Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA MANUELA MACHADO | ||
Descritores: | PROCESSO DE ACOMPANHAMENTO DE MAIORES ACOMPANHANTE ACOMPANHADO CONFLITO DE INTERESSES FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO NULIDADE CASO JULGADO | ||
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Nº do Documento: | RP202311092669/22.6T8VFR.P1 | ||
Data do Acordão: | 11/09/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - É nulo por falta de fundamentação, o despacho que se limita a deferir o promovido, sem apreciar em concreto as questões que lhe foram colocadas, quando é certo que as decisões judiciais (sejam elas sentenças ou simples despachos) carecem de ser fundamentadas, quer por imposição do art. 205.º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, quer face ao disposto no art. 154.º do CPC. II - Consequentemente, não pode considerar-se que quando é proferido despacho que aprecia, agora em concreto e fundamentadamente, as questões colocadas pelas partes, se encontrava esgotado o poder jurisdicional, como também não se pode considerar que foi violado o caso julgado. III - Num processo de acompanhamento de maiores, sempre se poderia lançar mão do disposto no art. 150.º do Código Civil, para resolver um conflito de interesses entre acompanhante e acompanhado, já que desse preceito resulta que o acompanhante se deve abster de agir em conflito de interesses com o acompanhado (art. 150.º, nº 1, CC), sendo a violação desse dever sancionado com as consequências previstas no art. 261.º do CC, ou seja, a anulabilidade. IV - Contudo, em casos concretos, nomeadamente quando resulte que não existe entendimento entre a acompanhante e a acompanhante substituta, as quais detêm o mesmo número de ações numa empresa, da qual a acompanhada também é acionista, verifica-se um conflito de interesses entre a acompanhante e a acompanhada, que não pode ser resolvido caso a caso, eventualmente com recurso ao art. 150.º do Código Civil, quando a acompanhante pode, teoricamente, beneficiar a sua posição na empresa com o voto da acompanhada, em conflito de interesses com esta. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 2669/22.6T8VFR.P1 Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto: No âmbito do processo especial de Acompanhamento de Maior, AA intentou a ação de acompanhamento de maior de BB, requerendo a aplicação à beneficiária das medidas de representação geral e administração total de bens, ficando ainda limitado o exercício do seu direito pessoal de testar. Após realização das diligências necessárias ao apuramento da necessidade de medidas de acompanhamento relativamente à beneficiária BB, foi proferida Sentença, em 06.01.2023, nos termos da qual foi decidido o seguinte: “Pelo exposto, e ao abrigo das referidas disposições legais, julgo a presente ação procedente, por provada, e em consequência: - nomeio como acompanhante AA e acompanhante substituta CC para efeitos da medida de representação geral e administração total de bens da beneficiária BB, ficando esta ainda sujeita à medida de limitação do direito de testar.”. No dia 05.04.2023, através do requerimento com a referência 14403276, a Acompanhante, aqui Recorrente, AA, requereu ao Tribunal recorrido que: A) Sob pena de a beneficiária não poder exercer os direitos inerentes à sua participação na A..., requerer que, em aditamento à Sentença proferida no dia 06.01.2023, que viesse esclarecer se a acompanhante AA tem poderes para representar a acompanhada BB em todos os atos de administração das suas ações e, nomeadamente, no que se refere ao direito de voto, junto da sociedade A..., S.A.; B) Esclarecesse se os poderes gerais oportunamente conferidos na Sentença à acompanhante AA contemplam o exercício das funções de cabeça de casal da herança indivisa de DD, em nome e representação da beneficiária BB, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 2082.º do Código Civil. Através da promoção datada de 06.04.2023 (referência n.