Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7630/20.2T8VNG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUÍSA LOUREIRO
Descritores: TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
PROVA COMPLEMENTAR
Nº do Documento: RP202501097630/20.2T8VNG-B.P1
Data do Acordão: 01/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O “contexto” referido no n.º 2 do art. 2187.º do Cód. Civil significa todo o texto do testamento.
II - As circunstâncias em que a declaração do testador é proferida são relevantes – porque a lei admite a “prova complementar”, isto é, a (alegação e) prova de factos indiciários – na descoberta da vontade do testador, e não, enquanto limite, no afastamento da eficácia desta vontade.
III - Relevante para limitar a eficácia da vontade do testador (já) apurada é, sim, o texto do testamento, visto na sua totalidade – de modo a evitar que uma atividade interpretativa redunde numa atividade integrativa.
IV - Não tendo sido oportunamente alegada a factualidade respeitante às circunstâncias em que a declaração do testador foi proferida – às quais se refere a “prova complementar” da 1.ª parte do n.º 2 do art. 2187.º do Cód. Civil –, não podia tal matéria ter sido considerada na decisão recorrida, estando, por conseguinte, excluída do âmbito do recurso.
V - Tendo o testador declarado que “(…) institui herdeira da sua quota disponível, a sua referida mulher (…), a qual deverá começar a ser preenchida, em primeiro lugar, pelo usufruto vitalício sobre o seguinte imóvel: Prédio urbano – (…), descrito na competente Conservatória sob o número (…), inscrito na matriz sob o artigo 1 (…) e a seguir pelos restantes imóveis urbanos;”, não há suporte no texto (nem no contexto) do testamento para a afirmação da pretensa vontade do testador de que o preenchimento de tal quota disponível fosse efetuado, “em seguida, pelo usufruto vitalício sobre os restantes imóveis urbanos", porque este(s) apenas suportam a declaração do testador de constituição de um direito de usufruto vitalício sobre o concreto imóvel aí identificado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 7630/20.2T8VNG-B.P1 – Apelação

Tribunal a quo Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 4



Recorrente(s) AA
Recorrido(a/s) BB




Sumário:
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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:


I – Relatório

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

Em 11-10-2020 BB requereu inventário judicial para partilha da herança aberta por óbito de seu pai, CC, falecido em ../../2019, tendo sido nomeada cabeça de casal AA, com quem o inventariado era casado no regime de comunhão de adquiridos, em segundas núpcias dele e primeiras dela, sendo interessados herdeiros o requerente e DD, filhos do inventariado.
Apresentada a relação de bens e reclamação desta, após diversas vicissitudes processuais, foi junta aos autos, em 26-10-2023 (ref. 37085184), a relação de bens definitiva, tendo em 20-12-2023 sido ordenada a notificação dos interessados para virem dar a forma a partilha.
Pronunciou-se a cabeça-de-casal AA, nos termos do requerimento de 27-12-2023 (ref. 37668358) e o requerente e interessado BB, nos termos do requerimento de 22-01-2022 (ref. 37903856), referindo este, além do mais, que face ao testamento pelo qual o inventariado instituiu como herdeira da sua quota disponível a cabeça-de-casal sua mulher, tal quota disponível começará a ser preenchida, “[E]m primeiro lugar, pelo usufruto vitalício sobre o (…) imóvel [Prédio urbano – casa de dois pavimentos, garagem, logradouro e quintal, sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na competente Conservatória sob o número ... – ..., inscrito na matriz sob o artigo ...75] [e] a seguir, pelos restantes imóveis, ou seja, pela propriedade dos restantes imóveis.», dando conta da divergência de interpretação da cabeça-de-casal quanto a esta parte do testamento.
Em 04-03-2024 (ref. 457555819) foi proferido, nos termos do disposto na al. a) do n.º 2 do art. 1110.º do Cód. Proc. Civil, despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha.
Inconformada, a cabeça-de-casal apresentou em 11-03-2024 recurso de apelação, concluindo, em síntese, pela nulidade do despacho de 04-03-2024 por omissão de pronúncia, por não se ter pronunciado sobre a «(…) interpretação integral do testamento do inventariado a favor da sua mulher (…)» quanto ao segmento que versa sobre o modo de preenchimento da quota disponível deixada à cabeça-de-casal pelo inventariado.
Em 01-07-2024 (ref. 461597591) foi proferido despacho que, pronunciando-se sobre a nulidade e reconhecendo a omissão de pronúncia invocada, retificou o despacho de 04-03-2024, nos seguintes termos:
«(…) fazendo constar do terceiro parágrafo o seguinte:
“O inventariado fez testamento, deixando a quota disponível à sua mulher, que deverá começar por ser preenchida com o usufruto sobre o prédio que faz parte da verba 47 da relação de bens e a seguir pelos restantes bens imóveis”
Do quinto parágrafo, o seguinte:
“Nestas últimas (verbas 47 a 49), somam-se os bens e dividem-se em três partes iguais, sendo uma correspondente à quota disponível, que se atribui à viúva, que deve começar por ser preenchida com o usufruto da verba 47 e a seguir pelos restantes bens imóveis”
E do nono parágrafo, que:
“A parte que cabe ao inventariado é dividida em três partes iguais, sendo uma correspondente à quota disponível, que se atribui à viúva, já se sabendo que deve começar por ser preenchida com o usufruto da verba 47 e a seguir pelos restantes bens imóveis” (…)».

