Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2073/20.0T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
DANO BIOLÓGICO
Nº do Documento: RP202403212073/20.0T8VFR.P1
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIAL
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os regimes de indemnização por acidente de viação (regras gerais) e por acidentes de trabalho (regras específicas) são complementares entre si e o lesado pode optar pela indemnização que lhe for mais favorável, o que não pode é cumular ambas as indemnizações pelo mesmo dano.
II - As lesões no corpo e na saúde da vítima de acidente geram sempre um dano biológico, uma afectação ou perturbação da integridade psicofísica da vítima que se repercute no desempenho das tarefas diárias da sua vida pessoal e profissional; e podem ainda desencadear a perda genérica de potencialidades funcionais do lesado, a redução efectiva das suas capacidades para angariar rendimentos do trabalho, caso em que o dano tem, também, repercussão patrimonial.
III - A circunstância de a Lei n.º 98/2009 impor à seguradora de acidentes de trabalho que proporcione ao lesado determinadas prestações, não exclui nem prejudica a responsabilidade do autor do evento lesivo pela reparação da totalidade dos danos sofridos pelo lesado, por todas as prestações necessárias ao ressarcimento integral dos danos, incluindo os danos futuros.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:2073.20.0T8VFR.P1
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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., instaurou acção judicial contra A..., Compania de Seguros y Reaseguros, S.A. - Sucursal em Portugal, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o n.º único de matricula e de pessoa colectiva ..., com sede em Lisboa, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €1.621.061, acrescida de juros legais de mora a partir da citação, bem como o que se liquidar em ampliação do pedido ou execução de sentença.
Para o efeito alega que em 20-03-2016, quando conduzia o veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-..-LZ, sofreu um acidente de viação causado exclusivamente pelo condutor do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-MR cuja responsabilidade emergente dessa circulação estava abrangida por seguro de responsabilidade civil celebrado com a ré, em resultado do qual sofreu extensos danos corporais dos quais pretende ser ressarcido.
A ré contestou, assumindo a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos, mas impugnando as indemnizações que o autor reclama, alegando que o acidente sido simultaneamente de viação e de trabalho, estando a seguradora laboral a pagar ao autor uma pensão, que já pagou ao autor €5.212,00 e a seguradora laboral €21.638,15 pelos períodos de incapacidade temporária, que a seguradora laboral está a pagar uma pensão para indemnizar a perda da capacidade de ganho não podendo o autor exigir outra indemnização com base no mesmo dano, que algumas das prestações exigidas pelo autor são indemnizadas pela seguradora laboral.
Na oportunidade requereu a intervenção principal da B...- Companhia de Seguros, S.A., matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Porto sob o n.º único de matrícula e pessoa colectiva ..., com sede no Porto, intervenção que foi admitida.
A interveniente deduziu articulado autónomo, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a €122.366,02 que já teve de suportar para indemnizar o autor dos danos sofridos, bem como a quantia que se vier a liquidar correspondente ao valor que a interveniente vier a suportar para ressarcir o autor, montante que foi depois objecto de uma ampliação.
Realizado julgamento, foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e a ré condenada a pagar:
I- ao autor as seguintes quantias: €4.478,45, a título de perdas salariais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia seguinte ao da citação até integral pagamento; €261.496,21, a título de danos patrimoniais futuros, incluindo dano biológico, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia seguinte ao da prolação da presente sentença até integral pagamento; €160.000, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia seguinte ao da prolação da sentença até integral pagamento; €139.655,00, a título de despesas futuras com a substituição de prótese, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia seguinte ao da prolação da presente sentença até integral pagamento; €590,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia seguinte ao da citação até integral pagamento; as quantias que se vierem a liquidar a título de despesas futuras com a revisão da prótese, medicamentos, tratamentos de fisioterapia, consultas da dor, medicina física, reabilitação e médico de família, acompanhamento psiquiátrico e/ou psicológico.
