Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOAQUIM MOURA | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA MASSA INSOLVENTE ALIENAÇÃO DE BENS DA MASSA MAIS VALIA OBRIGAÇÃO FISCAL DÍVIDAS DA MASSA INSOLVENTE | ||
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Nº do Documento: | RP202002101784/10.3T2AVR-H.P1 | ||
Data do Acordão: | 02/10/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Com a declaração de insolvência, o insolvente fica inibido da praticar actos de disposição e de administração sobre os bens apreendidos e que revertem para a massa insolvente, mas, até que sejam alienados, não deixa de ser o titular do direito de propriedade sobre eles. II - Em face do disposto no artigo 268.º, n.º 1, do CIRE, na redacção anterior à Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro, que lhe deu a actual redacção, as mais-valias realizadas na alienação onerosa de bens imóveis integrados na massa insolvente não estavam isentas de tributação em IRS. III - Continuando o insolvente a ser o titular do imóvel apreendido para a massa, também é o sujeito passivo da obrigação tributária de pagamento do imposto devido pela realização das mais-valias. IV - Mas, sendo essa uma obrigação, gerada pela tributação das mais-valias, que nasce na esfera jurídica do insolvente porque este é o titular do bem e, logo, do acréscimo patrimonial decorrente da sua valorização, deve ser qualificada como uma dívida da massa insolvente, por ter sido originada por um acto de liquidação de um bem integrante dessa massa. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 1784/10.3T2AVR-H.P1 Comarca de Aveiro Juízo de Comércio de Aveiro (J2) Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto I – Relatório Em 17.10.2010, B…, devidamente identificado nos autos, apresentou-se à insolvência e, simultaneamente, requereu a exoneração do passivo restante. Por sentença de 04.11.2010, transitada em julgado, foi declarada a insolvência do requerente B… e, consequentemente, decretada a apreensão de todos os seus bens. O pedido de exoneração do passivo restante foi, liminarmente, admitido, tendo o período de cessão decorrido, sem incidentes, entre Março de 2012 e Fevereiro de 2017 e culminou com despacho, datado de 14.05.2019, em que foi concedida a exoneração. Apreendido para a massa insolvente foi um imóvel, assim descrito: «Prédio urbano, correspondente a casa térrea, composta por patamar principal, hall, sala comum, corredor, 3 quartos, WC, cozinha, 2 patamares de serviço cobertos, garagem e quarto de banho, sito na Rua …, …, no …, freguesia e Concelho de Ovar, inscrito na matriz sob o art. 9009 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 5365». Esse prédio veio a ser vendido pelo administrador da insolvência aos credores hipotecários “C…, S.A., SOCIEDADE ABERTA” E “D…, S.A.”. Entretanto, o insolvente dirigiu ao Sr. Juiz do processo um requerimento em que, dando notícia de que a Autoridade Tributária o notificou para proceder ao pagamento de € 18.459,06 referente a IRS pelas mais-valias realizadas com a venda do imóvel pela massa insolvente, pediu que fosse notificado o administrador da insolvência para proceder ao pagamento desse montante, por constituir dívida da massa. Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho, datado de 17.10.2018 (referência 104007685): «Fls 463ss: Veio o insolvente comunicar que foi notificado pela Autoridade Tributária como responsável pelo pagamento de dívida fiscal a título de mais-valias em consequência da venda de um imóvel, realizada pela massa insolvente e em proveito desta, requerendo a notificação do Sr. administrador da insolvência para proceder ao referido pagamento. Segundo entendemos, no entanto, não cabe nas esferas de competência do Tribunal em processo de insolvência, nem no objecto do processo (art. 1.º do CIRE), determinar a alteração do sujeito passivo de uma obrigação fiscal. Tanto mais que essa modificação seria totalmente infundada, visto que não foi a massa insolvente, mas o insolvente, que adquiriu o imóvel, não tendo aquela produzido qualquer mais-valia a seu favor. É certo que, segundo entendemos, também o insolvente não é responsável pelo pagamento desse tributo, pois que, embora tendo adquirido o imóvel, já não foi ele, mas a massa insolvente, que o alienou, constituindo o art. 268.