Ordenou ainda a notificação da recorrente para se pronunciar sobre a inutilidade do recurso.
A apelante, por requerimento de 22-08-2024 (ref. 399886324) referiu manter interesse no recurso, requerendo, no entanto, a ampliação do seu âmbito, em consequência da alteração efetuada à decisão recorrida, apresentando as seguintes conclusões:
1.- A Recorrente mantém interesse no recurso interposto a 11-03-2024, ref.ª 482362271.
2.- Considerando que o despacho de 01-07-2024, ref.ª 461597591, retificou o despacho de 04-03-2024, ref.ª 457555819, no sentido seguinte:
O inventariado fez testamento deixando a quota disponível à sua mulher, que deverá começar a ser preenchida com o usufruto sobre o prédio que faz parte da verba 47 da relação de bens e a seguir pelos restantes bens imóveis”. Resulta, não da parte decisória do despacho de 04-03-2024 - já retificado - mas da sua fundamentação que o testador pretendeu preencher a quota disponível com o usufruto da casa mãe, verba 47, e a seguir com a propriedade dos restantes bens imóveis.
3.- É do sentido da retificação que o despacho de 01-07-2024 fez ao despacho de 04-03-2024, que a Recorrente não concorda e justifica o alargamento do âmbito do recurso já interposto a 11 de março de 2024 em conformidade com a alteração sofrida no despacho de 04-03-2024.
Vejamos,
4.- Teor do testamento:
institui herdeira da quota disponível, a sua referida mulher, AA, a qual deverá começar a ser preenchida, em primeiro lugar, pelo usufruto vitalício sobre o seguinte imóvel:
Prédio urbano – casa de dois pavimentos, garagem, logradouro e quintal, sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na competente Conservatória sob o número ... – ..., inscrito na matriz sob o artigo ...75 e a seguir pelos restantes imóveis urbanos”.
5.- Decisão sobre a interpretação do testamento no despacho de 01-07-2024: “O inventariado fez testamento, deixando a quota disponível à sua mulher, que deverá começar por ser preenchida com o usufruto sobre o prédio que faz parte da verba 47 da relação de bens e a seguir pelos restantes bens imóveis”.
6.- Esta interpretação não está conforme a letra do testamento. No testamento pode ler-se: “(…) e a seguir pelos restantes imóveis urbanos”, (sublinhado e negrito nosso).
7.- Da relação de bens constam bens móveis, nos quais se encontra um veículo automóvel, verba 46; imóveis urbanos e dois prédios rústicos, verba 48 e 49 .
8.- O despacho interpretativo do testamento continua a não deixar claro se a quota disponível é toda ela preenchida com direito de usufruto pela casa morada de família e restantes bens imóveis urbanos – caso o usufruto da casa morada de família não seja suficiente para o preenchimento da quota disponível – ou, ao invés, caso o usufruto sobre a casa morada de família seja insuficiente, a restante deixa com a propriedade dos restantes bens imóveis urbanos.
9.- Uma coisa é certa e inequívoca. O testador pretendeu que o preenchimento da quota disponível fosse em primeiro lugar com o usufruto da casa morada de família e a seguir pelos restantes imóveis urbanos. E não, como foi interpretado, pelos restantes bens imóveis.
10.- Para a interpretação do testamento não é irrelevante que o testador tenha dito: “(…) a qual deverá começar a ser preenchida, em primeiro lugar, pelo usufruto vitalício sobre o seguinte imóvel (…) e a seguir pelos restantes imóveis urbanos”. O autor do testamento quis excluir os bens imóveis rústicos, porque estes não dão rendimento. E se quisesse referir-se à propriedade dos bens imóveis, tê-los-ia incluído a todos, como faz o Mmº Juíz do Tribunal a quo.
11.- De acordo com o disposto no artigo 2187º do Código Civil, “na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parece mais ajustado com a vontade do testador conforme o contexto do testamento”.
Ora,
12.- Se atentarmos ao contexto do testamento, pensamos mais ajustado com a vontade do testador que o mesmo seja interpretado da seguinte forma:
Desta forma, retifica-se o despacho de 04/03/2024, fazendo constar no terceiro parágrafo o seguinte:
O inventariado fez testamento, deixando a quota disponível à sua mulher, que deverá começar por ser preenchida com o usufruto sobre o prédio que faz parte da verba 47 da relação de bens e a seguir com o usufruto dos restantes bens imóveis urbanos das verbas 50 a 59 da relação de bens”. E deixará de haver qualquer dúvida interpretativa.
Tal interpretação é mais enquadrável no contexto do testamento, que parece mais ajustável com a vontade do testador e não contraria a letra do testamento.
13.- O testamento foi feito a 21-07-2016. A beneficiária do testamento tinha 76 anos, pois nasceu a 28-02-1940. O testador faleceu a ../../2019, conforme prova nos autos.
14.- Os bens móveis e imóveis, existentes à data do testamento, eram os mesmos que existiam à data do óbito do autor da herança e que constam da relação de bens de 26-10-2023, (4ª e última relação de bens).
15.- Autor da herança e esposa, cabeça de casal, tinham o seu principal rendimento proveniente das rendas dos imóveis urbanos relacionados nas verbas 50 a 59 da relação de bens, já que usufruíam de pequenas reformas e a casa morada de família era habitada pelo autor da herança e pela cabeça de casal.
16.- Instituir herdeira a cabeça de casal com o usufruto de todos os bens imóveis urbanos, nunca tal punha em causa a legítima dos seus filhos, os interessados BB e DD, qualquer que fosse o valor a final dos bens imóveis urbanos. O valor do usufruto à morte do autor da herança nunca iria valer mais do que 20% do valor dos imóveis, pois a beneficiária já tinha à data do testamento 76 anos.
17.- O que o autor da herança quis com o testamento foi, por um lado garantir de forma vitalícia que a sua mulher – que não é mãe dos seus filhos - ficasse a residir na casa morada de família e garantir-lhe o rendimento dos imóveis urbanos, que já no momento do testamento estavam arrendados.
18.- Ao interpretar o testamento como o faz o Mmo. Juiz do Tribunal a quo, teremos o preenchimento da quota disponível inoficiosa, já que é preenchida com o usufruto da casa morada de família e por um legado de todos os restantes bens imóveis. O que o autor da herança manifestamente não quis.
19.- Para fundamentar a sua interpretação do testamento refere o Mmo. Juiz do Tribunal a quo que:
Salvo sempre melhor opinião, nesta parte final o inventariado não refere que a quota disponível deve ser preenchida pelo usufruto dos restantes bens imóveis, diz apenas pelos restantes bens imóveis, parecendo que se quisesse dizer que seria pelo usufruto dos restantes bens imóveis o teria dito, como disse em relação ao primeiro, não o tendo feito.
Nesta medida, a interpretação a retirar, que é a que encontra apoio no texto do testamento, é que a quota disponível da cabeça de casal deve começar a ser preenchida com o usufruto sobre o prédio que faz parte da verba 47 da relação de bens e a seguir pelos restantes bens imóveis urbanos”.
20.- Ora, também, salvo sempre melhor opinião, o Mmo. Juiz do Tribunal a quo não tem razão na interpretação que faz no texto do testamento.
O testador em relação à casa morada de família foi expresso e tinha que utilizar a palavra “usufruto”. Em relação aos restantes bens imóveis urbanos, já não tinha que repetir a palavra usufruto. Preenche a quota disponível com o usufruto da casa morada de família e a seguir pelos restantes imóveis urbanos.Era desnecessário e inútil usar novamente a palavra usufruto se o sentido da palavra é extensivo aos restantes bens imóveis urbanos. O normal, e num bom português, é evitar-se repetição da mesma palavra, quando ela foi utilizada numa frase e o seu sentido se estende à frase seguinte. O texto e o contexto em que o testamento foi feito ajustam-se mais com a interpretação que o testador pretendeu preencher a quota disponível em primeiro com o usufruto da casa morada de família e a seguir pelo usufruto dos restantes bens imóveis urbanos.