II- à interveniente €158.268,90, acrescida de juros de mora, à taxa legal, sobre o montante de €122.366,02 desde o dia seguinte ao da notificação do pedido inicial de reembolso e sobre o montante de €35.902,88 desde o dia seguinte ao da notificação da ampliação do pedido, até integral pagamento.
Do assim decidido, a ré interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1- […] 2- […] 3- Salvo o devido respeito (que é muito), é contra os referidos montantes indemnizatórios arbitrados na douta sentença recorrida (com excepção do primeiro e do último) que a ora recorrente agora se insurge, nomeadamente, por considerar que os montantes indemnizatórios atribuídos ao autor afiguram-se manifestamente desajustados, por excessivos, atenta a factualidade julgada provada (e não provada) nos autos e, bem assim, os critérios jurisprudenciais actualmente seguidos pela nossa jurisprudência, encontrando-se, nessa medida, incorrectamente interpretadas e/ou aplicadas as normas legais previstas nos artigos 494.º, 496.º, n.ºs 1 e 4, 562.º, 563.º e 566.º, n.º 3 do Código Civil (CC).
4- Primeiramente, a recorrente não poderá, de forma alguma, aceitar o montante de € 300.000,00 (reduzido para €261.496,21 após a dedução dos pagamentos realizados pela congénere de acidentes de trabalho a título de pensões) arbitrado ao autor, ora recorrido, na douta sentença recorrida, por referência à sua incapacidade de 41 pontos.
5- Desde logo porque, no caso em apreço nos autos, não resultou provado que o autor, ora recorrido, esteja incapaz para toda e qualquer profissão. De facto, as sequelas do autor, ora recorrido, são impeditivas do exercício da sua actividade profissional, assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional, contudo o autor não se encontra totalmente impossibilitado de desempenhar outra função remunerada.
6- O que se provou foi que o recorrido passou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 41 pontos, com incapacidade permanente absoluta para a sua profissão habitual de motorista de pesados. Porém, tal não implica, imediata e directamente, uma efectiva diminuição do nível de rendimentos profissionais auferidos pelo recorrido.
7- O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de que o autor ficou a padecer não pode ser entendido como uma incapacidade laboral total e permanente para toda e qualquer profissão. Efectivamente, tal incapacidade não gera necessariamente danos patrimoniais futuros. Isto vale por dizer que, não existe qualquer certeza quanto à futura ocorrência de danos patrimoniais futuros na esfera jurídica do autor em consequência dos danos em causa nos autos.
8- Atento o exposto, entende a ora recorrente que o douto tribunal a quo não se encontrava em condições (face à factualidade considerada como provada) de atribuir ao autor, ora recorrido, uma indemnização a título de dano patrimonial futuro, porquanto, inexistem lucros cessantes, razões que levam a recorrente a discordar da atribuição ao autor de uma indemnização a título de danos patrimoniais futuros, a qual, a manter-se, sempre implicará uma violação ao disposto nos artigos 564.º, n.º 2 e 566.º, n.º 3 do CC, o que desde já se alega para todos os devidos efeitos.
9- Ora, por não se repercutir directamente na esfera patrimonial do lesado, mas antes na sua saúde, o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é um dano não patrimonial que deve ser compensado, conforme dispõe o artigo 496.º do CC, desde que tenha gravidade suficiente para merecer a tutela do direito.
10- De facto, nos casos em que não há imediata perda de capacidade de ganho, não existe qualquer razão para distinguir os lesados no valor base a atender, deverá usar-se, no cálculo do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica/dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade, já que só se justificará atender aos rendimentos quando estes sofram uma diminuição efectiva por causa da incapacidade, porque só aí é que o tratamento desigual dos lesados terá fundamento.
