Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
22302/20.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
Nº do Documento: RP2023031422302/20.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECIÃO CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos termos do art. 394º, nº 1 do Cód. Civil é inadmissível a prova testemunhal quando esta tem por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos ou dos documentos particulares mencionados nos arts. 373º a 379º do mesmo diploma legal.
II - Não obstante o estatuído nesta norma, a admissibilidade da prova testemunhal é de acolher em determinadas situações excecionais: quando exista um começo ou princípio de prova por escrito; quando se demonstre ter sido moral ou materialmente impossível a obtenção de uma prova escrita; e ainda em caso de perda não culposa do documento que fornecia a prova.
III – É também de entender como admissível o recurso à prova testemunhal na averiguação da vontade dos contratantes que reduziram as suas declarações negociais a escritura pública, uma vez que se está a interpretar o contexto do documento.
IV – São os seguintes os pressupostos para que a alteração das circunstâncias possa conduzir à resolução do contrato nos termos do art. 437º do Cód. Civil:
a) as circunstâncias que se alteraram foram determinantes para a decisão das partes contratarem, de tal modo que, se fossem outras, não teriam contratado, ou tê-lo-iam feito, ou pretendido fazer, em termos diferentes;
b) a alteração das circunstâncias deve ser anormal;
c) a alteração das circunstâncias deve provocar a lesão de uma das partes no contrato, surgindo um desequilíbrio entre as prestações contratuais;
d) esse desequilíbrio gerado pela alteração das circunstâncias tem que afetar gravemente a boa fé;
e) a lesão causada pela alteração das circunstâncias não se pode apresentar como coberta pelos riscos próprios do contrato;
f) não pode existir mora do lesado (art. 438 do Cód. Civil).
V – O eclodir de uma pandemia, que paralisa o mundo inteiro, a par do deflagrar de uma guerra ou da ocorrência de uma revolução, é exemplo evidente de uma situação que pode justificar a resolução de um contrato por alteração das circunstâncias, isto porque a imposição de medidas de emergência sanitária significa uma mudança abrupta da vida social e económica, atingindo toda a população.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 22302/20.0 T8PRT.P1
Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 7
Apelação

Recorrentes: “A..., Lda.” e “B..., Lda.”
Recorrida: “C..., Unipessoal, Lda.”

Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e João Ramos Lopes


Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:


RELATÓRIO
A autora “C..., Unipessoal, Lda.”, com sede na Rua ..., União de Freguesias ... e ..., do concelho do Porto, veio intentar a presente ação declarativa de condenação, com processo comum contra as rés “A..., Lda.”, com sede na Av. ..., ..., Vila Nova de Gaia e “B..., Lda.”, com sede na Av. ..., ..., Vila Nova de Gaia.
Pede a autora que as rés sejam condenadas ao pagamento de 83.880,00€, de modo a restituir o valor pago a título de sinal relativo ao contrato-promessa de compra e venda que se encontra resolvido nos termos do art. 437º do Cód. Civil. Caso assim não se entenda, pede ainda que as rés sejam condenadas ao pagamento do mesmo valor, resultado de incumprimento culposo da sua obrigação no referido contrato e, sem prescindir, e por último, pedem que as rés sejam condenadas ao mesmo, devido à impossibilidade culposa do cumprimento do contrato.
Fundamenta-se a autora numa alteração anormal das circunstâncias que determinaram as partes a contratar e na falta de cumprimento do prazo para entrega do imóvel imputável às rés.
As rés contestaram, impugnando de forma motivada a pretensão da autora, e deduziram reconvenção, defendendo o incumprimento do contrato-promessa imputável à autora.
Terminaram pedindo a improcedência da ação e em reconvenção pediram que seja declarada a resolução do contrato e como sendo das rés o valor entregue pela autora a título de sinal, no valor de 83.880,00€.
Na réplica, a autora manteve o alegado na petição inicial.
Foi dispensada a realização da audiência prévia e proferido despacho saneador, tendo-se ainda fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova, por despacho que não foi alvo de reclamação.
Após, procedeu-se à audiência final com inteira observância das formalidades legais.
Foi depois proferida sentença que julgou a ação totalmente procedente e, em consequência, declarou o contrato-promessa de compra e venda objeto dos autos validamente resolvido nos termos do art. 437º do Cód. Civil e condenou as rés “A... Lda.” e B..., Lda.”, a restituir à autora “C..., Unipessoal, Lda.” o valor do sinal pago, no montante de 83.880,00€.
Julgou ainda totalmente improcedente a reconvenção, absolvendo a autora/reconvinda do respetivo pedido.
Inconformadas com o decidido, interpuseram recurso as rés que finalizaram as suas alegações com as seguintes – e muito extensas - conclusões:
1- Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou a acção procedente, por provada e em consequência, declarou...” o contrato promessa de compra e venda objecto dos autos validamente resolvido nos termos do artº 437º do CC e condena-se as rés A... Lda. e B..., Lda., a restituir à autora C..., Unipessoal, Lda. o valor do sinal pago, no montante de €83.880,00 (oitenta e três mil oitocentos e oitenta euros).”
2 - A discordância das Recorrentes prende-se, no essencial, com o facto do Tribunal "a quo" ter considerado demonstrados os pressupostos da invocada alteração anormal das circunstâncias, nos termos do artº 437º do CC, que justificam a resolução do contrato promessa de compra e venda, operada pela A.
3- As Recorrentes não se conformam, desde logo, com a resposta dada pelo meritíssimo Juiz "a quo" à matéria do ponto 4, confirmando-a, ou seja, ter sido dado como provado que o contrato promessa de compra e venda objecto dos autos, foi celebrado pela A. e pelas RR. no pressuposto de ser igualmente celebrado um contrato arrendamento entre a A. para a ocupação e rentabilização do imóvel prometido vender.
4- Bem como, ter sido dado como provado, que a A. só aceitou realizar a promessa de compra e venda e o consequente investimento, no valor de €419.400,00, por ter a garantia do contrato de arrendamento e deste lhe conferir alguma segurança económica a um tão avultado investimento (ponto 11 dos factos provados).
5- E ainda, que todos os intervenientes no negócio bem o sabiam. (ponto 12 dos factos provados).
6- É alegado o [instituto] da alteração anormal das circunstâncias, previsto no artigo 437º do CC, para se operar unilateralmente a resolução do contrato promessa dos autos.
7 - Para o efeito, têm relevância as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão/vontade de contratar, e o facto das mesmas terem sofrido uma alteração anormal tal (excecional/imprevisível), cuja exigência do cumprimento, afete de forma grave os princípios da boa fé.
8- Ou seja, exige-se, para a aplicação de tal preceito, que a alteração, não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
9 - Da análise dos elementos e da formulação do preceito, conclui-se que as circunstâncias que sofram alteração anormal ou imprevisível terão, necessariamente, de ser aquelas que serviram de base à decisão de contratar, mais concretamente as que constituam a base do negócio.
10- Ou seja, terão que ser circunstâncias objetivas e comuns a todos os contraentes (não podem ser situações subjetivas, como por exemplo, uma alteração da situação económica de um dos contraentes) e em relação às quais as partes não detenham qualquer controlo.
11- Ou seja, é necessário que ultrapasse o risco normal do contrato e que desequilibre a estabilidade contratual.
12- Por outro lado, as alterações anormais que se encontrem cobertas pelos riscos inerentes dos contratos ou assumidos contratualmente pelas partes, estão excluídas da aplicação do artigo 437º do CC.
13- Na jurisprudência, na esmagadora maioria dos casos, o instituto da alteração das circunstâncias não é aplicado por falta de verificação de todos os requisitos ou elementos, que são de aplicação cumulativa, como se disse.
14- Não podemos olvidar que a aplicação do instituto da alteração das circunstâncias é residual, de ultima ratio, não existindo, neste particular, divergência jurisprudencial ou doutrinária.
15- Ou seja, dúvidas não restam que, a base do negócio na alteração das circunstâncias tem sempre carácter bilateral, respeitando simultaneamente aos dois contraentes.
