Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
411/21.8T8OVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL
DOCUMENTO PARTICULAR
PROCESSO DE INVENTÁRIO
Nº do Documento: RP20221124411/21.8T8OVR.P1
Data do Acordão: 11/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O artigo 458.º do Código Civil refere-se à situação em que alguém reconhece uma dívida sem indicar a relação que está na origem da dívida, não às situações em que na declaração o devedor enuncia expressamente a causa da dívida reconhecida.
II - A declaração constante de um documento escrito na qual uma pessoa se confessa devedor perante outro em razão de uma determinada causa constitui uma confissão extrajudicial escrita em documento particular.
III - O documento particular cuja autoria esteja reconhecida faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento; também os factos compreendidos na declaração se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2022:411.1.8T8OVR.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal nº ..., residente em ..., instaurou acção judicial com processo comum contra BB, contribuinte fiscal nº ..., residente em Ovar, pedindo a condenação da ré a pagar à autora a quantia de 10.000,00€, acrescida de juros legais, contados desde a citação até integral pagamento.
Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que é irmã da ré, ambas interessadas no inventário por morte dos seus pais, no âmbito do qual, face ao modo como foi feita a partilha, foi convencionado extrajudicialmente que a ré devia à autora a quantia de 10.000,00€, conforme a ré declarou no documento que assinou intitulado “reconhecimento do débito”, sendo que não pagou tal quantia.
A ré foi citada e apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção e alegando, para o efeito, que a partilha foi feita conforme consta da acta da conferência de interessados e do qual não resulta que a ré tivesse de pagar quaisquer tornas, sendo que o documento que a autora junta foi subscrito pela ré por esta se encontrar convencida de que, de acordo com a forma à partilha, teria de pagar a referida quantia à irmã a título de tornas, o que não corresponde à realidade.
Realizado julgamento, foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada procedente e a ré condenada no pedido.
Do assim decidido, a interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1.ª A douta sentença de fls. padece de erro de julgamento da matéria de facto e de direito, devendo ser revogada e substituída por outra que considere a acção totalmente improcedente, com as demais consequências legais;
2.ª Dos doc.s n.ºs 1 e 2 juntos à contestação da Recorrente (designadamente, acta da conferência de interessados e sentença homologatória da partilha, transitada em julgado - processo de inventário n.º 3506/12.5T2OVR, que correu os seus termos na (extinta) Comarca do Baixo Vouga, Ovar - Juízo de Média e Pequena Instância Cível) - cuja falsidade não foi invocada e cujo teor não se encontra controvertido - resulta manifesto que, o que foi acordado quanto à partilha, na respectiva conferência de interessados, entre Recorrente, Recorrida e demais interessados, no processo de inventário n.º 3506/12.5T2OVR, que correu os seus termos na (extinta) Comarca do Baixo Vouga, Ovar - Juízo de Média e Pequena Instância Cível, foi o seguinte: “(…) 1º - Todos os interessados acordam na actualização do passivo relacionado na verba nº 1 para a quantia de 1.681,86€, que passa a incluir o IMI relativo aos anos de 2012/2013. 2º - As verbas 1 a 5 são adjudicadas à cabeça de casal BB e à interessada AA, pelo valor da relação de bens. 3º - Ao interessado CC são adjudicadas as verbas nºs 6 e 7 pelo valor da relação de bens. 4º - As verbas 8 a 11 são adjudicadas às respectivas donatárias, pelo valor constante da relação de bens. 5º - As tornas devidas pelo interessado CC, no montante de 10.165,00€, serão pagas à cabeça de casal e interessada AA, no prazo de 30 dias. 6º - O pagamento do passivo relacionado será pago pelo interessado CC, à cabeça de casal, no mesmo prazo de 30 dias. 7º - O interessado CC, findo aquele prazo, deverá comprovar nos autos os pagamentos referidos em “5 e 6”. (…)”;
3.ª A assinatura autógrafa da recorrente no documento junto aos autos sob o doc. n.º 3 da petição inicial, pelo qual a recorrente se declara devedora de €10.000,00 a título de tornas à recorrida, não pode, em caso algum, admitir-se como sendo sequência do acordo de partilha homologado por sentença proferida em 02-07-2014, pois, de tal acordo de partilha, não se vislumbra onde ficou plasmada a obrigação de a recorrente pagar tornas a quem quer que seja;
4.ª Do depoimento da testemunha DD - sobremaneira, espontâneo, verosímil e consistente - em concatenação com a prova documental (doc.s n.ºs 1 e 2 juntos à contestação da recorrente), podem-se retirar as seguintes conclusões:
» No âmbito da conferência de interessados - realizada no âmbito do processo de inventário n.º 3506/12.5T2OVR, que correu os seus termos na (extinta) Comarca do Baixo Vouga, Ovar - Juízo de Média e Pequena Instância Cível - o interessado CC (irmão da recorrente e recorrida e tio da testemunha DD) foi o único que ficou obrigado ao pagamento de tornas - na quantia global de €10.165,00 - a serem pagas à recorrente e recorrida, no prazo de 30 dias, como, aliás, ficou consignado em acta.