11- Como deflui do regime vertido nos artigos 564.º e 566.º, n.º 3, do CC, o princípio geral a presidir à tarefa de determinação desse quantum deve assentar em critérios de equidade, sendo tal noção absolutamente indispensável para que a justiça do caso concreto funcione, devendo, assim, ser rejeitados puros critérios de legalidade estrita.
12- No presente caso, desconhecemos quais os critérios tidos em conta pelo tribunal a quo, uma vez que a sentença ora recorrida nada refere a este respeito. De facto, o tribunal a quo, com o devido respeito, limitou-se a mencionar acórdãos para, no fim, concluir, sem mais, pela atribuição de uma indemnização no valor de € 300.000,00, à qual deduziu o valor de € 38.503,79 já pago ao autor pela congénere de acidentes de trabalho. Contudo, não vem referido na douta sentença ora recorrida qual foi a base de raciocínio do tribunal a quo para chegar ao tão elevado valor de €300.000,00!
13- É certo que o tribunal a quo mencionou diversos acórdãos antes de decidir sobre o valor a arbitrar ao recorrido, porém, tomou em consideração situações que não se assemelham à dos autos. Sendo certo que, nada referiu de relevante quanto ao cálculo efectuado.
14- De facto, o valor indemnizatório encontrado pelo tribunal a quo não foi, no entendimento da recorrente, justo e equitativo, devendo o mesmo ser alvo de correcção com base na equidade (considerando-se também que o capital é disponibilizado de forma antecipada e imediata).
15- Realce-se que o recorrido, ainda que não possa exercer a actividade profissional que anteriormente exercia, poderá trabalhar, ainda que com esforços acrescidos. Porém, tal nunca poderá ser valorado de forma equivalente a uma hipotética perda de rendimento.
16- De facto, no caso em apreço nos autos, uma vez que não ocorreram efectivas perdas de rendimentos do autor, e atendendo ao valor da incapacidade, os valores exactos dos alegados danos patrimoniais futuros mostram-se insusceptíveis de averiguação, o que é o mesmo que dizer que são indetermináveis, pelo que o tribunal deverá julgar equitativamente o valor a atribuir a título de indemnização, dentro dos limites que tiver por provados, nos termos do artigo 566.º do CC.
17- De todo o modo, certo é que, com todo o respeito e consideração, a análise do montante apurado, com recurso à figura da equidade, nos termos em que é efectuado pelo tribunal a quo, é meramente formal, tudo se passando, na ausência de qualquer juízo de equidade.
18- De facto, é entendimento da recorrente que o valor arbitrado não se harmoniza com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência actualista, são seguidos em situações análogas ou equiparáveis.
19- Vejam-se os seguintes acórdãos sobre a mesma matéria, todos disponíveis em www.dgsi.pt: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/07/2017 (relatora Fernanda Isabel Pereira – Revista n.º 344/12.9TBBAO.P1.S1 – 7.ª Secção); Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/02/2017 (relatora Fernanda Isabel Pereira – Revista n.º 118/13.0TBSTR.E1.S1 – 7.ª Secção); Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/03/2023 (relator Vítor Amaral – Proc. 3166/19.2T8VIS.C1).
20- Ora, analisados os referidos acórdãos, a recorrente não poderá conformar-se com o valor arbitrário atribuído ao recorrido a título de alegada perda de capacidade de ganho.
21- Relembramos que o autor, ora recorrido, apenas se encontra incapaz para o exercício da sua profissão e/ou de qualquer outra dentro da mesma área de formação da recorrida, podendo exercer outra função remunerada.
22- Na verdade, a admitir-se a atribuição de uma indemnização nos moldes em que o fez o tribunal a quo estar-se-á a transformar a atribuição de uma compensação numa forma de enriquecimento do lesado, em clara violação do que vem disposto no artigo 566.º, n.º 3 do CC, extravasando, em larga medida, os juízos de equidade por que se devem nortear os tribunais na fixação deste tipo de indemnizações.