16- A lei (artigo 437º, 1 CC) fala, acentuadamente, das circunstâncias em que as partes (plural) fundaram a decisão de contratar; não refere as circunstâncias em que o alegado lesado com a superveniente modificação teria fundado a sua decisão de contratar, proposição destituída pela letra da lei, em todo o sentido.
17- Tanto mais que, no momento da outorga do contrato não pode ainda falar-se de lesado, porque lesado só existirá, no futuro e eventualmente, se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar vierem a sofrer modificação que torne o contrato prejudicial para um deles.
18- Insiste-se, que, a alteração das circunstâncias tem carácter bilateral, respeitando simultaneamente às duas partes – neste sentido os acórdãos de 28-05-2009 - nº 197/06.6TCFUN.S1, relator Oliveira Vasconcelos; de 30-06-2009 - nº 329/09.2YFLSB, relator Alves Velho e de 10-01-2013 - nº 187/10.4TVLSB.L2.S1, relator Orlando Afonso, disponíveis em www.dgsi.pt.
19- Dos quais decorre, tout court, que a alteração das circunstâncias pessoais dos contraentes, é insuscetível de fundamentar a resolução do contrato.
20- Designadamente a invocada desistência do inquilino da A. pelas alegadas circunstâncias descritas nos autos e nas comunicações que a A. recorrida, dirigiu às RR. Recorrentes, bem como a alegada perda de capacidade financeira da A., por força da denominada pandemia (art. 42º da PI).
21- Ainda a este respeito, ensina o Prof. Menezes Cordeiro, a necessidade de depurar do artigo 437º, o erro, as esferas de risco, o instituto do enriquecimento sem causa, precisamente devido ao carácter supletivo deste instituto.
22- Assim, subsumindo o que acaba de ser dito, ao caso dos autos, temos desde logo, que as partes negociaram previamente, todo o clausulado do contrato promessa de compra e venda em crise.
23- Negociação essa que se demonstrou ter ocorrido através de Advogados, que representaram cada uma das partes.
24- Não resultando de qualquer cláusula do contrato promessa, que o mesmo foi efectivamente celebrado pela autora e pelas RR., no pressuposto de ser igualmente celebrado um contrato arrendamento pela A. Recorrida, para a ocupação e rentabilização do imóvel prometido vender, facto que contraria desde logo, o ponto 4, dos factos provados.
25- Ou seja, as RR., limitaram-se a declarar, na cláusula sexta do contrato promessa de compra e venda que outorgaram, apenas...” expressamente que tomaram conhecimento que é intenção do Promitente comprador a celebração de contrato de arrendamento, cujo objecto será a fração aqui prometida vender, prestando o seu expresso consentimento para tal.”
26- Como se vê, ao contrário do que resulta da sentença recorrida, nenhuma condição para a celebração do contrato promessa de compra e venda foi fixada ou sequer acordada pelas partes.
27- Antes pelo contrário, a A. aqui Recorrida pretendendo celebrar um arrendamento, mesmo antes da escritura prometida, limitou-se a obter das RR., Recorrentes, o devido consentimento para tal.
28- Repete-se, não resulta do clausulado do contrato promessa que a autora o outorgou no pressuposto de ser igualmente celebrado, por si, um contrato de arrendamento para rentabilização do imóvel prometido vender.
29- Não se compreendendo como pode o Tribunal “a quo” dar como provado o ponto 4 dos factos provados, com base em depoimentos testemunhais, os quais, além do mais, face à norma do nº 1 do art.º 394º, n.º 1, do CC, são inadmissíveis.
30- Como vem sendo unanimemente decidido pelos Tribunais superiores, é inadmissível a prova por testemunhas, de convenções contrárias ao conteúdo dos documentos particulares, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.
31- Estando assim, vedada a prova por testemunhas, quanto a uma cláusula contrária à constante de contrato subscrito pela parte.
32- Ou seja, estamos perante uma excepção à regra geral da livre admissibilidade da prova testemunhal, consagrada nos artigos 392º, do CC, e 515º, do CPC, excepção justificada pela falibilidade desse meio de prova e pelo perigo de que possa vir a prevalecer sobre a prova documental, reconhecidamente mais segura.
33- Neste particular, mal andou o Tribunal recorrido, que apenas com base em prova testemunhal, veio a dar como provado um facto que se encontra em total contradição com o clausulado no contrato promessa de compra e venda, outorgado pelas partes.
34- Mesmo que durante as negociações a A. Recorrida, tivesse manifestado intenção de que o contrato promessa de compra e venda, ficasse condicionado ao arrendamento, a verdade é que tal não resulta da redação final do documento outorgado.
35- A realidade é que a A., apesar de invocar a anormal alteração das circunstâncias, mais não faz do que alegar que a razão determinante para desistir do negócio, se ficou a dever única e exclusivamente à perda do seu inquilino.
36- Tal circunstância, para além de não ser anormal, não pode sequer considerar-se imprevisível, sendo parte do risco normal do negócio, o qual até previa uma garantia bancária, podendo, mais cedo ou mais tarde, substituir uma inquilina por outra que encontraria no mercado.
37- Tanto mais que o próprio contrato de arrendamento – Clausula segunda nº 5, obrigava a inquilina a permanecer no arrendado apenas durante 18 meses, findos os quais, com uma mera carta poderia a inquilina pôr termo ao contrato.
38- Soçobrando assim todo o argumentário da A. Recorrida, de que apenas contratou dada a interligação dos contratos.
39- Sem embargo, tal como se disse e a própria A. Recorrida, reconhece em 104º da PI, a alegada essencialidade do contrato de arrendamento, não ficou a constar de qualquer cláusula do contrato promessa de compra e venda.
40- Ora, se tal condição era assim tão essencial, porque razão a A. aceitou outorgar o contrato promessa de compra e venda, sem que dele a mesma constasse?
41- Em qualquer contrato, as partes têm a faculdade de fixar livremente o seu conteúdo - art. 405º, nº 1 do CC.
42- Dispondo o art. 232º do CC que uma vez concluído o contrato, deve ser cumprido ponto por ponto, só podendo modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei - art. 406º, nº 1 do CC.
43- No caso, as partes até colocaram no contrato, mesmo antes das assinaturas, a seguinte frase que se transcreve: “O presente contrato promessa traduz e constitui o acordo celebrado entre as Partes, só podendo ser modificado, por documento escrito e assinado por ambas as Partes e junto ao presente contrato como seu aditamento”.
43- Como se vê, nenhum sentido faz dar-se como provada a essencialidade do arrendamento, para a manutenção do contrato promessa de compra e venda (ponto 11 dos factos provados).
44- Mais a mais, estando a A. em mora quanto ao solicitado reforço do sinal, contratualmente previsto, sempre a resolução por alegada alteração anormal das circunstâncias lhe estava vedada, como supra se alegou.
45- Note-se que, apenas, após interpelação que as RR. Recorrentes lhe fizeram em 06 de Abril de 2020, por carta registada com AR, a solicitar o reforço do sinal, nos termos do previsto no CPCV, (facto confessado em 10º da PI), é que a A., veio por carta datada de 04 de Maio de 2020 e enviada a 06 de Maio de 2020, alegar que, a alteração significativa das circunstâncias, gerada pela situação pandémica advinda da denominada SARS-COV-2, originou que o inquilino lhe comunicou não ter intenção de prosseguir com o investimento...”não efectivando o contrato de arrendamento.” – Vide DOC. 2 e 3 da contestação.
46- E nem sequer se alega, como resulta da sentença recorrida que um alegado atraso na obra, terá determinado a inquilina a desistir do arrendamento.
47- Porquanto, as RR. Recorrentes logo refutaram tal argumentário, como se comprova pela carta registada com AR, datada de 08 de maio de 2020, que enviaram à A. (DOC 4 da contestação).
48- E a própria A., na carta de 04 de Maio, alega que desconhecia se a perda do interesse da sua inquilina, foi alicerçada unicamente [na] crise pandémica ou se também estaria alicerçada no atraso na conclusão da obra.
50- Instada a juntar aos autos a comunicação de resolução contratual da sua inquilina, a A. Recorrida, juntou um escrito, datado de 03 de Maio de 2020, e nele apenas é alegado o atraso na obra, sem qualquer referência à alteração anormal das circunstâncias advinda da crise pandémica.
