Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP00041949 | ||
| Relator: | MARIA LEONOR ESTEVES | ||
| Descritores: | APRECIAÇÃO DA PROVA RECURSO MATÉRIA DE FACTO | ||
| Nº do Documento: | RP200812100814391 | ||
| Data do Acordão: | 12/10/2008 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REC PENAL. | ||
| Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE. | ||
| Indicações Eventuais: | LIVRO 560 - FLS 152. | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | Para obter a modificação da matéria de facto fixada na 1ª instância, não basta ao recorrente sustentar que a leitura que o tribunal fez da prova produzida, sendo uma das possíveis, não é a mais adequada; é necessário demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência ou da existência de provas irrefutáveis, não consentia tal leitura. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Recurso Penal nº 4391/08 Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: 1.Relatório Na .ª Vara Criminal do Porto, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, foi submetido a julgamento o arguido B………., devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferido acórdão, no qual se decidiu absolvê-lo do crime de homicídio qualificado na forma tentada p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 132º nº 2 al. h) do C. Penal, que lhe vinha imputado, e condená-lo, pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º e 131º do C. Penal, na pena de 5 anos de prisão. Inconformado com o acórdão, dele interpôs recurso o arguido, pugnando pela revogação dele e pela sua absolvição, ou, pelo menos, por que lhe seja aplicada uma pena muito próxima do mínimo da moldura penal e suspensa na sua execução, para o que apresentou as seguintes conclusões: - OS DEPOIMENTOS DAS TESTEMUNHAS C………. (CD1 – 27.14 A 45.21 E CD2 -00.15 A 05.14); D………. (CD2 – 06.20 A 23.23); E………. (CD1 – 24.00 A 42.28) E F………. (CDCD2 – 43.00 A 01.00.50) NÃO SÃO CREDÍVEIS E ISENTOS PELO QUE OS FACTOS DADO COMO PROVADOS NÃO PODERIAM SER DADOS COMO TAL – VIOLAÇÃO DO DISPOSTO DO ARTIGO 413º, N.º 3, ALÍNEA B) CPP – E PORTANTO INCORRECTAMENTE JULGADOS OS FACTOS ENUMERADOS NOS NÚMEROS 1, 2, 6 – 10 - SE NÃO ENTENDEREM ASSIM, HOUVE INCORRECTA INTERPRETAÇÃO DA APLICAÇÃO DOS ARTIGOS 50º E 71º DO CP VISTO QUE AO RECORRENTE DEVIA LHE SER APLICADO UMA PENA MUITO PRÓXIMA DO MÍNIMO Na resposta, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da confirmação da decisão recorrida, apenas com a correcção do que diz respeito à suspensão da execução da pena, e consequente improcedência do recurso. O recurso foi admitido. O Exmº Sr. Procurador-geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer, igualmente no sentido da improcedência do recurso. Cumpriu-se o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., não tendo sido apresentada resposta. Colhidos os vistos, e não tendo sido requerida a realização de audiência nem sendo necessário proceder à renovação da prova foram os autos submetidos à conferência (art. 419º nº 3 al. c) do C.P.P.). Cumpre decidir. 2.Fundamentação No acórdão recorrido foram considerados como provados os seguintes factos: Da acusação 1. No dia 28.02.2006, na Rua ………., freguesia de ………., nesta Cidade do Porto, o arguido envolveu-se em discussão com o ofendido C……….; 2. Entretanto, o arguido retirou do interior do casaco que envergava uma faca de cozinha com cabo em madeira e lâmina em aço, com 15,5 cm de comprimento, empunhou-a e desferiu com a lâmina duas facadas no corpo do ofendido, na região cervical direita e na região abdominal à direita; 3. Em consequência da conduta do arguido sofreu o ofendido as lesões físicas descritas no exame médico-legal de fls. 8 a 14 e 181 a 184 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, designadamente duas feridas perfurantes na face lateral direita do pescoço e no abdómen à direita as quais, após cirurgia vascular e suturação lhe determinaram um período de 30 dias de doença com incapacidade para o trabalho; 4. Em cirurgia vascular realizada registou-se hemorragia em jacto pela ferida cervical; 5. Também em cirurgia (laparatomia exploratório) verificou-se a integridade completa do peritoneu, o não atingimento de estruturas vitais e a secção de fibras musculares; 6. O arguido ao agir do modo descrito previu como