Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3199/24.7T8LOU-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUELA MACHADO
Descritores: DIREITO CARTULAR
LIVRANÇA
EXCEÇÕES
RELAÇÕES IMEDIATAS
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RP202511133199/24.7T8LOU-A.P1
Data do Acordão: 11/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A livrança que contenha os requisitos essenciais referidos nos arts. 75.º e 76.º da LULL, constitui título cambiário autónomo e abstrato, integrado no elenco dos títulos executivos por via do disposto no art. 703.º, nº 1, al. c) do CPC, incorporando no título o direito nele representado, com autonomia relativamente à relação fundamental subjacente, o que vale para a livrança subscrita em branco, por via do disposto nos arts. 10.º e 77.º da LULL, uma vez que se mostre preenchida pelo respetivo portador.
II - No entanto, há que distinguir as situações em que estamos, ainda, no âmbito das relações imediatas e aquelas em que estamos já nas relações mediatas, sendo que no âmbito das relações imediatas, como resulta do disposto no art.º 17.º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças (LULL), é lícito ao signatário cambiário invocar as exceções perentórias inerentes à relação causal, impeditivas, modificativas ou extintivas do direito exercido, para afastar a exigência decorrente da obrigação cartular, por tudo se passar como se a relação cambiária deixasse de possuir as propriedades da literalidade e da abstração.
III - O direito de crédito emergente do contrato de mútuo subjacente à emissão da livrança dada à execução, com pagamento em prestações mensais para amortização do capital e juros, está sujeito ao prazo de prescrição de 5 anos, por via do disposto no art. 310.º, als. d) e e) do Código Civil.
IV - No caso do portador da livrança que a tenha recebido por cessão de créditos, a relação entre o cessionário e o devedor considera-se situar-se ainda no âmbito das relações imediatas, pelo que a prescrição da obrigação causal, garantida pela livrança, determina necessariamente a extinção da obrigação cartular.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 3199/24.7T8LOU-A.P1

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
Por apenso à execução sumária para pagamento de quantia certa em que é exequente A..., S.A. e executado AA, veio este deduzir embargos de executado, alegando a prescrição da dívida exequenda, para além de invocar que não foi notificado de qualquer cessão de créditos mencionada no requerimento executivo, sendo a cessão ineficaz em relação a si, ao que acresce que não deu autorização para o preenchimento da livrança dada à execução, pelo que a exequente não tem legitimidade para o efeito, verificando-se, em todo o caso, um preenchimento ilegítimo por parte da exequente ao preencher a livrança mais de 15 anos após o vencimento da dívida e quando esta já se encontrava prescrita.

Recebidos os embargos e notificada a exequente/embargada, esta apresentou contestação, pugnando pela improcedência dos mesmos.

Por entender que o processo reunia já todos os elementos necessários para ser proferida decisão de mérito, o Tribunal a quo proferiu saneador-sentença, julgando os embargos de executado procedentes e determinando, em consequência, a extinção da execução.
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Não se conformando com o assim decidido, veio a exequente/embargada interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir de imediato, nos autos e com efeito devolutivo.

A apelante apresentou as suas alegações, formulando as seguintes conclusões:
“A. O ora apelante não se pode conformar nem concordar com a sentença recorrida, proferida a 10 de abril de 2025, a qual decidiu julgar os embargos de executado procedentes, ao determinar: “(…) Destarte, procede a arguida excepção peremptória da prescrição do direito de crédito exigido pela exequente através da execução em apreço e, em consequência, extinguiu-se tal direito com a consequente procedência dos presentes embargos de executado e consequente extinção da execução (vide art. 732º, nº 4, do C. P. Civil), ficando assim prejudicado o conhecimento da demais matéria apontada pelas partes.
Pelo exposto, julgo os presentes embargos de executado totalmente procedentes, determinando, em consequência, a extinção da execução de que estes autos constituem um apenso (…)”.
B. É inevitável à aqui Apelante indicar que o Tribunal a quo andou mal, não podendo perfilhar o disposto na douta decisão proferida, em função dos factos que foram até assentes como provados, conforme já indicado no ponto 6.º dos fundamentos das presentes alegações.
C. Da sentença que se recorre, na sua tomada de posição, o julgador não só ignora a norma do artigo 77.º ex vi artigo 70.º e 71.º, todos da LULL, que definem o prazo de prescrição da livrança, como aplica a este título de crédito o prazo de prescrição dos 5 anos definidos no artigo 310.º, alínea e) do CC, o que não se poderá aceitar.
D. Como ainda, aplicando esse dito prazo de prescrição de 5 anos, prejudica duplamente o aqui recorrente ao não considerar que nos primeiros 5 anos após o incumprimento definitivo, o capital e os juros calculados não se encontram prescritos.
E. Não se poderá considerar que o julgador não tem perfeita noção da livrança dada à execução, enquanto garantia do contrato celebrado com os executados, em função da sua exposição dos factos assentes, uma vez que reconhece a existência de um título de crédito enquanto título executivo, mas ainda assim prefere desconsiderar toda a doutrina e jurisprudência já produzida quanto a esta matéria.
F. Posições essas que o aqui recorrente já havia evidenciado na sua contestação, conforme referido nos pontos 16.º e 17.º dos fundamentos das presentes alegações e, das quais, apenas se pode constatar que a livrança bancária se considera um título executivo, permitindo ao seu titular (a quem foi entregue para garantia do bom e pontual pagamento), em caso de incumprimento, intentar uma ação executiva e, de forma coerciva, promover pela cobrança do valor em dívida sobre o subscritor da mesma.