º do CIRE afloramento desta regra geral. Todavia, terá de ser o insolvente, no uso dos seus meios de defesa junto das autoridades tributárias e dos tribunais administrativos e fiscais, a pugnar pela aplicação da referida regra, pois a essa matéria o Tribunal competente para o processo de insolvência é alheio. Pelo exposto, indefiro o requerido». Contra esse despacho reagiu o insolvente, dele interpondo, em 05.11.2018, recurso de apelação (referência n.º 30591231) com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões: «1. Na pendência do processo de insolvência, a ora recorrente/insolvente foi notificada pela Autoridade Tributária e Aduaneira da liquidação de imposto de IRS, gerado em sede de mais-valias, no montante de €18.459,96. 2. O aludido valor foi apurado a título de mais-valias geradas pela venda do prédio que constituía a casa de morada de família do insolvente. 3. Esse imóvel foi apreendido e inventariado no presente processo de insolvência e passou a integrar a massa insolvente do ora recorrente, cuja administração cabe ao administrador judicial nomeado nos autos. 4. Assim, o aludido prédio passou a constituir um acervo de bens, retirado da disponibilidade do insolvente, destinado a ser liquidado para satisfação dos credores. 5. De facto, nos termos do disposto no art. 81º, n.º 1 do CIRE, «a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador de insolvência». 6. Não há dúvidas, pois, que com a declaração de insolvência, o insolvente perde poderes de administração sobre os bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador de insolvência, apenas mantendo poderes de administração relativamente aqueles outros que não sejam incluídos na massa insolvente. 7. Com efeito, «o Insolvente não deixa de ter o seu património, embora geral e remanescente, que se contrapõe à massa falida como património autónomo e separado.» - Cfr. acórdão do TRL de 20.03.2012, acórdão do TRG de 24.11.2012 e acórdão do TRL de 17.04.2012. 8. Com a declaração de insolvência, os bens do insolvente passam, pois, a integrar a massa insolvente e ficam sujeitos à administração e poder de disposição do liquidatário judicial. 9. A massa insolvente passa, por isso, a constituir um património autónomo, ou seja, um acervo de bens com uma administração própria que responde única e somente por determinadas dívidas, a cuja satisfação se destina. 10. In casu, o bem imóvel supra identificado foi apreendido e integrado na massa falida, a qual passou a ser administrada pelo administrador judicial nomeado nos autos. 11. Foi o senhor administrador de insolvência quem, no exercício das suas funções, promoveu e alienou o aludido prédio. 12. O insolvente/recorrente não participou na venda, não foi ouvido nem achado sobre o assunto e não ditou os termos da mesma, designadamente no que concerne ao respetivo preço. 13. O produto da alienação reverteu a favor da massa insolvente e destinou-se à satisfação das suas dívidas. 14. Assim, a transmissão onerosa em causa não incidiu sobre bens do insolvente, mas antes sobre bens da massa insolvente, em ordem à satisfação dos credores, em concurso universal. 15. Neste sentido, relativamente a uma situação idêntica que envolvia as mais-valias resultantes da venda do ativo imobilizado de uma empresa insolvente, o Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se da seguinte forma: «Com efeito, com a declaração de insolvência, não há mais ativo imobilizado qual tale, passando, antes, todos os bens apreendidos a constituir um novo património, a chamada…:um acervo de bens e direitos retirados da disponibilidade da sociedade e que serve, exclusivamente, depois de ser liquidado, para pagar, primeiramente, as custas processuais e as despesas de administração e, depois, os créditos reconhecidos.» - Citação do acórdão de 29.10.2013 (proc. n.º 01709/03). 16. No caso sub judice, a venda do imóvel traduziu-se num ato translativo direta e imediatamente praticado pela massa insolvente, a qual constitui um património autónomo e distinto do património do insolvente. 17. Ora, nos termos do disposto no art. 51º, n.