possível consequência da sua conduta a morte da vítima, conformando-se com tal resultado; 7. Sendo que, a morte da vítima só não ocorreu devido a circunstâncias inteiramente fortuitas, alheias à vontade do arguido, dado não ter atingido e lacerado órgãos e estruturas anatómicas vitais, o que, a ter ocorrido, causaria a morte do ofendido; 8. O arguido bem sabia que a utilização daquela faca, com uma lâmina com as sobreditas dimensões, como instrumento de agressão e para atentar contra o corpo do ofendido, o colocava em manifesta inferioridade física e o impedia de, fisicamente, evitar a agressão de que foi alvo; 9. Sabia igualmente que a sua utilização para esfaquear o pescoço e o abdómen do ofendido, tornava altamente provável a sua morte; 10. Agiu livre, voluntária e conscientemente e bem sabia que a sua conduta era proibida e era punida por lei; Das condições pessoais do arguido 11. O arguido foi criado, com os seus 4 irmãos no seio da sua família de origem; 13. Cerca dos 10 anos de idade perdeu a mãe vítima de cancro, após um longo período de doença; a partir dessa altura o pai assumiu o processo educativo dos descendentes, embora dois já trabalhassem e uma irmã estudava, sendo o arguido 7 anos mais novo que o irmão que o antecede; com a morte da mãe e, numa primeira fase, uma tia materna prestou apoio à família e mais tarde passou a ser a irmã, uma vez que tinha concluído o curso e estava desempregada; 14. A relação familiar é descrita pelo arguido como muito positiva e marcada por laços de afectividade com o seu progenitor; 15. Iniciou a frequência do ensino aos 6 anos, tendo abandonado aos 19 com o 10° ano concluído, frequentou ainda o 11º e o 12° ano, mas não terminou este grau de ensino por não concluir a disciplina de geometria descritiva; 16. desde a saída do ensino, decidiu tirar um curso de formação profissional no G………., na zona industrial do ………., onde concluiu ao fim de 9 meses a formação em HCADCAM-7 já com estágio incluído; 17. De seguida iniciou actividade como empregado fabril, através de uma empresa de trabalho temporário na Firma “H……….”, onde se manteve durante 5 meses; 18. Nesta altura saiu para frequentar outro curso de formação no ‘I……….”, de técnico de programação de WEB, que teria a duração de 6 meses mas do qual desistiu findos 3/4 meses uma vez que não conseguia acompanhar a área da matemática; 19. Trabalhou posteriormente por 4 meses, numa empresa de publicidade findos os quais esteve cerca de 2 anos desempregado; trabalhou mais 3 meses na “J……….” e posteriormente esteve 6 meses desempregado até 16 de Julho de 2007, altura em que iniciou actividade como empregado de armazém na empresa K……….; 20. Aos 24 anos saiu de casa do progenitor para iniciar uma relação marital, com a sua namorada com a qual mantinha relação de namoro desde há cerca de 4/5 meses; 21. À data dos factos, B…………, vivia maritalmente com a companheira – que é filha da vítima - há cerca de um mês, vivendo o casal num quarto alugado; encontravam-se os dois inactivos profissionalmente sobrevivendo da actividade de músico do arguido, que tocava na rua e em bares; posteriormente o casal foi residir durante dois meses para o Algarve, onde o arguido trabalhava como músico, tendo regressado ao Porto quando a companheira engravidou; 22. O arguido tem uma filha que conta actualmente 15 meses sendo a relação entre o casal descrita como muito positiva, tendo passado por dificuldades uma vez que o progenitor dela sempre se opôs ao relacionamento; 23. Segundo a companheira, esta oposição veio fortaleceu os laços afectivos que os unem; 24. Quando regressaram do Algarve viveram temporariamente em casado pai do arguido até há cerca de 3 meses; 25. O agregado sobrevive do vencimento do arguido, que trabalha como empregado de armazém na empresa ‘K……….” auferindo € 430,00 e ainda do rendimento social de inserção atribuído à companheira no valor de € 150,00 e de € 30,00 de abono da descendente; 26. O arguido conta ainda com o apoio do progenitor, na compra de alguns bens e roupa para a descendente; 27. O tempo disponível do arguido é dedicado à música, actividade que desde sempre o motivou e da qual gostaria até fazer profissão; 28. É primário. Mais resultou provado 29. Que o ofendido caso tal se mostrasse possível desistia da queixa apresentada