Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7270/23.4T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: EXCEÇÃO DO CASO JULGADO
IDENTIDADE DO PEDIDO
Nº do Documento: RP202407107270/23.4T8VNG.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A excepção de caso julgado (tal como a excepção de litispendência) tem subjacentes necessidades de certeza e segurança jurídica, visando evitar que o tribunal julgue duas vezes a mesma causa, isto é, que duplique ou que contrarie uma decisão anterior.
II – A identidade de pedidos que a excepção de caso julgado pressupõe não se afere comparado a parte do pedido julgada procedente na primeira acção e o pedido deduzido na segunda; afere-se pela comparação dos pedidos tal como foram formulados em cada uma das acções, independentemente do desfecho da primeira; no caso contrário, estaríamos a subverter a finalidade e a razão de ser da excepção de caso julgado, permitindo que a parte voltasse a ver apreciado noutra acção o pedido ou a parte do pedido já anteriormente julgado improcedente com trânsito em julgado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 7270/23.4T8VNG.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
Banco 1..., com sede no Edifício ..., Rua ..., ... Lisboa, intentou a presente acção comum contra AA, residente na Rua ..., ..., 5.º Dto Trás, ... Vila Nova de Gaia, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 28.771,05 € acrescida dos juros vincendos até efectivo e integral pagamento.
Regularmente citado, o réu não apresentou contestação.
Mediante convite do Tribunal a quo, a autora veio esclarecer que não é sua intenção peticionar as quantias que o réu já havia sido condenado a pagar-lhe no anterior processo n.º 695/20.9T8VNG, pedindo apenas a condenação do réu a paga-lhe o capital em dívida no dia 01.09.2019, no valor de 15.307,47 €, com os respectivos juros vencidos desde essa data, sem que, todavia, tenha reduzido expressamente o pedido.
Foram julgados confessados os factos alegados na petição inicial.
Cumprido o disposto no artigo 567.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), apenas a autora apresentou alegações, pugnando pela procedência da acção.
Depois de ambas as partes terem exercido o contraditório relativamente à possibilidade, oficiosamente suscitada pelo Tribunal a quo, de estar verificada a excepção dilatória de caso julgado, veio a ser proferido despacho que julgou verificada essa excepção e absolveu o réu da instância.
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Inconformada, a autora apelou desta decisão, formulando as seguintes conclusões:
«1. Proferiu o Tribunal a quo sentença a julgar procedente a excepção dilatória do caso julgado.
2. Entende, porém, a Recorrente que não se verifica a excepção dilatória do caso julgado.
3. No dia 24-01-2020, intentou a ora Recorrente acção declarativa de condenação contra o ora Recorrido (Processo n.º 695/20.9T8VNG, Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 3), com vista a obter a condenação do ora Recorrido no pagamento das quantias em dívida relativas ao contrato de crédito consolidado em análise nos presentes autos.
4. Indicou a ora Recorrente na acção em questão que o ora Recorrido lhe devia a quantia global de € 18.037,19, por conta do dito contrato de crédito, à qual acresciam juros de mora, à taxa contratual, acrescida de três pontos percentuais – que no caso em apreço se computavam em 14,50% (correspondente a TAN de 11,50% + 3%) – calculados sobre a quantia de capital em dívida na data do vencimento de todas as prestações, e que, à data, ascendiam a € 1.058,10, pelo que a dívida total ascendia a € 19.095,29, razão pela qual foi pedido na acção em questão que o ora Recorrido fosse condenado a pagar à ora Recorrente tal quantia.
5. Foi a referida acção julgada parcialmente provada e procedente, sendo o ora Recorrido condenado a pagar à ora Recorrente apenas a quantia de € 3.708,12, correspondente às prestações não pagas desde Janeiro de 2019 até à data da propositura da dita acção, acrescida dos juros de mora à taxa contratual de 14,5% que se vencerem a contar da data de vencimento de cada prestação não paga e até efectivo e integral pagamento.
6. No dia 26-09-2023, intentou a Recorrente contra o Recorrido a acção declarativa de condenação que deu origem aos presentes autos, com vista a obter a condenação do Recorrido apenas no pagamento da quantia relativa ao capital que se encontrava em dívida anteriormente a 01-01-2019, acrescida dos respectivos juros de mora, vencidos e vincendos (não peticionado o que o Recorrido já foi condenado a pagar no âmbito do supra mencionado processo n.º 695/20.9T8VNG).