º 1, alínea c) do CIRE são dívidas da massa insolvente «as dívidas emergentes dos atos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente». 18. A divida em causa reclamada pela AT resulta da liquidação da massa insolvente, pelo que constitui responsabilidade da mesma. De facto, não pode ser imputada ao insolvente uma divida que se reporta a um ato jurídico praticado pelo senhor administrador de insolvência e cujos efeitos jurídicos se repercutiram na esfera jurídica da massa insolvente, a qual constitui um património autónomo e distinto do seu. 19. Por outro lado, o art. 172º, n.º 1 do CIRE traduz e concretiza a regra da precipuidade das custas do processo e despesas de liquidação. Com efeito, nos termos do disposto naquela disposição legal «antes de proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, o administrador da insolvência deduz da massa insolvente os bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas desta, incluindo as que previsivelmente se constituirão até ao encerramento do processo». 20. Desta norma resulta, também, que se devem imputar prioritariamente às dívidas da massa, os rendimentos que ela própria gera. Se os rendimentos da massa não chegarem para satisfazer essas dívidas, serão os próprios bens móveis ou imóveis que têm de as suportar, mesmo que esses tenham sido objeto de garantias, sem qualquer limite, desde que isso seja indispensável à satisfação integral das mesmas e na respetiva medida. Neste sentido, cfr. acórdão do TRG de 20.03.2014 (proc. n.º 269/07.0TBGMR-G.C1). 21. Assim, in casu, só após pagamento das dívidas fiscais geradas por força da liquidação dos bens imóveis da massa insolvente é que o senhor administrador judicial poderá dar pagamento aos seus créditos. 22. O Venerando Tribunal da Relação do Porto pronunciou-se recentemente sobre esta mesma questão, em acórdão de 02.07.2015 (proc. n.º 8729/12.4TBVNG-G.P1, em que foi relator o Ex. Dr. Juiz Desembargador Pedro Martins)), nos seguintes termos: «Quando, no decurso da liquidação dos bens que integram a massa insolvente de uma pessoa singular, o administrador da insolvência procede à alienação de bens por valor superior àquele pelo qual tinham sido adquiridos pelo insolvente, o imposto devido pela mais-valia gerada por essa alienação (art. 10/1ª) do CIRS) é uma divida da massa insolvente (art. 51/1c) do CIRE)». 23. No mesmo sentido, o mesmo TRP, em acórdão de 30.05.2017 (proc. n.º 610/12.3TBOAZ-E.P1) esclareceu: «É a massa insolvente, não o insolvente, que responde pelas eventuais mais-valias decorrentes da venda de imóveis.» (Negrito nosso) 24. Acrescentando, ainda: «Foi a massa insolvente que efetivamente arrecadou o produto da venda, a qual ocorreu sem qualquer participação do insolvente. Pelo que não deve ser o insolvente, mas sim a massa insolvente, a responder por eventuais mais-valias decorrentes dessa venda do imóvel. O insolvente não obteve, efetiva e diretamente, quaisquer ganhos, de que possa retirar uma parte para fazer face ao pagamento de imposto, pelo que, a entender-se diversamente, estaria a ser tributado em sede de imposto sobre os rendimentos por um rendimento que, efetivamente, não obteve.» 25. Neste sentido, com devido respeito e sempre salvo melhor entendimento, o senhor administrador de insolvência deverá, antes de mais e em função do princípio da precipuidade das custas do processo e das despesas da liquidação, prover ao pagamento do imposto de IRS gerado pelas mais-valias resultantes da transmissão onerosa do bem imóvel pertencente à massa insolvente, cuja venda realizou. 26. Salvo devido respeito e sempre melhor entendimento, o douto despacho recorrido violou o disposto nos artigos 51º e 172º do CIRE». Não foram apresentadas contra-alegações. O recurso não foi admitido e do despacho de rejeição reclamou o insolvente. A reclamação foi atendida por decisão do relator de 28.10.2019 e, consequentemente, admitido o recurso, com subida imediata. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. Objecto do recurso São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo). Na aludida decisão sobre a reclamação, discorreu-se assim: «O insolvente formulou uma pretensão – que fosse o administrador da insolvência notificado para efectuar o pagamento do montante de IRS pelas mais-valias resultantes da venda do imóvel que foi apreendido para a massa insolvente -, mas essa pretensão foi indeferida. Tal pretensão tem implícito que essa dívida é da responsabilidade da massa insolvente. O recorrente tem o direito de discutir no processo da insolvência, não só se é devido IRS por essas mais-valias, mas também, a ser devido, a quem cabe o seu pagamento (de resto, no despacho recorrido, admite-se, expressamente, que não é da responsabilidade do insolvente). Isto, naturalmente, sem prejuízo de reagir, pelos meios que achar adequados, à notificação da AT». As questões a apreciar e decidir nesta sede recursiva são, então, as seguintes: - se estão sujeitas a tributação em IRS as mais-valias obtidas na venda do imóvel apreendido para a massa insolvente, realizada pelo administrador da insolvência no âmbito da liquidação do activo; - a concluir-se pela afirmativa, quem tem que pagar esse imposto. II – Fundamentação 1. Fundamentos de facto Os factos e as vicissitudes processuais relevantes para a decisão constam do relatório que antecede, não se mostrando necessário seleccionar quaisquer outros. 2. Fundamentos de direito Declarada a insolvência, o juiz decreta a apreensão, para entrega imediata ao administrador da insolvência (AI), não só dos elementos da contabilidade do devedor (se a houver, naturalmente), mas também de todos os seus bens, mesmo que estejam arrestados, penhorados ou, por qualquer forma, apreendidos ou detidos. Essa é uma das consequências automáticas da sentença de declaração da insolvência, prevista no artigo 36.º, n.º 1, al. g), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE). O carácter universal[1] do processo de insolvência (artigo 1.º, n.º 1, do CIRE) explica que revertam para a massa insolvente, de forma automática, sem necessidade de qualquer iniciativa do AI, os bens que constituem o património do insolvente à data da declaração de insolvência, mas também os bens e direitos que o insolvente for adquirindo na pendência do processo de insolvência (artigo 46.º, n.º 1, do CIRE)[2]. Relativamente a esses bens, que são separados do património geral do devedor e passam a constituir um património autónomo (legalmente designado de “massa insolvente”), o insolvente fica proibido de praticar quaisquer actos de disposição e/ou de administração. O administrador da insolvência passa a representar o devedor para todos os efeitos de natureza patrimonial que interessem à insolvência e assume os poderes de disposição e de administração sobre esses bens (artigo 81.º, n.os 1 e 4, do CIRE). Aqui chegados, importa frisar e deixar claro que o insolvente fica inibido da praticar actos de disposição e de administração sobre tais bens, mas não perde a sua titularidade. No caso, o (único) bem apreendido que reverteu para a massa insolvente é um prédio urbano e o insolvente continuou (até ser alienado) a ser o titular do direito de propriedade sobre ele. A massa insolvente não é uma nova pessoa (individual ou colectiva) para a qual se transmitam bens (os bens apreendidos), que continuam a ser do insolvente, embora afectados ao pagamento de um conjunto específico de dívidas. Da conjugação das normas dos artigos 1.º, 10.º, n.º 1, al. a) e 18.º, n.º 1, al. h), do CIRS resulta que sobre a mais-valia realizada com a alienação desse imóvel incide IRS. No entanto, o CIRE contempla benefícios fiscais, designadamente no artigo 268.º, cujo n.º 1 dispõe: «1 - Os rendimentos e ganhos apurados e as variações patrimoniais positivas não refletidas no resultado líquido, verificadas por efeito da dação em cumprimento de bens e direitos do devedor, da cessão de bens e direitos dos credores e da venda de bens e direitos, em processo de insolvência que prossiga para liquidação, estão isentos de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e coletivas, não concorrendo para a determinação da matéria coletável do devedor.». Em face desta norma, já se decidiu que as mais-valias realizadas na venda, em 2018, de um imóvel no âmbito da liquidação do activo em processo de insolvência não estão sujeitas a tributação em IRS e parece-nos ser o que, realmente, resulta da citada norma legal[3]. Porém, o actual artigo 268.