G. Ora, a outra conclusão não se poderá chegar: o julgador profere uma sentença contra legem, inócua de fundamento, quando a livrança é um título executivo que se reveste de características próprias: autonomia, literalidade e abstração, para ser executada per si, sem necessidade de alegação da relação causal ou subjacente, quando preenchida.
H. Assim, com o seu vencimento e preenchimento, in casu, a 3 de setembro de 2024, cria-se uma obrigação pecuniária autónoma, sendo apenas a partir deste momento que se poderá contabilizar o prazo de prescrição da mesma, que se reporta aos ditos três anos, previsto no artigo 77.º ex vi artigo 70.º e 71.º, todos da LULL, não estando este ultrapassado, não se concebe como o julgador chegou à conclusão alvitrada na sentença, que logicamente agora se recorre.
I. E quanto a este prazo não podem, nem devem, subsistir quaisquer dúvidas - tampouco por parte do julgador-, quando este se encontra numa posição em que deve e pode estar munido de todas as decisões judiciais que fazem parte do panorama jurisprudencial nacional, como é exemplo, entre tantas outras, as já evidenciadas, nos fundamentos das presentes alegações, a saber artigo 25.º e 28.º, que por sua vez já haviam sido previamente explanadas na contestação da aqui recorrente, enquanto embargada.
J. Fazer depender o prazo de prescrição de um título de crédito ao prazo de prescrição da alegada relação subjacente, que não sendo aplicável ao caso por não se tratar de uma livrança executada como mero quirógrafo, conduz a um desvirtuamento das regras legais aplicáveis, expressas, tanto no Código Processo Civil, como na LULL.
K. Refira-se que nos termos do artigo 75.º da LULL a livrança dada à execução tem todos os elementos essenciais exigidos que, pela mesma, tornam a dívida é certa, líquida e exigível, nos termos e para efeitos do artigo 713.º do Código de Processo Civil, uma vez que a livrança não se encontra prescrita e, o seu preenchimento decorre da obrigação pecuniária, com origem num valor não pago, pelo que incumprimento definitivo.
L. Nestes termos, a sentença proferida incorre em erro grave, ao desconsiderar a matéria de facto e de direito aplicável, não se podendo aceitar a aplicação do prazo de prescrição previsto no artigo 310.º, alínea e) do CC, mas sim e, corretamente, o prazo de prescrição previsto no artigo 77.º ex vi artigo 70.º e 71.º, todos da LULL.
M. E se de outra sorte, ignorando o prazo previsto no previsto no artigo 77.º ex vi artigo 70.º e 71.º, todos da LULL, e aplicando o prazo definido no artigo 310.º, alínea e) do CC, o julgador olvida-se, uma vez mais, de aplicar correta e devidamente tal prazo.
N. Se porventura se concordasse com a aplicação do dito artigo 310.º, alínea e) do CC, ao julgador era exigido que, na sua aplicação para a tomada de decisão reconhecesse que, nos primeiros 5 anos após o incumprimento definitivo, a dívida aqui peticionada não se encontrava ainda prescrita, o que não se verifica.
O. Desta feita, como pode o julgador decidir pela aplicação de normas e conceitos jurídicos a temas aos quais não são admissíveis, mas também, ao aplicar um regime de prescrição que não se compadece com o título em causa, aplicá-lo de forma errada e com isso, prejudicar duplamente a aqui recorrente, ao ignorar a forma de aplicação?
P. Tampouco se aceita que o prazo de prescrição da livrança que serve de título executivo à ação executiva, não seja aquele que se encontra como definido no artigo 77.º ex vi artigo 70.º e 71.º da LULL, como também, em função da decisão tomada pelo julgador, este não podia ignorar que a prescrição do dito artigo 310.º, alínea e) do CPC, a aplicar-se, vigoraria apenas a partir do término dos primeiros 5 anos após o incumprimento definitivo.
Q. A decisão que aqui se recorre padece de erro grave quanto à aplicação do direito ao caso em discussão, pelo que, merece total reparo, jamais se podendo considerar a livrança como prescrita, em função de, alegadamente, a relação subjacente se encontrar prescrita – não sendo de todo esse o tema em discussão, atendendo ao título executivo em apreço.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas doutamente suprirá, deve ser negado provimento à Sentença recorrida, o presente recurso de apelação ser julgado por totalmente procedente e provado, determinando-se o prosseguimento da presente ação.”.

O recorrido/embargante apresentou contra-alegações, concluindo nos seguintes termos:
“1. Deve proceder a invocada excepção peremptória da prescrição do direito de crédito exigido pela exequente através da execução em causa e, em consequência, deve extinguir-se tal direito com a consequente procedência dos embargos de executado e consequente extinção da execução
2. Não procede o facto do título executivo que serve de base á execução ser uma livrança dado que tendo a prescrição da obrigação causal determina a necessária extinção da obrigação cartular.
3. Sob pena de constituir um abuso de direito, o que se invoca.
TERMOS EM QUE DEVE SER MANTIDA A DOUTA DECISÃO RECORRIDA.”.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II – DO MÉRITO DO RECURSO
1. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela recorrente e pelo recorrido, as questões a apreciar consistem em saber se a dívida exequenda se mostra prescrita e, ainda, se o preenchimento da livrança dada à execução pela exequente constitui abuso de direito.
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2. Fundamentos de Facto
A sentença recorrida tem o seguinte teor, sendo os factos aí mencionados a factualidade a considerar, até porque não foram impugnados:
“I. RELATÓRIO
Por apenso à execução sumária para pagamento de quantia certa veio o executado AA, deduzir embargos à execução que lhe move A..., SA alegando, entre o mais, a ilegitimidade da exequente por nunca ter sido interpelado da cessão de créditos e a prescrição do direito de crédito e consequentemente peticiona a extinção da execução.