» No âmbito daquele processo de inventário, a recorrente tornas algumas tinha a pagar à recorrida ou a quem quer que fosse.
» Recorrente e recorrida dividiram entre si o valor das tornas que lhe eram devidas e foram pagas pelo interessado CC.
» Decorrido mais de meio ano desde a data da referida conferência de interessados, por indicação da Dr.ª EE, na altura advogada da recorrente e da recorrida, a recorrente tomou conhecimento que, alegadamente, era, também, devedora de tornas à sua irmã, aqui recorrida, na quantia de 10.000,00€.
» Duvidando ser devedora daquela quantia a título de tornas, a recorrente diligenciou no sentido de obter esclarecimentos junto da advogada Dr.ª EE e, inclusive, de outro advogado, obtendo, por parte da primeira a confirmação de que tal valor era devido à recorrida.
» Atenta a relação que tinha com a recorrida, pressionada por esta para o fazer, e julgando, que, face ao que lhe fora transmitido por aquela advogada, era de facto devedora de tornas à recorrida, a recorrente assinou o documento junto aos autos sob o doc. n.º 3 da petição inicial.
5.ª O tribunal “a quo” errou ao dar como provado que a recorrente apôs a sua assinatura autógrafa no documento junto aos autos sob o doc. n.º 3 da petição inicial, na sequência do acordo de partilha que foi homologado por sentença proferida em 02-07-2014 (facto 3 dos factos dados como provados).
6.ª O tribunal “a quo” errou ao dar como não provado que “ao subscrever a declaração referida no ponto 3., dos factos provados, a ré estivesse erradamente convencida de que devia tal quantia à autora.”
7.ª Deve o excerto do facto 3. dos factos dados como provados - “Na sequência de tal acordo de partilha, em 26/11/2015, a ré apôs a sua assinatura autógrafa no documento junto aos autos como doc. 3, da petição inicial (…)” - ser julgado como não provado.
8.ª Deve o facto não provado - “Ao subscrever a declaração referida no ponto 3., dos factos provados, a ré estivesse erradamente convencida de que devia tal quantia à autora” - ser julgado como provado.
9.ª O tribunal “a quo” violou o disposto no art. 607.º, n.ºs 4 e 5 do Código de Processo Civil.
10.ª Dos autos não resultam - excluindo-se do documento (declaração unilateral) junto aos autos sob o doc. n.º 3 da petição inicial, documento cujo teor se encontra infirmado nos termos referidos anteriormente - quaisquer factos de onde se possa extrair e valorar, objectivamente, que a recorrente seja devedora da quantia de €10.000,00 a título de tornas à recorrida.
11.ª Afastada a presunção da existência da relação fundamental que subjaz à emissão da declaração de reconhecimento de débito, junta aos autos sob o doc. n.º 3 da petição inicial, encontra-se a recorrida onerada com a obrigação de alegação minimamente circunstanciada dos factos constitutivos da relação material subjacente à emissão da declaração em causa, o que, como resulta dos autos, não o fez.
12.ª A recorrente assinou a declaração de reconhecimento de débito, junta aos autos sob o doc. n.º 3 da petição inicial em claro equívoco/engano.
13.ª A recorrente, fiada nos esclarecimentos que lhe foram prestados pela advogada Dr.ª EE, representou inexacta ou falsamente circunstâncias de facto que foram determinantes na decisão de apor a assinatura autógrafa da mesma na declaração de reconhecimento de débito, junta aos autos sob o doc. n.º 3 da petição inicial, designadamente, a de que, alegadamente, era devedora de tornas à sua irmã, aqui recorrida, na sequência do acordo de partilha alcançado no âmbito do processo de inventário n.º 3506/12.5T2OVR, que correu os seus termos na (extinta) Comarca do Baixo Vouga, Ovar - Juízo de Média e Pequena Instância Cível.
14.ª A recorrida conhecia, ou, pelo menos, não podia ignorar a essencialidade para a recorrente do elemento sobre que incidiu o erro determinante da sua vontade.
15.ª A recorrente assinou o documento junto aos autos sob o doc. n.º 3 da petição inicial, na sequência de todas as indicações prestadas pela advogada, pelo que é manifesto que a vontade declarada pela recorrente não correspondeu à sua vontade real e que há erro na formação da sua vontade, o que, consequentemente, permite a anulação da declaração de reconhecimento de débito, junta aos autos sob o doc. n.º 3 da petição inicial.
16.ª Qualquer valor a ser pago pela recorrente à recorrida, constituiria sempre um enriquecimento sem causa da última em detrimento da primeira, sem motivo justificativo, na medida em que nada nesse sentido havia ficado acordado no processo de inventário n.º 3506/12.5T2OVR, que correu termos na (extinta) Comarca do Baixo Vouga, Ovar - Juízo de Média e Pequena Instância Cível.