contra o arguido; 30. Que o arguido actuou em estado de exaltação devido ao facto de nos momentos que antecederam a agressão o ofendido ter discutido e agredido a sua filha e companheira do arguido desferindo-lhe, uma bofetada na face; Não se consideraram provados quaisquer outros factos susceptíveis de influir na decisão da causa, e designadamente: -que o arguido actuasse com a intenção de tirar a vida ao ofendido; -que o arguido ao actuar do modo descrito previsse como consequência necessária a morte da vítima Quanto à motivação da decisão de facto, consignou-se que: Para o apuramento dos factos foram decisivas: a) As declarações do arguido na parte em que confessou ter desferido as duas facadas no corpo (referiu no entanto, sem demonstrar qualquer credibilidade e de uma forma algo fantasiosa, que actuou em legítima defesa, por ter sido agredido pelo ofendido e outros indivíduos e que não transportava consigo a faca com a qual desferiu as facadas tendo-a apanhado do chão e depois desferido as facadas. Referiu ainda que a faca era transportada por um dos indivíduos que o agrediu e que a deixou cair ao solo); b) Depoimentos objectivos e convincentes das testemunhas de acusação C………. (ofendido e pai da companheira do arguido; referiu estar muito zangado com o arguido, devido aos acontecimentos que o vitimaram e também devido ao facto de não concordar com a relação do arguido com a sua filha. Não obstante esta referência, descreveu os factos de forma coerente e convincente, mostrando-se credível. Assim, depois de o arguido e a sua filha abandonarem o estabelecimento de café de que é proprietário no dia dos factos, veio também ao exterior do mesmo chamando pela filha. Esta, veio (seguida pelo arguido) na direcção da testemunha, mas demonstrando uma atitude que a testemunha considerou agressiva ou pelo menos desrespeitosa, uma vez que se estava a dirigir ao próprio pai. Em reacção, a testemunha desferiu uma bofetada na cara da sua filha. O arguido, logo de seguida, desferiu uma facada no abdómen da testemunha e, logo depois, o arguido desferiu nova facada, desta vez na zona do pescoço. Mais referiu esta testemunha que gostava de desistir da queixa apresentada.); F………. (amigo do arguido há muitos anos que depôs de forma clara, coerente e convincente não manifestando qualquer sentimento de rejeição ou má vontade relativamente ao arguido. Referiu que antes das agressões -como aliás é pacífico entre todos-, o arguido e a companheira estiveram no interior do café do ofendido; que no interior do café houve um desentendimento entre a filha da vítima e uma outra rapariga e que depois arguido e a companheira abandonaram o café sendo seguidos pelo ofendido, que manifestava o propósito de falar com a sua filha. Alguns metros percorridos no exterior do café, o ofendido abeirou-se da filha e desferiu-lhe uma bofetada. Vendo o arguido aproximar-se ainda lhe disse: “Estou a falar com a minha filha – tu não te metas.” Mas foi, de imediato agredido pelo arguido – pese embora a testemunha não se tivesse apercebido da primeira facada apenas tendo visto a segunda. Foi então que a testemunha F………. e um outro indivíduo que o depoente identificou como “L……….”, que se encontravam muito próximos, intervieram, imobilizaram o arguido e lhe retiraram a faca. Mais referiu esta testemunha que foi quem guardou a faca usada pelo arguido e a entregou à autoridade policial.) E………. (que descreveu os factos de forma no essencial coincidente com a testemunha anterior) c) O depoimento da testemunha D………. (empregada do ofendido no estabelecimento de café) foi de pouco valor para a descoberta da verdade uma vez que manifestou algum grau de animosidade contra o arguido. d) Valorou ainda o tribunal as fotos de fls. 12 a 14, os registos clínicos de fls. 106 a 114, Relatórios Periciais de fls. 8 a 11, 51 a 54 e 141 a 144 dos autos; e) Ainda o Relatório Social de fls. 223 a 227 e o CRC de fls. 210 dos autos. f) De referir que o Tribunal para apurar que o arguido previu como consequência possível da sua conduta a morte do ofendido, serviu-se das regras da experiência e conhecimento comuns, mostrando-se a este propósito relevante a citação do Ac. do S.T.J. datado de 6.10.1994, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954, onde de forma singela, se diz o seguinte: “É da experiência e conhecimento comuns, o grave perigo de morte que sempre existe, quando se desfere voluntária e violenta facada na zona toráxica, cheia de órgãos vitais. Quem assim proceda representa a morte como possível e, nem por isso, deixa de actuar – dolo eventual.” Sobre os factos não provados, inexistiu prova bastante, sendo certo que, nenhuma prova se fez de que o arguido tivesse actuado com um plano previamente delineado. 