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A Exequente contestou os embargos pugnando pela sua legitimidade e defende que a dívida não se encontra prescrita por considerar que ao contrato em causa é aplicado o prazo ordinário de 20 anos previsto no art.309.º do Código Civil e que ocorreu a interrupção da prescrição.
Pugna pela improcedência dos embargos.
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II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com base nos documentos infra referidos, no acordo das partes e na falta de impugnação do teor dos documentos juntos nestes autos pela exequente, por banda da embargante (vide art. 726º, nº 3, do C.P.Civil), julgo assentes os seguintes factos:
1) Por Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal tomada em reunião extraordinária, de 3 de Agosto de 2014, foi aprovada a aplicação de uma medida de resolução do Banco 1..., S.A., e na sequência da qual foi constituído o Banco 2..., S.A., tendo-se determinado a transferência para o mesmo, dos ativos, passivos e elementos extrapatrimoniais sob gestão do Banco 1..., S.A. ao abrigo do disposto no artigo 145.º-G e artigo 145.º-H do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, conjugado com o artigo 17.º-A da Lei Orgânica do Banco de Portugal - cf. Deliberação do Banco de Portugal, cuja consulta poderá ser efetuada através do seguinte link: https://...
2) Por contrato de cessão de créditos celebrado em 22 de Dezembro de 2018, o Banco 2..., S.A. cedeu à sociedade B..., S.À.R.L os créditos que detinha AA, bem como todas as garantias e acessórios a eles inerentes - cf. Contrato de Cessão de Créditos que são juntos como Docs. 1 no requerimento executivo, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3) A carteira de créditos objeto de cessão inclui o Contrato de Crédito n.º ....
4) Por sua vez, por Contrato de Cessão de Créditos outorgado em 3 de Abril de 2020 e alterado em 31 de Março de 2021, a B..., S.A.R.L. cedeu-o à sociedade A..., S.A., ora Exequente, sendo por isso a actual titular do direito de crédito, tendo-lhe sido transmitidas todas as garantias e acessório do mesmo, incluindo, indemnizações e outras obrigações e, designadamente, o direito de obter o cumprimento judicial ou extrajudicial das obrigações nos termos e para efeito do disposto no artigo 582.º do Código Civil - cf. Contrato de cessão de créditos que é junta como Docs. 2 no requerimento executivo, e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
5) A Exequente é dona, possuidora e legítima portadora de uma livrança subscrita em 09.07.2007 por AA, no montante total de € 6.611,54 (seis mil, seiscentos e onze euros e cinquenta e quatro cêntimos), a qual se venceu em 03.09.2024 - cf. Livrança junta no requerimento executivo como Doc. 3, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
6) A referida livrança é titulada pelo contrato ... celebrado entre o Banco 1... e o executado que consubstancia um contrato de crédito ao consumo nos termos do qual aquela instituição bancaria mutuou ao executado 5429.03€ a ser pago em 60 prestações mensais e sucessivas.
7) Pelo menos desde 2018 que o executado incumpriu o contrato.
Não resultaram provados ou não provados quaisquer outros factos, dos alegados, que importem para a decisão da causa, constituindo tudo o mais alegado pelas partes meros factos conclusivos, que redundam em impugnação motivada ou irrelevantes, atenta a repartição do ónus probatório, meras repetições dos factos relevantes e matéria de direito.
Motivação da matéria de facto:
Os factos acima expostos resultam de matéria assente por acordo das partes e pela documentação junta aos autos à qual se faz expressa referência nos respectivos factos e que se trata de matéria que não foi impugnada por nenhuma das partes.
Salienta-se que se deu como provado o facto descrito em 7) porquanto tal facto decorre da documentação junta pela própria exequente, designadamente a cessão de créditos onde é cedido um credito em incumprimento é datada de 2018, data à qual o contrato já se mostrava a ser incumprido.
Do Direito:
Não obstante as várias questões suscitadas pelo embargante entendemos que na presente decisão urge apreciar, preliminarmente, se existe a verificada excepção peremptória da prescrição esgrimida pelo embargante, tanto que a procedência da mesma prejudica o conhecimento da demais matéria apontada.
Ou seja, importa decidir se o prazo prescricional em causa é de 5 anos, como defende a embargante.
Como é sabido, os embargos revestem um meio de oposição colocado à disposição do executado e visa o não prosseguimento da execução, mediante o reconhecimento da inexistência do direito exequendo.
Na execução em apreço foi apresentado como título executivo uma livrança subscrita em 09.07.2007 por AA, no montante total de € 6.611,54 a qual se venceu em 03.09.2024.
Atendendo ao vencimento do contrato por incumprimento definitivo e respetiva mora, o Exequente procedeu ao preenchimento da livrança, no montante total de € 6611,54, e com data de vencimento em 03.09.2024.
O nó górdio da presente decisão gira em torno de saber se a invocada prescrição se subsume ao disposto no art. 310º, als. d) e e) do CC, que fulmina ser de cinco anos o prazo prescricional para «os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos, e os dividendos das sociedades» e ainda «as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros».
Como é sabido, a prescrição consiste no instituto pelo qual se opera a extinção de direitos substantivos, quando estes não são exercidos pelo respectivo titular durante um determinado período de tempo, fixado por lei. Ou seja, reflecte a influência do decurso do tempo na falta de exercício de determinado direito subjectivo, a ponto do legislador entender que essa omissão leva à extinção do direito em causa (vide art. 298º, do CC).
É certo que o prazo ordinário de prescrição é de vinte anos de harmonia com a regra geral plasmada no art. 309º, do CC. No entanto, existem direitos relativamente aos quais a lei fixou prazos mais curtos para a prescrição.