51- Facto que, salvo o devido respeito, nos parece uma grave contradição insanável, que o Tribunal não podia deixar de relevar.
52- Tanto mais que, mesmo que tivesse existido a alegada promessa da entrega da loja em Fevereiro de 2020, o que não se concede, a mesma estaria ultrapassada e substituída pelos acordos posteriores, que as partes fizeram constar quer o contrato promessa de compra e venda, na clausula 4ª, onde expressamente de diz que a escritura de compra e venda ocorrerá “...previsivelmente até 31 de Março de 2020.”, quer do contrato de arrendamento, na cláusula segunda nº 1, onde consta que o mesmo entrará em vigor na data da celebração da escritura de aquisição da fração a favor da aqui A., ...”o que se prevê ocorra até 31 de Março de 2020”.
53- Facto que contraria claramente a data da alegada abertura da loja por parte da inquilina da A., que vem referida na carta junta com a PI sob Doc 3, como sendo Janeiro de 2020.
54- Não se percebendo sequer porque razão a A. Recorrida aceitou a alegada resolução do contrato de arrendamento, porquanto a mesma nenhum fundamento legal teve, como se demonstra.
55- Nesta matéria, diga-se ainda que a A. Recorrida incorre numa flagrante contradição insanável, ao alegar na presente acção que celebrou um contrato promessa de arrendamento e que o mesmo não foi “efectivado” pela sua inquilina, a qual lhe comunicou não ter intenção de prosseguir com o investimento, pelo facto de ter surgido a denominada SARS-COV-2, que originou uma crise pandémica.
56- Quando na verdade, como se demonstra à saciedade, o contrato de arrendamento previa a sua entrada em vigor na data em que viesse a ser celebrada a escritura definitiva de aquisição, a favor da A., a qual previsivelmente ocorreria em 31 de Março de 2020.
57- Reforçando-se que a Inquilina da Recorrida nunca alegou a situação pandémica como causa principal para resolver o contrato de arrendamento.
58- Nem tão pouco o alegado atraso nas obras e consequente falta de entrega da loja foi fundamento para estribar qualquer interpelação da A. Recorrida, até à data do envio da primeira carta das RR., onde solicitam o reforço do sinal, em 06 de Abril de 2020.
59- Carta essa respondida estranhamente, apenas em 06 de Maio, ou seja, um mês depois.
60- A verdade é que a data aludida no contrato promessa de compra e venda para a realização da escritura não era perentória.
61- As partes de boa fé acordaram que era uma mera data previsível, indicativa, tal como se tem vindo a alegar neste articulado e a própria A. confessa, em 13º e 63º da PI.
62- Repete-se, que no contrato promessa não foi fixado qualquer prazo para a celebração da escritura, mas apenas indicada uma data previsível.
63- Contudo, a não conclusão da construção do prédio dentro do prazo previsto, no limite geraria uma situação de mora, que não se converteu em momento algum em incumprimento definitivo.
64- Porquanto, a data previsível aposta no contrato promessa de compra e venda, para a outorga da escritura, não configura um prazo-limite absoluto, mas antes um prazo relativo.
65- O qual, a ser ultrapassado, como foi, determinaria no limite uma situação de mora, que conferia à A. recorrida o direito de pedir o cumprimento do contrato, num determinado prazo admonitório, e uma vez ultrapassado tal prazo, aí sim, poderia ter ocorrido o incumprimento do contrato promessa por parte das RR.
66- Contudo a A. Recorrente limitou-se a remeter em 6 de maio de 2020, a carta junta sob Doc 3 com a contestação, na qual nenhum prazo admonitório é fixado.
67- A essa carta responderam as RR. Recorrentes, em 08 de Maio de 2020, por carta registada com AR, da qual resulta cristalino que a questão do prazo para a outorga da escritura não era determinante para a posição que a A. havia manifestado.
68- Uma vez que apenas a situação pandémica e a alegada desistência do inquilino era aflorada, sem sequer se concretizar se decorrente da pandemia ou do decurso do prazo previsível para a outorga da escritura.
69- De concreto, é que, instada, a A. Recorrida não procedeu ao pagamento do reforço do sinal no momento em que o deveria ter feito.
70- Sendo certo que só aí veio com todo o argumentário que fez constar da carta de 06 de Maio de 2020, onde nunca alegou a perda do interesse pelo decurso do prazo previsível para a outorga da escritura, nem fixa um prazo às RR. para que a mesma ocorra.
71- Pelo que, nenhum incumprimento do contrato promessa existiu, muito menos por factos imputáveis às Recorrentes, que possa justificar a resolução do contrato operada pela Recorrida.
72- Em suma, nenhuma prova foi feita da alegada alteração das circunstâncias, suscetível de fundamentar a resolução do contrato.
73- Por um lado, o arrendamento e os seus termos, mesmo que tivessem sido negociados pelas recorrentes, a sua aceitação foi sempre da exclusiva responsabilidade da Recorrida.
74- Tanto a alegada essencialidade do arrendamento na vontade de contratar, não existiu, como também, a alegada coligação de contratos não passa de uma tentativa infundada da A. sustentar a resolução que unilateralmente operou, como já se viu e deixou claro.
75- Por outro lado, a Recorrida, não invocou nas suas comunicações qualquer perda de capacidade financeira, a qual apenas na PI é avançada.
76- Perante este quadro, nenhuma das concretas circunstâncias (alegadamente anormais) invocadas pela Recorrida, pode constituir fundamento para a operada resolução unilateral do contrato promessa de compra e venda outorgado pelas partes.
77- Mais a mais, a mora da Recorrida, quanto ao solicitado reforço do sinal, sempre a impediria de operar a resolução do contrato por alegada alteração anormal das circunstâncias.
78- Apesar de invocar a anormal alteração das circunstâncias, a realidade determinante para a desistência do negócio ficou a dever-se única e exclusivamente à perda do inquilino por parte da Recorrida, facto ao qual as RR., como está bem de ver, são totalmente alheias.
Pretendem assim a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que julgue improcedente por não provada a presente ação, absolvendo as rés/recorrentes dos pedidos formulados e que julgue procedente, por provado, o pedido reconvencional, declarando a resolução do contrato com força de caso julgado material e declarando como sendo das rés o valor entregue pela autora a título de sinal, no montante de 83.880,00€.
A autora/recorrida apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
O recurso foi admitido como apelação com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I – A reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
II A produção de prova testemunhal no tocante ao nº 4 da factualidade assente;
IIIA resolução do contrato-promessa por alteração das circunstâncias.