º 126846874), o digníssimo Procurador da República entendeu que nenhum aditamento carecia a Sentença de 06.01.2023, na medida em que os poderes de administração das ações detidas pela beneficiária na A... e o exercício das funções de cabeça de casal da herança indivisa de DD encontram-se “abarcados pela atribuição (global) dos poderes e representação geral e administração total de bens da beneficiária BB à sua filha AA”. Perante esta promoção do Ministério Público, o Tribunal recorrido, por Despacho datado de 06.04.2023, com a referência 126858806, decidiu “Proceda-se como promovido”. Nem o Ministério Público nem as restantes partes recorreram da Sentença de 6 de janeiro de 2023, nem tão pouco do Despacho de 06.04.2023. Contudo, a Acompanhante Substituta CC apresentou requerimentos avulsos através dos quais solicitou que a acompanhante AA ficasse impedida de votar em nome e representação da Acompanhada BB por estar numa situação de conflito de interesses (requerimento datado de 14.04.2023 com a referência 14437030), ao que a apelante respondeu. O Ministério Público pronunciou-se sobre os requerimentos apresentados, nos seguintes termos: “Por sentença aqui proferida foi decretado o acompanhamento da requerida, e em consequência, foi nomeada como acompanhante a AA e como acompanhante substituta a CC, tendo sido aplicada a medida de representação geral e administração total de bens da beneficiária BB, ficando esta ainda sujeita à medida de limitação do direito de testar (cf. ref. 125202773). Dispõe o artigo 145.º, n.º 3, do Código Civil, que os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica; e o n.º 5 do mesmo normativo que à administração total ou parcial de bens aplica-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 1967.º e seguintes do mesmo diploma. E o artigo 1938.º do Código Civil dispõe que o tutor, como representante do pupilo, necessita de autorização do tribunal: a) Para praticar qualquer dos actos mencionados no n.º 1 do artigo 1889.º; b) Para adquirir bens, móveis ou imóveis, como aplicação de capitais do menor; c) Para aceitar herança, doação ou legado, ou convencionar partilha extrajudicial; d) Para contrair ou solver obrigações, salvo quando respeitem a alimentos do menor ou se mostrem necessárias à administração do seu património; e) Para intentar acções, salvas as destinadas à cobrança de prestações periódicas e aquelas cuja demora possa causar prejuízo; f) Para continuar a exploração do estabelecimento comercial ou industrial que o menor haja recebido por sucessão ou doação. Atendendo a estes normativos entendeu-se, por despacho proferido a 06.04.2023, que a medida aqui aplicada abrangia a possibilidade da acompanhante administração as ações da acompanhada e exercer as funções de cabeça de casal da herança indivisa de DD. Na sequência desse despacho, e pela ref. 14437030, 14.04, veio a acompanhante substituta solicitar ao tribunal que não autorize a acompanhante a deliberar e votar nas assembleias gerais da sociedade “A...” por existir conflito de interesses. Renovou esse pedido em 23.05.2023. Tal pedido contempla uma alteração do âmbito da medida de acompanhamento aqui aplicada. Ora, a alteração do âmbito das medidas de acompanhamento não pode ser efectuada mediante mero requerimento, nem pode ser decidida por mero despacho. A alteração do âmbito do acompanhamento tem de ser efectuada em nova acção, que corre os seus termos por apenso, e apenas pode ser decidido mediante prolação de nova sentença judicial – cfr. art. 904º, do CPC. Assim sendo, entende o M.P. que o pedido ora efectuado não pode ser apreciado uma vez que não obedece a nenhum dos requisitos formais e legais. De igual modo, o M.P. não irá oficiosamente requerer, por ora, tal alteração por entender que não foi alegado qualquer facto do qual resulte que os interesses da acompanhada se encontram a ser negligenciados. Mais se dirá que, qualquer negócio ou acto que a acompanhante faça em conflito de interesses com a acompanhada sempre será um negócio/acto anulável, nos termos conjugados dos arts. 150º e 261º, ambos do C. Civil. Pelo exposto, promovo se indefira o requerido pela acompanhante substituta.” * O despacho proferido sobre a questão suscitada, tem o seguinte teor: “Refªs 14403276, 14437030, 14515488, 14557706, 14600152: Pedido da acompanhante no sentido de ver esclarecido o seguinte: a) Se a acompanhante AA tem poderes para representar a acompanhada BB em todos os atos de administração das suas ações e, nomeadamente, no que se refere ao direito de voto, junto da sociedade A..., SA; b) se os poderes gerais conferidos na sentença à acompanhante AA contemplam o exercício das funções de cabeça de casal da herança indivisa de DD, em nome e representação da beneficiária BB. Cumpre apreciar e