Uma dessas situações é a ocorrida no citado art. 310º, als. d) e e) do CC.
Vejamos o caso dos autos:
No caso dos autos temos como assente que relação material subjacente à livrança é um contrato de mútuo que foi celebrado em 9.07.2007, sendo o valor do crédito concedido liquidável em 60 prestações mensais e sucessivas.
Ora, sucede que a executada incumpriu definitivamente o contrato em data não apurada mas pelo menos e 2018.
A questão que assim se coloca é a de saber se é ou não aplicável o prazo de 5 anos a que alude o artigo 310.º do CPC.
Salvo o devido respeito, entendemos, de forma indubitável, que o contrato de mutuo dado à execução se mostra abrangido pela previsão do prazo prescricional mais curto, de 5 anos, à luz do citado art. 310º, als. d) e e), do CC.
Na verdade, tendo sido o crédito concedido no contrato exequendo aos aqui embargantes, os quais se comprometeram a liquidá-lo em 60 prestações mensais e sucessivas (abrangendo capital e juros), mostra-se preenchida a estatuição contida no citado art. 310º do CC.
Efectivamente, para uma melhor leitura e interpretação deste preceito legal parece-nos avisado ter em atenção a douta fundamentação vertida no Acórdão da Relação de Lisboa de 9-05-2006 (acessível in www.dgsi.pt), que passamos a citar: “Nem todas as alíneas deste preceito se referem a prestações periodicamente renováveis, isto é, atinentes a dívidas periódicas em que há uma pluralidade de obrigações distintas (embora todas emergentes de um vínculo fundamental ou relacionadas entre si) que, reiteradamente se vão sucedendo no tempo. Se bem alcançamos, nele também se incluem situações que se reportam a uma única obrigação cujo cumprimento é efectivado em prestações fraccionadas no tempo. É o caso das previstas na alínea e) em que a obrigação é cumprida através de «quotas de amortização do capital pagáveis com os juros» e, mutatis mutandis, na alínea d), no que concerne aos juros, pois que estes, pelo menos por regra, são reportados a uma realidade normalmente atinente á colocação na disposição de uma certa soma pecuniária, assumida e definida numa singular obrigação inicial.
Assim sendo, a alínea residual (g) que se reporta a «quaisquer outras prestações periodicamente renováveis» tem de ser interpretada, em sentido lato, ainda que, quiçá, menos conforme à melhor dogmática técnico-jurídica, de sorte a considerar-se que engloba na sua previsão, também, as obrigações unitárias mas satisfeitas em prestações fraccionadas ao longo do tempo, pois que não existem razões de qualquer índole - jurídica e prática – para operar a restrição propugnada pela recorrente, antes pelo contrário. Efectivamente, considerando as finalidades supra referidas prosseguidas com o curto prazo de prescrição fixado neste artigo, parece-nos que as mesmas são atendíveis para os dois tipos de situações, não se vislumbrando fundamento para limitá-las aos casos de obrigações periodicamente renováveis stricto sensu».
Como se refere no Acórdão da Relação de Évora de 21.1.2016 que aqui se transcreve “nos termos das alíneas d) e e) do artº 310º, prescrevem no prazo de cinco anos os juros convencionais ou legais ainda que ilíquidos e as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros.
A razão essencial desta prescrição de curto prazo é evitar que o credor deixe acumular excessivamente os seus créditos, para proteger o devedor contra a acumulação da sua divida.
Pelo que no que respeita a este prazo, já Manuel de Andrade ensinava: “a lei funda-se no intuito de evitar que o credor deixe acumular os seus créditos a ponto de ser mais tarde ao devedor excessivamente oneroso pagar”- Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1972, pág. 452.
Esta prescrição dizia, por sua vez, Vaz Serra, “destina-se a evitar a ruina do devedor, pela acumulação das pensões, rendas, alugueres, juros ou outras prestações periódicas”- Prescrição e Caducidade, in BMJ, nº 107, pág.285.
Nos termos do disposto no nº 1 do artº 304º, do C. Civil, completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito.
Por sua vez diz-nos o artº 298º, nº 1 do C. Civil que estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.
Como próprio exequente alega e decorre da leitura do contrato no contrato ora mencionado, o valor concedido foi de € 5429,03 a ser liquidado em 60 prestações mensais, iguais e sucessivas;
No presente contrato de mútuo apenas existem dois tipos de prestações: juros e capital amortizável com juros, a pagar conjuntamente em prestações periódicas, pelo que qualquer deles se enquadra na previsão do artº 310º als. d) e e) do C. Civil, com um prazo de prescrição de cinco anos.
O Exequente aceita que as prestações acordadas deixaram de ser pagas.
Não refere a data do incumprimento, mas foram-no seguramente no ano de 2018 considerando a menção feita na listagem da divida cedida.
Assim, a partir desta data venceram--se todas as prestações acordadas, nos termos do artº 781º, do C. Civil, uma vez que não foi acordado regime diferente do referido neste preceito.