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Os factos provados na sentença recorrida são os seguintes:
1. Em documento escrito, datado de 13.09.2019, assinado por AA e BB, na qualidade de legais representantes das sociedades rés e promitentes vendedoras e por CC, na qualidade de legal representante da sociedade autora e promitente compradora e por eles denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, consta, para além do mais, as seguintes declarações:
- as promitentes vendedoras são donas e legítimas proprietárias, na proporção de 60% para a A..., Lda e 40% para a B..., Lda do prédio urbano, composto de edifício de seis pisos, sendo o piso menos um destinado a armazém e actividade industrial, o piso zero destinado a comércio, o piso um destinado a serviços e os pisos dois, três e quatro destinados a habitação, sito na Rua ..., ..., da freguesia ..., concelho do Porto, inscrito na matriz predial urbana da União das freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ... sob o artigo ...06º, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ...78, da freguesia ...;
- o aludido prédio está dispensado de licença de utilização por ter sido inscrito na matriz em data anterior a 1951, bem como de certificação energética, uma vez que se encontrava em estado de ruína;
- o imóvel está a ser objecto de uma operação urbanística, estando em aprovação um processo de licenciamento camarário para a constituição de um prédio em propriedade horizontal de fracções habitacionais e de comércio e de serviços;
- as promitentes vendedoras prometem vender à autora, e esta promete comprar uma habitação, provisoriamente designada de fracção “A”, localizada nos rés-do-chão e piso -1 a construir no aludido prédio, e assinalada na planta anexa ao contrato, bem como descritas as suas características e acabamentos, a ser transmitida após a conclusão das obras de remodelação e constituição da propriedade horizontal;
- a referida fracção será vendida em bruto, apenas com a arte de pedreiro concluída e caixilharia colocada;
- o preço acordado é de €419.400,00, a ser pago pela autora às rés, nas proporções acima referidas, em três prestações, sendo a primeira no valor de €83.880,00, a título de sinal e princípio de pagamento, na data da celebração do dito contrato; a quantia de €41.940,00, a título de reforço de sinal e pagamento parcial do preço até ao dia 30.11.2019 ou até 4 meses antes da data da outorga do contrato prometido, consoante o que se verificar mais tarde; e a quantia de €293.580,00 no momento da outorga da escritura pública;
- a escritura de compra e venda seria celebrada, logo que obtida toda a documentação necessária para o efeito, o que ocorreria previsivelmente até 31 de Março de 2020;
- no caso da escritura não se realizar por algum impedimento imputável às promitentes vendedoras, mormente o não licenciamento definitivo da propriedade horizontal e das alterações que pretende introduzir no prédio, é devolvido o sinal, em singelo;
- a responsabilidade pela marcação da escritura cabia às promitentes vendedoras que para o efeito deveriam comunicar à autora, por escrito, com a antecedência mínima de 15 dias;
- se considerava automaticamente incumprido o contrato, no caso do reforço do sinal não ser pago, no prazo fixado, cessando o contrato sem necessidade de qualquer notificação ou prática de qualquer acto para o efeito; conforme documento de fls. 10 a 12 do anexo documental e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. As promitentes vendedoras declararam ainda no aludido contrato que tomaram conhecimento que era intenção da promitente compradora a celebração de contrato de arrendamento, tendo por objecto o imóvel prometido vender, e que prestavam o seu expresso consentimento para tal; conforme documento de fls. 10 a 12 do anexo documental e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3. No seguimento do acordado, a autora pagou às rés a quantia de €83.880,00 na data da celebração do contrato.
4. O contrato aludido em 1. foi celebrado pela autora e pelas rés no pressuposto de ser igualmente celebrado um contrato [de] arrendamento pela autora para a ocupação e rentabilização do imóvel prometido vender.
5. Assim, por documento escrito, datado de 11.09.2019, assinado por CC, na qualidade de legal representante da sociedade autora (primeira outorgante) e por DD e EE, na qualidade de legais representantes da sociedade D... Unipessoal Lda (segunda outorgante) e de fiadores (terceiros outorgantes) e por eles denominado “Contrato de arrendamento para fins não habitacionais”, mediante o qual a autora declarou dar de arrendamento à aludida sociedade comercial, que declarou tomar de arrendamento o imóvel descrito em 1., destinado a comércio, conforme documento de fls. 4v a 6v do anexo documental e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
6. Mais estipularam que o contrato entraria em vigor na data da escritura da aquisição do dito imóvel pela autora, que se previa ocorrer até 31 de Março de 2020, por um período de 15 anos, renovando-se por períodos de 5 anos.
7. Foi também estipulado neste contrato que a renda relativa ao primeiro ano de arrendamento versaria no valor de €35.400,00 e que a partir do segundo ano o valor seria de €42.000,00.
8. E que seria entregue pela arrendatária uma garantia bancária no valor de €21.000,00.
9. Foram as rés que apresentaram à autora, através da mediadora imobiliária, o negócio de compra e venda do imóvel objecto do contrato aludido em 1. com o referido contrato de arrendamento associado.
10. Tal contrato de arrendamento foi negociado e intermediado pelas rés, tendo estas inclusivamente recolhido a assinatura dos legais representantes da arrendatária e entregue o respectivo contrato à autora no dia de celebração do contrato promessa de compra e venda.
11. A autora só aceitou realizar o referido investimento, no aludido valor de €419.400,00, pelo facto de ter a garantia do mencionado contrato de arrendamento e deste lhe conferir alguma segurança económica a um tão avultado investimento.
12. O que todos os intervenientes no negócio bem sabiam.
13. As rés comprometeram-se perante a autora a concluir as obras e entregar o imóvel à dita arrendatária por forma a permitir que esta pudesse abrir ao público o estabelecimento comercial que aí projectava explorar em Janeiro de 2020 ou, quanto muito, em Fevereiro de 2020.
14. A Organização Mundial de Saúde declarou, em 30.01.2020, a situação de Emergência de Saúde Pública de âmbito internacional da COVID-19 e, em 11.03.2020, considerou a COVID-19 como uma pandemia.
15. Na sequência desta declaração foram aprovadas um conjunto de medidas excepcionais e temporárias destinadas aos cidadãos, às empresas e às entidades públicas e privadas, relativas à infecção epidemioloìgica por COVID-19.
16. Assim, o estado de emergência iniciou-se em Portugal às 00h00m do dia 19.03.2020, ao abrigo do Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18.03, tendo, para além do mais, sido determinado o dever geral de recolhimento domiciliário, o encerramento de instalações e de estabelecimentos e a suspensão de actividades no âmbito do comércio a retalho.
17. As rés não concluíram a construção do prédio no prazo previsto.
18. Por carta registada com aviso de recepção, datada de 6.04.2020, recepcionada pela autora a 8.04.2020, as rés, perspectivando a outorga da escritura pública para Agosto de 2020, solicitaram à autora o pagamento do reforço do sinal no valor de €41.940,00, conforme documentos de fls. 13v a 14 do anexo documental e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
19. Porém, o atraso da conclusão da obra, associado à situação pandémica, conduziu a que a arrendatária deixasse de ter interesse na realização do investimento inerente à instalação de um estabelecimento comercial no dito imóvel.
20. O que comunicou à autora, inicialmente verbalmente, e posteriormente, por carta datada de 3.05.2020, conforme documento de fls. 7 a 7v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
21. A crise pandémica e a falta de entrega atempada da fracção autónoma fragilizou economicamente a autora.
22. Por carta datada de 4.05.2020 e enviada a 6.05.2020, a autora informou as rés que, a alteração significativa das circunstâncias gerada pela situação pandémica advinda da denominada SARS-COV-2, originou que o inquilino lhe tivesse comunicado não ter intenção de prosseguir com o investimento, “não efectivando o contrato de arrendamento” e interpelou-as para apresentar uma proposta de resolução do assunto, conforme documento de fls. 15 a 16 do anexo documental e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
23. As rés responderam a tal missiva por carta datada de 8.05.2022[1] e com o teor do documento de fls. 16v do anexo documental e que se dá aqui por integralmente reproduzido.
24. Nas reuniões havidas entre as partes, as rés apenas aceitaram a prorrogação do prazo para pagamento do reforço de sinal.
25. Por carta datada de 11.09.2022[2], a autora comunicou às rés a resolução do contrato, conforme documento de fls. 19 a 20 do anexo documental e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
26. Nessa data a obra do imóvel prometido vender ainda não se encontrava concluída.
27. As rés responderam à missiva aludida em 25. por carta de 21.09.2022[3], conforme documento de fls. 9v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
*
Os factos não provados são os seguintes:
a) que a autora tenha celebrado apenas um contrato promessa de arrendamento com a sociedade D... Unipessoal, Lda;
b) que a inquilina da autora, em Dezembro de 2020, abriu ao público uma loja que denominou “E...”, sita na Rua ..., no Porto; e
c) que as rés não concluíram a obra no prazo previsto por motivos que lhes são alheios.
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
I – A reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto
As rés/recorrentes, no requerimento de interposição de recurso, aludiram à reapreciação da prova gravada e depois, no corpo alegatório e também nas conclusões [3, 4 e 5], insurgem-se contra alguns pontos da factualidade provada, mais concretamente contra os seus nºs 4, 11 e 12.
No que concerne aos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto estatui o seguinte o art. 640º do Cód. de Proc. Civil:
«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)»
Sucede que no caso dos autos as rés/recorrentes, pese embora manifestem a sua discordância relativamente aos factos provados com os nºs 4, 11 e 12, não observaram os ónus a cujo cumprimento estavam obrigadas por força do disposto no art. 640º do Cód. de Proc. Civil.