17.ª O tribunal “a quo” violou o disposto nos arts 247.º, 458.º e 473.º, todos do CC.
Por todo o exposto e pelo mais que doutamente for suprido, deverá o douto Tribunal da Relação revogar a douta sentença recorrida e substituí-la por outra que julgue a acção totalmente improcedente, por não provada, com as legais consequências, assim se fazendo Justiça.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se deve ser modificada a decisão sobre a matéria de facto.
ii) Se estão demonstrados os pressupostos da figura do erro na declaração ou ainda assim a acção deve ser julgada improcedente por não estar demonstrado que a ré seja devedora de tornas à autora.

III. Os factos:
Ficaram provados os seguintes factos:
1. No âmbito do processo de inventário n.º 3506/12.5T2OVR, que correu termos na extinta Comarca do Baixo Vouga, Ovar - Juízo de Média e Pequena Instância Cível, todos os interessados - nos quais se incluem as aqui ré e autora - acordaram, na respectiva conferência de interessados, realizada a 22/05/2014, dar forma à partilha dos bens que compunham o acervo hereditário, nos seguintes termos: «1º - Todos os interessados acordam na actualização do passivo relacionado na verba nº 1 para a quantia de 1.681,86€, que passa a incluir o IMI relativo aos anos de 2012/2013. 2º - As verbas 1 a 5 são adjudicadas à cabeça de casal BB e à interessada AA, pelo valor da relação de bens. 3º - Ao interessado CC são adjudicadas as verbas nºs 6 e 7 pelo valor da relação de bens. 4º - As verbas 8 a 11 são adjudicadas às respectivas donatárias, pelo valor constante da relação de bens. 5º - As tornas devidas pelo interessado CC, no montante de 10.165,00€, serão pagas à cabeça de casal e interessada AA, no prazo de 30 dias. 6º - O pagamento do passivo relacionado será pago pelo interessado CC, à cabeça de casal, no mesmo prazo de 30 dias. 7º - O interessado CC, findo aquele prazo, deverá comprovar nos autos os pagamentos referidos em “5 e 6”»;
2. Tal acordo de partilha veio a ser homologado por sentença proferida em 02/07/2014;
3. Na sequência de tal acordo de partilha, em 26/11/2015, a ré apôs a sua assinatura autógrafa no documento junto aos autos como doc. 3, da petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, donde consta, além do mais, a seguinte declaração: «Eu BB, portadora do nº de CC (cartão de cidadão) (BI (bilhete de Identidade) ... nº de identificação fiscal ....., nascida a .../.../1969, filha de FF e de GG, declaro por minha honra que devo 10.000€ (dez mil Euros) á minha irmã, AA, portadora do nº cartão de cidadão ... e do nº de identificação fiscal ....., nascida a .../.../1962 e filha de FF e de GG, resultante da diferença de partilhas, realizada no ano de 2014».

IV. O mérito do recurso:
A] da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
A recorrente reclama deste tribunal que altere a decisão sobre a matéria de facto, julgando não provado o primeiro segmento do facto do ponto 3 da fundamentação de facto (que a confissão de dívida foi assinada pela ré «na sequência do acordo de partilha») e bem assim julgando provado o seguinte facto que a 1.ª instância julgou não provado: «ao subscrever a declaração referida no ponto 3, dos factos provados, a ré [estava] erradamente convencida de que devia tal quantia à autora».
Ouvida a gravação da audiência e vistos os documentos juntos aos autos, é manifesto que esta pretensão tem de improceder.
A prova produzida pela recorrente sobre a matéria em questão é absolutamente diminuta e, podemos afirmá-lo com total segurança, não pode em circunstância alguma ser tida sequer como suficiente para fundar uma decisão judicial. Com efeito, o único meio de prova produzido pela recorrente foi o depoimento do seu próprio filho que para além de mostrar um escasso conhecimento da situação e ainda assim resultante quase em exclusivo do que a própria mãe lhe terá contado.
Acresce que desse depoimento, desde que devidamente interpretado, se retira mesmo a conclusão de que a «confissão de dívida» esteve mesmo relacionada com as partilhas efectuadas (foi por isso e para isso que a mãe aceitou assinar o documento), pelo que se alguma ilação se pode retirar do depoimento é a de que o ponto 3 se encontra decidido de forma inteiramente correcta.
Depois retira-se desse depoimento que a recorrente foi informada pela advogada que a representava no inventário de que devia pagar esse valor à irmã para encontro dos respectivos quinhões e foi por esse motivo que acabou por assinar a confissão de dívida. Por conseguinte, é impossível retirar deste depoimento qualquer corroboração do erro na declaração em que a recorrente teria alegadamente incorrido uma vez que a testemunha em causa se mostrou incapaz sequer de afirmar que a quantia não era devida e, por isso, muito menos de afirmar que a mãe assinou por estar errada quanto a esse facto.