3. O Direito O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2]. No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes: - erro de julgamento quanto aos pontos 1, 2 e 6 a 10 da matéria de facto provada; - medida da pena. 3.1. Entende o recorrente que foi cometido erro de julgamento quanto aos pontos 1,2 e 6 a 10 da matéria de facto provada, sustentando que os factos deles constantes não podiam ser considerados como provados na medida em que os depoimentos das testemunhas C………., D………. e F………. não são credíveis e isentos. A apreciação da prova é regida pela regra geral contida no art. 127º do C.P.P., de acordo com a qual o tribunal – ressalvadas as excepções integradas no princípio da prova legal ou tarifada - forma livremente a sua convicção, estando apenas vinculado às regras da experiência[3] comum e aos princípios estruturantes do processo penal, nomeadamente ao princípio da legalidade da prova ( cfr. arts. 32º nº 8 da C.R.P., 125º e 126º do C.P.P. ) e ao princípio “in dubio pro reo”. Como é sabido, livre convicção[4] não é sinónimo de apreciação meramente subjectiva, arbitrária, imotivável, mas tão só um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante, e que sempre terá de se pautar pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, parâmetros estes que a fundamentação de facto terá de evidenciar terem sido observados. Dentro dos limites apontados, o julgador perante o qual a prova é produzida -, e portanto em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica -, goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da sua globalidade, os meios de que se serve para formar a sua convicção e de acordo com ela, fixar os factos provados e não provados. Nada obsta, pois, que, ao fazê-lo, se apoie num certo conjunto de provas e, do mesmo passo, pretira outras às quais não reconheça suporte de credibilidade[5]. Decorrentemente, a impugnação eficiente da decisão proferida sobre a matéria de facto depende, para além da observância dos demais requisitos formais indicados nos nºs 3 e 4 do art. 412º do C.P.P., da especificação das concretas provas que (no entender do recorrente) impõem[6] decisão diversa da recorrida. “A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.”[7] Não basta, pois, sustentar que a leitura que o tribunal fez da prova produzida, sendo uma das possíveis, não é a mais adequada; é necessário demonstrar que a análise da prova à luz das regras da experiência ou a existência de provas irrefutáveis não consentiam tal leitura. Ora, resulta à evidência das conclusões do recurso, e mais esclarecidamente ainda da sua motivação, que o ataque que o recorrente desfere à forma como o tribunal recorrido decidiu a matéria de facto não assenta na existência de provas que impusessem decisão diversa da que foi proferida; ao invés, a discordância do recorrente centra-se na forma como foram valoradas as provas produzidas, insurgindo-se contra a credibilidade que foi reconhecida a algumas das testemunhas. Em passo algum afirma o recorrente que o tribunal a quo tenha percepcionado de forma incorrecta o sentido dos seus depoimentos, antes faz uma análise de passagens desgarradas e de pretensas incongruências que entende conterem para defender que outra deveria ter sido a convicção formada. Pese embora a futilidade de uma argumentação deste jaez, não deixaremos de referir que, ouvida a gravação da prova, a convicção adquirida pelo tribunal a quo, aliás clara e suficientemente fundamentada, mostra-se adequadamente suportada pelos meios de prova - todos eles permitidos – que como relevantes e credíveis foram considerados na motivação, emergindo como perfeitamente plausível e conforme com as regras da experiência comum. Com efeito, e excepção feita ao recorrente, todas as testemunhas inquiridas – com mais ou menos pormenores e sem que se detectem contradições flagrantes – afirmaram que os factos ocorreram quando o recorrente, o ofendido e a filha deste se encontravam bem destacados das pessoas que, entretanto, foram acorrendo ao local; que o recorrente não foi alvo de quaisquer agressões antes de ter desferido as facadas no ofendido; e que a faca com que ele o agrediu, nas circunstâncias em que surgiu nas suas mãos, só por ele podia ter sido trazida (o que torna plausível a convicção de que o recorrente a retirou do interior do casaco que envergava). Além disso a preexistência de desentendimentos entre o recorrente e ofendido, relacionados com o facto de este se opor ao relacionamento sentimental entre aquele e a sua filha - que foi referida por ambos e também pela testemunha D1………. (e não D………., como por lapso vem identificada na motivação de facto) ………. - empresta sentido às motivações subjacentes à conduta do recorrente. Já a versão apresentada pelo recorrente, no sentido de que foi agredido por um grupo de indivíduos cujas identidades nem sequer indicou, que apanhou a faca do chão depois de ter conseguido que o agressor que com ela estava munido a largasse, e que desferiu as facadas com o único propósito de se defender, logo depois de ter sido agarrado pelo ofendido e de este lhe ter desferido um murro, para além de só ter sido sustentada por ele próprio, foi peremptoriamente contrariada pelo ofendido e por todas as demais testemunhas inquiridas. O relato que estes fizeram do modo como os factos ocorreram mostrou-se essencialmente coerente e lógico, sem fugir por alguma forma às regras da normalidade, motivo pelo qual também nada obstava a que o tribunal a quo o tivesse como plausível e assentasse a sua convicção nesses depoimentos, conjugados com a prova pericial e documental junta aos autos. Em concreto no que respeita ao elemento subjectivo, a prova produzida sustenta igualmente a convicção alcançada, de que o recorrente actuou (pelo menos) com dolo eventual. É sabido que o dolo, como processo psíquico, pertence ao foro interno do agente, sendo insusceptível de apreensão directa, e por isso tem de ser inferido dos factos materiais que, provados e apreciados com a livre convicção do julgador e conjugados com as regras da experiência comum, apontam para a sua existência[8]. Ora, no caso, a conjugação das características do objecto utilizado na agressão (faca com 27,5 cm de comprimento, dos quais 15,5 cm correspondem à lâmina – cfr. exame directo e fotografia a fls. 115 e 116), das zonas visadas (pescoço e abdómen, nas quais se situam órgãos vitais) e da natureza e extensão dos ferimentos causados (ferimentos perfurantes no ápice do hemitórax direito e na região periumbilical direita, que causaram abundante perda de sangue, demandaram cirurgia e determinaram 30 dias de doença com incapacidade para o trabalho – cfr. elementos clínicos a fls. 8-11, 17, e 107-114, e fotografias a fls. 12-14), com a própria forma como foi perpetrada a agressão, tal como resulta dos depoimentos do ofendido e das demais testemunhas (o recorrente puxa da faca e dirige-a contra o ofendido, quando ambos se encontravam de pé, e terminando as agressões porque foi prontamente desarmado pela testemunha E……. e outro indivíduo que ali se encontrava) suportam perfeitamente a conclusão de que o recorrente agiu de forma livre, voluntária e consciente e que não pode ter deixado de prever como consequência possível da sua conduta a morte do ofendido, tendo-se com ela conformado. Em suma, a prova produzida em audiência não impõe decisão diversa da recorrida, inexistindo fundamento para proceder à pretendida alteração da matéria de facto provada; ao invés, a convicção formada pelos julgadores - porque possível, plausível (aliás, a mais plausível), conforme com as regras da experiência comum e assente em provas não proibidas por lei – tem de se considerar validamente formada ao abrigo do disposto no art. 127º do C.P.P., sendo, por isso, inatacável. Ademais, evidenciando-se que o recorrente apenas pretendeu, sem qualquer fundamento, fazer substituir pela sua a convicção formada pelos julgadores, pretensão que, obviamente, estava votada ao insucesso, é manifesta a improcedência do recurso, nesta parte. 