Com efeito, não especificaram os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre aqueles pontos factuais e muito menos indicaram, com essa finalidade, quaisquer passagens de depoimentos ou declarações prestados oralmente.
Como tal, não há que proceder à reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
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IIA produção de prova testemunhal no tocante ao nº 4 da factualidade assente
No entanto, interligada com o facto provado nº 4 [O contrato aludido em 1. foi celebrado pela autora e pelas rés no pressuposto de ser igualmente celebrado um contrato [de] arrendamento pela autora para a ocupação e rentabilização do imóvel prometido vender], as rés/recorrentes suscitam a questão de que este ponto factual não poderia ter sido dado como assente com base em depoimentos testemunhais, como o foi, por se encontrar em contradição com o clausulado no contrato-promessa de compra e venda, outorgado pelas partes.
Invocam nesse sentido o disposto no art. 394º, nº 1 do Cód. Civil.
Preceitua-se o seguinte nesta norma:
«É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores
O objetivo desta norma é afastar os perigos que a admissibilidade da prova testemunhal seria capaz de originar. Assim, quando uma das partes - ou ambas – quisesse infirmar ou frustrar os efeitos do negócio, poderia socorrer-se, para tal efeito, de testemunhas, designadamente para demonstrar que o negócio foi simulado, destruindo, desta forma, mediante uma prova extremamente insegura a eficácia do documento – cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., pág. 344.
Porém, não obstante o estatuído nesta norma, a admissibilidade da prova testemunhal sempre seria de acolher em determinadas situações excecionais: quando exista um começo ou princípio de prova por escrito; quando se demonstre ter sido moral ou materialmente impossível a obtenção de uma prova escrita; e ainda em caso de perda não culposa do documento que fornecia a prova – cfr. VAZ SERRA, RLJ, ano 107º, págs. 311 e segs.[4]
Por outro lado, é ainda de assinalar que sempre será de admitir a prova por testemunhas a fim de interpretar o contexto dos documentos, conforme prescreve o nº 3 do art. 393º do Cód. Civil[5]. Nessa linha é de entender como admissível o recurso à prova testemunhal na averiguação da vontade dos contratantes que reduziram as suas declarações negociais a escritura pública, uma vez que se está a interpretar o contexto do documento – cfr. MOTA PINTO[6], “Arguição da Simulação pelos Simuladores – Prova Testemunhal”, parecer publicado na Col. Jur., Ano X, tomo 3, 1985, págs. 11/15.[7]
Consequentemente, na concreta situação dos presentes autos, nenhum óbice se coloca ao recurso à prova testemunhal para dar como provado que o contrato-promessa de compra e venda foi celebrado entre as partes no pressuposto da celebração pela autora de um contrato de arrendamento, com vista à ocupação e rentabilização do imóvel prometido vender.
É que não está aqui em causa a prova de qualquer convenção contrária ou adicional ao conteúdo do contrato-promessa outorgado pelas partes, até porque dar-se como provado que este contrato foi outorgado na pressuposição também da celebração de um contrato de arrendamento naquele imóvel em nada contraria a cláusula sexta daquele contrato que tem o seguinte teor: “As Promitentes Vendedoras declaram expressamente que tomaram conhecimento que é intenção do Promitente comprador a celebração de contrato de arrendamento, cujo objecto será a fracção prometida vender, prestando o seu expresso consentimento para tal.”
Aliás, o facto provado nº 4, para além de em nada contrariar o contrato-promessa celebrado entre as partes, permite esclarecer tanto o contexto em que este contrato foi outorgado como a real vontade das partes na sua celebração.
Deste modo, nesta parte, não se acolhe a argumentação recursiva dos réus.
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IIIA resolução do contrato-promessa por alteração das circunstâncias
1. Na sentença recorrida entendeu-se ser válida a resolução do contrato-promessa operada pela autora com fundamento em alteração anormal das circunstâncias, o que levou à condenação das rés na devolução da quantia de 83.880,00€ que lhe fora entregue a título de sinal.
Desta solução dissentem as rés/recorrentes que entendem não estar verificados os pressupostos que justificariam a resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias e, por isso, pugnam pela improcedência da ação.
Vejamos.
2. As partes, dentro dos limites da lei, têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos e estes devem ser pontualmente cumpridos, só podendo modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei – cfr. arts. 405º, nº 1 e 406º, nº 1 do Cód. Civil.
Por isso, a extinção ou modificação da relação contratual, por vontade exclusiva de uma das partes, apresenta carácter excecional e uma dessas exceções é a da alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar prevista no art. 437º do Cód. Civil.
Neste preceito, estatui-se o seguinte no seu nº 1:
«Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato
Depois o nº 2 diz-nos que «requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior.»
A alteração das circunstâncias corresponde a uma situação em que se verifica a contradição entre dois princípios jurídicos: o princípio da autonomia privada, que exige o pontual cumprimento dos contratos livremente celebrados, e o princípio da boa fé, nos termos do qual não será lícito a uma das partes exigir da outra o cumprimento das suas obrigações sempre que uma alteração do estado de coisas posterior à celebração do contrato tenha levado a um desequilíbrio das prestações gravemente lesivo para essa parte – cfr. MENEZES LEITÃO, “Direito das Obrigações”, vol. II, 6ª ed., pág. 129.[8]
3. O primeiro pressuposto para que a alteração das circunstâncias possa conduzir à resolução do contrato ou à sua modificação é que essas circunstâncias tenham determinado as partes a contratar, de tal modo que, se fossem outras, não teriam contratado, ou tê-lo-iam feito, ou pretendido fazer, em termos diferentes[9]. Contudo, afigura-se necessário que tais circunstâncias se apresentem evidentes, face ao fim típico do contrato. Devem pois encontrar-se na base do negócio, com consciência de ambos os contraentes ou razoável notoriedade, importando, em suma, que tais circunstâncias determinantes para uma das partes se mostrem conhecidas ou cognoscíveis para a outra.[10]
O segundo pressuposto é que essas circunstâncias hajam sofrido uma alteração anormal[11]. Tem que ser uma alteração significativa, que assuma apreciável vulto ou proporções extraordinárias[12] e que a sua verificação seja de todo imprevista para as partes. Situações excepcionais, como uma revolução ou o eclodir de uma guerra podem com facilidade ser qualificadas como alteração das circunstâncias, o mesmo sucedendo com alterações legislativas completamente inesperadas. Todavia, já não preencherão o requisito da anormalidade a simples alteração do preço dos produtos comercializados ou a não obtenção de autorizações administrativas necessárias[13].
O terceiro pressuposto exige que a alteração das circunstâncias provoque a lesão de uma das partes no contrato, o que determina o surgimento de um desequilíbrio entre as prestações contratuais. Assim, a alteração das circunstâncias só será relevante se dela resultar uma modificação no equilíbrio contratual estabelecido entre as partes.[14]
O quarto pressuposto exige que o desequilíbrio contratual gerado pela alteração das circunstâncias seja de tal ordem, que torne contrária à boa fé que a parte beneficiada venha exigir o cumprimento do contrato.[15]
O quinto pressuposto impõe que a lesão causada pela alteração das circunstâncias não se apresente como coberta pelos riscos próprios do contrato. Ou seja, a alteração anormal das circunstâncias não deve compreender-se na álea própria do contrato, nas suas flutuações normais. Com efeito, cada decisão de contratar envolve uma assunção de riscos, não se podendo recorrer à alteração das circunstâncias sempre que a lesão sofrida pela parte não ultrapasse o círculo de riscos considerados como normais naquele contrato.[16]
O último pressuposto exige a inexistência de mora do lesado, em consonância com o art. 438º do Cód. Civil, onde se estatui que «a parte lesada não goza do direito de resolução ou modificação do contrato, se estava em mora no momento em que a alteração das circunstâncias se verificou.» Compreende-se esta exigência, porquanto este instituto se funda numa alteração das circunstâncias entre o momento do contrato e aquele em que devem ser cumpridas as obrigações correspondentes. Assim, a tutela de quaisquer factos posteriores à mora não deve aproveitar a quem se coloca nessa situação.[17]
4. Prosseguindo, há a referir que a situação pandémica, provocada pelo novo coronavírus, embora com maior incidência nos setores dos transportes, do turismo e da restauração, perturbou a generalidade dos contratos em curso, impossibilitando uns e tornando outros de execução problemática, de tal modo que os pressupostos do art. 437º ocorrem em inúmeros contratos atingidos pela pandemia – cfr. MENEZES CORDEIRO, in “Código Civil Comentado – II – Das Obrigações em Geral”, CIDP, Almedina, 2021, págs. 280/281.