O que se retira da audição do depoimento é que entre as irmãs houve de facto um entendimento extrajudicial, patrocinado pela mandatária da ré no inventário, sobre a forma de preencher os respectivos quinhões em resultado do qual a ré devia pagar à irmã a quantia de 10.000,00€ e que depois disso, para evitar o pagamento, a ré passou a querer sobrepor a esse acordo extrajudicial o teor estrito da partilha efectuada no âmbito do processo de inventário.
Sendo perfeitamente comum nos processos de inventário que os bens não se encontrem relacionados e não sejam partilhados pelos valores reais ou acordados entre os interessados e que as tornas apuradas no inventário não correspondam de facto aos montantes que os interessados acordam pagar e pagam a esse título, não constitui um facto inusitado ou avesso às regras da experiência a existência do acordo extrajudicial que a própria confissão de dívida revela e que desse modo foi confessado pela recorrente.
Por outro lado, a recorrida não apenas forneceu uma explicação cabal para a existência desse entendimento, explicando a partilha segundo os valores indicados na avaliação realizada no processo de inventário (de notar que segundo a acta da conferência de interessados, no processo a partilha foi pelos valores da relação de bens e não da avaliação, num sinal de que a diferença ficou por tratar extrajudicialmente), como produziu prova documental (v.g. avaliação) e testemunhal (a filha que disse ter redigido o documento a pedido da tia ré) no sentido da probabilidade da existência de facto de um acordo extrajudicial de partilha complementar da partilha judicial.
Por conseguinte, a prova produzida nos autos não permite em circunstância alguma decidir diferentemente do que julgou a 1.ª instância, cuja decisão deve ser mantida.
B] matéria de direito:
Na sentença recorrida a acção foi julgada procedente com base na fundamentação que se reproduz na íntegra:
«Pede a autora a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €10.000, de que se confessou devedora, na sequência dum acordo de partilha.
Dispõe o artigo 458.º do Código Civil que: «1. Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário. 2. A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental.»
No caso, provou-se a confissão de dívida e a relação fundamental foi alegada e não impugnada pela ré, que limitou a sua defesa à existência de erro na formação da vontade, expondo na sua contestação que estaria erradamente convencida de que devia a quantia, na sequência do acordo de partilha a que tinha chegado com a autora.
Sendo assente que à ré estava aberta a possibilidade de alegar qualquer vício da relação fundamental, a invocação do erro é admissível. Todavia, tal defesa resultou não provada, pelo que, na falta doutra matéria que a tanto obste, a pretensão da autora é integralmente procedente.»
De acordo com as conclusões das alegações, em sede de matéria de direito a recorrente opõe a esta fundamentação as seguintes questões:
- Não estão provados factos dos quais se possa extrair que a ré deve à autora tornas no montante de 10.000,00€, sendo o ónus da prova desses factos da autora.
- A ré assinou a declaração por ter sido induzida em erro pela informação da sua advogada de que devia à irmã tornas nesse valor, o que não era verdadeiro, sendo que a autora conhecia ou não podia ignorar a essencialidade para a ré do elemento sobre que incidiu o erro determinante da sua vontade.
- Qualquer valor a ser pago pela recorrente à recorrida, constituiria sempre um enriquecimento sem causa.
A última destas questões não pode ser objecto de apreciação. Com efeito, na contestação a ré não excepcionou o enriquecimento sem causa para se opor à pretensão da autora, independentemente de saber se o podia ou necessitava de fazer, sendo que a apresentação daquele articulado fez precludir todos os meios de defesa que a parte não arguiu nessa sede (artigo 573.º do Código de Processo Civil) e, por isso, não é possível ao tribunal conhecer desse meio de defesa (artigo 609.º do Código de Processo Civil).
Resta, portanto, a questão da necessidade de, para se obter a procedência da acção, se ter demonstrado que a autora era credora e a ré devedora de tornas no montante de 10.000,00€ e a questão do erro da declarante.
Como resulta do relatório, a autora instaurou a presente acção pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 10.000,00€. Este valor corresponde ao valor mencionado no documento intitulado «reconhecimento de débito», no qual a ré declara o seguinte «devo 10.000€ … à minha irmã, … resultante da diferença de partilhas, realizada no ano de 2014».
Na petição inicial a autora esclareceu ainda que «em 22 de Maio de 2014 realizou-se a conferencia de interessados e tendo os interessados acordado na forma de partilhar os bens que compunham o acervo hereditário», mas «atento os bens que no processo de inventário foram adjudicados, foi convencionado, extrajudicialmente, que a aqui ré era devedora à autora da quantia de 10.000,00€», e «para formalizarem o débito de 10.000,00€ a ré assinou o documento intitulado “reconhecimento do débito».