Também, como é afirmado no Ac. do STJ de 27/03/2014 (processo 189/12.6TBHRT-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt) o débito concretizado numa quota de amortização mensal, em prestações mensais e sucessivas referentemente a um montante de capital mutuado enquadra-se na previsão legal do disposto no art.º 310.º, alínea e), do C. Civil, conforme se retira das considerações explicitadas por Ana Filipa Morais Antunes, insertas nos Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, volume III, página 47, onde expressamente se refere que “…na situação prevista no artigo 310.º, alínea e), não estará em causa uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de financiamento, ainda que com pagamento diferido no tempo, a que caberia aplicar o prazo ordinário de prescrição, de vinte anos, mas sim, diversamente, uma hipótese distinta, resultante do acordo entre credor e devedor e cristalizada num plano de amortização do capital e dos juros correspondentes, que, sendo composto por diversas prestações periódicas, impõe a aplicação de um prazo especial de prescrição, de curta duração. O referido plano, reitera-se, obedece a um propósito de agilização do reembolso do crédito, facilitando a respectiva liquidação em prestações autónomas, de montante mais reduzido. Por outro lado, visa-se estimular a cobrança pontual dos montantes fraccionados pelo credor, evitando o diferimento do exercício do direito de crédito para o termo do contrato, tendo por objecto a totalidade do montante em dívida (sublinhado nosso)
Prosseguindo nesta análise, completa este estudo que constituirão, assim, indícios reveladores da existência de quotas de amortização do capital pagáveis com juros: em primeiro lugar, a circunstância de nos encontrarmos perante quotas integradas por duas fracções: uma de capital e outra de juros, a pagar conjuntamente; em segundo lugar, o facto de serem acordadas prestações periódicas, isto é, várias obrigações distintas, embora todas emergentes do mesmo vínculo fundamental, de que nascem sucessivamente, e que se vencerão uma após outra”. A obrigação assumida pelos signatários do contrato, compartimentada num mútuo e respetivos juros, converteu-se numa prestação mensal de fraccionada quantia global que, desta forma, iria sendo amortizada na medida em que se processasse o seu cumprimento; e esta facticidade está abrangida pelo regime jurídico descrito no artigo 310.º, alínea e), do C. Civil.
Nesta conformidade, tendo em conta que o contrato é de 2007 que deixou de pagar em 2018, na data da instauração da execução em 2024 já havia decorrido o prazo prescricional, muita antes das suspensões dos prazos por força da COVID 19.
Ora, tendo em conta a data da instauração desta execução é evidente que se verificou a pretendida prescrição e, consequentemente, extinguiu-se o direito exequendo ora reclamado pela exequente.
Refira-se ademais que não procede o facto do título executivo que serve de base á execução ser uma livrança dado que tendo a prescrição da obrigação causal determina a necessária extinção da obrigação cartular.
Destarte, procede a arguida excepção peremptória da prescrição do direito de crédito exigido pela exequente através da execução em apreço e, em consequência, extinguiu-se tal direito com a consequente procedência dos presentes embargos de executado e consequente extinção da execução (vide art. 732º, nº 4, do C. P. Civil), ficando assim prejudicado o conhecimento da demais matéria apontada pelas partes.
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Entendemos não existirem elementos nos autos para que se lograsse obter uma condenação por litigância de má fé em relação a qualquer das partes.
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Decisão:
Pelo exposto, julgo os presentes embargos de executado totalmente procedentes, determinando, em consequência, a extinção da execução de que estes autos constituem um apenso.
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Custas a cargo da exequente/embargada (vide art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil).
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Registe e notifique, incluindo a Srª. Agente de Execução.”.
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3. Motivação de direito
Pretende a recorrente que seja revogada a decisão que julgou verificada a exceção de prescrição arguida nos embargos de executado, invocando que o Tribunal a quo ignorou que o título executivo é uma livrança e que, mesmo aplicando-se o prazo de prescrição de cinco anos, não considerou que nos primeiros cinco anos após o incumprimento definitivo, o capital e os juros calculados não se encontram prescritos.
Vejamos.
Foi dado como assente, e não impugnado, que:
5) A Exequente é dona, possuidora e legítima portadora de uma livrança subscrita em 09.07.2007 por AA, no montante total de € 6 611,54 (seis mil, seiscentos e onze euros e cinquenta e quatro cêntimos), a qual se venceu em 03.09.2024.
6) A referida livrança é titulada pelo contrato ..., celebrado entre o Banco 1... e o executado, que consubstancia um contrato de crédito ao consumo nos termos do qual aquela instituição bancária mutuou ao executado 5 429.03€, a ser pago em 60 prestações mensais e sucessivas.
7) Pelo menos desde 2018 que o executado incumpriu o contrato.
O título dado à execução é uma livrança, estando assente que se trata de uma livrança em branco, da qual apenas constava a assinatura do subscritor, que é o executado e embargante, permitida pelo disposto no art. 10.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças (LULL), e no caso da livrança, o art. 77.º.
Essa livrança em branco veio a ser preenchida com o valor que estaria em dívida na data que lhe foi aposta, 03/09/2024, que, assim, configura a data do respetivo vencimento.
Diz a recorrente que a livrança é um título executivo que se reveste de características próprias: autonomia, literalidade e abstração, para ser executada per si, sem necessidade de alegação da relação causal ou subjacente, quando preenchida, o que se afigura certo.
Entende, assim, que, com o seu vencimento e preenchimento, in casu, a 3 de setembro de 2024, se cria uma obrigação pecuniária autónoma, sendo apenas a partir deste momento que se poderá contabilizar o prazo de prescrição da mesma, que se reporta aos três anos, previsto no artigo 77.º ex vi artigo 70.º e 71.º, todos da LULL, não estando este ultrapassado.
Já na decisão recorrida, o Tribunal a quo entendeu que sendo a relação material subjacente à livrança, um contrato de mútuo que foi celebrado em 9.07.2007, sendo o valor do crédito concedido liquidável em 60 prestações mensais e sucessivas, contrato que o executado incumpriu definitivamente, pelo menos, em 2018, tal contrato de mútuo “dado à execução” se mostra abrangido pela previsão do prazo prescricional mais curto, de 5 anos, à luz do art. 310.º, als. d) e e) do Código Civil.
Sucede que, o título executivo dado à execução não foi, como na decisão recorrida se refere, o contrato de mútuo, mas, antes, a livrança que aquando da celebração de tal contrato foi assinada pelo embargante/recorrido, como garantia do cumprimento do dito contrato.