23- Por fim, mas não menos relevante, refira-se ainda que, estamos perante uma situação de concurso de responsabilidades, uma vez que o acidente de viação consubstanciou simultaneamente acidente de trabalho, havendo deste modo uma assunção de responsabilidades antecipada por parte da congénere, na qualidade de seguradora de acidentes de trabalho.
24- Assim, para calcular a indemnização correspondente, o tribunal a quo deveria ter em conta os valores pagos pela congénere de acidentes de trabalho, por forma a que o autor, ora recorrido, não seja duplamente indemnizado pelo mesmo dano, enriquecendo à custa do evento lesivo. De facto, o recorrido não pode receber duas indemnizações pelo mesmo dano patrimonial.
25- As indemnizações por acidente que seja simultaneamente de viação e de trabalho não são cumuláveis, mas sim complementares até ao ressarcimento total do prejuízo sofrido. O que significa que por via da complementaridade das prestações deverá ser deduzido ao valor fixado pelo douto tribunal a quo o valor que se encontra a ser pago pela congénere de acidentes de trabalho referente à incapacidade laboral do recorrido.
26- Pelas razões expostas, não pode a ora recorrente conformar-se com o valor arbitrado na douta sentença recorrida, relativamente ao montante devido ao lesado a título de indemnização por danos patrimoniais peticionados, uma vez que o recorrido já se encontra ressarcido do dano decorrente da sua incapacidade laboral pela congénere de acidentes de trabalho.
27- Caso assim não se entenda, sempre se dirá que, o tribunal a quo não teve em linha de conta que a Interveniente B... – Companhia de Seguros, S.A. foi condenada numa pensão anual e vitalícia. Quer isto dizer que, ao valor já pago ao autor pela Interveniente B..., cujo reembolso veio requerer, o tribunal a quo sempre deveria ter em conta que a Interveniente B... vai continuar a liquidar ao autor a pensão anual e vitalícia.
28- Nesta medida, andou mal o tribunal a quo andou mal, porquanto, não teve em linha de conta os montantes que a Interveniente B... irá pagar (na qual foi condenada no âmbito do processo especial emergente de acidente de trabalho) ao autor, até ao fim da vida deste.
29- Com efeito, sempre deverá ser calculado / provisão matemática o valor que o autor irá receber até ao final da vida pela congénere, a título de pensão anual e vitalícia, por forma a que tal provisão seja deduzida ao valor indemnizatório.
30- Posto isto, e ressalvando novamente o devido respeito, a douta sentença recorrida extrapola o âmbito de aplicação das normas constantes dos artigos 562.º, 564.º, e 566.º do CC, na medida em que aplica as referidas normas, indiscriminadamente, olvidando a quantia indemnizatória recebida e a receber pelo recorrido.
31- Nesta medida, e ressalvando novamente o devido respeito, a douta sentença recorrida extrapola o âmbito de aplicação das normas constantes dos artigos 562.º, 564.º, e 566.º do CC, na medida em que aplica as referidas normas, indiscriminadamente, olvidando a quantia indemnizatória recebida pelo recorrido em sede de processo de acidente de trabalho.
32- Por qualquer uma das razões expostas, entende a recorrente que a decisão proferida na douta sentença recorrida a título de indemnização pelos alegados danos patrimoniais futuros deve ser revogada e substituída por decisão que quantifique o dano para compensação do Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de que o autor ficou a padecer em montante não superior a € 100.000,00 o que desde já se alega e requer para os devidos e legais efeitos.
33- A ora recorrente também não poderá concordar com o montante de € 160.000,00, arbitrado pelo tribunal a quo a título de danos não patrimoniais.
34- De facto, pese embora o tribunal a quo mencione acórdãos nos quais foram fixadas quantias superiores a € 100.000,00, a verdade é que, todos eles se reportam a situações bem mais gravosas do que a do aqui autor, ora recorrido.
35- A recorrente não rejeita que o autor tenha sofrido danos não patrimoniais que, atenta a sua gravidade, são merecedores da tutela do Direito, ao abrigo do artigo 496.º, n.º 1 do CC.