decidir. Compulsados os autos, constata-se que foi proferida sentença datada de 6 de janeiro de 2023, já transitada em julgado, nos termos da qual nomeou “como acompanhante AA e acompanhante substituta CC para efeitos da medida de representação geral e administração total de bens da beneficiária BB, ficando esta ainda sujeita à medida de limitação do direito de testar”. Como é bom de ver, as medidas de acompanhamento aplicadas a favor da beneficiária não incluem o direito de voto da acompanhante em representação da sua mãe, aqui beneficiária e considerada incapaz na assembleia geral da empresa “A..., SA”. Com efeito, resulta do instrumento público da ata da reunião da assembleia geral da sociedade “A..., SA” (cfr. refª 14437030) que a acompanhante (e também a acompanhante substituta) são acionistas de tal empresa, o que consubstancia um conflito de interesses entre a acompanhante e a beneficiária. Tal questão deverá ser apreciada em ação própria, onde deverá ser nomeado um curador especial para tal efeito (artº 17º do Código de Processo Civil). Quanto à nomeação da acompanhante como cabeça de casal para partilha dos bens deixados pelo seu pai DD, tal questão extravasa o objeto da presente ação especial de maior acompanhado, devendo ser abordada no âmbito do competente inventário. Pelo exposto, e com os fundamentos acima expendidos, esclarece-se que o requerido pela acompanhante a refª 14403276 (direito de voto da acompanhante em representação da beneficiária na assembleia geral da sociedade “A..., SA” e nomeação de cabeça de casal da herança indivisa de DD, em nome e representação da beneficiária BB) não está contemplado nas medidas de acompanhamento aplicadas a favor da beneficiária.”. * Não se conformando com tal decisão, a acompanhante interpôs o presente recurso, que foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.No mesmo despacho que admitiu o recurso, mais foi referido pela senhora Juiz a quo, o seguinte: “Entendemos que o despacho sindicado (despacho datado de 08/08/2023) não violou o princípio da intangibilidade do caso julgado. Com efeito, o despacho proferido a 06/04/2023 com o seguinte teor: “Proceda-se como promovido”, como resulta da sua literalidade, nada decide, não tomando posição decisória cujo conhecimento lhe foi suscitado no requerimento refª 14403276 de 05/04/2023. No entanto, Vossas Excelências, melhor apreciando, confirmando-o ou revogando-o, como sempre farão inteira JUSTIÇA. Notifique.” * A apelante apresentou as seguintes conclusões:“I. Nos termos da Sentença, datada de 06.01.2023, com a referência 125202773 o Tribunal atribui a representação geral e a administração total dos bens da Acompanhada BB à Acompanhante AA, sem qualquer reserva ou exceção; II. Mais veio o mesmo Tribunal esclarecer que os direitos inerentes à participação social da Acompanhada na sociedade A..., S.A. haveriam de ser exercidos, em seu nome e representação, por parte da sua Acompanhante, nada havendo a esclarecer ou aclarar quanto à Sentença proferida no dia 6 de Janeiro de 2023, aderindo na íntegra à posição do Ministério Público veiculada na sua promoção; III. Acrescentou ainda que os poderes conferidos na Sentença de 6 de Janeiro de 2023 contemplavam o exercício, em nome e representação da Acompanhada, do cargo de cabeça de casal na Herança Indivisa de DD; IV. Desta forma, quanto ao âmbito dos poderes de administração total de bens e representação geral confiados à Acompanhante nada mais havia a acrescentar, tendo-se esgotado, nessa altura e após trânsito em julgado do Despacho de 06.04.2023, o poder jurisdicional do Juiz 3 do Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira; V. Assim, o Despacho de 8 de Agosto de 2023, com a referência 128656517, na medida em que veio decidir novamente sobre o âmbito dos poderes de administração da Acompanhante relativamente ao património da Acompanhada - concretamente no que se refere ao exercício dos direitos sociais numa sociedade em seu nome e representação – e sobre a legitimidade de representar a Acompanhada no exercício do cargo de cabeça de casal da herança de DD, devendo ser revogado por violação do disposto no n.º 1 do artigo 613.