Conclui pela alteração do despacho de 01-07-2024, que retifica o despacho de 04-03-2024, por outro que interprete o testamento no seguinte sentido: O inventariado fez testamento, deixando a quota disponível à sua mulher, que deverá começar a ser preenchida com o usufruto sobre o prédio que faz parte da verba 47 da relação de bens e a seguir pelo usufruto dos restantes bens imóveis urbanos, das verbas 50 a 59 da mesma relação.

Não foi apresentada resposta.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a decidir

Cumpre apreciar se existe erro da decisão proferida quanto à interpretação do testamento.
Acresce a responsabilidade quanto a custas.

IIIFundamentação

De facto
A matéria de facto relevante para a apreciação do recurso é a seguinte, emergente da tramitação dos autos e da prova documental junta ao processo:
1 – O inventariado CC faleceu em ../../2019.
2 – Conforme escritura de habilitação de herdeiros outorgada em 28 de fevereiro de 2020 no Cartório Notarial sito na Alameda ..., ..., sucederam-lhe como herdeiros, além do cônjuge AA com quem era casado no regime de comunhão de adquiridos, em segundas núpcias dele e primeiras dela, dois filhos furto do primeiro casamento do inventariado, o requerente BB e o interessado DD.
3 – O inventariado deixou testamento outorgado em 21-07-2016 no Cartório Notarial da Notária EE, sito em ..., cuja cópia se encontra junta ao processo, do qual consta, além do mais que aqui se dá por reproduzido:
«(…) E PELO TESTADOR FOI DITO:
Que, pelo presente testamento:
Um) revoga o testamento por si outorgado neste Cartório no passado dia doze, (…);
Dois) institui herdeira da sua quota disponível, a sua referida mulher, AA, a qual deverá começar a ser preenchida, em primeiro lugar, pelo usufruto vitalício sobre o seguinte imóvel:
Prédio urbano – casa de dois pavimentos, garagem, logradouro e quintal, sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na competente Conservatória sob o número ... – ..., inscrito na matriz sob o artigo ...75 e a seguir pelos restantes imóveis urbanos;
Dois) na eventualidade daquela sua mulher lhe não sobreviver, institui herdeiros da qua quota disponível, em comum e partes iguais, os seus quatro netos, respetivamente:
a) FF (…)
b) GG (…), filhos do seu filho DD;
c) HH; e
d) II, (…) filhos do seu filho BB.
Mais declara que emprestou ao filho DD a quantia de cento e nove mil setecentos e trinta e cinco euros e cinquenta e quatro cêntimos, que se até à hora da sua morte não a tiver restituído, deverá ser deduzida no valor da legítima a que ele vai ter direito. (…)».
4 – Os bens a partilhar são os descritos na Relação de Bens junta ao processo a 26-10-2023 (ref. 37085184), que aqui se dá por integralmente reproduzida, dela constando, além do mais, descritos os seguintes bens:

(…)
B) - Bens Imóveis
Verba nº 47
2/3 do prédio urbano, casa de dois pavimentos, com garagem, logradouro e quintal, sito na Rua ..., ..., ao Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ...91-... e inscrito na matriz sob o artigo ...75, com o correspondente valor patrimonial atual de cinquenta mil seiscentos e sessenta e dois euros e três cêntimos - Doc. nº 3 e 4.
No logradouro deste prédio foi implantado o prédio urbano, sito na Rua ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo ...92, construído pelo inventariado e pelos interessados DD e BB, em partes iguais, com o correspondente valor patrimonial atual de dezoito mil cento e trinta e quatro euros e sessenta e sete cêntimos - Doc. nº 6 - no valor global de sessenta e oito mil setecentos e noventa e seis euros e setenta cêntimos……………………€ 68.796,70
Verba nº 48
2/3 do terreno destinado a construção, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar do norte com estrada, sul com JJ, do nascente com CC e do poente com KK, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ...93-..., e inscrito na matriz rústica sob o artigo ...79, com o correspondente valor patrimonial atual de cinco euros e trinta e seis cêntimos - Doc. nº 5 e 8……………€ 5,36
Verba nº 49
2/3 do prédio rústico, terreno a ramada, sito na Rua ..., ao Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar do norte com CC, do sul e poente com JJ e do nascente com LL, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ...92-... e então inscrito na matriz sob parte do artigo rústico ...84 e atualmente omisso na matriz, com o valor atribuído de três euros - Doc. nº 7………………………………………€ 3,00
Verba nº ...
Fração autónoma designada pela letra « P », correspondente a uma habitação no segundo andar direito, com entrada pelo nº ...3, do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ...20-... e inscrito na matriz sob o artigo ...50..., com o valor patrimonial atual de cinquenta e dois mil trezentos e oitenta e dois euros e cinquenta e seis cêntimos - Doc. nº 19 e 20………….€ 52.382,56
Verba nº 51
Fração autónoma designada pela letra « B », correspondente a uma habitação no rés-do-chão centro frente, com entrada pelo nº ...62, do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., ... e Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ...92-... e inscrito na matriz sob o artigo ...44..., com o valor patrimonial atual de sessenta e um mil seiscentos e sessenta e um euros e trinta e cinco cêntimos - Doc. nº 21 e 22 .....€ 61.661,35
Verba nº 52
Fração autónoma designada pela letra « I », correspondente a uma habitação no segundo andar direito, com entrada pelo nº ...21, do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ...97-... e inscrito na matriz sob o artigo ...77..., com o valor patrimonial atual de cinquenta mil seiscentos e noventa e nove euros e vinte e cinco cêntimos - Doc. nº 23 e 24………………………€ 50.699,25
Verba nº 53
Fração autónoma designada pela letra « G », correspondente a uma habitação no segundo andar esquerdo, com entrada pelo nº ...35, do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ...93-... e inscrito na matriz sob o artigo ...79..., com o valor patrimonial atual de cinquenta e um mil duzentos e seis euros e setenta e cinco cêntimos - Doc. nº 25 e 26…………………………€ 51.206,75
Verba nº 54
Fração autónoma designada pela letra « H », correspondente a uma habitação no segundo andar direito frente, com entrada pelo nº ...9 e garagem na cave devidamente assinalada com a respetiva letra, do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ...27-... e inscrito na matriz sob o artigo ...30..., com o valor patrimonial atual de oitenta e três mil setenta e nove euros e trinta cêntimos - Doc. nº 27 e 28………………………………………………………………€ 83.079,30

Verba nº 55
Fração autónoma designada pela letra « D », correspondente a uma habitação no rés-do-chão esquerdo, do prédio em regime de propriedade horizontal sito no gaveto da Rua ..., ..., Rua B nº 12 e Rua sem denominação oficial, nº ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ...42-... e inscrito na matriz sob o artigo ...10..., com o valor patrimonial atual de quarenta e quatro mil novecentos e cinquenta e oito euros e cinquenta e três cêntimos - Doc. nº 9 e 10………............................€ 44.958,53
Verba nº 56
Fração autónoma designada pela letra «AG», correspondente a um lugar de garagem na cave, do prédio em regime de propriedade horizontal sito no gaveto da Rua ..., ..., Rua ... e Rua sem denominação oficial, nº ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ...42-... e inscrito na matriz sob o artigo ...10..., com o valor patrimonial atual de dois mil trezentos e oitenta e um euros e setenta e sete cêntimos - Doc. 11 e 12….€ 2.381,77
Verba nº 57
Fração autónoma designada pela letra « AL », correspondente a uma habitação no terceiro andar direito, com entrada pelo nº ...0, do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ... e Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ...76-... e inscrito na matriz sob o artigo ...67..., com o valor patrimonial atual de cinquenta e três mil trezentos e noventa euros e vinte e sete cêntimos - Doc. nº 13 e 14…...€ 53.390,27
Verba nº 58
Fração autónoma designada pela letra « AW », correspondente a um lugar e aparcamento na cave, com entrada pelo nº ..., do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ... e Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ...76-... e inscrito na matriz sob o artigo ...67..., com o valor patrimonial atual de mil duzentos e sessenta e três euros e sessenta e sete cêntimos - Doc. nº 15 e 16…………………………….€ 1.263,67
Verba nº 59
Fração autónoma designada pela letra « AI », correspondente a lugar de aparcamento na cave, com entrada pelo nº ...5, assinalada com o nº 5, do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ...20-... e inscrito na matriz sob o artigo ...50..., com o valor patrimonial atual de mil duzentos e cinquenta e cinco euros e oitenta e seis cêntimos - Doc. nº 17 e 18………………€ 1.255,86