36- No entanto, no cálculo do valor indemnizatório por danos resultantes de acidente de viação intervêm, sobretudo, critérios de equidade – mas fundados nas circunstâncias do caso concreto –, de proporcionalidade – em função da gravidade do dano –, de prudência, de senso prático, e de ponderação das realidades da vida.
37- A indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista, não obedecendo o seu cálculo a uma qualquer fórmula matemática, podendo por isso, variar de acordo com a sensibilidade do julgador ao caso da vida que as partes lhe apresentam.
38- Para o cômputo da indemnização, além dos danos sofridos pelo autor, sempre terá de ser analisado “o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso...”, temperado por um juízo de equidade (artigos 494.º e 496.º/3 do CC).
39- Estando em causa o critério de equidade, a indemnização arbitrada pelo tribunal a quo, deverá ser reduzida, porquanto afronta manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida.
40- Na fixação da indemnização pelo dano não patrimonial resultante de acidente de viação, o indispensável recurso à equidade, não impede, antes aconselha, que se considere, como termo de comparação, valores pecuniários encontrados para o mesmo efeito noutras decisões judicias relativas a casos semelhantes.
41- De facto, julgar segundo a equidade significa que o tribunal deve atender à necessidade de adequada compensação da vítima sem, com isso, violar o princípio constitucional e legalmente acolhido da proporcionalidade, à luz do qual a restrição, indemnização ou sanção operada deve ser a estritamente necessária (e apenas essa) à salvaguarda dos direitos e/ou interesses ofendidos.
42- Ora, in casu, perante a factualidade considerada como provada, julgou a 1.ª Instância adequada uma indemnização de € 160.000,00, a título de danos não patrimoniais, com a qual a recorrente não se poderá de todo conformar.
43- Efectivamente, tal indemnização mostra-se manifestamente excessiva, no confronto com outros casos análogos e dos quais constituem exemplo (entre muitos outros encontrados): i) Acórdão do tribunal da Relação de Guimarães de 07/09/2020, no âmbito do proc. 5466/15.1T8GMR.G1.S1 (Cons. José Rainho); ii) Acórdão do tribunal da Relação do Porto de 11/11/2014, no âmbito do proc. 2372/10.0TBPVZ.P1; iii) Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 21/06/2022, no âmbito do proc. 1991/15.2T8PTM.E1.S1 (Cons. António Magalhães); iv) Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 21/06/2022, no âmbito do proc. 1991/15.2T8PTM.E1.S1 (referenciado na douta sentença recorrida); v) Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 14/01/2021, no âmbito do proc. 644/12.8TBCTX.L1.S1 (igualmente mencionado na douta sentença recorrida); vi) Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 14/03/2023, no âmbito do proc. 3166/19.2T8VIS.C1;
44- Com efeito, conforme facilmente se constata pela análise dos acórdãos supra-referidos, os Tribunais Superiores em situações idênticas à do autor, ora recorrido, não arbitram valores superiores a € 100.000,00 a título de danos não patrimoniais. De facto, e salvo o devido respeito, que é muito, indemnizações a título de danos não patrimoniais superiores a € 100.000,00 são, normalmente, reservadas para casos de maior gravidade, designadamente, envolvendo paraplegia e tetraplegia.
45- Tanto assim é que, os acórdãos mencionados na sentença proferida que arbitram indemnizações superiores a € 100.000,00 a título de danos não patrimoniais (de que são exemplo: Acórdão do tribunal da Relação do Porto de 08/05/2023, proc. n.º 21244/17.0T8PRT.P1; Acórdão do tribunal da Relação do Porto de 09/12/2020, proc. n.º 966/19.7T8PNF.P1; Acórdão do tribunal da Relação do Porto de 18/04/2017, proc. n.º 461/13.8TBPVZ.P1; Acórdão do tribunal da Relação de Évora de 28/02/2023, proc. n.º 502/17.0PAABT.E1) mencionam, todo eles, situações em que os lesados ficaram com a sua capacidade de locomoção totalmente afectada, alguns deles acamados 24 horas sobre 24 horas.