7. Pediu, assim, a Recorrente que o Recorrido fosse condenado a pagar-lhe a quantia relativa ao capital em dívida em 01-12-2018, no valor de € 15.307,47 (vide extracto de conta junto com a petição inicial), acrescida dos respectivos juros de mora vencidos, à taxa contratual, desde essa data, e vincendos (conforme referido na petição inicial e reiterado em requerimento de 28-11-2023).
8. Verifica a Recorrente que, por simples erro de escrita, que vem rectificar, e pelo qual se penitencia, indicou como valor em dívida na petição inicial € 28.771,05, quando, na verdade, o valor correcto é € 26.041,33 (€ 15.307,47 relativos ao capital em dívida + € 10.733,86 relativos aos juros de mora vencidos à data da propositura da acção), a que deverão acrescer os juros vincendos, até efectivo e integral pagamento, contabilizados sobre o capital de € 15.307,47.
9. Não peticiona a Recorrente na acção que deu origem aos presentes autos o mesmo que havia anteriormente peticionado.
10. O caso julgado constitui uma excepção dilatória, que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de repetir ou contradizer uma decisão anterior – artigo 577.º, alínea i), e artigo 580.º, n.º 2, ambos do CPC.
11. Assim, a excepção de caso julgado tem em vista o efeito negativo de obstar à repetição de causas, implicando a tríplice identidade a que se refere o artigo 581.º, do CPC, ou seja, a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
12. No caso em análise, verifica-se que em ambas as causas há identidade de sujeitos, intervindo a ora Recorrente (A. no processo n.º 695/20.9T8VNG e A. na presente acção) e o ora Recorrido (R. no processo n.º 695/20.9T8VNG e R. na presente acção).
13. Verifica-se, ainda, que em ambas as acções está em causa o mesmo contrato de crédito, pelo que a causa de pedir é a mesma.
14. Porém, não há um pedido idêntico em ambas as causas, uma vez que:
a) No processo n.º 695/20.9T8VNG, foi pedida pela A., ora Recorrente, a condenação do R., ora Recorrido, no pagamento da quantia global de € 18.037,19, à qual acresciam juros de mora, à taxa contratual, acrescida de três pontos percentuais - que no caso em apreço se computavam em 14,50% (correspondente a TAN de 11,50% + 3%) -, e que, à data, ascendiam a € 1.058,10, pelo que a dívida total ascendia a € 19.095,29 (tendo o ora Recorrido sido condenado a pagar à ora Recorrente apenas a quantia de € 3.708,12, correspondente às prestações não pagas desde Janeiro de 2019 até à data da propositura da dita acção, acrescida dos juros de mora à taxa contratual de 14,5% que se vencerem a contar da data de vencimento de cada prestação não paga e até efectivo e integral pagamento);
b) Nos presentes autos, foi pedida pela A., ora Recorrente, a condenação do R., ora Recorrido, no pagamento apenas da quantia relativa ao capital em dívida até 01-01-2019, no valor de € 15.307,47, acrescida dos respectivos juros de mora vencidos, à taxa contratual, desde essa data, que, à data da propositura da acção, ascendiam a € 10.733,86, e vincendos, pelo que a dívida total ascendia a € 26.041,33.
15. Não havendo identidade de pedido, é forçoso concluir que no caso sub judice não se verifica a excepção do caso julgado, prevista nas já citadas normas adjectivas, uma vez que a presente causa não é a repetição de uma outra já definitivamente julgada, tendo andado mal o Tribunal a quo ao ter julgado procedente a excepção do caso julgado.
16. Ficou, assim, evidente que a decisão em crise fez uma incorrecta interpretação dos factos e desadequada aplicação do Direito, designadamente das citadas disposições legais (artigos 577.º, alínea i), 580.º e 581.º, todos do CPC), que violou, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente a excepção do caso julgado».
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O recorrido respondeu à alegação da recorrente, formulando as seguintes conclusões:
«a) A recorrente no douto recurso apresentado vem alegar que o douto tribunal a quo andou mal quando julgou procedente a excepção de caso julgado.
b) Para tanto, e no douto entendimento da recorrente, o pedido efectuado nos presentes autos e o pedido efectuado no processo que correu os seus termos sob o número 695/20.9T8VNG não é o mesmo.
c) Muito embora, a recorrente aceite que as partes são as mesmas e assumem a mesma posição em ambas as acções.
d) E que a causa de pedir é a mesma em ambas as acções.