3.2. O recorrente insurge-se, ainda, contra a medida em que a pena foi fixada, entendendo que houve incorrecta interpretação e aplicação do disposto nos arts. 50º e 71º do C. Penal e sustentando que a pena devia ter sido fixada muito próximo do seu limite mínimo. São as finalidades relativas de prevenção, geral e especial, que justificam a intervenção do sistema penal e conferem fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral, enquanto prevenção positiva ou de integração, i. e. “como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida”, assume o primeiro lugar como finalidade da pena[9]. Por outro lado, o princípio da culpa, acolhido no nosso ordenamento jurídico-penal e cujo fundamento axiológico radica no princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal, implica que a culpa seja condição necessária da aplicação da pena e, simultaneamente, que a medida da pena não possa ultrapassar a medida da culpa[10]. Estes princípios encontram expressão nos nº 1 e 2 do art. 40º do C. Penal, nos termos dos quais as penas têm como finalidade a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e não podem em caso algum ultrapassar a medida da culpa. E, bem assim, no nº 1 do art. 71º do C. Penal, de acordo com o qual a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, operação na qual, e de acordo com o nº 2 do mesmo preceito, o tribunal terá de atender àquelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente. O equilíbrio desejável entre as finalidades relativas à prevenção geral e à prevenção especial não obsta a que, perante as especificidades do caso concreto, uma dessas finalidades haja de prevalecer sobre a outra. Sendo estes os parâmetros que regem a aplicação das penas e a determinação da sua medida concreta, vejamos agora se os mesmos foram observados pelo tribunal recorrido. Ao crime praticado pelo recorrente, de homicídio simples na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 73º nº 1 als. a) e b) e 131º do C. Penal, corresponde pena de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão. Feita a subsunção jurídica dos factos, e achada a moldura penal aplicável, o tribunal recorrido passou à determinação da medida da pena, fixando-a em 5 anos de prisão com base nas seguintes considerações: Assinala-se, em primeiro lugar, e como circunstâncias agravantes, as razões de prevenção geral, especialmente prementes, atento o elevado números de crimes similares e o alarme social que tais condutas sempre causam. Como atenuantes, não pode deixar de se considerar a circunstância de ser primário, a sua situação económica que é muito modesta, o facto de se encontrar laboralmente activo. Também as circunstâncias que rodearam a sua actuação e que ocorreu num quadro de conflito com discussão e agressão entre “pai, filha e genro”, com a consequente atenuação da racionalidade provocada pela exaltação e emoção próprias do momento. Sopesando, para além das circunstâncias indicadas, a concreta gravidade das consequências, o facto de o recorrente ter agido com a forma menos intensa de dolo, a inexistência de exigências de prevenção especial, reforçada por indicadores de que o litígio entre ele e o ofendido se encontra de certa forma pacificado, tanto que este até manifestou a vontade de desistir da queixa (cfr. fls. 154), e procedendo ainda à análise comparativa com outros casos de tentativa de homicídio tratados na jurisprudência publicada dos tribunais superiores[11] (sem esquecer que cada caso é um caso particular, com nuances que o distinguem dos demais), entendemos que a pena fixada se mostra excessiva por confronto com a gravidade dos factos e a culpa do recorrente, justificando-se a sua redução para 4 anos de prisão, assim se dando parcial provimento ao recurso. Embora não a haja retomado nas conclusões, suscitou o recorrente na motivação do recurso a questão da nulidade do acórdão decorrente do facto de não constar do seu dispositivo a decisão de suspender a execução da pena. A medida em que a pena foi fixada impunha que o tribunal a quo ponderasse a possibilidade de a suspender, face ao disposto no nº 1 do art. 50º do C. Penal. E essa ponderação foi efectivamente feita, como se evidencia pela leitura da motivação de direito da decisão recorrida, na qual se concluiu que “ao abrigo do disposto no art. 50º do C. Penal, decidem os juízes que integram este tribunal colectivo em suspender a execução desta pena de prisão em