46- Em face do exposto, a compensação a atribuir ao autor por danos não patrimoniais terá de ser consideravelmente menor, porque menor é o dano do autor comparativamente com os casos anteriormente identificados.
47- Pelo exposto, deverá a quantia fixada para indemnização por danos não patrimoniais do autor ser corrigida, devendo a mesma ser reduzida para um valor mais justo e equitativo, o qual não deverá exceder o montante de € 60.000,00, sob pena de violação do disposto nos artigos 494.º e 496.º, n.ºs 1 e 4 do CC.
48- Entendeu a douta sentença recorrida condenar a ora recorrente no montante de € 139.655,00, a título de despesas com a substituição da prótese.
49- Porém, importa referir que, nada se provou quanto às despesas decorrentes da substituição da prótese. Efectivamente, inexiste factualidade provada relativamente ao valor da prótese.
50- Com o devido respeito, a ora recorrente entende que não resultou provada qualquer matéria de facto capaz de fundamentar a condenação da ora recorrente a pagar o montante supra-referido. Tanto mais que, o tribunal a quo arbitrou tal valor com base em alegados critérios de equidade.
51- Contudo, não poderá a ora recorrente concordar com tal fundamentação. Desde logo porque, não tendo resultado provado um efectivo dano patrimonial decorrente da necessidade de substituição das próteses, sempre deveria o douto tribunal a quo ter relegado tal indemnização para liquidação de sentença e não decidir com base em alegados critérios de equidade.
52- A prova cabe às partes e, in casu, o autor, ora recorrido, não cumpriu com o seu ónus probatório, na medida em que não demonstrou qual o valor que irá, necessariamente, despender com a substituição das próteses.
53- Mais, nada se provou, quanto à regularidade e periocidade da necessidade de substituição das próteses.
54- Pelo que, com o devido respeito, entende a ora recorrente que o valor referido não é devido, pelo que, nenhum montante deverá, por agora, ser atribuído ao ora recorrido a este título, sob pena de se proferir uma decisão manifestamente injusta e sem qualquer consideração pela matéria de facto considerada como provada. Sem prescindir do exposto, importa, no entanto, esclarecer o seguinte,
55- Entendeu a douta sentença recorrida condenar ainda a ora recorrente a pagar “a quantia que se vier a liquidar a título de despesas futuras com medicamentos, tratamentos de fisioterapia e consultas da Dor, de Medicina Física e Reabilitação e pelo médico de família, bem como com acompanhamento psiquiátrico e/ou psicológico”.
56- Ademais, foi ainda a recorrente condenada a pagar o montante que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença relativamente à revisão da prótese.
57- Sucede que, não podemos olvidar que o presente acidente de viação foi também objecto de decisão no âmbito de um processo de acidente de trabalho, no qual foi proferida sentença condenatória da congénere B... – Companhia de Seguros, S.A., a qual se encontra junta a fls. __ dos presentes autos.
58- Ora, a Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do artigo 284.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro.
59- Estando em causa um acidente de trabalho, a reparação do mesmo deve efectuar-se nos termos previstos na Lei de Acidentes de Trabalho e pelo responsável por essa reparação.
60- Face ao supra exposto, a sentença proferida em primeira instância transferiu, erradamente, para a ora recorrente deveres e obrigações que são do foro de acidentes de trabalho, nos termos acima descritos.
61- Nessa medida, ficará sempre a cargo da seguradora de acidentes de trabalho os medicamentos, tratamentos de fisioterapia, consultas da Dor, de Medicina Física e Reabilitação e do médico de família, bem como o acompanhamento psiquiátrico e/ou psicológico do recorrido.