Ora, pensamos ser unânime considerar que a livrança que contenha os requisitos essenciais referidos nos arts. 75.º e 76.º da LULL, constitui título cambiário autónomo e abstrato, integrado no elenco dos títulos executivos por via do disposto no art. 703.º, nº 1, al. c) do CPC, incorporando no título o direito nele representado, com autonomia relativamente à relação fundamental subjacente.
O mesmo vale para a livrança subscrita em branco, por via do disposto nos arts. 10.º e 77.º da LULL, uma vez que se mostre preenchida pelo respetivo portador.
Como refere Pedro Pais de Vasconcelos, in Aval em Branco, Revista de Direito Comercial, in www.revistadedireitocomercial.com, 09-03-2018, pág. 391 (citado pela recorrente na contestação dos embargos):
“(…) O subscritor da livrança em branco promete e compromete-se a ficar vinculado no título tal como vier a ser preenchido por um portador, de acordo com o pacto de preenchimento. E porque assim promete e se compromete, não pode libertar-se unilateralmente da sua promessa e do seu compromisso. Está vinculado. Dito de outro modo, a situação jurídica em causa é um poder potestativo, com a correspetiva sujeição jurídica. O exercício deste poder potestativo – o preenchimento – é efetuado unilateralmente e produz efeitos diretamente na esfera jurídica do subscritor independentemente da sua vontade quanto ao concreto ato de preenchimento. Assim sucede com todos os poderes potestativos. (…)”.
No entanto, no que diz respeito à livrança enquanto título de crédito e como título executivo nos termos do art. 703.º, nº 1, al. c) do CPC, há que distinguir as situações em que estamos, ainda, no âmbito das relações imediatas e aquelas em que estamos já nas relações mediatas, como quando houve endosso do título para um terceiro alheio à relação subjacente à emissão da livrança.
Consideramos exemplificativo sobre esta matéria o que se decidiu no acórdão do STJ de 03-10-2024, processo 466/22.8T8ELV-C.E1.S1, e demais jurisprudência aí citada, onde se diz:
«I- No caso de o título executivo ser uma livrança, estando a mesma no domínio das relações imediatas, é lícito aos obrigados cambiários invocar as exceções perentórias inerentes à relação causal, impeditivas, modificativas ou extintivas do direito exercido, para afastar a exigência decorrente da obrigação cartular, por tudo se passar como se a relação cambiária deixasse de possuir as propriedades da literalidade e da abstração.
II - Assim, nas relações imediatas, a prescrição da obrigação causal acarreta a extinção da obrigação cambiária.»
No processo apreciado no acórdão citado, está em causa saber se a dívida exequenda se extinguiu por prescrição, sabendo que o título executivo na respetiva execução é constituído por uma livrança em branco que veio a ser preenchida nas circunstâncias que estão descritas na factualidade apurada.
E aí se decidiu, como também o fez o Tribunal a quo nos autos que nos cabe apreciar, que sendo a relação causal um contrato de mútuo, nos termos do qual a quantia mutuada, acrescida de juros remuneratórios e outros encargos, deveria ter sido integralmente reembolsada até determinada data, com juros e amortização do capital, em prestações, com vencimento integral face ao incumprimento, por força do prazo previsto no art. 310.º, al. e) do Código Civil, à data da citação dos Executados, há muito estaria prescrita a dívida relativa ao contrato de mútuo.
Assim, considerou-se que a prescrição da obrigação causal determinaria a extinção da obrigação cartular. Contudo, nessa situação, as partes, ainda se encontravam no domínio das relações imediatas.
Ora, no mesmo acórdão que vimos citando, também se diz, aliás, citando o acórdão do Tribunal da Relação que apreciou o recurso, que “Nesse caso, entende a nossa jurisprudência - constituindo, aliás, orientação consolidada que, o momento decisivo para se determinar a validade da livrança é o do seu vencimento e o prazo prescricional corre desde o dia do vencimento aposto pelo exequente/beneficiário (…). Mas isto é assim, pressupondo que a obrigação causal não está prescrita também, sendo esta prescrição invocável, por estarem a exequente e os executados, no âmbito das relações imediatas. E este pormenor faz toda a diferença na apreciação jurídica da questão.”.
E mais se diz: “E faz toda a diferença porque, como é Doutrina pacífica e Jurisprudência consolidada, encontrando-nos no âmbito das relações imediatas, como resulta do disposto no art.º 17.º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças (LULL) é lícito ao signatário cambiário invocar as exceções perentórias inerentes à relação causal, impeditivas, modificativas ou extintivas do direito exercido, para afastar a exigência decorrente da obrigação cartular, por tudo se passar como se a relação cambiária deixasse de possuir as propriedades da literalidade e da abstração.”.
E citando o acórdão do mesmo STJ de 14-09-2021, Processo 2449/18.3T8OER-A.L1.S1, (Ferreira Lopes), também se diz: “(…) a relação cartular é independente da causa que lhe dá origem, da que constitui o motivo da subscrição cambiária, da relação fundamental, que pode assumir diversas figuras jurídicas. A obrigação cambiária é abstrata, não se prende nem depende da causa que motivou a emissão do título. Por isso, em regra, as pessoas acionadas por essa via não podem opor ao portador da letra/livrança as exceções fundadas nas relações pessoais com o sacador ou portador anteriores (arts. 17º e 77º da LU).”. Mas também refere que: “Tal não sucede nas relações imediatas, em que entre os dois signatários não se interpõe qualquer outro ou em que os sujeitos da relação cambiária são concomitantemente os sujeitos da relação causal. Neste caso, em que não há interesses de terceiros de boa fé a defender, os princípios da literalidade, abstração e autonomia que caracterizam os títulos cambiários deixam de funcionar, podendo fundar-se a defesa nas exceções emergentes da relação causal.”.