que o arguido vai condenado pelo período de 5 (cinco) anos.” A decisão ali antecipada não foi, no entanto, transposta para o dispositivo, do qual ficou apenas a constar a condenação do recorrente em 5 anos de prisão. Tal ficou a dever-se, certamente, a mero lapso (outra explicação não se vislumbra), que, no caso, entendemos não configurar a nulidade invocada na medida em que não há omissão de decisão condenatória. Aceitamos que, tal como propugnado pelo MºPº, esse lapso seja passível de correcção por este tribunal, ao abrigo do disposto no art. 380º nº 1 al. b) e 2 do C.P.P., na medida em que não comporta modificação essencial do acórdão, traduzindo-se apenas na transposição para o lugar próprio (o dispositivo) de decisão que foi efectivamente tomada (na motivação de direito) mas que dele não ficou a constar. Como assim, determinaremos que se proceda à correcção que se impõe, de forma a ficar a constar do dispositivo a suspensão da execução da pena aplicada ao recorrente. No entanto, devendo esta ser reduzida para 4 anos de prisão, também o período de suspensão da sua execução terá de ser reduzido para 4 anos, por força do disposto no nº 5 do art. 50º do C. Penal. Uma última questão subsiste e que se prende com o disposto no nº 3 do art. 53º do C. Penal. De acordo com este normativo, a suspensão da execução de pena de prisão aplicada em medida superior a 3 anos é obrigatoriamente acompanhada de regime de prova. Ora, no caso, o tribunal a quo não observou tal imposição legal, aplicando a suspensão simples. No entanto, e apesar de a pena aplicada ao recorrente, mesmo depois de reduzida, ainda cair no âmbito da previsão daquela norma, não pode este tribunal subordinar a suspensão da sua execução àquele regime, porque não foi interposto recurso pelo MºPº e porque tal imposição sempre implicaria um agravamento da pena de substituição aplicada pela 1ª instância.[12] 4. Decisão Por todo o exposto, julgam parcialmente procedente o recurso e, em consequência: a) determinam que se proceda à correcção do dispositivo do acórdão recorrido, de forma a dele ficar a constar um ponto, com o nº 1.2. e o seguinte teor “Suspender a execução desta pena de prisão em que o arguido vai condenado pelo período de 5 (cinco) anos.” b) decidem reduzir para 4 (quatro) anos de prisão a pena aplicada ao recorrente, e para 4 anos o período da suspensão da sua execução. Em tudo o mais, mantêm o acórdão recorrido. Fixam em 5 UC a taxa de justiça devida pelo recorrente. Honorários da tabela. Porto, 10 de Dezembro de 2008 Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves Vasco Rui Gonçalves Pinhão Martins de Freitas _______________________ [1] (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada). [2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95. [3] As regras da experiência são “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.” - cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, vol. II, pág. 300. [4] A livre convicção “é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores.” – cfr. Idem, Ibidem, pág.298. [5] “(…) há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução, pelo que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.” Ac. RG 20/3/06, proc. nº 245/06-1. [6] “Note-se que a lei refere as provas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa. É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.” - Ac. STJ 17/2/05, proc. nº 04P4324 [7] cfr. Ac. T.C. nº 198/2004 de 24/3/04, DR II s. de 2/6/04. [8] cfr. Ac RP 12/11/03, proc. nº 0314206: “pertence ao âmbito da matéria de facto o apuramento da intenção de matar e a fixação dos elementos subjectivos do dolo. São, é certo, factos do foro psicológico, que, como tal, são de impossível demonstração naturalística, mas ao qual o tribunal pode chegar através do relato de circunstâncias que convençam da sua realidade.” [9] cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, págs. 72-73. [10] Idem, Ibidem, pág. 73. [11] Veja-se nomeadamente o Ac. STJ 4/1/06, proc. nº 04P2239, no qual se considerou adequada a aplicação de uma pena de 5 anos de prisão em caso no qual coexistiam agravantes muito mais expressivas (gravidade das consequências, intensidade do dolo, existência de antecedentes criminais). [12] cfr., neste sentido, Ac. RP 1/10/08, proc. nº 0814284. |