Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | RAÚL CORDEIRO | ||
Descritores: | ACESSO AO DIREITO ACESSO AOS TRIBUNAIS REGIME APOIO JUDICIÁRIO INSUFICIÊNCIA DE MEIOS ECONÓMICOS PROCESSO PENAL ARGUIDO TAXA DE JUSTIÇA IMPUGNAÇÃO EFEITOS | ||
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Nº do Documento: | RP2023112946/23.0GCTS-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 11/29/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | JULGADO PROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
Indicações Eventuais: | 4. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – O Regime de Acesso aos Direito e aos Tribunais, consagrado na Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho (com subsequentes alterações), dá expressão normativa ao comando vertido no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa. II – Tal regime, na modalidade de apoio judiciário, não visa directamente a dispensa do sujeito processual de pagar as custas e taxas devidas, mas sim que, em face da sua comprovada insuficiência de meio económicos, não fique impedido de, perante os custos que a causa ou processo acarretam, exercer ou defender os seus direitos. III – Ao contrário do que sucede nas acções cíveis, em processo penal o arguido não tem que pagar qualquer taxa de justiça para se defender ao longo do processo, incluindo para requerer a abertura da instrução ou interpor recurso. IV – Daí que o mesmo possa requerer o apoio judiciário “até ao termo do prazo de recurso da decisão em primeira instância” (art. 44.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004), sem que, caso o faça após a prolação da sentença, lhe seja exigível manifestar intenção de recorrer ou interpor recurso, abrangendo o apoio judiciário todas as responsabilidades tributárias do processo, incluindo a custas em que tenha sido condenado anteriormente à data da formulação do pedido. V – Concedido apoio judiciário ao arguido pelos competentes Serviços da Segurança Social, não pode o Tribunal, oficiosamente, retirar valia àquela decisão, considerando-a sem efeito nos autos, pois que carece de competência para tal, estando a sua intervenção, nesse campo, condicionada à eventual impugnação que da mesma tenha sido apresentada, nos termos legais. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 46/23.0GCSTS-A.P1 I Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: Nos autos de Processo Sumário n.º 46/23.0GCSTS, do Juízo Local Criminal de Santo Tirso – Juiz 2, em que é arguido AA, foi proferido despacho, em 28-05-2023, pelo qual se decidiu que a decisão da Segurança Social que atribuiu àquele o benefício do apoio judiciário é inoperante nos autos e neles não produzirá qualquer efeito útil (ref.ª 447592716). * Descontente com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, tendo apresentado a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:“1 - O presente recurso é interposto do douto despacho datado de 28 de maio de 2023 que declarou inoperante a decisão da Segurança Social relativa ao apoio Judiciário concedido ao arguido. 2 - Ministério Público entende, porém, que este entendimento não pode ser aceite, uma vez que não só é contraditório entre si, como também apresenta uma hermenêutica jurídica que não se compagina com os factos que, a este propósito, relevam processualmente, nem com o Direito que lhe é aplicável. 3 - Efetivamente, foi proferida sentença condenatória do Arguido a 17/01/2023. 4 - Sentença que transitou em julgado a 16/02/2023. 5 - Antes de ter transitado em julgado a referida decisão, mais concretamente a 25/01/2023, o arguido requereu junto do Instituto da Segurança Social, IP, que lhe fosse concedida protecção jurídica, na modalidade de Dispensa de Pagamento da Taxa de Justiça e Demais Encargos com o Processo e Pagamento da Compensação de Defensor Oficioso. 6 - Tal pedido de proteção jurídica foi deferido, nos precisos termos requeridos, a 27/02/2023, tendo sido comunicado aos presentes autos, a 03/03/2023, pela própria Segurança Social. 7 - Ora, no âmbito do processo penal, consagra o art. 44.º, n.º 1, da Lei 34/2004, de 29 de Julho, que o pedido de proteção jurídica deve ser requerido até ao termo do prazo de recurso da decisão em primeira instância. 8 - In casu afigura-se evidente que o Arguido requereu o Apoio Judiciário a 25/01/2023, em momento manifestamente anterior ao trânsito em julgado da sentença aqui proferida (16/02/2023). 