º do CPC, mantendo-se a decisão vertida no Despacho de 06.04.2023, com a referência 126858806; VI. Para além disso, uma vez que decidiu sobre o mesmo objeto do Despacho proferido no dia 06.04.2023, com a referência 126858806, o Despacho que se recorre, datado de 8 de Agosto de 2023, com a referência 128656517, decidiu sobre o mesmo objeto do primeiro (âmbito dos poderes de administração da Acompanhante e legitimidade para representação no cargo de cabeça de casal), em clara violação do disposto no artigo 282.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e do disposto no n.º 1 do artigo 619.º do CPC, devendo o mesmo ser revogado e manter-se a decisão vertida no Despacho de 06.04.2023, com a referência 126858806. VII. A Recorrente não se conforma com o facto de o Tribunal a quo ter considerado que, no âmbito de um processo especial de acompanhamento, nos poderes de administração geral a cargo da Acompanhante não estava contemplado o poder de exercer os direitos sociais da Acompanhada numa sociedade comercial de que era acionista, em clara violação do disposto nos artigos 140.º, n.º 1, 145.º, 147.º, n.º 1, 1971.º, n.º 1, 1937.º e 1938.º do Código Civil e do artigo 72.º da Constituição da República Portuguesa; VIII. Não se conforma ainda com o facto de o Tribunal a quo ter considerado que existe conflito entre os interesses entre a Acompanhada e a Acompanhante sempre que a Acompanhante exerça os direitos sociais da Acompanhada, em seu nome e representação, numa sociedade em que a própria Acompanhante é acionista, em violação do disposto nos artigos 140.º, n.º 1, 145.º, 147.º, n.º 1, 1971.º, n.º 1, 1937.º e 1938.º do Código Civil e do artigo 72.º da Constituição da República Portuguesa; IX. Todos os atos que contemplem a disposição/alienação de património/direito da Acompanhada carecem, naturalmente, de autorização judicial prévia, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 145.º, n.º 1 do artigo 1971.º, nos artigos 1937.º e 1938.º do Código Civil; X. Porém, no que se refere aos direitos sociais de um acionista perante a sociedade não os podemos considerar tout court poderes de disposição ou poderes de administração atenta a sua vastidão; XI. Ainda assim, podemos concluir que, na maioria das vezes e relativamente aos assuntos da vida corrente da sociedade, os atos subjacentes a tais propósitos são atos de administração ordinária, como por exemplo a nomeação de órgãos sociais, a prestação de contas, a alteração da sede, a outorga de um contrato de arrendamento, entre outros; XII. Exceção serão os atos que, embora incluídos nos direitos sociais, representem atos de disposição, tais como a amortização de ações, cessão de ações ou deliberação sobre a cisão da sociedade. Este tipo de atos, como parece resultar evidente da lei, carece, de autorização judicial prévia para que a Acompanhante os posso levar a cabo validamente. XIII. Em face do exposto, no âmbito da representação geral conferida no âmbito de um processo de acompanhamento, a Acompanhante deverá poder exercer os direitos sociais da Acompanhada, em seu nome e representação, desde que tais atos não consubstanciem a disposição/alienação de bens/direitos assim considerados nos termos gerais. XIX. Assim, no Despacho datado de 8 de Agosto de 2023, com a referência 128656517, o Tribunal a quo violou claramente o disposto nos artigos 140.º, n.º 1, 145.º, 147.º, n.º 1, 1971.º, n.º 1, 1937.º e 1938.º do Código Civil, devendo por esse motivo ser o Despacho recorrido revogado por Acórdão que considere que, de acordo com a interpretação conjugada das normas supra citadas, no âmbito de um processo de acompanhamento, a Acompanhante dever poder exercer os direitos sociais da Acompanhada, em seu nome e representação, desde que tais atos não consubstanciem a disposição/alienação de bens/direitos assim considerados nos termos gerais. XX. Acresce que, como se disse, o Tribunal considera a existência de um conflito dos interesses entre Acompanhante e a Acompanhada pelo facto de as duas serem acionistas na mesma sociedade e a Acompanhante ter o poder de votar, em nome e representação da Acompanhada, e, ainda, em nome próprio. XXI. A verdade é que, mais uma vez, nem todos os atos em execução dos direitos sociais da Acompanhada revelam conflito com os interesses da Acompanhante se esta última for acionista da mesma sociedade. Aliás, a maior parte dos atos não constituem qualquer tensão entre as esferas jurídicas pessoais de Acompanhante e Acompanhada. XXII. Aliás, detendo a Acompanhante 48% das ações da sociedade e a Acompanhada 2%, não se percebe de que modo