e) O recorrido entende, salvaguardada melhor opinião, existe uma identidade entre o pedido formulado nos presentes autos e o pedido formulado no processo que correu os seus termos sob o número 695/20.9T8VNG.
f) Pelo que, com o devido respeito, a alegação efectuada pela recorrente não corresponde à verdade.
g) Nos presentes autos a recorrente veio pedir a condenação do recorrido no montante de EUR. EUR. 28.771,05 (Vinte e oito mil setecentos e setenta e um euros e cinco cêntimos), acrescida de juros vincendos até integral pagamento e custas de parte.
h) No processo que correu os seus termos sob o número 695/20.9T8VNG a recorrente veio peticionar a condenação do réu no valor EUR. 28.771,05 (Vinte e oito mil setecentos e setenta e um euros e cinco cêntimos), acrescida de juros vincendos até integral pagamento e custas de parte.
i) Da comparação dos pedidos formulados em ambas as acções verifica-se que o pedido é exactamente o mesmo.
j) Pelo que, existe uma identidade do pedido formulado em ambas as acções.
k) Acresce que, a recorrente alega no seu douto recurso que no processo que correu os seus termos sob o número 695/20.9T8VNG peticionou a condenação do ora recorrido no capital em dívida no montante de EUR. 18.037,19.
l) E que nos presentes autos a recorrente peticionou a condenação do recorrido no capital em dívida no valor de EUR. 15.307,47.
m) A recorrente quando faz tais alegações está a faltar despudoradamente à verdade e pretende, com o devido respeito, ludibriar o douto Tribunal, uma vez que pretende fazer crer que os valores peticionados a título de capital em dívida são diferentes nas duas acções.
n) O que não acontece.
o) A recorrente no artigo 36.º da petição inicial apresentada nos presentes autos refere:
36.º
“Razão pela qual o Réu deve à autora a quantia global de € 18 037,19 (dezoito mil e trinta e sete euros e dezanove cêntimos), por conta do contrato de crédito, dos quais € 15 307,47 (quinze mil trezentos e sete euros e quarenta e sete cêntimos) são relativos ao capital em dívida à data de 01/01/2019 e o remanescente é relativo a juros contratuais e encargos, vencidos entre 01/01/2019 e 01/08/2019."
p) Já na petição inicial apresentada no processo que correu os seus termos sob o número 695/20.9T8VNG, no seu artigo 37.º a recorrente menciona:
37.º
“Razão pela qual o Réu deve à autora a quantia global de € 18 037,19 (dezoito mil e trinta e sete euros e dezanove cêntimos), por conta do contrato de crédito, dos quais € 15 307,47 (quinze mil trezentos e sete euros e quarenta e sete cêntimos) são relativos ao capital em dívida à data de 01/01/2019 e o remanescente é relativo a juros contratuais e encargos, vencidos entre 01/01/2019 e 01/08/2019.”
q) O montante do capital em dívida peticionado em ambas as acções é o mesmo.
r) Razão pela qual, não tem sustentação o argumento da recorrente que o montante em dívida é diferente nas duas as acções.
s) A taxa de juros de mora peticiona em ambas as acções é a mesma.
t) O montante dos juros de mora calculados na presente acção e na acção que correu os seus termos sob o número 695/20.9T8VNG é o mesmo.
u) Desta feita, e salvo melhor opinião, não deve ser acolhido o argumento aduzido pela recorrente no seu douto recurso de se proceder à rectificação do valor em dívida, uma vez que tal não se tratou de um mero lapso.
v) Em consequência, verifica-se que o pedido efectuado pela recorrente é o mesmo em ambas as acções.
w) Pelo que, encontram-se verificados todos os requisitos da excepção do caso julgado.
x) Não existe, por isso, qualquer reparo a apontar à douta decisão do douto tribunal a quo».
Terminou pugnando pela total improcedência da apelação.
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II. Fundamentação
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, consiste em saber se não estão verificados os pressupostos de que depende a excepção dilatória de caso julgado, mais concretamente se inexiste identidade entre o pedido deduzido nesta acção e o pedido deduzido e apreciado no processo n.º 695/20.9T8VNG.
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Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artigo 580.º, n.º 2, do CPC), ou seja, têm por fim evitar que o tribunal julgue duas vezes a mesma causa. Como escreve Miguel Teixeira de Sousa (O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, p. 176), «[a] excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção de caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (Zweierlei), mas também a inviabilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (Zweimal)». Subjacente a estes institutos estão, pois, necessidades de certeza e segurança jurídica.