O que está aqui alegado é, portanto, que o valor levado à declaração provém de um acordo extrajudicial, complementar do que ficou exarado no processo de inventário, nos termos do qual a ré deve à irmã o valor de 10.000,00€ a título de tornas na partilha dos bens deixados por óbito dos respectivos pais.
É sabido que a nossa ordem jurídica não admite os chamados negócios abstractos: toda a obrigação carece de uma fonte ou causa, sendo em função desta que a obrigação tem de ser aferida, designadamente para efeitos de definição da sua medida, validade e exigibilidade.
Para Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, pág. 413, os «negócios puramente abstractos existem apenas no domínio dos títulos de crédito, no campo do direito comercial».
Segundo Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 5.ª edição, pág. 313, «para o direito não é normalmente suficiente que alguém esteja obrigado a fazer ou não fazer alguma coisa: é também importante considerar e ter presente qual a raiz dessa obrigação, de onde provém. Este interesse não tem uma importância meramente informativa, mas antes legitimadora. Aquele que exige o cumprimento de certa obrigação tem normalmente – fora os casos de abstracção ou presunção de causa – de invocar e demonstrar a causa dessa mesma obrigação».
Conforme Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, vol. II, pág. 252, «Como todos os negócios jurídicos de conteúdo patrimonial os actos previstos no nº 1 devem ter uma “causa” real e lícita, devem ter uma razão de ser, jurídico-económica, tutelada pelo direito. Como princípio geral, a nossa lei não reconhece negócios abstractos, isto é, negócios que são válidos e produzem efeitos jurídicos sem causa ou com causa ilícita: a falta ou ilicitude da causa produz a nulidade do negócio (art. 280.º, nº 1). Mas, alem dessa abstracção material pode conceber-se uma abstracção formal ou processual que se verifica quando, continuando a causa a ser elemento constitutivo essencial da validade do negócio, o credor é dispensado do ónus de fazer a sua prova, ficando o devedor com o encargo de provar a sua inexistência, falsidade ou ilicitude. São negócios formalmente abstractos, mas substancialmente causais. É que, na promessa de cumprimento e no reconhecimento de dívida, o promitente, ou aquele que se reconhece devedor, limita-se a declarar que cumprirá, ou, mais simplesmente, a declarar que existe uma obrigação que tem a sua fonte num outro acto ou facto idóneo a produzi-la, acto ou facto de que nasce justamente aquela relação fundamental a que o preceito alude. A eficácia obrigatória do preceito é, pois, de carácter adjectivo, na medida em que desloca o ónus da prova do credor para o devedor, nos termos referidos e isso explica porque as duas hipóteses, sendo diferentes, foram tratadas conjuntamente».
Segundo o artigo 458.º do Código Civil, se alguém, por simples declaração unilateral, reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
Antunes Varela, in Das obrigações em geral, 9.ª edição, págs. 454/455, por referência ao regime que o artigo 458.º consagra para o reconhecimento de dívida, escreve que «nenhum destes actos (A promete pagar 1000 a B; C reconhece dever 1000 acções da Torralta a D) constitui, com efeito, fonte autónoma de uma obrigação. Criam apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extranegocial (a relação fundamental a que aquele preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação. Há neste caso não só uma inversão do ónus da prova, mas um agravamento desse ónus, na medida em que o aparente devedor não tem apenas que afastar determinada causa, mas convencer o tribunal de que a prestação prometida ou a divida reconhecida não têm nenhuma causa. Por isso se inverte o ónus da prova, mediante uma verdadeira relevatio ab onere probandi. Se o declarante ou seus sucessores alegarem e provarem que semelhante relação não existe (porque o negócio que a promessa de prestação ou o reconhecimento de dívida pressupõem não chegou a constituir-se, porque é nulo ou foi anulado, porque caducou, ou os seus efeitos se extinguiram entretanto, porque não foi afinal o promitente o autor do dano que pretende reparar, porque contra a sua convicção inicial não há responsabilidade objectiva naquele tipo de casos, porque contra a sua expectativa a culpa foi da vítima ou de terceiro, etc.) a obrigação cai, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida (…) A simples inversão do ónus probandi quanto à causa da relação fundamental estabelecida no artigo 458 é diferente do regime do negócio abstracto, cuja validade não dependa da existência daquela relação.»
Da mesma forma Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 2008, pág. 503, afirma que «sempre que alguém, por uma declaração unilateral nua, isto é, sem invocação da respectiva causa, reconheça uma dívida ou prometa pagá-la, a procedência da pretensão do respectivo credor não fica prejudicada pela falta de demonstração da sua causa, ficando o devedor onerado com o encargo de demonstrar o contrário, isto é, que a causa não existe, ou cessou, ou é ilícita.»