62- De igual modo, também ficará a cargo da seguradora de acidentes de trabalho todas as despesas relacionadas com a prótese do autor, tanto as decorrentes da sua revisão, como as decorrentes da sua substituição.
63- Face ao que antecede, salvo melhor entendimento, deverá a recorrente ser absolvida de pagar ao autor, ora recorrido, as despesas médicas e medicamentosas futuras, bem como as despesas decorrentes da revisão e substituição da prótese. Desde logo porque, não recai sobre a recorrente a obrigação de liquidar tais despesas, porquanto, as mesmas são da responsabilidade da congénere de acidentes de trabalho.
64- Nessa medida, salvo o devido respeito por melhor e douta opinião, ao decidir do modo como decidiu, o douto tribunal a quo violou o âmbito de aplicação da norma consagrada no artigo 564.º do CC, e ainda as normas previstas nos artigos 23.º, 25.º e 70.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, na medida em que não impende sobre a recorrente a obrigação de indemnizar / reparar as despesas médicas, medicamentosas e decorrentes da revisão / substituição da prótese, sendo antes uma obrigação da seguradora de acidentes de trabalho.
65- Assim, entende a ora recorrente que deverá ser absolvida dos pedidos formulados pelo autor a título de despesas médicas futuras e, bem assim, despesas com a revisão e a substituição da prótese, sob pena de, a manter-se a sentença recorrida neste segmento, manter-se a violação do disposto no artigo 564.º do CC, e ainda do disposto nos artigos 23.º, 25º e 70.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.
66- Atento o exposto, salvo melhor opinião, fez a douta sentença incorrecta aplicação do disposto nos artigos 494.º, 496.º, n.ºs 1 e 4, 562.º, 563.º e 566.º, n.º 3 do CC, assim como, dos artigos 23.º, 25.º e 70.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, devendo a mesma ser alterada nos termos supra requeridos, quer quanto aos montantes indemnizatórios, quer quanto às quantias relegadas para incidente de liquidação de sentença.
Nessa medida, por tudo quanto se encontra exposto, e ressalvando novamente o devido respeito, que é muito, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, sendo a douta sentença proferida nos autos revogada e alterada por outra com os montantes indemnizatórios reduzidos nos termos supra explanados, só assim se fazendo Justiça.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Que indemnização fixar ao autor para reparação do dano biológico/perda da capacidade aquisitiva.
ii. Que indemnização fixar ao autor para reparação do dano não patrimonial.
iii. Se a ré foi bem condenada a pagar o custo da substituição da prótese e as despesas futuras relacionadas com o tratamento das sequelas das lesões corporais.

III. Fundamentação de facto:
Encontram-se julgados provados em definitivo os seguintes factos:
1. No dia 20 de Março de 2016, pelas 18h00m, no Itinerário Complementar n.º ... (IC...), ao Km 264,830, na área da freguesia e concelho de Oliveira de Azeméis, nesta comarca, ocorreu um sinistro, no qual foram intervenientes: - o veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-..-LZ, conduzido pelo A.; o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-MR, conduzido por BB. e, ainda, - um terceiro veículo, também ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-QN, conduzido por CC.
2. O IC... configura, no local do acidente, uma curva aberta, que se desenha para o lado esquerdo, atento o sentido ... – ....
3. O seu pavimento é de alcatrão e achava-se em bom estado de conservação.
4. O seu piso encontrava-se molhado, devido à água da chuva que tinha caído.
5. E, a respectiva faixa de rodagem possui ali três vias de circulação, duas das quais afectas ao sentido de trânsito ... - ... e uma terceira destinada ao sentido de trânsito inverso.
6. Ainda naquele local, as vias de circulação destinadas ao sentido ... - ... estão divididas da via destinada ao sentido oposto através de duas linhas longitudinais contínuas, pintadas no pavimento com tinta de cor branca e bem visíveis.