é que, no exercício dos poderes de administração das ações da Acompanhada/Beneficiária, poderão os interesses da Acompanhante conflituar com os interesses da Acompanhada. Uma vez que a Acompanhante detém 48% do capital, não podia a Acompanhada estar melhor representada, na medida em que a Acompanhante, valorizando as suas ações e tomando decisões com vista a gerar mais lucro à sociedade, estará a beneficiar também a Acompanhada. XXIII. Ora, o eventual conflito de interesses deve ser avaliado relativamente a cada ato em concreto e não, de uma forma genérica, para todos os casos em que a Acompanhante e a Acompanhada são acionistas na mesma sociedade, o que, na prática, coarta o exercício dos direitos da Acompanhada. XXIV. Assim, no Despacho datado de 8 de Agosto de 2023, com a referência 128656517, o Tribunal a quo violou claramente o disposto nos artigos 140.º, n.º 1, 145.º, 147.º, n.º 1, 1971.º, n.º 1, 1937.º e 1938.º do Código Civil, devendo por esse motivo ser o Despacho recorrido revogado por Acórdão que considere que, no âmbito de um processo de acompanhamento, o eventual conflito de interesses deve ser avaliado caso a caso e não através da limitação genérica, com fundamento em conflito de interesses, no sentido de limitar à Acompanhante o exercício do direitos sociais da Acompanhada numa sociedade comercial em que a própria Acompanhante seja sócia. TERMOS EM QUE DEVERÁ O RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA, SER O DESPACHO DATADO DE 8 DE AGOSTO DE 2023, COM A REFERÊNCIA 128656517 REVOGADO.”. * O Ministério Público, notificado do recurso interposto, veio apresentar resposta às alegações da acompanhante, formulando as seguintes conclusões:“I. Nos termos do artigo 613.º, n.º 1 do C.P.C., depois de ser proferida uma decisão, o juiz não pode voltar a apreciar a mesma questão, sob pena de violação do caso julgado, atendendo ao esgotamento do seu poder jurisdicional que ocorre com a prolação de uma decisão ou sentença, II. sem prejuízo, contudo, da possibilidade que a lei concede ao juiz de resolução de questões acessórias, como é o caso da retificação de erros materiais, do suprimento de nulidades ou da reforma da sentença quanto a custas e multas, nos termos dos artigos 613.º, n.º 2, 614.º, 615.º e 616.º do C.P.C. III. No caso em apreço, foi proferida sentença que determinou a aplicação das medidas de acompanhamento de representação geral e de administração total de bens; IV. Em face da sentença, veio a Recorrente/Acompanhante solicitar um pedido de esclarecimento relativamente à questão de saber se o âmbito de tais medidas englobava o exercício do direito de voto em representação da Acompanhada em assembleia geral da sociedade da qual esta é acionista, bem como o exercício das funções de cabeça de casal em herança indivisa; V. Foi proferido o despacho datado de 06-04-2023, que entendeu que de nenhum aditamento carecia a referida sentença; VI. Em 08-08-2023 foi proferido outro despacho que entendeu em sentido oposto; VII. Tendo este último despacho sido proferido após o esgotamento do poder jurisdicional, o mesmo é juridicamente inexistente e não vale como decisão jurisdicional; VIII. Caso assim não se entenda, entendemos que as medidas de acompanhamento decretadas englobam o direito de a Recorrente/Acompanhante administrar as ações tituladas pela Acompanhada numa sociedade comercial, nomeadamente no que se refere ao direito de voto e, ainda, o exercício das funções de cabeça de casal na herança indivisa de DD; IX. A medida de representação geral, prevista na alínea b), do n.º 2, do artigo 145.º do C.C. deve ser decretada em ultima ratio por ser considerada a medida de acompanhamento mais substitutiva de todas; X. Já a medida de administração total de bens é uma medida limitada à gestão patrimonial dos bens do(a) Acompanhado(a); XI. No caso em apreço, o exercício do direito de voto e o exercício das funções de cabeça de casal não se encontram contemplados no elenco de atos que carecem de autorização do tribunal, nos termos do artigo 1938.º, n.º 1 do C.C., ex vi do artigo 145.º, n.º 3; XII. O direito de participação em deliberações sociais decorre da qualidade de sócio/acionista que alguém detém numa sociedade comercial, como é o caso da Acompanhada; XIII. Pelo que a limitação de tal direito não necessita de ficar expressamente consignado na sentença que decrete o acompanhamento de maior, porque abrangidas nas medidas de acompanhamento; XIV. De igual forma entendemos relativamente ao exercício pela Recorrente/Acompanhante, em representação da Acompanhada, das funções de cabeça de casal na herança indivisa de DD, XV. já que ao abrigo do disposto no n.