5 – Em 14-03-2024 o tribunal recorrido proferiu o seguinte despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha:
Procede-se a inventário por óbito de CC ocorrido a ../../2019, tendo a sua última residência sido em ....
O inventariado era casado e deixou dois filhos.
O inventariado fez testamento, deixando a quota disponível à sua mulher, que deverá começar por ser preenchida com o usufruto sobre o prédio que faz parte da verba 47 da relação de bens.
A relação de bens é a que foi apresentada a 26/10/2023. Nesta terá de se distinguir as verbas 1 a 46 e 50 a 59 das verbas 47 a 49, dado que aqueles primeiros são bens comuns do inventariado e da viúva e os segundos são bens próprios do inventariado.
Nestas últimas (verbas 47 a 49), somam-se os bens e dividem-se em três partes iguais, sendo uma correspondente à quota disponível, que se atribui à viúva, que deve começar por ser preenchida com o usufruto da verba 47.
Tendo esta à data do decesso do inventariado 79 anos de idade, para o cálculo do valor do usufruto deve recorrer-se por analogia à tabela do artigo 13.º, a), do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMI), o que permite atingir o valor de 13.759,34€ (68.796,70€x20%) como sendo o do usufruto e 55.037,36€ como sendo a nua propriedade.
Note-se que este valor é calculado em função do valor patrimonial tal como relacionado, certo que se esse bem vier a ser adjudicado ou vendido por valor superior, essa circunstância obrigará a que se recalcule o valor do usufruto.
Os restantes 2/3 dividem-se em três partes iguais, sendo cada uma delas adjudicadas ao seu cônjuge e a cada um dos seus dois filhos.
Naquelas primeiras (verbas 1 a 46 e 50 a 59), somam-se os bens e divide-se em duas partes, cabendo uma ao inventariado e a outra à viúva, dado que são bens comuns.
A parte que cabe ao inventariado é dividida em três partes iguais, sendo uma correspondente à quota disponível, que se atribui à viúva, já se sabendo que deve começar por ser preenchida com o usufruto da verba 47.
Os restantes 2/3 dividem-se em três partes iguais, sendo cada uma delas adjudicadas ao seu cônjuge e a cada um dos seus dois filhos.
Não existe passivo.
Notifique.

6 – Na sequência do recurso de apelação interposto pela cabeça-de-casal 11-03-2024, em que esta requereu fosse considerado nulo o despacho de 14-03-2024 por omissão de pronúncia quanto à interpretação integral do testamento do inventariado a favor da sua mulher, e substituído por outro que dê pronúncia quanto à forma do preenchimento total da quota disponível, o tribunal recorrido proferiu o despacho de 01-07-2024, com o seguinte teor:
Veio a cabeça de casal AA interpor recurso do despacho proferido a 04/03/2024 que saneou o processo e deu a forma à partilha, alegando que o tribunal não se pronunciou sobre a questão relacionada sobre o preenchimento da quota disponível no testamento deixado pelo inventariado, sendo assim nula a decisão proferida.
Ora, face ao teor do exposto, nos termos do artigo 641.º, 1, do CPC, vai este Tribunal pronunciar-se sobre essa matéria.
De facto, a cabeça de casal tem razão, mas existe uma razão objetiva para o despacho do tribunal.
Na forma à partilha diz-se “o inventariado fez testamento, deixando a quota disponível à sua mulher, que deverá começar por ser preenchida com o usufruto sobre o prédio que faz parte da verba 47 da relação de bens” e não se disse mais nada, pela simples razão que consultou o testamento que foi junto com o requerimento inicial e deste nada mais consta.
Percebe agora que esse documento está incompleto, dele faltando a segunda página, tendo o requerente do inventário junto inicialmente esse testamento incompleto e depois novamente o mesmo testamento, agora completo, o que passou despercebido ao tribunal.
Neste sentido, verifica-se que o testador “institui herdeira da quota disponível, a sua referida mulher, AA, a qual deverá começar a ser preenchida, em primeiro lugar, pelo usufruto vitalício sobre o seguinte imóvel:
Prédio urbano – casa de dois pavimentos, garagem, logradouro e quintal, sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na competente Conservatória sob o número ... – ..., inscrito na matriz sob o artigo ...75 e a seguir pelos restantes imóveis urbanos;”.
Neste sentido, o inventariado deixou a quota disponível à sua mulher, precisando que bens a devem preencher, em primeiro lugar, pelo usufruto do bem imóvel referido (que será o prédio da verba 47) e a seguir pelos restantes bens imóveis.
Salvo sempre melhor opinião, nesta parte final o inventariado não refere que a quota disponível deve ser preenchida pelo usufruto dos restantes bens imóveis, diz apenas pelos restantes bens imóveis, parecendo que se quisesse dizer que seria pelo usufruto dos restantes bens imóveis o teria dito, como disse em relação ao primeiro, não o tendo feito.
Nesta medida, a interpretação a retirar, que é a que encontra apoio no texto do testamento, é que a quota disponível da cabeça de casal deve começar a ser preenchida com o usufruto sobre o prédio que faz parte da verba 47 da relação de bens e a seguir pelos restantes imóveis urbanos.
Desta forma, retifica-se o despacho de 04/03/2024, fazendo constar do terceiro parágrafo o seguinte:
“O inventariado fez testamento, deixando a quota disponível à sua mulher, que deverá começar por ser preenchida com o usufruto sobre o prédio que faz parte da verba 47 da relação de bens e a seguir pelos restantes bens imóveis”
Do quinto parágrafo, o seguinte:
“Nestas últimas (verbas 47 a 49), somam-se os bens e dividem-se em três partes iguais, sendo uma correspondente à quota disponível, que se atribui à viúva, que deve começar por ser preenchida com o usufruto da verba 47 e a seguir pelos restantes bens imóveis”
E do nono parágrafo, que:
“A parte que cabe ao inventariado é dividida em três partes iguais, sendo uma correspondente à quota disponível, que se atribui à viúva, já se sabendo que deve começar por ser preenchida com o usufruto da verba 47 e a seguir pelos restantes bens imóveis”
Notifique, sendo ainda à recorrente para se pronunciar sobre a inutilidade do recurso.