Nesse sentido se pronunciou na nossa jurisprudência o Ac. Rel. Lisboa de 8.4.2021 (proc. 19222/20.1 T8LSB.L1-6, relatora MARIA DE DEUS CORREIA, disponível in www.dgsi.pt.), onde se entendeu que a crise pandémica resultante da doença Covid-19 constitui situação suscetível de integrar os pressupostos da resolução ou modificação dos contratos por alteração das circunstâncias, nos termos do art. 437º do Cód. Civil.
Escreveu-se aí o seguinte: “Dificilmente se encontrará na Doutrina ou na Jurisprudência um exemplo mais evidente de alteração da base negocial, ou de alteração anormal das circunstâncias que presidiram à realização do contrato do que a situação que deu origem ao presente litígio: o deflagrar de uma pandemia, a nível planetário, que paralisou o mundo inteiro, não só Portugal.”
Também sobre esta situação pandémica escreveu o seguinte CARNEIRO DA FRADA (in “A alteração das circunstâncias à luz do Covid-19 – Teses e Reflexões para um Diálogo”, 2020, págs.1 e 2, disponível in portal.oa.pt):
“ O Covid-19 realiza com facilidade os pressupostos da resolução ou da modificação dos contratos por alteração das circunstâncias nos termos do art. 437.º/1 do Código Civil (CC).
No presente caso, a anormalidade da alteração das circunstâncias em que as partes alicerçaram a decisão de contratar foi acompanhada de uma total imprevisibilidade, requisito este, porém, que a lei justificadamente não exige. A imprevisibilidade é, não obstante, um elemento a ter em conta na determinação da anormalidade. Só pode, no entanto, ter um papel dogmático entendida enquanto imprevisibilidade concreta, pois a imprevisibilidade abstracta não é requisito necessário da aplicação do art. 437.º/1. Na presente situação pandémica, ocorrem normalmente ambas.
Também se não verifica a excepção à resolução ou modificação do contrato se a exigência das obrigações assumidas pela parte lesada em virtude da alteração se situar no âmbito dos riscos próprios do contrato (e, desse modo, não houver contrariedade à boa fé na exigência de tais obrigações): a situação pandémica vivida encontra-se patentemente bem para lá desse âmbito.
(…)
As “grandes alterações das circunstâncias” representam o reduto mais firme e irredutível da aplicação do art. 437.º/1. O Covid-19 realiza uma alteração desse tipo porque a emergência sanitária surgida representa a modificação (brusca) de uma condicionante geral da coexistência social, com impacto generalizado e, em muitos casos, brutal, na possibilidade e forma da interacção e cooperação de um número indeterminado de sujeitos. (…)”.
5. Retornando agora ao caso dos autos, encontra-se provado, embora tal corresponda a factos notórios[18], o seguinte:
- A Organização Mundial de Saúde declarou, em 30.1.2020, a situação de Emergência de Saúde Pública de âmbito internacional da COVID-19 e, em 11.3.2020, considerou a COVID-19 como uma pandemia – nº 14;
- Na sequência desta declaração foram aprovadas um conjunto de medidas excecionais e temporárias destinadas aos cidadãos, às empresas e às entidades públicas e privadas, relativas à infeção epidemioloìgica por COVID-19 – nº 15;
- Assim, o estado de emergência iniciou-se em Portugal às 00h00m do dia 19.3.2020, ao abrigo do Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18.03, tendo, para além do mais, sido determinado o dever geral de recolhimento domiciliário, o encerramento de instalações e de estabelecimentos e a suspensão de atividades no âmbito do comércio a retalho – nº 16.
6. Para além desta factologia, de cariz notório, constata-se também que se acha provado nos autos que o contrato-promessa de compra e venda ora em apreciação foi celebrado pela autora e pelas rés no pressuposto de ser igualmente celebrado um contrato de arrendamento pela autora para a ocupação e rentabilização do imóvel prometido vender – nº 4.
Tal como se provou que a autora só aceitou realizar esse investimento, no valor de 419.400,00€, pelo facto de ter a garantia do mencionado contrato de arrendamento e deste lhe conferir alguma segurança económica a um tão avultado investimento, o que todos os intervenientes no negócio bem sabiam – nºs 11 e 12.
Provou-se ainda que as rés se comprometeram perante a autora a concluir as obras e entregar o imóvel à dita arrendatária por forma a permitir que esta pudesse abrir ao público o estabelecimento comercial que aí projetava explorar em Janeiro de 2020 ou, quando muito, em Fevereiro de 2020 – nº 13.
Sucede que o contrato de arrendamento celebrado entre a autora e a sociedade “D... Unipessoal Lda.” só entraria em vigor na data da escritura da aquisição do imóvel pela autora – nºs 5 e 6.
Porém, as rés não concluíram a construção do prédio no prazo previsto e o atraso da conclusão da obra, associado à situação pandémica, levou a que a arrendatária deixasse de ter interesse na realização do investimento inerente à instalação de um estabelecimento comercial no imóvel – nºs 17 e 19.
7. Esta situação foi comunicada à sociedade autora, através de carta datada de 3.5.2020, que em virtude da crise pandémica e da falta de entrega atempada da fração autónoma ficou fragilizada – nºs 20 e 21.
Nesta carta, de 3.5.2020, escreveu-se o seguinte:
“(…)
Como é do v/conhecimento, no passado dia 11 de Setembro de 2019, foi celebrado entre Vs. Exas. e a minha cliente um Contrato de Arrendamento para Fins Não Habitacionais, no qual Vs. Exas. davam de arrendamento uma loja no R/Ch e cave, destinada a comércio de serviços, sita na Rua ..., no Porto.
Foi acordado antes da outorga do referido contrato, por email datado de 02 de Maio de 2019 as condições comerciais, com o proprietário/construtor do imóvel, nomeadamente o facto de a loja estar pronta para abrir ao público, na pior das hipóteses em Fevereiro de 2020, uma vez que entraria em obras em Setembro/Outubro de 2019.
Ora sucede que tal não ocorreu, uma vez que em Outubro a obra foi embargada e a obra não foi entregue, pois ainda não se encontra concluída.
Ora, sucede que a minha constituinte iria abrir a loja em Janeiro de 2020, o que não aconteceu e logo de imediato ocorreu a pandemia do Covid 19, que se prolonga até este momento, desconhecendo qual o rumo que esta situação irá tomar.
Sendo assim, atento o atraso na entrega da obra, perdeu a minha constituinte o interesse no contrato em causa, uma vez que em plena pandemia nada pode fazer.
Efetivamente ao celebrar o contrato pretendia a minha constituinte, abrir de imediato a loja, embora esta fosse sofrer algumas obras, pelo que aguardou. Mas atento o atraso significativo e não tendo sido respeitadas as condições negociais remetidas via email, perdeu a minha constituinte qualquer interesse na loja em questão.
(…)
Nestes termos pretende a minha constituinte resolver o presente contrato, atento o incumprimento no que toca aos prazos de entrega da loja, que inviabilizou o negócio que havia pesrpetivado para o espaço em questão.”
Seguidamente, mediante carta datada de 4.5.2020 e enviada a 6.5.2020, a autora informou as rés que a alteração significativa das circunstâncias gerada pela situação pandémica advinda da denominada SARS-COV-2 originou que o inquilino lhe tivesse comunicado não ter intenção de prosseguir com o investimento, “não efectivando o contrato de arrendamento” e interpelou-as para apresentar uma proposta de resolução do assunto – nº 22.