º 2, do artigo 2082.º do C.C., para efeitos de exercício das funções de cabeça de casal, o Acompanhante é considerado representante do Acompanhado quando assim resulte da sentença de acompanhamento; NESTES TERMOS, Deve o despacho recorrido datado de 08-08-2023 proferido pelo Tribunal a quo ser revogado, e manter-se o decidido no despacho datado de 06-04-2023. Caso assim não se entenda, deve entender-se que as medidas de acompanhamento de representação geral e de administração total de bens decretadas na sentença de acompanhamento, englobam a administração das ações que sejam tituladas pela Acompanhada, bem como o exercício das funções de cabeça de casal da herança indivisa de DD, assim se fazendo a costumada, JUSTIÇA!”. * Decidindo:* O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil. Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, cabe apreciar se o despacho recorrido foi proferido após o esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal e viola o caso julgado, bem como se os poderes em causa (votar nas Assembleias gerais da sociedade da qual a acompanhada é acionista e representar a acompanhada enquanto cabeça de casal no inventário que corre por óbito do marido) estão englobados nos poderes de administração geral conferidos à acompanhante, e se existe conflito de interesses entre a acompanhada e a acompanhante, sempre que numa sociedade ambas sejam acionistas. * Na sentença que decretou o acompanhamento de maior foram dados como assentes os seguintes factos:1. BB, filha de EE e FF, nasceu no dia .../.../1948. 2. É viúva. 3. A beneficiária é portadora de demência, com deterioração mental grave que atinge globalmente todas as funções psíquicas. 4. Esta situação clínica decorre de patologia de caráter adquirido, sendo incapacitante muito provavelmente há mais anos, mas com maior de certeza desde início de 2018. 5. Constata-se a existência de uma limitação muito grave da faculdade de discernimento da beneficiária. 6. À luz dos conhecimentos médicos atuais não se prevê que cure nem que melhore, independentemente de qualquer terapêutica. 7. A deficiência constatada limita séria e permanentemente as capacidades da beneficiária, impedindo-a de gerir a sua pessoa e bens. 8. Não há notícia da existência de testamento vital ou outorgado mandato para a gestão dos seus interesses. * Dispõe o art. 613.º, nº 1 do CPC que “Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”, sendo tal disposição aplicável aos despachos (nº 3 do mesmo preceito).Por sua vez, resulta do preceituado no art. 619.º, nº 1 do mesmo diploma legal, que transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º. Perante estas disposições legais, podemos afirmar que da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar. Contudo, a intangibilidade da decisão proferida é limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão (cfr., neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo 120724/15.0YIPRT.1.G1-A, de 02-03-2023). A recorrente, bem como o Ministério Público, entendem que com o despacho de 06-04-2023, ficou esgotado o poder jurisdicional do Tribunal, no sentido de se pronunciar sobre o pedido de esclarecimento formulado pela acompanhante, ora recorrente, pelo que o despacho de 08-08-2023, do qual recorre, viola o caso julgado. E se é certo que, proferido despacho sobre determinada matéria, que não seja objeto de recurso, o Tribunal não pode voltar a pronunciar-se sobre a mesma matéria, não podemos deixar de considerar o que a Senhora Juíza que proferiu o despacho recorrido, refere no despacho que admitiu o recurso, onde diz “Entendemos que o despacho sindicado (despacho datado de 08/08/2023) não violou o princípio da intangibilidade do caso julgado. Com efeito, o despacho proferido a 06/04/2023 com o seguinte teor: “Proceda-se como promovido”, como resulta da sua literalidade, nada decide, não tomando posição decisória cujo conhecimento lhe foi suscitado no requerimento refª 14403276 de 05/04/2023”. Efetivamente, o despacho de 06/04/2023, com o teor “Proceda-se como promovido”, nada decidiu em concreto. Pelo contrário, afigura-se-nos tratar-se de um despacho nulo, desde logo, por falta de fundamentação, nos termos do disposto no art. 154.