º do CIRE tem a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro, que aprovou o OE para 2018. Ora, o facto tributário é a alienação do imóvel e, neste caso, a venda do prédio urbano apreendido para a massa insolvente ocorreu muito antes de 2018 e, na versão à data vigente, o n.º 1 daquele artigo rezava assim: «1 – As mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento de bens do devedor e da cessão de bens aos credores estão isentas de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e coletivas, não concorrendo para a determinação da matéria coletável do devedor.». Por conseguinte, apenas as mais-valias que resultavam da dação em cumprimento ou da cessão de bens aos credores estavam isentas de tributação em IRS. Não assim as mais-valias realizadas na alienação onerosa de bens imóveis integrados na massa insolvente[4]. Se, no âmbito da liquidação dos bens da massa insolvente, o AI vendesse um imóvel do insolvente por preço superior ao da aquisição, as mais-valias realizadas eram tributadas em IRS, nos termos das já referidas disposições legais (artigos 1.º, 10.º, n.º 1, al. a) e 18.º, n.º 1, al. h), do CIRS). Continuando o insolvente a ser o titular do imóvel (perdendo, apenas, para o AI os poderes de administração e de disposição), também é o sujeito passivo da obrigação tributária de pagamento do imposto devido pela realização das mais-valias. Mas, sendo essa uma obrigação, gerada pela tributação das mais-valias, que nasce na esfera jurídica do insolvente porque este é o titular do bem e, logo, do acréscimo patrimonial decorrente da sua valorização, deve ser qualificada como uma dívida da massa insolvente, por ter sido originada por um ato de liquidação de bens dessa massa[5]. O pagamento do imposto devido constitui um encargo da massa insolvente à luz do disposto no artigo 51.º, n.º 1, al. c), do CIRE (norma de incidência tributária enxertada neste compêndio normativo) por consubstanciar uma dívida resultante de um ato de liquidação, pelo administrador da insolvência, de um bem que integra a massa insolvente[6]. Importa, a propósito, fazer notar que, uma coisa, são as dívidas da insolvência (correspondentes aos créditos sobre o insolvente), que são, basicamente, as existentes à data da declaração da insolvência e que a lei designa como “créditos sobre a insolvência” e os respectivos titulares como “credores da insolvência”[7]; outra coisa são as dívidas ou encargos da massa insolvente” (que têm como correlativos os “créditos sobre a massa insolvente”), que, grosso modo, são o(a)s constituído(a)s no decurso do processo (e vêm enunciado(a)s no n.º 1 do artigo 51.º do CIRE)[8]. Não podendo considerar-se um contribuinte directo (aquele relativamente ao qual se verificam os pressupostos do facto tributário) a massa insolvente, representada pelo AI, assume-se como substituto tributário (sujeito passivo que, por imposição da lei, está obrigado a cumprir prestações materiais e formais da obrigação tributária em lugar do contribuinte). Pelo menos, há evidentes afinidades com essa figura jurídica. A solução legal de pôr a cargo da massa insolvente o pagamento desse tributo está, aliás, em consonância com o facto de o insolvente não dispor de capacidade contributiva, pois que, como se aludiu, revertem, automaticamente, para a massa insolvente, não só os bens que constituem o património do insolvente à data da declaração de insolvência, mas também os bens e direitos que o insolvente for adquirindo na pendência do processo de insolvência. Tendo sido, liminarmente, admitido o pedido de exoneração do passivo restante, o insolvente dispunha, apenas, do razoavelmente necessário para o seu sustento minimamente digno e por isso exigir-lhe que suportasse financeiramente o imposto resultante da mais-valia realizada com a alienação de um bem imóvel, de cujo valor de venda já não tem quaisquer poderes de disposição por este ter ingressado na massa insolvente, implicaria subtrair a esse rendimento mínimo indispensável uma parte substancial, se não a totalidade, colocando em perigo a sua própria subsistência. Uma tal solução jurídica conduziria, está bem de ver, a