Assim, ambas as excepções pressupõem a repetição da causa; mas enquanto a excepção de litispendência pressupõe que a causa se repete estando a anterior pendente, a excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença que não admite recurso ordinário (artigo 580.º, n.º 1, do CPC).
A causa repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art. 581.º, n.º 1, CPC).
De acordo com o n.º 2 deste artigo 581.º, haverá identidade de sujeitos quando as partes forem as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, isto é, quando se apresentem com as mesmas vestes jurídicas, com o mesmo interesse substancial, independentemente da sua identidade física e da posição processual que ocupam, no lado activo ou passivo da lide.
«O pedido é a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar» (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 127). Assim, haverá identidade de pedidos se houver identidade na forma de tutela pretendida e no conteúdo e objecto do direito a tutelar. Na terminologia legal, quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (artigo 581.º, n.º 3, do CPC).
Por fim, ocorrerá identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico (artigo 581.º, n.º 4, do CPC), ou seja, quando for o mesmo o facto ou acto jurídico de onde deriva o direito que a parte se arroga. «Quando se diz que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer, tem-se em vista, não o facto jurídico abstracto, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na configuração legal» (José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, p. 123).
Do ponto de vista dogmático, o regime jurídico assim descrito não suscita qualquer dúvida ou dissenso entre as partes, que apenas divergem quanto ao preenchimento, no caso concreto, de todos os pressupostos da excepção de caso julgado.
Analisado o teor da certidão junta aos autos em 05.03.2024, verifica-se que a mesma atesta o trânsito em julgado da decisão proferida no processo n.º 695/20.9T8VNG, do Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 3.
Confrontando o teor das peças processuais extraídas desse processo, igualmente juntas a estes autos em 05.03.2024, constata-se que a identidade dos sujeitos de ambas as acções é manifesta, pois as partes apresentam-se em ambas na mesma qualidade jurídica e com o mesmo interesse substancial – respectivamente mutuante e mutuário no mesmo “contato de crédito consolidado” –, sendo inclusivamente a mesma a sua identificação social/pessoal e a sua posição processual.
É, igualmente, a mesma a causa de pedir invocada nas duas acções em confronto – a celebração do contrato acima aludido, o seu incumprimento pelo réu e a resolução operada pela autora. Esta conclusão é corroborada pelo facto de o teor da petição inicial do processo n.º 695/20.9T8VNG ser integralmente reproduzido na petição inicial apresentada nos presentes autos, na qual apenas se descreve com mais pormenor as relações estabelecidas entre as partes, sem alterar a essência da anterior alegação, se acrescenta um relato crítico do desfecho da primeira acção e se actualizam os valores devidos a título de juros de mora.
De resto, a própria recorrente reconhece a identidade dos sujeitos e das causas de pedir de ambas as acções, pelo que se mostram desnecessários outros desenvolvimentos a este respeito.
Resta saber se também o pedido deduzido na primeira acção se repete nesta, sendo este o pomo da discórdia.
Na anterior acção n.º 695/20.9T8VNG, a autora havia pedido a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 19.095,29 €, acrescida dos juros vincendos até efetivo e integral pagamento.
Da alegação aduzida pela autora na respectiva petição inicial – à qual não podemos deixar de recorrer para interpretar e compreender o pedido –, nomeadamente dos artigos 26.º a 28.º desse articulado, decorre que, do valor global do pedido, 15.307,47 € correspondem ao capital em dívida em 01.01.20219, 2.729,72 € correspondem a juros contratuais e encargos vencidos entre 01.01.2019 e 01.08.2019 e 1.058,10 € correspondem a juros de mora calculados sobre o capital em dívida na data do vencimento de todas as prestações, a que devem acrescer os juros vincendos até integral pagamento.
Por sentença proferida nesse processo, já transitada em julgado, o tribunal considerou que não estavam verificados requisitos de que o artigo 20.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho, faz depender a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato, pois o valor das prestações em falta aquando da interpelação feita pela autora ao réu ao abrigo da cláusula 11.6 do contrato, no valor de 2.434,87€, era inferior a 10% do valor do crédito concedido (24.902,40€). Nestes termos, atento o concreto pedido formulado pela autora, concluiu que réu apenas podia ser condenado no pagamento das prestações vencidas e não pagas desde 1 de janeiro de 2019 até à data da propositura da ação, em 24.01.2020, no montante de 3.708,12€, acrescidas dos juros de mora a contar das datas de vencimento de cada prestação não paga.