º do CPC, preceito que impõe: “1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.”. Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo 1/08.0TJVNF-EK.G1, de 21-05-2015: “1 – É nulo um despacho que omite por completo a fundamentação em que se baseia, limitando-se a deferir o requerido.”. Foi o que aconteceu no caso, com o despacho proferido em 06-04-2023, onde o Tribunal se limitou a dizer “Proceda-se como promovido”, sem apreciar em concreto as questões que lhe foram colocadas, quando é certo que as decisões judiciais (sejam elas sentenças ou simples despachos) carecem de ser fundamentadas, quer por imposição do art. 205.º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, quer face ao disposto no citado art. 154.º do CPC. Posto isto, temos de concluir que o despacho de 06-04-2023 é nulo por falta de fundamentação, faltando-lhe mesmo o objeto, já que da leitura do despacho em causa, nada resulta sobre o que foi decidido, pelo que não se pode considerar que quando foi proferido o despacho recorrido, de 08-08-2023, o qual apreciou, agora em concreto e fundamentadamente, as questões colocadas pelas partes, se encontrava esgotado o poder jurisdicional, como também não se pode considerar que foi violado o caso julgado, improcedendo, assim, o recurso, quanto a este fundamento. * Refere a recorrente, ainda, que existem duas questões de direito com as quais não se conforma, a saber, entende que no âmbito da representação geral conferida num processo de acompanhamento, a Acompanhante deverá poder exercer os direitos sociais da Acompanhada, em seu nome e representação, desde que tais atos não consubstanciem a disposição/alienação de bens/direitos assim considerados nos termos gerais, pelo que o Despacho datado de 8 de Agosto de 2023, com a referência 128656517, deve ser revogado por Acórdão que considere que, de acordo com a interpretação conjugada das normas que cita, no âmbito de um processo de acompanhamento, a Acompanhante deve poder exercer os direitos sociais da Acompanhada, em seu nome e representação, desde que tais atos não consubstanciem a disposição/alienação de bens/direitos assim considerados nos termos gerais.Pretende também que ao contrário do Tribunal que considera a existência de um conflito dos interesses entre Acompanhante e a Acompanhada pelo facto de as duas serem acionistas na mesma sociedade e a Acompanhante ter o poder de votar, em nome e representação da Acompanhada, e, ainda, em nome próprio, se decida que, no âmbito de um processo de acompanhamento, o eventual conflito de interesses deve ser avaliado caso a caso e não através da limitação genérica, com fundamento em conflito de interesses, no sentido de limitar à Acompanhante o exercício dos direitos sociais da Acompanhada numa sociedade comercial em que a própria Acompanhante seja sócia. Vejamos: As questões que a acompanhante pretende ver esclarecidas, bem como a sua irmã, acompanhante substituta, são as seguintes: a) Se a acompanhante AA tem poderes para representar a acompanhada BB em todos os atos de administração das suas ações e, nomeadamente, no que se refere ao direito de voto, junto da sociedade A..., SA; b) se os poderes gerais conferidos na sentença à acompanhante AA contemplam o exercício das funções de cabeça de casal da herança indivisa de DD, em nome e representação da beneficiária BB. Ora, perante esta situação e para perceber o porquê do conflito entre a acompanhante AA e a acompanhante substituta CC, que é o que, na realidade, levou ao pedido de esclarecimento, resulta assente nos autos que cada uma das duas irmãs é acionista da empresa “A..., SA”, com 48 % das ações cada uma, sendo a acompanhada acionista de 2 % das ações da mesma empresa, e cabendo os outros 2 % das ações à herança aberta por óbito do marido da acompanhada e pai das acompanhantes. Sendo assim, fácil é perceber que podendo a acompanhante administrar as ações da acompanhada e, ainda, administrar a herança da qual a acompanhada é cabeça de casal, estaria nas mãos da acompanhante qualquer decisão sobre a empresa, ainda que contra a vontade da outra acionista que tem 48 % das ações, o que, alegadamente, já vem acontecendo. Foi perante este circunstancialismo que o Tribunal recorrido decidiu, ao referir que: “Como é bom de ver, as