9 - Quer isto dizer que foi o presente pedido de proteção jurídica tempestivamente apresentado, devendo, por isso, ser reconhecido e declarado operante e aplicável nos presentes autos, com todos os legais efeitos. 10 - Por outras palavras, não se percebem os fundamentos de facto e de Direito em que se alicerça a decisão a quo e, muito menos, a conclusão apresentada, que se afigura contraditória nos seus fundamentos. 11 - De igual sorte, percorrida toda a Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, e o Código de Processo Penal, não existe qualquer normativo legal que, no âmbito dos processos penais, consagre a obrigatoriedade de comprovar-se o pedido de proteção jurídica antes de ser elaborada a conta ou de que, elaborada a conta antes da decisão final do pedido de protecção jurídica formulada, vir o mesmo a ser inoponível quando a decisão for posterior à elaboração de conta. 12 - Aliás, tal cenário seria inconcebível à luz da axiologia e teleologia inerente ao procedimento de proteção jurídica, consagrada no art.º 20.º da CRP e na Lei 34/2004, de 29 de Julho. 13 - Também nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1.º (Finalidades) da Lei 34/2004, na redacção conferida pela Lei n.º 47/2007, de 28/8, que estabelece: “O sistema de acesso ao direito e aos Tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos”. 14 - Em síntese, face ao Regulamento das Custas Processuais, a concessão do apoio judiciário visa efectivamente e apenas o não pagamento de custas pelo arguido que não reúne condições económico-financeiras para o efeito, seja qual for a fase processual em que o mesmo é requerido junto dos serviços da Segurança Social (até ao trânsito em julgado), pois ao longo de todo o processo nunca é exigido ao arguido o prévio pagamento de qualquer quantia para o exercício dos seus direitos de defesa. Como por todos reconhecido e previsto no art.º 1, n.º 1, da Lei 34/2004, de 29/7, em consonância com o prescrito no artigo 20.º da CRP, de que é concretização, o apoio judiciário destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos. 15 - Assim, somos de entender que deve ser tido como atempadamente apresentado o requerimento de Apoio Judiciário e, uma vez deferido pela Segurança Social, deve ser levado em consideração para os fins tidos por convenientes, mais concretamente para efeito de isenção do pagamento de custas. 16 - Ademais, sempre se dirá que se está a imiscuir nas decisões de uma outra entidade, o que não pode acontecer. Assim, entende o Ministério Público que a decisão em crise deve ser revogada e alterada por uma outra que reconheça e declare como operante nos presentes autos o benefício de protecção jurídica, na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo e pagamento da compensação de defensor oficioso de que o arguido beneficia, pois só assim se fará inteira e sã Justiça!. Nestes termos, os Exm.ºs Senhores Desembargadores do Tribunal de Relação do Porto melhor decidirão.” (ref.ª 36246287). * Admitido regularmente o recurso por despacho, não foi apresentada resposta (ref.ª 450096009).* Remetidos os autos a este Tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, sustentando, em síntese, que, em face do regime legal aplicável, que enunciou, acompanha o recurso interposto pelo Ministério Público (ref.ª 17353559).* Foi proferido despacho liminar e colhidos os vistos, com decisão em conferência.II As conclusões formuladas, resultado da motivação apresentada, delimitam o objecto do recurso (art. 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal - CPP), sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso que pudessem suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo que o recurso verse apenas sobre a matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995). Como questão prévia importa referir que, a nosso ver, assiste legitimidade ao Ministério Público para interpor o presente recurso, cuja falta, ainda que não invocada expressamente, é aventada pela Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer (parte III). Com efeito, ainda que o Ministério Público não tenha sido o requerente do apoio judiciário, em representação do arguido, como a lei lhe permitiria (art. 19.º, al. b), da Lei n.º 34/2004, de 29-07), o mesmo dispõe de legitimidade para recorrer “de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido” (art. 401.º, n.