Análise dos factos e aplicação da lei

São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Âmbito do recurso
2. Fundamentos do recurso
2.1. Desconsideração do texto do testamento quanto à natureza dos imóveis
2.2. Erro na interpretação da disposição testamentaria
3. Conclusão
4. Responsabilidade pelas custas

1. Âmbito do recurso

Atendendo a que o tribunal a quo, no despacho proferido em 01-07-2024, supriu a nulidade arguida pela aqui apelante em 11-03-2024, o recurso interposto tem por objeto a decisão proferida pelo tribunal a quo em 01-07-2024, considerando-se ainda o alargamento do âmbito do recurso efetuado pelo apelante no requerimento de 22-08-2024, nos termos decorrentes do disposto no art. 617.º, n.º 2 e n.º 3, do Cód. Proc. Civil.
Discorda a apelante da decisão proferida em 01-07-2024, na parte em que, pronunciando-se sobre o sentido e alcance do testamento outorgado pelo inventariado em 21-07-2016, decidiu que no testamento em que o testador instituiu como herdeira da quota disponível a sua mulher – a aqui cabeça-de-casal apelante –, o testador precisou os bens que a devem preencher, sendo tal preenchimento efetuado em primeiro lugar pelo usufruto do bem imóvel referido no testamento (que será o prédio da verba 47) e a seguir pelos restantes bens imóveis.
Cumpre, assim, apreciar se há erro do tribunal a quo na interpretação efetuada.

2. Fundamentos do recurso

2.1. Desconsideração do texto do testamento quanto à natureza dos imóveis

Inicia a apelante por alegar que a retificação ordenada na decisão recorrida não está conforme à letra do testamento, porque deste consta «(…) e a seguir pelos restantes imóveis urbanos».
Efetivamente do testamento consta expressa indicação quanto à natureza urbana dos imóveis. Portanto, na fixação do sentido do testamento efetuado pela decisão recorrida há que considerar que o que dele resulta quanto ao preenchimento ‘a seguir pelos restantes bens imóveis’ é que tal se restringe aos imóveis urbanos. No entanto, lida a decisão recorrida, percebe-se que a omissão da palavra ‘urbanos’ a seguir a ‘restantes bens imóveis’ (ver retificação dos terceiro, quinto e nono parágrafos do despacho de 04/03/2024 determinada na decisão recorrida) constitui um manifesto lapso de escrita, revelado pelo próprio contexto da declaração. Tal resulta, designadamente, do seguinte trecho da decisão recorrida, em que expressamente se faz referência à natureza urbana dos ‘restantes imóveis’ – conforme realce e sublinhado nossos –, que o tribunal recorrido ulteriormente omitiu no texto das retificações ordenadas: «(…) Nesta medida, a interpretação a retirar, que é a que encontra apoio no texto do testamento, é que a quota disponível da cabeça de casal deve começar a ser preenchida com o usufruto sobre o prédio que faz parte da verba 47 da relação de bens e a seguir pelos restantes imóveis urbanos. (…)».

Não se está aqui, assim, perante um efetivo erro da decisão recorrida na interpretação da disposição testamentária, mas antes perante um lapso de escrita (omissão da palavra ‘urbanos’), que dá lugar à respetiva retificação (arts. 249.º e 295.º do Cód. Civil, e art. 614.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil), a qual se determina.

2.2. Erro na interpretação da disposição testamentaria

Invoca a apelante que, atendendo ao disposto no art. 2187.º do Cód. Civil e ao contexto do testamento, a interpretação conforme com a vontade do testador é a de que o mesmo pretendeu estipular que a quota disponível, de que instituiu a sua mulher como herdeira, deve começar a ser preenchida com o usufruto sobre o prédio que faz parte da verba 47 da relação de bens e a seguir com o usufruto dos restantes bens imóveis urbanos das verbas 50 a 59 da relação de bens – e não a interpretação fixada na decisão recorrida.

Dispõe o art. 2187.º do Cód. Civil (Interpretação dos testamentos):
1. Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.
2. É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.