medidas de acompanhamento aplicadas a favor da beneficiária não incluem o direito de voto da acompanhante em representação da sua mãe, aqui beneficiária e considerada incapaz na assembleia geral da empresa “A..., SA”. Com efeito, resulta do instrumento público da ata da reunião da assembleia geral da sociedade “A..., SA” (cfr. refª 14437030) que a acompanhante (e também a acompanhante substituta) são acionistas de tal empresa, o que consubstancia um conflito de interesses entre a acompanhante e a beneficiária. Tal questão deverá ser apreciada em ação própria, onde deverá ser nomeado um curador especial para tal efeito (artº 17º do Código de Processo Civil). Quanto à nomeação da acompanhante como cabeça de casal para partilha dos bens deixados pelo seu pai DD, tal questão extravasa o objeto da presente ação especial de maior acompanhado, devendo ser abordada no âmbito do competente inventário. (…)”. Aqui chegados, cabe referir que para resolver qualquer caso de conflito de interesses, sempre se poderia lançar mão do disposto no art. 150.º do Código Civil, do qual resulta que o acompanhante se deve abster de agir em conflito de interesses com o acompanhado (art. 150.º, nº 1, CC), sendo a violação desse dever sancionado com as consequências previstas no art. 261.º do CC, ou seja, a anulabilidade. Contudo, no caso concreto, considerando que não existe entendimento entre a acompanhante e a acompanhante substituta, as quais detêm o mesmo número de ações na empresa, estando já visto que têm opiniões diferentes sobre a forma de tratar os assuntos que afetam a acompanhada (por exemplo a questão da criação de um fundo a favor da acompanhada, com a qual a acompanhante não concorda, apesar de se afigurar que seria benéfico para aquela), questões que estão relacionados com a forma de administrar a sociedade, concordamos que se verifica no caso um conflito de interesses entre a acompanhante e a acompanhada, entendendo-se que não se trata de situações esporádicas, que poderiam ser resolvidas caso a caso, eventualmente com recurso ao art. 150.º já citado, mas antes de um conflito permanente que tem já causado problemas na administração da empresa, como resulta dos requerimentos das acionistas, podendo, teoricamente, a acompanhante beneficiar a sua posição na empresa com o voto da acompanhada, em conflito de interesses com esta. Aliás, o art. 147.º do Código Civil prevê que é livre o exercício dos direitos pessoais, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário, sendo certo que se entende que o elenco de direitos pessoais que podem ser restringidos por decisão judicial, previsto no n.º 2 do art. 147.º do CC, é exemplificativo, pelo que, considerando-se o direito de voto um direito pessoal, para tal direito ser abrangido nos poderes do acompanhante tem de ser discriminado na sentença que determina o acompanhamento, o que não aconteceu no caso. Assim, sendo, conclui-se que no âmbito do processo de maior acompanhado, deve a sentença elencar quais os direitos pessoais que o acompanhado não tem capacidade para exercer, já que a regra geral, prevista no nº 1 do art.147.º do CC, é a de que o acompanhado terá liberdade para exercer os seus direitos pessoais, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário. Por sua vez, quanto ao cargo de cabeça de casal, é também um cargo de natureza pessoal, sendo, no entanto, a lei civil – arts. 2079.º e seguintes do CC - que refere a quem incumbe esse mesmo cargo. Quanto à situação em concreto, a mesma está prevista no art. 2082.º, nº 2 do CC, que prevê que o acompanhante é tido como representante do acompanhado para o efeito de exercer as funções de cabeça de casal, mas apenas quando assim resulte da sentença de acompanhamento ou de decisão judicial ulterior. Não constado expressamente da decisão proferida, tratar-se-á, eventualmente, de uma situação de substituição do cabeça de casal, a requerer no processo respetivo. Concordando-se, assim, com a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, entende-se ser o mesmo de manter, improcedendo o recurso também quanto a este fundamento. * Decisão:* Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação interposta do despacho proferido em 08-08-2023, improcedente, mantendo a decisão nos seus precisos termos. Custas pela recorrente. Porto, 9/11/2023. Manuela Machado Francisca Mota Vieira Paulo Duarte Teixeira |