Também Galvão Telles, in Direito das Obrigações, 1997, págs. 181 e 182, a propósito do artigo 458.º do Código Civil, afirma «estamos na presença de simples declarações unilaterais que não criam obrigações, mas apenas fazem presumir a existência de obrigações, derivadas de outros actos ou factos, que esses, sim, são a sua fonte. A numa carta dirigida a B promete pagar-lhe mil contos ou reconhece dever-lhe essa importância; ou, como é vulgar, faz no seu testamento inserir este reconhecimento de dívida. Pode mesmo o declarante não especificar a causa ou título justificativo da dívida que promete cumprir ou reconhece existir. Perante a sua declaração, fica-se sem saber se essa dívida provém de uma compra ou de um empréstimo ou de um facto danoso gerador de responsabilidade. Presume-se, no entanto, que a dívida realmente existe; que há uma causa que a justifica, ou seja, uma relação fundamental em que se integra, um acto ou facto que a gerou. Inverte-se pois o ónus da prova. Aquele que se arroga a posição de credor (B) não precisa provar a causa da dívida, visto beneficiar da presunção decorrente da declaração feita. À outra parte (A) é que competirá provar, se para isso dispuser dos elementos necessários, que afinal não é devedora porque a dívida nunca teve causa ou essa causa já cessara. Por exemplo os mil contos que A se comprometeu a pagar ou cujo débito reconheceu correspondiam a um empréstimo que lhe ia ser feito mas não chegou a sê-lo, ou a uma compra nula, ou a uma compra cujo preço veio a verificar que afinal já se encontrava, ao tempo, pago.»
No Comentário ao Código Civil - Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, Coordenação de José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, página 215, lê-se o seguinte: «O reconhecimento de dívida e a promessa de cumprimento sem indicação da causa da constituição da obrigação têm como efeito a presunção da existência de uma relação fundamental, de uma fonte constitutiva de uma obrigação (…). Trata-se, portanto, de um negócio jurídico com «mera eficácia declarativa, limitada à inversão do ónus da prova» (…). Em rigor, o reconhecimento de dívida ou a promessa de cumprimento não se apresentam como um negócio jurídico unilateral constitutivo de obrigações, mas apenas como um negócio na base da qual se presume a existência de uma obrigação (para MENEZES LEITÃO, 2018: 272, o reconhecimento de dívida ou a promessa de cumprimento não constituiriam negócios jurídicos, mas antes simples actos jurídicos). […] Reconhecida uma dívida ou prometido o cumprimento de uma prestação, caberá ao devedor alegar e provar a inexistência da relação fundamental, seja porque, entre outras hipóteses, o negócio não se celebrou, é ineficaz ou se encontra prescrito (…). Alcançando-se tal prova, não existe qualquer obrigação, não podendo o credor valer-se da promessa de cumprimento ou do reconhecimento de dívida».
O preceito em causa refere-se à situação em que alguém reconhece uma dívida sem indicar a relação que está na origem da dívida. A presunção que a norma estabelece é a presunção de que a dívida tem uma causa jurídica. O que o credor fica dispensado de provar é a existência de relação fundamental, de causa para a dívida, uma vez que se presume que a dívida tem uma causa, é causal. Mas já não se presume qual seja essa causa em concreto e/ou a respectiva validade, motivo pelo qual, tendo presente o princípio da proibição dos negócios abstractos, se entende que o credor deve indicar a causa, não carecendo é de a provar.
Por isso, por não ser essa a sua previsão, a norma não se aplica nas situações em que na declaração o devedor enuncia expressamente a causa da dívida reconhecida. E isso é assim porque se o devedor indica a causa da dívida reconhecida já não é necessário presumir a sua existência, pois a mesma resulta da própria declaração de dívida. Eventualmente pode é colocar-se a questão da necessidade de provar que essa indicação é falsa e que a causa da dívida é outra, designadamente para efeitos de prova da sua invalidade, mas isso já nada tem a ver com a disposição do artigo 458.º do Código Civil.
Sendo assim, o artigo 458.º do Código Civil não se aplica ao caso concreto. Com efeito, no documento apresentado pela autora está expressamente indicado que a dívida que aí se afirma existir é «resultante da diferença de partilhas, realizada no ano de 2014», isto é, corresponde ao acerto dos quinhões das interessadas na herança mencionada no documento, no fundo, a tornas. Em face dessa redacção, não havia necessidade de presumir que a dívida tinha subjacente uma relação jurídica causal pois ela estava expressamente identificada no documento pela devedora.
Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, vol. 1, 15.ª edição, 2018, página 271, nota 612, esclarece precisamente que «não é abrangida pelo art. 458º a promessa de cumprimento ou reconhecimento de dívida com carácter causal, em que é indicada a respectiva fonte (ex: um contrato, ou responsabilidade civil). Neste caso, estar-se-á perante um negócio celebrado com fim de pacificação, que não terá carácter apenas declaratório, mas também constitutivo, na medida em que a parte renuncia a discutir a verificação de pressupostos ou a oponibilidade de excepções ao vínculo obrigacional, que reconhece ter sido constituído por aquela via. Face ao disposto no art. 457º, a celebração deste negócio só pode ser admitida com base na liberdade contratual (art. 405º), constituindo neste caso um contrato análogo à transacção (art. 1248º), o qual por isso nem sequer deverá admitir que a parte faça prova da inexistência da obrigação. Cf. Karl Larenz / Claus Wilhelm Canaris, Lehrbuch desSchuldrechtsll- Besonderer Teil, 2,13s ed., Miinchen, Beck, 1994, § 61II, pp. 32-33.» (sublinhados nossos).