º 1, al. a), do CPP). E mesmo que se entendesse que no caso presente se trata de questão alheia à matéria do processo criminal, sendo invocada a violação de lei expressa, sempre seria de ter em conta a legitimidade para recorrer que lhe advém do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea q), do Estatuto do Ministério Público (aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27-08). Passando a apreciar os argumentos apresentados no recurso, importa ter presente o processado dos autos, com relevo para a decisão, o qual foi o seguinte: a) Nos presentes autos de processo sumário foi proferida sentença em 17-01-2023, pela qual o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, em pena de multa e no pagamento das custas do processo (ref.ª 444266455). b) Em 25-01-2023 o arguido apresentou nos Serviços da Segurança Social pedido de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo e ainda de pagamento da compensação ao defensor oficioso (ref.ª 34934055). c) A referida sentença condenatória transitou em julgado em 16-02-2023. d) O referido pedido de apoio judiciário foi deferido, nos termos requeridos, por decisão da Segurança Social de 27-02-2023. e) Tal decisão foi comunicada aos presentes autos em 03-03-2023, com cópia, pela própria Segurança Social (ref.ª 34934055). f) Em 31-03-2023, o arguido, em resposta a notificação para pagamento das custas, veio invocar que requereu apoio judiciário, o qual lhe foi deferido, conforme documento junto aos autos (ref.ª 35256115). g) Tendo sido aberta vista, o Ministério Público pronunciou-se, em 18-04-2023, no sentido de que, tendo o apoio judiciário sido requerido antes do trânsito em julgado da sentença, deve ser tido como atempadamente apresentado e levada em consideração a decisão sobre o mesmo proferida pela Segurança Social (ref.ª 447320309). h) Na sequência foi proferido, em 28-05-2023, o despacho recorrido, o qual é do seguinte teor: “Do apoio judiciário Perscrutados os autos, constata-se que o arguido requereu o benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e pagamento da compensação de defensor, em 25.1.2023, conforme informação transmitida pelo ISS (uma vez que não fez juntar tal pedido aos presentes autos). Ora, a sentença condenatória proferida nos autos transitou em julgado no dia 16.2.2023, sendo que, até essa data, o requerente não juntou aos autos documento comprovativo da apresentação do pedido de apoio judiciário (motivo pelo qual foi elaborada a conta de custas), sendo que a decisão em causa foi comunicada aos autos em 3.3.2023, após o trânsito em julgado da sentença. Ora, o instituto de apoio judiciário visa garantir o exercício da tutela jurisdicional dos direitos mediante um acesso à justiça que não gere desigualdade de oportunidades, sem consideração pelas condições económicas de quem recorre aos tribunais - art. 20.º da nossa Lei Fundamental e Acórdão do Tribunal Constitucional 93-16-11, Processo 91-0243, Relator Tavares da Costa – http://www.dgsi.pt. O apoio judiciário adquire, assim, uma feição tendente a possibilitar a todos os cidadãos um claro e inequívoco direito de, em juízo, pugnarem pelos seus legítimos interesses – cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 391/88, de 26 de Outubro, a que alude o artigo 56.º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro. Assim, o aludido benefício deve ser requerido enquanto a causa não tiver terminado por decisão que não admita recurso ou reclamação, i. e., enquanto exista uma causa pendente. Nesse sentido preceitua o art. 18.º da Lei n.º 34/2004, de 29.7, que dispõe: 2 - O apoio judiciário deve ser requerido antes da primeira intervenção processual, salvo se a situação de insuficiência económica for superveniente, caso em que deve ser requerido antes da primeira intervenção processual que ocorra após o conhecimento da situação de insuficiência económica. 4 - O apoio judiciário mantém-se para efeitos de recurso, qualquer que seja a decisão sobre a causa, e é extensivo a todos os processos que sigam por apenso àquele em que essa concessão se verificar, sendo-o também ao processo principal, quando concedido em qualquer apenso. E, no que respeita à concessão do apoio judiciário em processo criminal, é a própria lei que, de forma expressa, estabelece, como limite à formulação do pedido, a data do trânsito em julgado da decisão final, dispondo o n.º 1 (parte final) do art. 44.º da Lei n.