Numa leitura possível destas duas normas, poder-se-á sustentar que, na interpretação das disposições testamentárias, valerá a vontade do testador, salvo se não tiver no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.
Afigura-se-nos que neste art. 2187.º do Cód. Civil, a palavra “contexto” designa o restante texto do testamento, isto é, os enunciados que não dizem diretamente respeito à deixa testamentária interpretada. Tal entendimento tem total cobertura na doutrina mais qualificada, tendo a sua origem na disposição do Código de Seabra que antecedeu as normas enunciadas no art. 2187.º do Cód. Civil.
Dispunha o art. 1761.º do Código Civil de 1867 que “Em caso de dúvida sobre a interpretação da disposição testamentária, observar-se-á o que parecer mais ajustado com a intenção do testador, conforme o contexto do testamento”. Explicava Cunha Gonçalves que “deve o juiz atender só ao contexto do testamento, isto é, não só ao texto da disposição duvidosa ou obscura, mas também às restantes disposições, cuja letra e cujo espírito podem esclarecer aquela” – cfr. Luiz da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Vol. IX, Coimbra, Coimbra Editora, 1934, p. 637.
Do aproveitamento desta doutrina para a interpretação do disposto no art. 2187.º do Cód. Civil resulta que “contexto”, significando “contexto do testamento”, corresponde ao restante texto, isto é, ao texto que, com a disposição interpretada, forma o testamento. Trata-se da tradução da máxima romana in testamentis plenius voluntates testantium interpretantur – assim, cfr. Cunha Gonçalves, op. e pág. já citadas.
Deve, no entanto, ter-se presente que não é este o sentido que alguma jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça dá a “contexto” – isto é, não é o sentido de “(restante) texto do testamento” apenas. Veja-se, por exemplo, o Ac. do STJ de 24-02-2011, proc. n.º 1611/06.6TBGDM.PL.S1, no qual é sustentado que “deve ter-se presente que quando a lei (artigo 2187.º do Cód. Civil) fala em contexto do testamento e não em texto do testamento, isto só poderá querer dizer que a interpretação do testamento não pode ficar-se por uma interpretação de cada palavra, de cada disposição, isoladamente consideradas, mas que todas as disposições têm de ser analisadas vendo o testamento no seu todo.
De facto, uma determinada disposição, separadamente interpretada, pode parecer incompleta, obscura, mesmo ininteligível, mas vista à luz de todo o documento do testamento (e factos complementares) pode ganhar clareza e perfeitamente integrada na vontade real do testador, com correspondência no contexto do testamento, ainda que imperfeitamente expressa.”. Neste aresto, o STJ integrou, assim, no conceito de “contexto”, para além de “todo o documento do testamento”, os “factos complementares”, isto é, as circunstâncias em que a declaração do testador é proferida. Já noutros arestos surge com maior nitidez a distinção entre “contexto” (correspondendo a todo o texto do testamento) e as circunstâncias em que a declaração do testador é proferida, às quais se refere a “prova complementar”, isto é, a alegação e prova de factos indiciários – assim, cfr. os Acs. do STJ de 20-01-2010, proc. n.º 144/08.0TBVNC.G1.S1 e de 17-04-2012, proc. n.º 259/10.5TBESP.P1.S1 e, na esteira de Manuel de Andrade, o Ac. do STJ de 25-05-2023, proc. n.º 1504/18.4T8PVZ.S1.
Afigura-se-nos que a boa interpretação é aquela em que “contexto” significa todo o texto do testamento (com texto ou texto que, com a disposição interpretada, constitui o testamento). Só assim faz sentido a ideia de que a vontade do testador (já) apurada deve ter (um mínimo de) “correspondência” “no contexto” – isto é, deve ter correspondência na totalidade do texto do testamento. É desprovido de lógica dizer-se que a vontade do testador (já) apurada deve ter (um mínimo de) “correspondência” nas circunstâncias em que a declaração do testador é proferida, quando foi a partir destas circunstâncias que a vontade do testador foi apurada. Ou seja, estas circunstâncias são relevantes – porque a lei admite “prova complementar” – na descoberta da vontade do testador, e não, enquanto limite, no afastamento da eficácia desta vontade. Relevante para limitar a eficácia da vontade do testador (já) apurada é, sim, o texto do testamento, visto na sua totalidade – à semelhança, aliás, do disposto no n.º 1 do art. 238.º do Cód. Civil.
Em suma, o “contexto do testamento”, no sentido de circunstâncias em que a declaração do testador é proferida, é relevante no apuramento da vontade deste. Uma vez apurada a vontade real do testador, a correspondência mínima ao “contexto” da disposição interpretada no testamento (as restantes disposições, isto é, o texto do testamento no seu todo) constitui o limite à eficácia reconhecida à vontade do testador – de modo a evitar que uma atividade interpretativa redunde numa atividade integrativa.