Mais precisamente, depois de aludir ao contexto pandémico provocado pelo novo coronavírus, a autora escreveu o seguinte nessa carta:
“…as circunstâncias em que as V/sociedades e a sociedade aqui signatária fundaram a decisão de celebrar o contrato promessa de compra e venda já supra aludido e os termos do mesmo sofreram uma alteração anormal, correspondente a uma modificação insólita e inabitual da base negocial em que as partes fundaram a celebração do contrato, sendo que essa base negocial, no domínio da alteração das circunstâncias, assume caráter objetivo e respeita simultaneamente a ambos os contraentes.
Tal alteração significativa das circunstâncias já originou que o futuro inquilino da fração objeto da promessa, “E...” já nos tenha comunicado que não irá prosseguir com o investimento, não efetivando o contrato de arrendamento.
Relembramos que este imóvel foi prometido adquirir com o pressuposto da efetiva celebração do contrato de arrendamento com o referido inquilino.
Desconhecemos se tal perda de interesse teve unicamente como causa a crise desencadeada pela pandemia ou se também teve alicerçada o atraso na conclusão da obra e consequente celebração do contrato definitivo de compra e venda que recordamos estava previamente agendada para 31 de Março de 2020.
Como sempre fizemos questão de salientar, a existência de tal inquilino e a concretização do arrendamento nos moldes acordados era de facto uma condição essencial à celebração do presente negócio.
Sem prejuízo de tudo o supra exposto, pretendemos neste momento interpelar V. Exas. no sentido de aferir se porventura terão alguma proposta de resolução do presente assunto.”
As rés responderam a esta missiva por carta datada de 8.5.2020, onde, para além do mais, escreveram o seguinte: “…a alegada não prossecução do investimento, por parte do terceiro inquilino, mais não é de que uma decorrência do normal risco do negócio, tal como se encontra configurado e aceite por todos.” – nº 23.
E nas reuniões havidas entre as partes, as rés apenas aceitaram a prorrogação do prazo para pagamento do reforço de sinal – nº 24.
Assim, por carta datada de 11.9.2020, a autora comunicou às rés a resolução do contrato nos seguintes termos – nº 25:
“Como já havíamos comunicado anteriormente e não obstante a reunião havida e comunicações seguintes entre os nossos advogados, não se vislumbra qualquer solução diversa que não a da resolução do contrato promessa de compra e venda entre nós celebrado.
Na sequência da grave crise de saúde mundial, reconhecido pela Organização Mundial de Saúde a 30 de Janeiro de 2020, como a situação de Emergência de Saúde Pública de âmbito internacional da COVID-19, vindo, já em 11 de Março de 2020, a considerar o SARS-CoV-2 como uma pandemia mundial, o que por sua vez levou a que o Exmo. Sr. Presidente da República Portuguesa, através do Decreto nº 14-A/2020, publicado no DR em 18/03/2020 declarasse o estado de emergência nacional, de molde a conceder ao governo e ao país um quadro jurídico estável e adequado para as medidas que se impuseram adotar, nomeadamente as de confinamento da população e encerramento de todos os estabelecimentos comerciais com exceção dos de venda de bens de primeira necessidade, verificou-se uma profunda alteração no paradigma de todas as sociedades comerciais em Portugal.
Situação essa que na presente data se mantém grave, com a entrada numa nova situação de contingência já agendada para iniciar no próximo dia 15 de Setembro e com os recuos no desenvolvimento da vacina.
De facto, as circunstâncias em que as V/sociedades e a sociedade aqui signatária fundaram a decisão de celebrar o contrato promessa de compra e venda já supra aludido e os termos do mesmo sofreram uma alteração anormal, correspondente a uma modificação insólita ou inabitual da base negocial em que as partes fundaram a celebração do contrato, sendo que essa base negocial, no domínio da alteração das circunstâncias, assume caráter objetivo e respeita simultaneamente a ambos os contraentes.
Tal alteração significativa das circunstâncias constitui motivo bastante para a resolução do presente contrato nos termos e para os efeitos do art. 437º do CC, sendo que a tentativa de renegociação do contrato mostrou-se inevitável.
Ainda que assim não fosse, o que não se admite e se equaciona por mera cautela de patrocínio, relembramos que constava do contrato que a conclusão da obra e consequente celebração do contrato definitivo de compra e venda estava agendada para ocorrer até 31 de Março de 2020 e que até à presente data tal ainda não se verificou.
Tal atraso originou inclusivamente que o futuro inquilino também já tivesse abandonado o negócio tendo resolvido o contrato promessa de arrendamento.
Relembramos que este imóvel foi prometido adquirir com o pressuposto da efetiva celebração do contrato de arrendamento com o referido inquilino, algo que é do Vosso pleno conhecimento assim como dos mediadores do negócio.
Como sempre fizemos questão de salientar, a existência de tal inquilino e a concretização do arrendamento nos moldes acordados era de facto uma condição essencial à celebração do presente negócio.
Atentos os motivos invocados para a resolução ora operada, verifica-se a obrigação de V. Exas. restituírem o sinal já prestado, o que expressamente se requer.
Sem prejuízo de tudo o supra exposto, manifestamos a nossa disponibilidade para acertarmos uma forma faseada de devolução do montante do sinal, mantendo toda a disponibilidade para reunirmos para o que reputarem por necessário.”
As rés responderam a esta missiva por carta datada de 21.9.2020, onde escreveram o seguinte – nº 27:
“(…)
Aceitamos a operada resolução unilateral do contrato promessa entre nós celebrado, que resulta da carta a que se responde, em face da qual consideramos estar desvinculados do cumprimento do mesmo.
Contudo, é nosso entendimento que nenhuma das causas invocadas para a operada resolução nos pode ser imputada, razão pela qual não devolveremos o sinal em singelo, como solicitado.
No mais, remetemos a nossa posição quanto a cada um dos alegados motivos para a resolução para a carta que V/remetemos em 8 de Maio, bem como, para os mails que os nossos Advogados já trocaram.
(…)”.
8. De todo este contexto probatório, é de concluir que o circunstancialismo em que as partes fundaram a sua intenção de contratar sofreu uma alteração anormal e imprevisível, o que causou à autora grave dano, face à insustentabilidade económica, para esta, de manter o contrato nas condições acordadas.
Com efeito, a sociedade autora celebrou o contrato-promessa de compra e venda no pressuposto da celebração de um outro contrato de arrendamento com vista à rentabilização do imóvel prometido vender.
Se o contrato de arrendamento se frustra, por razões a que as próprias rés não são completamente alheias, o equilíbrio das prestações contratuais que estão subjacentes à realização do contrato-promessa fica gravemente afetado, de tal modo que, conforme se assinala na sentença recorrida, exigir à autora que mantenha o ali acordado surge como ofensivo dos ditames da boa fé.
É que exigir a manutenção do contrato em tais condições e o reforço do pagamento do sinal acordado no período pandémico, sem que a obra do imóvel prometido vender estivesse sequer concluída, implicaria por parte da autora o pagamento de um avultado investimento sem qualquer previsibilidade de retorno próximo.
Aliás, continuando, nesta parte, a seguir a sentença recorrida, não se pode ignorar que tendo a resolução do contrato sido efetuada pela autora em 11.9.2020 a situação pandémica até se agravou - e substancialmente - após esta data, tendo tido o seu período mais grave no nosso país já no início do ano de 2021, de tal forma que o estado de emergência foi objeto de sucessivas prorrogações que perduraram até ao final do mês de abril desse ano.
Acontece que uma alteração de circunstâncias fundada numa crise pandémica à escala global nunca se poderá considerar abrangida pelos riscos próprios do contrato, os quais se reportam a um maior ou menor êxito do negócio ou a cíclicas crises que levam a um abrandamento do mercado e nunca a uma pandemia que, pela sua dimensão, atinge o mundo inteiro.
Importa, de resto, salientar que à data da celebração do contrato-promessa de compra e venda – 13.9.2019 – nada fazia prever que os anos de 2020 e 2021 iriam ser marcados por uma pandemia à escala mundial, com consequências não apenas na área da saúde pública, mas também – e igualmente negativas – no domínio económico e financeiro.
Por isso, cremos ser notório que a eclosão da pandemia, resultante da doença provocada pelo novo coronavírus, traduziu-se numa imprevisível e anormal alteração da base do negócio em que a autora e as rés fundaram a sua intenção de contratar e nos termos em que o fizeram.