º 34/2004 que o apoio judiciário deve ser requerido até ao trânsito em julgado da decisão final: “Em tudo o que não esteja especialmente regulado no presente capítulo relativamente à concessão de protecção jurídica ao arguido em processo penal aplicam-se, com as necessárias adaptações, as disposições do capítulo anterior, com excepção do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º, devendo o apoio judiciário ser requerido até ao termo do prazo de recurso da decisão em primeira instância.” Por isso, não é admissível o seu requerimento ou concessão na fase meramente relativa à liquidação e pagamento de custas – neste sentido se tem pronunciado a esmagadora maioria da Jurisprudência – cfr. a título meramente exemplificativo – Ac. STJ de 02.02.93, BMJ 424-557; Ac. RE de 23.11.93, BMJ n.º 431; Ac. RL de 2.12.93, BMJ n.º 432. A ser admitido nesta fase processual o benefício em questão, traduzir-se-ia a sua concessão numa mera dispensa de pagamento das custas em que o arguido foi condenado, o que contraria o sistema legal de acesso ao direito e aos tribunais. Assim, não tendo sido comprovado nos autos, antes do trânsito em julgado da condenação, o pedido de apoio judiciário, foi a conta elaborada, aliás de acordo com as regras legais cabíveis no caso. Pelo exposto, a decisão da Segurança Social que atribui o aludido benefício é inoperante nos presentes autos e neles não produzirá qualquer efeito útil. Em face do exposto e por falta de fundamento legal, indefere-se o requerido.” (ref.ª 447592716). * Vejamos.O presente recurso, atento o seu objecto, versa, exclusivamente, sobre matéria de direito, impondo a lei que, nesse caso, sejam indicadas, designadamente, “as normas jurídicas violadas” e “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do CPP). Os recursos representam um meio de impugnação das decisões judiciais, cuja finalidade consiste na eliminação dos erros, defeitos ou lapsos das mesmas através da sua análise por outro órgão jurisdicional, constituindo um instrumento processual de consagração prática dos princípios constitucionais de acesso ao direito e de garantia do duplo grau de jurisdição (arts. 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP). Está aqui em causa apurar se é admissível apresentar pedido de apoio judiciário no momento em que o foi nos presentes autos e, além disso, se é permitido ao juiz, oficiosamente, tomar posição sobre a relevância da decisão proferida pela Segurança Social. Analisemos ambas as questões, por essa ordem. Como é referido na decisão recorrida e na motivação do recurso, a nossa Lei Fundamental estabelece que “A todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.” (n.º 1 do art. 20.º da Constituição da República Portuguesa - CRP). Trata-se, no que ao acesso à justiça diz respeito, da consagração do princípio constitucional da igualdade, o qual não pode ser postergado por razões de carência económica (art. 13.º, n.ºs 1 e 3, igualmente da CRP). Dando expressão normativa a tal preceito constitucional, veio a ser aprovado o “Regime de Acesso aos Direito e aos Tribunais”, o mais recente através da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, sucessivamente alterada pelas Leis n.ºs 47/2007, de 28 de Agosto, e 40/2018, de 08 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 120/2018, de 27 de Dezembro, e pelas Leis n.ºs 2/2020, de 31 de Março, e 45/2023, de 17 de Agosto (doravante designada por Lei n.º 34/2004, ainda que na sua versão actual, sendo da mesma os normativos a seguir citados sem indicação em contrário). Essa Lei n.º 34/2004 estabelece no seu artigo 1.º, n.º 1, as finalidades do regime de acesso ao direito e aos tribunais no sentido de que tal sistema “destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos.” Ou seja, tal como se refere na decisão recorrida, esse regime, concretamente na vertente do apoio judiciário, que inclui, além do mais, as modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e o pagamento da compensação de defensor (arts. 6.º, n.º 1, e 16.º, n.º 1, als. a) e c)), não visa directamente a dispensa da parte ou sujeito processual de pagar as custas e taxas devidas, mas sim que, em face da sua comprovada insuficiência de meio económicos, não fique impedido de, perante os custos que a causa ou processo acarretam, exercer ou defender os seus direitos. Daí que, como regra, o apoio judiciário deva “ser requerido antes da primeira intervenção processual, salvo se a situação de insuficiência económica for superveniente, caso em que deve ser requerido antes da primeira intervenção processual que ocorra após o conhecimento da situação de insuficiência económica” (n.