Na presente acção, a autora pediu a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 28.771,05 € acrescida dos juros vincendos até efectivo e integral pagamento.
Da alegação aduzida pela autora na respectiva petição inicial, nomeadamente dos artigos 36.º, 37.º e 56.º a 59.º desse articulado, decorre que, do valor global do pedido, 15.307,47 € correspondem ao capital em dívida em 01.01.2019, 2.729,72 € correspondem a juros contratuais e encargos vencidos entre 01.01.2019 e 01.08.2019 e 10.733,86 € correspondem a juros de mora calculados sobre o capital em dívida desde a resolução (indicando, certamente por lapso, a data de 23.09.2022), ao que devem acrescer os juros vincendos até integral pagamento.
A convite do tribunal, a autora veio esclarecer que não é sua intenção peticionar as quantias que o réu já foi condenado a pagar-lhe no anterior processo, pedindo apenas a condenação deste no pagamento do capital em dívida no dia 01.09.2019, no valor de 15.307,47 €, com os respectivos juros vencidos desde essa data.
Quando, a convite do Tribunal a quo, se pronunciou sobre a possibilidade de estar verificada a excepção de caso julgado, a autora veio afirmar que “o pedido realizado no âmbito dos presentes autos, é apenas referente aos valores em dívida resultantes da resolução do contrato, num total de 18.037,19 €, acrescido de juros de mora, calculados sobre o capital em dívida na data do vencimento de todas as prestações, até efetivo e integral pagamento.
Na alegação deste recurso, a autora veio afirmar que a indicação do valor de 28.771,05 € se ficou a dever a um simples erro de escrita, cuja rectificação requereu, pois o valor correcto é 26.041,33 €, correspondendo 15.307,47 € ao capital em dívida e 10.733,86 € aos juros de mora vencidos à data da propositura da acção, a que deverão acrescer os juros vincendos até efectivo e integral pagamento, assim concluindo que não peticiona nesta acção o mesmo que havia peticionado na acção anterior.
Não obstante a falta de coerência e de rigor com que a autora foi descrevendo a sua pretensão ao longo deste processo, salta à vista que é a mesma a forma de tutela pretendida em ambas as acções, tal como é o mesmo o conteúdo e o objecto do direito a tutelar.
Na petição inicial desta acção, a autora deduziu exactamente o mesmo pedido que havia deduzido na acção anterior, devendo-se a diferença, meramente quantitativa, dos valores indicados em cada um desses pedidos aos juros de mora que, entretanto, se venceram, mas que já estavam incluídos no primeiro pedido enquanto juros vincendos. Na verdade, em ambas as acções é pedida a condenação do réu no pagamento do capital em dívida em 01.01.2019, no valor de 15.307,47 €, dos juros contratuais e encargos vencidos entre 01.01.2019 e 01.08.2019, no valor de 2.729,72 €, e nos juros de mora calculados sobre o capital em dívida, desde o respectivo vencimento até integral pagamento, com a única diferença de que os juros vencidos na data da proposição da primeira acção ascendiam a 1.058,10 €, ao passo que na data da proposição da segunda acção ascendiam a 10.733,86 €.
Mesmo que se admita que esta interpretação do pedido não corresponde à real pretensão da autora, tendo sido condicionada pela falta de clareza e/ou pelos lapsos em que esta incorreu, e que o pedido desta acção se cinge ao capital em dívida no dia 01.01.2019, no valor de 15.307,47 €, e aos juros vencidos sobre esta quantia, no valor de 10.733,86 €, acrescido do juros vincendos até integral pagamento, a nossa conclusão mantém-se, pela simples razão de que este pedido já estava contido no pedido formulado na anterior acção, repetindo-o, ainda que apenas parcialmente.
A circunstância de o novo pedido repetir apenas a parte do pedido anteriormente julgado improcedente, não reiterando o pedido em que o réu já havia sido condenado, é totalmente irrelevante. Ao contrário do que parece entender a recorrente, a identidade de pedidos não se afere comparado a parte do pedido julgada procedente na primeira acção e o pedido deduzido na segunda; afere-se pela comparação dos pedidos tal como foram formulados em cada uma das acções, independentemente do desfecho da primeira; no caso contrário, estaríamos a subverter a finalidade e a razão de ser da excepção de caso julgado, permitindo que a parte voltasse a pedir noutra acção o pedido ou a parte do pedido já anteriormente julgado improcedente com trânsito em julgado.
