo.

Determinam, nos termos do 43º do C. Penal e art. 1º, al. b) da Lei n.º 33/2010 de 02/09, que o remanescente da pena de prisão imposta à arguida, ora referida, seja executado em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância - a cumprir na morada indicada na respetiva identificação - com sujeição às seguintes regras de conduta:
i) de se submeter, empenhadamente, a tratamento psiquiátrico e/ou psicológico adequados;
ii) não residir na mesma habitação que o ofendido BB, nem pernoitar na mesma habitação que ele.

Autoriza-se, de modo genérico, a arguida a ausentar-se do local da vigilância eletrónica para comparência: - em consultas médicas e em tratamentos de saúde de que justificadamente careça; - em atos e diligências processuais, perante autoridade judiciária ou entidade policial, para que seja devidamente convocada.
Autoriza-se, de modo genérico, a arguida a ausentar-se do local da vigilância eletrónica para o exercício de atividade profissional, devidamente formalizada, que venha eventualmente a obter e que o tribunal venha previamente a considerar compatível com a execução da pena e com as finalidades desta.

Determinam quanto ao demais e na parte não prejudicada confirmar a decisão quo.


Sem custas por delas estar isento o M.P.

Notifique.

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Sumário
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Porto, 05 de julho de 2023
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator)

Paulo Costa
Maria Luísa Arantes
Pedro Vaz Pato
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.