º 2 do art. 18.º). A razão de ser desta imposição tem a ver com o facto de, normalmente, ser exigível às partes o pagamento de taxa de justiça quando apresentam a pretensão em juízo ou deduzem a respectiva oposição, não se aguardando pela decisão final para liquidar e exigir os encargos com o processo. Efectivamente, a lei estabelece que as custas processuais “abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte” e que é devido o pagamento de taxa de justiça pelo impulso processual (arts. 3.º, n.º 1, 6.º e 7.º do Regulamento das Custas Processuais - RCP). E em conjugação com estas normas, o código de processo civil impõe que o autor junte à petição e o réu à contestação o comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida ou o comprovativo do requerimento ou concessão de apoio judiciário na modalidade de dispensa de tal pagamento (arts. 552.º, n.ºs 7 a 9, e 570.º, n.º 1, do Código de Processo Civil - CPC). E igual dever se verifica relativamente à interposição de recurso, quer por parte do recorrente, quer por parte do recorrido que responda ao recurso (arts. 642.º do CPC e 7.º, n.º 2, do RCP). Mas tal regime é relativo à jurisdição cível, pois que na penal tudo se passa de modo diferente. Com efeito, a referida Lei n.º 34/2004 contêm disposições especiais para o processo penal (arts. 39.º a 44.º), sendo de destacar, para o que agora releva, o seu artigo 44.º, n.º 1, o qual estabelece que o apoio judiciário deve “ser requerido até ao termo do prazo de recurso da decisão em primeira instância.” A razão de ser desta norma prende-se com o facto de, tal como a Exm.ª Procuradora refere na motivação e ao contrário do que sucede nas causas cíveis, o arguido não ter que pagar qualquer taxa de justiça ao longo do processo, incluindo pela eventual abertura da instrução, o que apenas sucede com o assistente (n.º 2 do art. 9.º do RCP), nem sequer pela interposição de recurso, sendo a taxa de justiça eventualmente devida somente paga a final (n.º 9 do mesmo art. 9.º), quer se trate de condenação em primeira instância, quer pela eventual improcedência total de recurso (art. 513.º, n.º 1, do CPP). Anteriormente à entrada em vigor do RCP, o que ocorreu em 20-04-2009, ou seja, na vigência do Código das Custas Judiciais (CCJ), o arguido, ao contrário do que agora sucede, estava obrigado a pagar taxa de justiça pela abertura da instrução e pela interposição de recurso, sendo que apenas o recurso que tivesse por efeito manter a liberdade do arguido era recebido independentemente do pagamento da taxa de justiça (cfr. arts. 80.º, 83.º e 86.º desse Código). Assim, em contraposição do regime actual, anteriormente o arguido estava, efectivamente, obrigado a pagar taxa de justiça para se poder defender ao longo do processo, quer para sindicar a acusação, requerendo a abertura da instrução, quer para alterar o decidido na sentença condenatória. Efectivamente, não está em causa, no presente, a impossibilidade de o arguido se defender e fazer valer os seus direitos ao longo do processo por não possuir condições para pagar taxa de justiça em certos actos ou fases processuais, mas sim o facto de não dever sentir-se limitado ou impedido de defender-se e actuar de forma adequada por, no final, poder ter de pagar custas e não dispor de meios económicos para o efeito. Daí que, a nosso ver, o legislador pretendeu conciliar o facto de a responsabilidade do arguido por custas apenas surgir com a condenação na sentença final (e depois em virtude de decaimento total em recurso que tenha interposto) com a possibilidade de poder requerer apoio judiciário até ao termo do prazo de recurso da decisão em primeira instância. Na verdade, não sendo exigido ao arguido o pagamento de qualquer taxa ao longo do processo, a eventual carência de meios económicos em nada prejudica a defesa dos seus direitos, sendo que a própria lei impõe que lhe seja nomeado um defensor para o representar, caso não tenha constituído advogado para o efeito, designadamente após a dedução da acusação (arts. 61.º, n.º 1, al. e), 64.º, 66.º do CPP). Assim sendo, interpretando-se os transcritos artigos 20.º, n.º 1, da CRP, e 1.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004 com o sentido subjacente ao despacho recorrido, deixaria de fazer sentido a concessão de apoio judiciário ao arguido em processo penal, nas referidas modalidades, pois que a sua eventual insuficiência económica não conduz à denegação de justiça ou à impossibilidade de se defender, sendo que se vier a ser condenado em custas na decisão final ou em sede de recurso, a eventual inexistência de rendimentos ou bens certamente conduzirá à não instauração de execução para a sua cobrança coerciva (art. 35.