uma incongruência do próprio regime da exoneração do passivo restante, cujo escopo é a reabilitação económica (dito “fresh start”) das pessoas singulares insolventes. Concluindo-se, como é de concluir, que é o património separado do insolvente (que constitui a massa insolvente) que responde pelo imposto devido pelo acréscimo patrimonial, ou seja, pelas mais-valias obtidas com a venda, pelo AI, no âmbito da liquidação dos bens da massa insolvente, do imóvel apreendido para a massa, não pode dizer-se – como se escreveu no despacho recorrido - que o insolvente, com o seu requerimento, pretendeu “determinar a alteração do sujeito passivo de uma obrigação fiscal”. Cabe ao AI constituir uma provisão para cumprir essa responsabilidade e por isso faz sentido o requerimento do insolvente a requerer que aquele seja notificado com esse objectivo[9]. III - Dispositivo Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso de apelação interposto por B… e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que será substituído por despacho que mande notificar o administrador da insolvência para constituir provisão com vista a cumprir a responsabilidade tributária pelas mais-valias obtidas com a venda do imóvel apreendido para a massa insolvente. As custas do recurso serão suportadas pela massa insolvente (artigos 303.º e 304.º do CIRE). (Processado e revisto pelo primeiro signatário). Porto, 10.02.2020 Joaquim Moura Ana Paula Amorim Manuel Domingos Fernandes ___________ [1] Natureza que advém, primeiramente, da circunstância de ao processo serem chamados a concorrer todos os credores, cujos interesses se intenta tutelar. O carácter universal do processo de insolvência concretiza-se, também, na liquidação global do património do devedor, mas importa ter presente que pode não acontecer essa liquidação, desde logo, se for aprovado um plano de insolvência que prescinda da alienação dos bens do insolvente. [2] No entanto, não ingressam na “massa insolvente” os bens impenhoráveis (pelo menos, os absolutamente impenhoráveis). [3] Assim, o acórdão da Relação de Coimbra de 25.09.2018, CJ XLIII, T. IV/2018, pág. 15 [4] No acórdão do STA de 10.05.2017 (acessível em www.dgsi.pt) podemos ler: «III - Sendo certo que o CIRE, no n.º 1 do seu art. 268.º, prevê a isenção das mais-valias resultantes da dação em cumprimento ou cessão de bens do insolvente aos credores no âmbito do processo de insolvência, já não prevê idêntica isenção no caso da venda, nada fazendo crer (designadamente para efeitos da aplicação extensiva da norma a esta última situação) que o legislador tenha dito menos que pretendia. [5] No âmbito do processo em que foi proferido o citado acórdão do STA, o Ex.mo PGA emitiu parecer em que, apesar de citar, a propósito, Rui Duarte Morais (“Os credores Tributários no Processo de Insolvência”, Direito e Justiça, Vol. XIX, 2005, tomo II, pág. 218), que defende que «as dívidas de imposto originadas por factos relativos aos bens que integram a massa falida são dívidas da massa insolvente», considerando que embora não previstas expressamente no artigo 51.º do CIRE são subsumíveis na alínea c) do n.º 1 (…) e que lhes é aplicável o disposto no artigo 172.º do CIRE, ou seja, que devem ser pagas pelo administrador, propendeu no sentido de considerar que «a dívida de imposto (IRS) decorrente das mais-valias apuradas com a alienação de imóvel que faz parte da massa insolvente não seja subsumível no artigo 51.º do CIRE, como dívida da massa insolvente, mas sim como dívida do devedor insolvente», argumentando que, sendo o entendimento do autor citado defensável para o IVA e o IMI, já será «difícil de conciliar com a natureza pessoal do IRS». [6] É o entendimento, claramente, dominante na doutrina e na jurisprudência, como no acórdão desta Relação de 02.07.2015 (Des. Pedro Martins), que contém abundantes referências doutrinárias. [7] Que serão satisfeitos, total ou parcialmente, com o produto da liquidação da massa insolvente. [8] Dívidas que são liquidadas previamente à satisfação dos “créditos sobre a insolvência”. [9] O que não é dizer que deva ficar por aí, que o insolvente não possa/deva reagir, impugnando-o, contra o acto de liquidação do imposto. |