Consideramos, pois, em sintonia com o decidido em 1ª Instância, que no caso “sub judice” se verificam todos os pressupostos, que são exigidos pelo art. 437º do Cód. Civil, para a resolução do contrato por alteração das circunstâncias.
De qualquer modo, importa frisar o seguinte – cfr. CARNEIRO DA FRADA, ob.cit., pág. 4:
“As “grandes” alterações de circunstâncias são gerais, e totalmente alheias a condutas ou áreas de influência das partes, a cujo domínio e controlo escapam completamente. O Covid-19 é delas um exemplo particularmente eloquente.
Por isso, a boa fé impõe que a ocorrência não deva ser aproveitada unilateralmente por um dos sujeitos em detrimento do outro, nem penalize arbitrariamente um dos contraentes. Afinal, a perturbação ocorrida tem a sua origem, ou provém de uma esfera manifestamente “neutra” em relação a qualquer das partes (ou, se se preferir, “comum” a elas).
Na medida em que provoca uma alteração global de parâmetros fundamentais da coexistência social, o Covid-19 deve ser encarado, do ponto de vista jurídico, como um risco a que todos os contraentes, membros de “uma mesma comunidade de risco”, estão expostos. Nenhum sujeito, parte num contrato, pode pretender eximir-se aos seus efeitos à custa do outro, nem devem permitir-se benefícios fortuitos a uma das partes que impliquem o prejuízo da outra. Os contratos não podem converter-se em casos de windfall profit de uns à custa de outros, pois tal contraria os ditames da justiça.
O equilíbrio da balança da Justiça significa que a justa medida é constituída pelo justo meio. Pelo que a repercussão jurídica do Covid-19 deve ser repartida de harmonia com um princípio de igualdade. (…)”
Ora, nesta linha de pensamento, a Mmª Juíza “a quo” entendeu acertadamente que “mesmo numa perspectiva de divisão do risco entre os contraentes de uma forma equitativa, que se impõe realizar nestes autos, devemos concluir que a resolução do contrato é a solução que melhor garante o equilíbrio da situação jurídica de ambas as partes, pois, se por um lado, tal permitiu e permite à promitente compradora libertar-se de uma situação ruinosa, as promitentes vendedoras não deixaram de recuperar o seu activo imobiliário ainda antes do mesmo estar em condições de ser alienado ou rentabilizado.”
9. Por último, há ainda a ter em atenção que a resolução do contrato com base na alteração das circunstâncias só poderá operar se o lesado não se encontrar em mora, tal como prescreve o art. 438º do Cód. Civil, o que se mostra suscitado em via recursiva, entendendo as rés/recorrentes que a autora efetivamente se achava em mora, por não ter procedido ao pagamento do reforço do sinal no momento em que o deveria ter feito.
Acontece que no quadro da presente alteração das circunstâncias, motivada pelo contexto pandémico, cremos que a mora do devedor não impede só por si, sem ponderações suplementares, a invocação do disposto no art. 437º, nº 1 do Cód. Civil, devendo o subsequente art. 438.º sofrer a correspondente redução teleológica – cfr. CARNEIRO DA FRADA, ob.cit., pág. 3.
A data previsível para a realização da escritura de compra e venda do imóvel era até ao dia 31.3.2020, sendo certo que por carta, datada de 6.4.2020, rececionada pela autora a 8.4.2020, as rés, perspetivando a outorga de tal escritura pública para Agosto de 2020, solicitaram à autora o pagamento do reforço do sinal no valor de 41.940,00€ – nº 18 –, ao que esta reagiu através de carta enviada para as rés, em 6.5.2020. Nesta, a autora informou as rés da significativa alteração das circunstâncias gerada pela situação pandémica advinda da denominada SARS-COV-2, o que levou a que o inquilino lhe tivesse comunicado não ter intenção de prosseguir com o investimento, não efetivando o contrato de arrendamento. E no final dessa missiva, a autora mais interpelou as rés para apresentarem uma proposta de resolução do assunto.
Exigir o pagamento do reforço do sinal em 6.4.2020, numa data em que já estava ultrapassada a data previsível para a celebração da escritura pública de compra e venda e em que a construção do imóvel não estava concluída, tendo entretanto eclodido a crise pandémica, com todo o seu cortejo de proibições, restrições e dificuldades, significaria impor à autora um avultado dispêndio económico sem qualquer previsibilidade de retorno imediato ou próximo.
Essa exigência, naquele concreto momento, mostrava-se contrária aos próprios ditames da boa fé.
Assim, sendo, a nosso ver, inexigível à autora que procedesse ao pagamento daquele reforço de sinal em pleno período pandémico, concluímos no sentido da inexistência de mora por parte desta, daí decorrendo que também o requisito negativo previsto no art. 438º do Cód. Civil para a resolução do presente contrato-promessa por alteração das circunstâncias se encontra preenchido.
Como tal, improcede o recurso interposto pelas rés, com o que se confirma a sentença recorrida que declarou válida a resolução do contrato-promessa com fundamento na alteração anormal das circunstâncias e condenou as rés na devolução à autora da quantia de 83.880,00€ que esta lhes havia entregue a título de sinal, julgando ainda improcedente a reconvenção deduzida.[19]
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelas rés “A..., Lda.” e “B..., Lda.” e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas a cargo das rés/recorrentes.

Porto, 14.3.2023
Rodrigues Pires
Márcia Portela
João Ramos Lopes
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[1] Foi aqui cometido um manifesto lapso, uma vez que esta carta está datada de 8.5.2020.
[2] Foi aqui cometido um manifesto lapso, uma vez que esta carta está datada de 11.9.2020.
[3] Também aqui ocorre um manifesto lapso, atendendo a que a carta é de 21.9.2020.
[4] Apud PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, ob. e loc. cit.
[5] O art. 393º reporta-se à inadmissibilidade da prova testemunhal e o nº 3 diz-nos que «as regras dos números anteriores não são aplicáveis à simples interpretação do contexto do documento
[6] Com a colaboração de PINTO MONTEIRO.
[7] Apoiando-se, nesta passagem, no Ac. STJ de 31.10.1979, BMJ nº 290, págs. 340 e segs.
[8] A construção que primeiramente surgiu no sentido da resolução dos contratos por alteração das circunstâncias foi a teoria da cláusula rebus sic stantibus, que se prende à doutrina e à prática forense medievais. De acordo com ela, nos contratos de longa duração, considera-se sempre subentendida a cláusula de que só valem mantendo-se o estado de coisas em que foram estipulados. Logo que se produza uma mudança significativa das circunstâncias que existiam à data da celebração do contrato, a parte para quem o cumprimento resulte demasiado gravoso pode pedir a resolução – cfr. ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, 11ª ed., Almedina, pág. 324.
[9] Cfr. INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, “Manual dos Contratos em Geral”, 4ª ed. 2002, Coimbra Editora, págs. 343/344.
[10] Cfr. ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, 11ª ed., Almedina, págs. 336/337.
[11] Cfr. ALMEIDA COSTA, ob. cit., pág. 338
[12] Cfr. INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, ob. cit., pág. 344
[13] Cfr. MENEZES LEITÃO, ob. cit., págs. 135/136.
[14] Cfr. MENEZES LEITÃO, ob. cit., pág. 136.
[15] Cfr. MENEZES LEITÃO, ob. cit., pág. 136.
[16] Cfr. MENEZES LEITÃO, ob. cit., pág. 137; ALMEIDA COSTA, ob. cit., págs. 340/341.
[17] Cfr. ALMEIDA COSTA, ob. cit., págs. 341/342.
[18] Cfr. art. 412º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil.
[19] Sobre a matéria da resolução do contrato por alteração das circunstâncias cfr. ainda MOTA PINTO, “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª ed., págs. 605/613; HENRIQUE SOUSA ANTUNES, “Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral”, Universidade Católica Editora, págs. 151/159; Ac. STJ de 9.3.2010, proc. 134/2000.P1.S1, relator HELDER ROQUE, Ac. STJ de 23.1.2014, proc. 1117/10.9 TVLSB.P1.S1, relator GRANJA DA FONSECA, disponíveis in www.dgsi.pt.