Posto isto, e voltando ao caso que nos ocupa, temos por assente que a exequente/recorrente não teve intervenção no contrato de mútuo, nem em qualquer pacto de preenchimento da livrança entregue como garantia, tendo recebido a mesma por via de um contrato de cessão de créditos.
Ora, as relações imediatas são as que se estabelecem entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato, isto é, no domínio das relações nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente das convenções extracartulares, ou como se refere no ponto III do sumário do acórdão do STJ de 07-03-2023:
«III- São relações imediatas aquelas que se estabelecem entre os sujeitos da convenção causal ou da convenção executiva – logo, de uma qualquer convenção extracartular».
Por sua vez, as relações mediatas verificam-se quando uma pessoa estranha às convenções extracartulares está na posse do título cambiário.”.
A exequente/recorrente dos presentes autos não teve, como já referido, intervenção no contrato de mútuo, nem na subscrição da livrança de que é portadora e que deu à execução.
Só que, como refere Ferrer Correia referindo-se às letras, mas também aplicável às livranças por via do artigo 77.º da LULL:
«Na situação do portador imediato está também o possuidor da letra que a tenha recebido por título diferente do endosso: cessão, sucessão mortis causa. Com efeito, trata-se aqui de um representante do transmitente e, portanto, são-lhe oponíveis todas as exceções que seriam oponíveis a este». (FERRER CORREIA, Lições de Direito Comercial, Vol. III, Letra de Câmbio, 1975, p. 71).
No caso, foi cedido à exequente/recorrente, o crédito em causa, tendo-lhe, assim, sido transmitidas todas as garantias e acessórios do mesmo, incluindo, indemnizações e outras obrigações e, designadamente, o direito de obter o cumprimento judicial ou extrajudicial das obrigações.
O título dado à execução é uma livrança, subscrita pelo executado, da qual a exequente é legítima portadora por via de um contrato de cessão de créditos, livrança destinada a garantir o cumprimento das obrigações emergentes do contrato que identificou e foi objeto de cessão.
“Resulta da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL), nos seus artigos 77.º e 11.º, que a par do endosso, a livrança é transmissível pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos. Aliás, caso a letra ou a livrança tenham inscritas as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente, as mesmas só podem ser transmitidas pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos. Tal determina que a livrança pode livremente ser transmitida pela forma e com os efeitos duma cessão de créditos (cf. Carolina Cunha, In Letras e Livranças, Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, pág. 77 a 84.10).
Ora, a cessão de créditos, na falta de convenção em contrário, importa a transmissão para o cessionário das garantias e outros acessórios do direito transmitido, sendo que a livrança foi subscrita, como garantia do pagamento da importância em dívida por força do contrato, cujo crédito foi invocado como tendo sido cedido à ora exequente.
Logo, a livrança entrou na posse da exequente através de uma cessão ordinária de créditos. E tal transmissão da livrança juntamente com o crédito que a mesma garante ou cauciona é válida e legalmente prevista, pelo que a exequente é legítima portadora da livrança, legitimação material a suprir a legitimação formal, já que não consta do próprio título, e pode acionar os seus subscritores pelo seu não pagamento. (cf. art.º 54º do Código de Processo Civil.).
Quanto à circunstância de não se encontrar preenchida, mormente quanto à data de vencimento e valor em dívida, dúvidas não há que a livrança em branco é admitida no nosso ordenamento jurídico, face ao art.º 10.º da LULL, pelo que ocorrendo cessão de crédito, deve a mesma ser entregue pelo subscritor ao credor conjuntamente com uma autorização de preenchimento (pacto de preenchimento).
Acresce que como bem se explicita no Acórdão do STJ de 6/12/2018 (proc. nº 653/14.2TBGMR-B.G1.S2, in www.dgsi.pt): 1. O pacto de preenchimento associado a uma livrança subscrita em branco não tem, por regra, natureza intuitu personae (art.º 577º, nº 1, do CC). 2. Por isso, na falta de convenção em contrário, com a transmissão do crédito cambiário emergente da livrança transmite-se para o cessionário o direito de proceder ao seu preenchimento, de acordo com o previsto no respetivo pacto.
O pacto de preenchimento previsto no art.º 10º da LULL constitui um acordo que, em regra, não ganha autonomia fora da relação jurídica em que foi subscrito. Constitui um instrumento jurídico que permite ao credor proceder ao preenchimento dos elementos em falta de forma que corresponda ao que efetivamente foi contratado, quer em termos de vencimento, quer de indicação do montante da obrigação. Segundo o Ac. do STJ de 25/5/2017 (p. nº 9197/13, em www.dgsi.pt) “o pacto de preenchimento é um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária”. (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2025-02-20, Processo nº 2015/24.4T8OER.L1-6).
A questão que se coloca nos autos é saber se o embargante/recorrido pode opor à embargada/recorrente a exceção de prescrição do crédito, o que, como resulta do que se vem dizendo, depende de se considerar que a cessionária/embargada se encontra no âmbito das relações imediatas em substituição do credor originário, por via da cessão de créditos, ou se a sua relação com o subscritor da livrança se situa já no âmbito das relações mediatas, situação em que o crédito cartular se reveste de autonomia relativamente à relação subjacente.
Entendemos, como já mencionamos supra, que o portador da livrança que a tenha recebido por cessão se encontra numa situação de portador imediato.