Igualmente irrelevante se revela a alegação da ora recorrente no sentido de demonstrar que o valor de 2.434,87 € que se encontrava em dívida em Agosto de 2029 é superior a 10% do crédito concedido, com o argumento de que este não corresponde ao montante global das prestações convencionadas, mas apenas ao montante do capital mutuado, pelo que estariam verificados os requisitos de que o artigo 20.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho faz depender a perda do benefício do prazo e a resolução do contrato.
Esta linha e argumentação poderia servir de fundamento ao recurso da decisão proferida na primeira acção, como bem assinala a decisão recorrida. O que não pode é justificar a proposição de uma nova acção, com o mesmo objecto processual, visando a prolação de uma decisão de sinal oposto à primeira, já transitada em julgado.
Na verdade, para além de ser o mesmo o pedido, a ora recorrente manteve igualmente inalterada a respectiva causa de pedir, como a própria reconheceu, pelo que esta segunda acção surge como uma segunda tentativa de procurar convencer o tribunal, por via de uma argumentação técnico-jurídico mais apurada, da procedência de uma pretensão que este já julgou definitivamente improcedente.
Mas esta segunda oportunidade é vedada pelos efeitos e pelo alcance do caso julgado da decisão anterior.
Sobre este alcance do caso julgado material regem os artigos 619.º e seguintes do CPC, preceituando este artigo 619.º que «[t]ransitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º», acrescentando o artigo 621.º que «[a] sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga».
Como se refere no sumário do ac. do STJ, de 12.07.2011 (proc. n.º 129/07.4TBPST.S1), tem-se entendido que «[a] expressão “limites e termos em que julga”, constante do art. 673.º do CPC [correspondente ao actual artigo 621.º], significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ela define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou pedidos formulados na acção». Com efeito, toda e qualquer decisão assenta em concretos pressupostos, quer de facto, quer de direito, sendo o caso julgado referenciado com um âmbito extensivo a certos fundamentos.
Como se diz no mesmo sumário, «[r]elativamente à questão de saber que parte da sentença adquire, com o trânsito desta, força obrigatória dentro e fora do processo – problema dos limites objectivos do caso julgado –, tem de reconhecer-se que, considerando o caso julgado restrito à parte dispositiva do julgamento, há que alargar a sua força probatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da condenação firmada» (cfr., no mesmo sentido, os acs. do STJ, de 23.11.2011, proc. n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1, e de 22.09.2016, proc. n.º 106/11.0TBCPV.P2.S1).
«Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão» (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, p. 578 e 579).
Na verdade, como refere Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, p. 306), «[s]eria intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu; que nem sequer a estes bens pudesse chamar seus, nesta base organizando os seus planos de vida; que tivesse constantemente que defendê-los em juízo contra reiteradas investidas da outra parte, e para mais com a possibilidade de nalgum dos novos processos eles lhe serem negados pela respectiva sentença».
Assim, como se escreve no TRC, de 12.12.2017 (proc. n.º 3435/16.3T8VIS-A.C1, rel. Isaías Pádua), citando Lebre de Freitas «“a determinação do âmbito objectivo do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença, isto é, a determinação exacta do seu conteúdo (dos seus “precisos limites e termos”), de que fala o citado artº. 621º [correspondente ao actual artigo 619.º]. Relevando, nomeadamente, para o efeito “a leitura que a sentença faça sobre o objecto do processo, isto é, sobre os pedidos formulados pelo autor e pelo réu reconvinte: o caso julgado tem a extensão objectiva definida pelo pedido e pela causa de pedir”».
Voltando ao caso concreto, já vimos que a improcedência parcial do pedido deduzido na primeira acção se baseou na ausência dos pressupostos de que depende a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato. A pretensão agora deduzida nestes autos, de condenação do réu no pagamento dos valores alegadamente em dívida por força da resolução do contrato, sempre esbarraria na força do caso julgado da anterior decisão, a qual, dada a tríplice identidade de sujeitos, pedidos e causas de pedir, se manifesta na sua vertente negativa de excepção de caso julgado (por contraponto com a sua vertente positiva de autoridade de cas julgado material), obstando a que o tribunal volte a apreciar esta questão, contrariando ou repetindo a decisão anterior já transitada em julgado.
Pelo exposto, deverá manter-se a decisão recorrida.
Na improcedência da apelação, as respectivas custas serão suportadas pela recorrente, nos termos previstos no artigo 527.º, n.º 1, do CPC.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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III. Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
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Porto, 10 de Julho de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Rodrigues Pires
João Diogo Rodrigues