º do RCP). Do mesmo passo, não defendemos que, para poder requerer apoio judiciário após a prolação da sentença (mas antes do seu trânsito), o arguido tenha que manifestar intenção de apresentar recurso, como sustentam alguns autores, designadamente Salvador da Costa e Joana Campos, mencionados pela Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, pois que tal interpretação restritiva não tem qualquer apoio na letra da lei, não sendo, por isso, a mesma permitida (n.º 2 do art. 9.º do C. Civil). Ainda que se conheçam algumas decisões em sentido diferente, cremos que a melhor interpretação do aludido artigo 44.º, n.º 1, da Lei 34/2004 é a de que o apoio judiciário pode ser requerido pelo arguido até ao termo do prazo de recurso em 1.ª instância, ou seja, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, sem que lhe seja exigível manifestar intenção de recorrer, abrangendo o mesmo todas as responsabilidades tributárias do processo, incluindo a custas em que tenha sido condenado anteriormente à data da formulação do pedido (neste sentido podem ver-se, entre outros, os Acs. da RL de 13-12-2017 – Proc. 406/09.0JAFAR-G.L1-5; da RG de 10-03-2011 – Proc. 39/09.0PABRG-A.G1, e da RC de 23-05-2012 – Proc. 108/11.7GTAVR-A.C1; de 05-12-2018 – Proc. 385/15.4GCVIS-C.C1, e de 08-07-2015 – Proc. 150/09.8GBLSA.C2, todos disponíveis em www.dgsi.pt). Naturalmente que após esse marco – o trânsito em julgado da decisão da 1.ª instância – já não há quaisquer direitos e defender ou a exercer, tendo-se consolidado a dívida de custas na esfera do responsável, razão porque não podem usar-se as normas relativas ao acesso ao direito e aos tribunais para evitar o pagamento da conta de custas, o que tem vindo a ser também perfilhado pelo Tribunal Constitucional (cfr. Ac. n.º 215/12, no qual se citam os Acs. n.ºs 508/97, 308/99, 112/2001 e 590/2001 – DR II Série, n.º 102, de 25-05-2012). No caso presente, resulta dos autos que a sentença condenatória foi proferida em 17-01-2023, tendo o arguido apresentado o pedido de apoio judiciário perante a Segurança Social em 25-01-2023. Tal sentença veio a transitar em julgado em 16-02-2023, tendo a decisão de concessão de apoio judiciário sido proferida em 27-02-2023 e junta aos autos em 03-03-2023. Daqui resulta manifesto que tal pedido foi apresentado antes do termo do prazo de recurso da decisão em primeira instância, conforme impõe o referido n.º 1 do artigo 44.º da Lei n.º 34/2004. Neste contexto, de forma alguma se poderá dizer que o pedido foi apresentado extemporaneamente, sendo irrelevante que a decisão da Segurança Social somente tenha sido proferida e comunicada aos autos quando a sentença já havia transitado em julgado. Efectivamente é a data da apresentação do requerimento que releva e não a da respectiva decisão. É verdade que, por vezes, tal como aqui sucedeu, o facto de a tramitação e decisão do pedido de apoio judiciário caber à Segurança Social, correndo o processo criminal no Tribunal, cria dificuldades de articulação, podendo gerar disfuncionalidades no processado, mas tal não pode reverter em prejuízo do requerente do benefício, tanto mais que a lei apenas estabelece quanto ao limite temporal da formulação do pedido (termo do prazo de recurso da decisão em primeira instância), não estabelecendo também a obrigação de o mesmo comprovar nos autos a sua apresentação, sendo a Segurança Social que está obrigada a notificar a decisão final ao tribunal em que o processo se encontre pendente (n.º 4 do art. 26.º, ex vi art. 44.º, n.º 1, da dita Lei 34/2004). Efectivamente, tal dever de comprovação, não estando previsto nas disposições especiais sobre processo penal (arts. 39.º a 44.º), também não resulta das normas contidas no Capítulo III (arts. 6.º a 38.º) da referida Lei 34/2004, para as quais remete o n.º 1 do referido artigo 44.º, excepcionando o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º. Na verdade, não estando o arguido obrigado a pagar taxa de justiça ao logo do processo, apenas sendo responsável em caso de condenação ou improcedência de recurso, é razoável não lhe impor a junção aos autos de comprovativo do requerimento de apoio judiciário apresentado perante a Segurança Social (ainda que fosse adequado fazê-lo, para, eventualmente, evitar situações como a presente), ao contrário do que a lei processual civil estabelece para as partes, de cuja apresentação depende a admissão da pretensão ou resposta deduzidas (arts. 552.