Aplicando estas considerações ao caso em análise, verificamos que a apelante, para justificar a interpretação que pretende ver fixada, invoca diversa factualidade – ver conclusões 13. a 15. e 17. – que não integram nem o texto nem o contexto do testamento; antes constituem “circunstâncias em que a declaração do testador é proferida, às quais se refere a “prova complementar”, isto é, a alegação e prova de factos indiciários” (1.ª parte do n.º 2 do art. 2187.º do Cód. Civil).
Começaremos por dizer que é só nas alegações de recurso que a apelante invoca, pela primeira vez, a referida factualidade. Aliás, a cabeça-de-casal nem havia suscitado anteriormente qualquer questão atinente à interpretação do testamento. Quem o fez, pela primeira vez, foi o interessado BB no requerimento de 22-01-2022 (ref. 37903856) em que propõe a forma à partilha.
Verificamos assim que a factualidade a que se referem as conclusões 13. a 15. e 17. não constitui matéria de facto oportunamente alegada pela cabeça-de-casal para fundamentar a alegada vontade do testador (no âmbito da chamada ‘prova complementar’), pelo que não foi nem podia ter sido tida em conta na decisão recorrida, não sendo, por conseguinte, passível de ser considerada no âmbito do recurso aqui em apreciação, o qual se restringe, deste modo, à interpretação do contexto do testamento, nos moldes e com o alcance supra referido, ou seja, considerando todo o texto do testamento.
Do teor do testamento resulta que, pelo mesmo, o testador:
Dispôs da quota disponível da herança, atribuindo a mesma à sua mulher e cabeça-de-casal (“institui herdeira da sua quota disponível, a sua referida mulher, AA”);
Constituiu usufruto vitalício sobre o imóvel descrito no testamento a favor da cabeça-de-casal sua mulher ([a quota disponível de que institui herdeira a cabeça-de-casal] deverá (…) ser preenchida (…) pelo usufruto vitalício sobre o seguinte imóvel: (…)) – ver arts. 1440.º e 2179.º do Cód. Civil;
Determinou a forma de preenchimento da quota disponível de que instituiu herdeira a cabeça de casal – em primeiro lugar pelo usufruto vitalício constituído pelo testamento e a seguir pelos restantes imóveis urbanos.
Nem o texto nem o contexto do testamento suportam, de todo, a interpretação defendida pela cabeça-de-casal, porque do mesmo apenas consta uma declaração do testador de constituição de um direito de usufruto vitalício sobre o concreto imóvel aí identificado.
Não há qualquer suporte no texto ou contexto do testamento para a pretendida declaração de constituição de ‘usufruto’ sobre os restantes imóveis urbanos; o que resulta do texto e contexto do testamento, além da constituição de usufruto vitalício sobre o imóvel ai identificado, é que o preenchimento da quota disponível instituída a favor da cabeça de casal se inicia em primeiro lugar, pelo referido direito de usufruto (constituído no testamento sobre o imóvel aí identificado) e a seguir pelos restantes imóveis urbanos.

Acresce ser desprovida de sentido a argumentação constante das conclusões 16. e 18. quanto à alegação de que a interpretação efetuada coloca “em causa da legítima dos filhos, os interessados BB e DD” e que ao “interpretar o testamento como o faz o M.mo Juiz do Tribunal a quo, teremos o preenchimento da quota disponível inoficiosa”.
Tal apenas faria sentido se do testamento resultasse ter o testador atribuído à cabeça-de-casal todos os imóveis urbanos. Mas não é isso que resulta do testamento: o que o testador atribuiu à cabeça-de-casal foi a quota disponível, sendo esta preenchida em primeiro lugar pelo usufruto sobre o imóvel e em seguida – naturalmente, até ao limite do valor da referida quota disponível – pelos “restantes imóveis urbanos”.


3. Conclusão

Em conformidade, improcede o recurso quanto à pretensão de interpretação do testamento no sentido pretendido pela apelante – de ter sido constituído pelo testador usufruto sobre os ‘restantes bens imóveis urbanos’ a favor da cabeça-de-casal apelante e, consequentemente, da determinação do preenchimento da quota disponível “a seguir pelo usufruto dos restantes bens imóveis urbanos”.
Apenas cumpre retificar a omissão, devida a lapso de escrita, da decisão recorrida quanto à natureza dos “restantes bens imóveis” – como urbanos.

Concluímos, deste modo, que a retificação do despacho de 04-03-2024 ordenada na decisão recorrida deve ser, por seu turno, retificada, nos seguintes termos:
1) – Fazendo constar do terceiro parágrafo “O inventariado fez testamento, deixando a quota disponível à sua mulher, que deverá começar por ser preenchida com o usufruto sobre o prédio que faz parte da verba 47 da relação de bens e a seguir pelos restantes bens imóveis urbanos.”
2) – Fazendo constar do quinto parágrafo “Nestas últimas (verbas 47 a 49), somam-se os bens e dividem-se em três partes iguais, sendo uma correspondente à quota disponível, que se atribui à viúva, que deve começar por ser preenchida com o usufruto da verba 47 e a seguir pelos restantes bens imóveis urbanos.”
3) – Fazendo constar do nono parágrafo “A parte que cabe ao inventariado é dividida em três partes iguais, sendo uma correspondente à quota disponível, que se atribui à viúva, já se sabendo que deve começar por ser preenchida com o usufruto da verba 47 e a seguir pelos restantes bens imóveis urbanos.”




4. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Regulamento das Custas Processuais).
A responsabilidade pelas custas da apelação cabe à apelante, por ter ficado vencida (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).



IVDispositivo

Pelo exposto, na improcedência da apelação, acorda-se em confirmar a decisão recorrida, sem prejuízo da retificação do despacho recorrido determinada nos moldes supra referidos em 3.

Custas da apelação a cargo da apelante (art. 527.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).
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Notifique.
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Porto, 9/1/2025 (data constante da assinatura eletrónica)

Ana Luísa Loureiro
João Venade
Ana Vieira