Neste sentido, foi também considerado no recente acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08-04-2025, Processo 2638/23.9T8LOU-A.P1, Relator: Anabela Miranda, onde se diz: “A Exequente apresentou uma livrança para servir de base à execução, que constitui um título de crédito, o qual nos termos dos arts. 30.º e 32.º da LULL obriga o respetivo subscritor a pagar uma determinada soma, numa determinada data, a um beneficiário (o tomador) ou à ordem dele determinada importância, e o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele avalizada.
No domínio das relações imediatas, ou seja, entre o subscritor e o sujeito cambiário imediato, aquele pode opor ao portador, aqui Exequente, as exceções decorrentes da relação subjacente, ou seja, do contrato de mútuo.
Com efeito, nos termos do art. 17.º da L.U.L.L. ex vi artigo 77º, nas relações imediatas podem, em regra, ser invocadas as exceções inerentes à relação fundamental ou subjacente.
O portador da livrança que a tenha recebido por cessão ou por sucessão mortis causa está na situação de portador imediato (sublinhado nosso).
Nesta hipótese de relações imediatas, a obrigação cambiária deixa de ser literal e abstrata, passando a ser sujeita às exceções fundamentadas nas relações pessoais. (..)”.
Voltando ao caso em análise neste recurso, diremos que o direito de crédito emergente do contrato de mútuo subjacente à emissão da livrança dada à execução, com pagamento em prestações mensais para amortização do capital e juros, está sujeito ao prazo de prescrição de 5 anos, por via do disposto no art. 310.º, als. d) e e) do Código Civil, como se decidiu na sentença recorrida.
Por sua vez, face ao que se deixa exposto sobre a cessão de créditos e a respetiva influência na relação entre o cessionário e o devedor, que se considera situar-se no âmbito das relações imediatas, a prescrição da obrigação causal, garantida pela livrança, determina necessariamente a extinção da obrigação cartular.
Improcede, pois, o recurso, com este fundamento.
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Questão diferente é saber se a prescrição abrange a totalidade do capital e juros, com a consequente extinção da execução, como foi decidido pelo tribunal a quo, ou se a obrigação, ainda que aplicando o prazo de prescrição de cinco anos previsto no art. 310.º do CC, não se encontra totalmente prescrita.
Resulta dos autos que o contrato de mútuo foi celebrado em 2007 e que o embargante/recorrido deixou de cumprir em 2018, sendo que a execução foi instaurada em 2024.
É de considerar que os prazos de prescrição se encontraram suspensos nos termos determinados pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, até à entrada em vigor da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, sendo os prazos respetivos ainda alargados pelo período de tempo em que vigorou a sua suspensão, mas apenas para quem fosse titular de direitos cujos prazos de prescrição se encontrassem nos últimos três meses, e já não para os demais titulares – isto é, aqueles cujos prazos de prescrição ou de caducidade não se encontrassem nos últimos três meses, não beneficiando, neste caso, da suspensão excecional e temporária desses prazos, por não se justificar a proteção concedida pelos nºs 3 e 4 do art. 7.º da Lei n.º 1-A/2020.
Posto isto, não há, no caso, efetivamente, dúvidas de que em 2024, quando foi instaurada a execução, se mostrava completado o prazo de prescrição previsto no art. 310.º do Código Civil.
Vejamos, então, se desde a data do incumprimento definitivo, os juros vencidos sobre o capital nos primeiros 5 anos são ainda devidos, tal como o próprio capital.
Consideramos também não assistir razão à recorrente quanto a esta questão.
A prescrição de um direito ocorre pelo seu não exercício durante um determinado período estabelecido na lei e tem como consequência que uma vez completada, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor ao exercício do direito prescrito – arts. 298.º, nº 1 e 304.º, n º 1 do Código Civil.
No que diz respeito à contagem do prazo da prescrição, dispõe o art. 306.º, nº 1 do CC, que o prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido, o que no caso de prestações periódicas (nas quais se incluem as prestações em causa nos autos, como decidido supra) ocorre desde a exigibilidade da primeira prestação que não for paga – art. 307.º do CC.
No caso, o embargante/recorrido deixou de cumprir no ano de 2018, em data que não foi concretamente apurada. Não se vislumbrando, como já referido, que tenha havido qualquer causa de suspensão ou interrupção do prazo de prescrição de 5 anos, a prescrição do crédito ocorreu em 2023, sendo que, desconhecendo-se a data concreta em que se iniciou o prazo, deve considerar-se o último dia desse ano como aquele em que se completou o prazo de prescrição.
Desse modo, quando foi instaurada a execução a que estes autos se mostram apensados, o que ocorreu em 18-09-2024, o crédito já se encontrava prescrito.
Por outro lado, tendo-se vencido em 2018, com o incumprimento definitivo por parte do embargante, todas as prestações em falta, as quais incluíam a correspondente parcela de capital e juros, decorridos cinco anos sobre tal vencimento que deu início à contagem do prazo de prescrição, mostra-se prescrito tanto o valor do capital que ainda se encontrava em dívida, como os juros respetivos incluídos em cada uma das prestações.
Afigura-se, assim, correta a decisão recorrida, quando julga extinta a execução.
Pretender, como a recorrente pretende, que nos primeiros 5 anos após o incumprimento definitivo, a dívida não se encontrava ainda prescrita, pelo que a prescrição vigoraria apenas a partir do término desses primeiros 5 anos após e incumprimento definitivo, seria subverter a finalidade do instituto da prescrição.
A prescrição extingue o direito de exigir o crédito, já que o devedor passa a ter o direito de recusar o pagamento (art. 304.º do CC), uma vez completado o prazo de prescrição, como se decidiu ter ocorrido no caso.
Improcede, pois, o recurso na totalidade.
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III - DISPOSITIVO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 2025-11-13
Manuela Machado
António Carneiro da Silva
Álvaro Monteiro