º, n.ºs 7 a 9, 570.º, n.º 1, e 642.º do CPC). Compreende-se a argumentação vertida no despacho recorrido relativamente à finalidade do instituto do apoio judiciário, com apoio em decisões jurisprudências (ainda que já antigas), mas o requerer o benefício em momento processual anterior também em nada contribuiria para reforçar ou acautelar do direito a uma defesa efectiva, tanto mais que, como é sabido, o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória (n.º 2 do art. 32.º da CRP). Ademais, no caso o arguido foi julgado em processo sumário, tendo sido detido em 17-01-2023, pela 03:21 horas, e julgado e condenado nessa mesma data, não lhe sendo exigível que requeresse junto de Segurança Social apoio judiciário antes da prolação da sentença, na qual foi também condenado em custas. Ainda que, porventura, com a apresentação do pedido de apoio judiciário o arguido somente tenha tido em mente evitar o pagamento de custas, pois que não manifestou intenção de recorrer, nem veio a interpor recurso da sentença, tal não colide, em face do que se disse, com a tempestividade e legitimidade da pretensão à face da lei vigente, à qual os tribunais estão sujeitos (art. 203.º da CRP). Trata-se de uma opção consciente do legislador, o qual, através do instituto do apoio judiciário, pretendeu dar plena expressão normativa ao comando constitucional estabelecido no artigo 20.º, n.º 1, da CRP. Daí que não há fundamento legal para considerar extemporâneo o pedido de apoio judiciário apresentado pelo arguido AA perante a Segurança Social. Relevante é também a questão que o Ministério Público recorrente apelida de o Tribunal a quo se estar a “imiscuir nas decisões de uma outra entidade”. Como é sabido, a competência para apreciar e decidir o pedido de apoio judiciário pertence à Segurança Social, no âmbito da referida Lei 34/2004 e respectiva Portaria n.º 10/2008, de 03 de Janeiro, que a regulamentou, esta com as alterações introduzidas pelas Portarias n.ºs 210/2008, de 29 de Fevereiro, 654/2010, de 11 de Agosto, e 319/2011, de 30 de Dezembro. Ao contrário do que sucedia na vigência do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, em que o pedido de apoio judiciário era formulado nos próprios autos a que se destinava, cabendo a tramitação e decisão ao respectivo Juiz, no actual regime tal competência é exclusiva dos Serviços de Segurança Social, apenas sendo a mesma remetida, com cópia autenticada do processo administrativo, ao Tribunal competente no caso de impugnação judicial, proferindo o juiz decisão final a tal respeito, “concedendo ou recusando o provimento, por extemporaneidade ou manifesta inviabilidade”, a qual é irrecorrível (arts. 20.º, 22.º, 26.º, n.ºs 2 e 5, 27.º e 28.º da Lei n.º 34/2004). Com a publicação dessa Lei o legislador pretendeu retirar da competência dos tribunais uma matéria que não reclama intervenção jurisdicional, atribuindo-a a um organismo vocacionado para a avaliação da condição económica dos cidadãos, além de, por essa via, contribuir para descongestionar o sistema de justiça. Assim, não pode o Tribunal, oficiosamente, proferir decisão a respeito da valia da decisão proferida pela Segurança Social, retirando-lhe efeito, por carecer de competência para tal, estando a sua intervenção, nesse campo, condicionada à eventual impugnação que da mesma tenha sido interposta, nos termos legais. (em sentido idêntico se pronunciaram os Ac. da RG de 10-03-2011 – Proc. 39/09.0PABRG-A.G1, e da RC de 09-04-2008 – Proc. 134/06.8GASRE-A.C1, e de 23-05-2012 - Proc. 108/11.7GTAVR-A.C1, in www.dgsi.pt). Ora, não tendo, no caso presente, havido impugnação da decisão proferida pela Segurança Social, estava vedado ao Tribunal a quo tomar posição relativamente à mesma, ao ponto de a considerar inoperante nos presentes autos e neles não produzir qualquer efeito útil, assim decidindo sobre a valia daquela decisão. Tem, pois, de proceder o recurso. III Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, com a consequente revogação do despacho recorrido, devendo considerar-se a decisão da Segurança Social operante e de efeito útil nos autos, nos termos legais. Sem custas. * Notifique.* Porto, 29-11-2023. Raul Cordeiro Elsa Paixão Carla Oliveira |