Parece, com efeito, que se perante uma declaração unilateral onde não se indica nenhuma relação fundamental o credor fica dispensado de provar (não se cuida por ora da diferença entre dispensa de prova e dispensa de alegação, nem se aquela acarreta esta) a existência de relação fundamental, de uma causa para a dívida, o mesmo deve acontecer, por maioria de razão, nos casos em que no documento se indica uma relação fundamental, caso em se deverá presumir não que a dívida tem uma causa mas que a dívida tem a causa indicada.
As normas jurídicas permitem esta conclusão? Parece que sim. A declaração constante de um documento escrito na qual uma pessoa se confessa devedor perante outro em razão de uma determinada causa constitui efectivamente uma confissão extrajudicial escrita em documento particular.
Nessas circunstâncias, a declaração confessória faz prova plena do facto confessado, ex vi artigos 352.º, 358.º, n.º 2, 375.º, n.º 1, e 376.º do Código Civil. Essa prova plena só podia ser revertida mediante a arguição e prova da falsidade do documento (o que não aconteceu) ou através de meio de prova que demonstrasse não ser verdadeiro esse facto (artigo 347.º do Código Civil).
A confissão é, com efeito, o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (artigo 352.º do Código Civil). Nos termos legais, as partes podem factos (artigos 352.º e seguintes do Código Civil) ou confessar pedidos (artigo 283.º do Código de Processo Civil). Entende-se que também é possível o reconhecimento de qualidades jurídicas, mas isso apenas quando essas qualidades jurídicas. Como afirmam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 537, nota 3, «a meio termo entre a confissão do facto e a confissão do pedido se situam aqueles casos em que a parte reconhece o direito ou a relação jurídica invocada pela contra parte contra ela. Importa, nestes casos, saber se a parte quis reconhecer o facto constitutivo do direito – e neste caso haverá verdadeira confissão do facto – ou reconhece apenas a existência do direito sem se referir ao seu facto constitutivo – e, quando assim seja haverá apenas que aplicar o artigo 458º do Código Civil».
Nos termos do artigo 358.º do Código Civil a confissão extrajudicial, em documento particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a este documento e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena.
Por sua vez, nos termos do artigo 374.º do Código Civil a assinatura de um documento particular considera-se verdadeira, designadamente, quando reconhecida ou não impugnada pela parte contra quem o documento é apresentado. Foi o caso, porque a ré confessou de modo expresso na contestação que assinou o documento, embora dizendo que o fez por erro.
Tendo sido assim, então, nos termos do n.º 1 do artigo 376.º do mesmo diploma, o documento particular cuja autoria esteja reconhecida faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento. No caso, aliás, a ré não impugnou o teor da declaração que fez no documento e também, como vimos, não arguiu a respectiva falsidade. Logo está provado com força de prova plena que a declaração redigida no documento foi feita.
Acresce que nos termos do n.º 2 da norma citada, também os factos compreendidos na declaração se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante. Por outras palavras, a prova plena abrange não apenas a existência da declaração escrita, como ainda o facto declarado, isto é, que a ré deve à autora a quantia de 10.000,00€ a título de tornas pela partilha dos bens dos respectivos pais.
A prova plena não é uma prova invencível, inultrapassável. Ao contrário do que sucede quando existe uma presunção legal do facto com a natureza de presunção inilidível, nos termos do artigo 347.º do Código Civil, a prova legal plena pode ser contrariada, mas somente por intermédio de meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei.
Entre essas restrições conta-se o n.º 2 do artigo 393.º do Código Civil, segundo o qual quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio de prova com força probatória plena, como a confissão, não é admissível a prova por testemunhas (razão pela qual, afinal de contas, não devia sequer ter sido permitido à ré produzir o depoimento testemunhal do seu filho).
Por outro lado, também n.º 1 do artigo 359.ºdo Código Civil estabelece que a confissão, nomeadamente a extrajudicial, pode ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade, acrescentando no n.º 2 que o erro, desde que seja essencial, não tem de satisfazer aos requisitos exigidos para a anulação dos negócios jurídicos.
Aplicando estas disposições legais ao caso em apreço, podemos concluir que a autora alegou que a ré lhe devia a quantia de 10.000,00€ a título de tornas na partilha dos bens deixados por óbito dos respectivos pais e que esse facto (rectius, qualidade jurídica) se encontra plenamente provado através da declaração escrita que juntou e que constitui uma confissão extrajudicial plena.
Portanto, pese embora ele não esteja elencado especificadamente na fundamentação de facto da sentença recorrida (por ser esse o facto juridicamente era ele que devia constar da fundamentação de facto e não o respectivo meio de prova que é o conteúdo do ponto 3 daquela fundamentação) encontra-se provado, com força de prova plena, que a ré deve à autora aquela quantia com base na causa indicada na sua declaração.
Era sobre a ré que recaía a necessidade de afastar essa prova plena. Como? Através de uma de duas vias: demonstrado que o facto confessado na declaração não é verdadeiro; demonstrado que a confissão (a declaração) enferma de um vício gerador da respectiva nulidade ou anulabilidade.
No que concerne a esta última das vias, é certo que a ré invocou a figura do erro na formação da vontade (erro-vício) sobre o objecto do negócio, mas é igualmente certo que não fez prova do mesmo, não havendo na fundamentação de facto da sentença recorrida qualquer facto que permitia o preenchimento dessa figura, tando bastando para encerrar a questão.
No que concerne à demonstração de que o facto confessado não é verdadeiro, a questão só se coloca (não tendo sido julgado provado que a ré não é devedora de 10.000,00€ à autora a título de tornas) por ter sido julgado provado que a partilha foi realizada judicialmente, através de processo de inventário, e na conferência de interessados foi acordada a composição dos quinhões em termos que incluem apenas o pagamento de tornas à autora por outros dos interessados.
A pergunta que se coloca é, pois, se a partilha podia ficar feita no processo de inventário em determinados termos e não obstante isso os interessados acordarem ainda extrajudicialmente algo de diferente ou complementar quanto a essa mesma partilha.
Quanto a isso há que dizer em primeiro lugar que, ao contrário do que a ré defende, do texto do acordo anunciado na conferência de interessados não resulta que não houvesse lugar ao pagamento de outras tornas para além daquelas que ali são referidas a cargo de um dos interessados. Com efeito, aquele acordo não contém a forma à partilha, contém somente o acordo sobre a composição dos quinhões dos diversos interessados e a fixação de um prazo para um interessado pagar as tornas a seu cargo, o que não equivale a dizer, porque tal não é dito no acordo, que não houvesse tornas a pagar por outros interessados.
De qualquer modo, não se mencionado no acordo que os herdeiros se declaravam inteirados das tornas que lhe seriam devidas, haveria depois que aplicar àquele acordo de composição os quinhões de cada um dos herdeiros na herança que viessem a ser determinados e calculados, o que estava longe de ser linear face à quantidade de doações feitas pelos inventariados e aos termos em que elas foram feitas. Daí que afirmando apenas a sentença de partilhas que «homologa a transacção obtida na conferência de interessados» sem se especificar os quinhões de cada um dos interessados, não haveria qualquer impedimento à existência de acordos complementares para definir exactamente os termos da partilha.
A existência desses acordos complementares e muitas vezes até bem distintos do que consta do processo de inventário é, aliás, muito comum na prática judiciária. Mais que uma prática corrente, trata-se de algo que não é vedado por lei. A lei apenas se preocupa com a segurança necessária à demonstração desses acordos quando os mesmos estão contra ou vão para além do conteúdo dos documentos autênticos que são a forma das decisões judiciais e, por isso, nos artigos 393.º e 394.º do Código Civil limita os meios de prova através dos quais é possível fazer a prova dessas convenções, excluindo a prova testemunhal, mas não impedindo, por exemplo, a prova documental ou por confissão, com que nos deparamos, precisamente, no caso.
Acresce que o contrato de transacção se encontra previsto nos artigos 1248.º e seguintes do Código Civil, nos quais não se encontra norma que exclua do objecto desse contrato os direitos pendentes de litigio judicial. Por isso mesmo, os artigos 283.º e seguintes do Código de Processo Civil prevêem a possibilidade de as partes transigirem quanto ao objecto do litígio. E embora a transacção deva ser celebrada em qualquer estado da instância (artigo 283.º, n.º 2, do Código de Processo Civil) e, portanto, até ao respectivo trânsito em julgado, nada obsta a que as partes, mesmo após o trânsito e enquanto o julgado não se mostrar cumprido, possa transigir sobre o objecto do seu conflito, acordando uma nova e diferente forma de composição de interesses.
Em suma, do que se passou no processo de inventário não é possível retirar que a ré não era devedora das tornas de que se declarou devedora. Por isso, temos de concluir que a ré não demonstrou não ser verdadeiro o facto confessado.
Como assim, não tendo a ré afastado a prova plena do facto contido na sua declaração escrita confessória, a acção tem de ser julgada procedente, com o que o recurso improcede.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

Custas do recurso pela recorrente, revertendo as custas de parte pagas pelo vencido a favor do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. (artigo 26.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais).
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Porto, 24 de Novembro de 2022.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 718)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva


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