7. Nas descritas circunstâncias de tempo e local, o veículo ..-..-LZ seguia pelo IC..., no sentido ... - ....
8. O A. prestava atenção ao trânsito e à condução.
9. Ia animado de velocidade moderada, inferior a 60 km/hora.
10. E circulava pela faixa de rodagem destinada ao indicado sentido ...-..., ou seja, pela sua “mão de trânsito”.
11. Entretanto, também pelo IC..., mas no sentido ...-..., transitava o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-MR, conduzido por BB.
12. A dada altura, o ..-..-MR entrou em despiste e começou a circular em ziguezague.
13. Em marcha totalmente descontrolada, invadiu a via de trânsito mais à esquerda, destinada ao sentido de marcha Porto-Lisboa.
14. Nesta via e, portanto, totalmente “fora de mão”, foi embater com a frente esquerda do ..-..-MR na frente esquerda do ..-..-LZ.
15. O A., ao aperceber-se da marcha descontrolada do ..-..-MR, travou e aproximou- se o máximo possível da berma do seu lado direito.
16. Mas não conseguiu evitar o embate, o qual se deu em plena faixa de rodagem destinada ao sentido ...-....
17. Após este embate e por virtude dele, o veículo ..-..-LZ foi embater nas guardas metálicas que marginam a via, do lado direito, considerando o sentido ...-....
18. Posto isso, foi ainda embatido, na sua parte traseira, pelo veículo ..-..-QN, que seguia atrás de si e no mesmo sentido.
19. O sinistro ocorreu em virtude do condutor do MR invadir a parte da faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito inverso àquele em que seguia.
20. À data do sinistro, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula ..-..-MR achava-se transferida para a A..., S.A., ora R., através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ....
21. A R. sempre assumiu a responsabilidade pelo acidente de viação em apreço, reconhecendo, de forma expressa e por escrito, a culpa exclusiva do condutor do ..- ..-MR na sua produção.
22. O A., logo após o embate, ficou encarcerado na viatura que conduzia.
23. Após ter sido desencarcerado, foi assistido no local do acidente pelos serviços do INEM, que lhe prestaram os primeiros socorros, o estabilizaram, colocaram em plano duro e com colar cervical e o levaram ao Hospital ..., em Santa Maria da Feira.
24. Deu entrada nos serviços de urgência desta unidade hospitalar, politraumatizado e com queixas dolorosas.
25. Aí, após realização dos necessários exames, incluindo vários RX, foram diagnosticadas as seguintes lesões: - fractura exposta de grau II dos ossos da perna esquerda; - fractura luxação da anca esquerda; - fractura do acetábulo esquerdo; - fractura da rótula esquerda; - fractura luxação de Lisfranc à esquerda.
26. Nesse hospital, foi levado para o bloco operatório, onde foi submetido a intervenção cirúrgica no contexto de urgência.
27. Nesta intervenção cirúrgica, foram feitas: - redução incruenta na anca esquerda; - OOS com cerclage em efeito hauban da rótula esquerda; - fixação percutânea com fios de K da luxação de Lisfranc; - correcção de esfacelos.
28. No decorrer dessa cirurgia, o A. teve de ser sujeito a várias transfusões de sangue.
29. Permaneceu internado no Hospital ... até 30/03/2016.
30. Nesta última data, o A. foi transferido para o Hospital 1..., por ser o da sua residência, onde se manteve internado.
31. Após cerca de duas semanas de internamento no Hospital 1..., o A. foi transferido para o Hospital 2..., na cidade do Porto, onde ficou internado.
32. O processo de cicatrização das feridas e esfacelos sofridos revelou-se muito lento, complicado e difícil.
33. De tal modo que o A. acabou por ter de ficar internado durante cerca de dois anos.
34. Durante o internamento no Hospital 2..., o A. foi sujeito a um total de seis intervenções cirúrgicas, todas sob anestesia geral, a saber:
- Em 26/08/2016 – osteossíntese da fractura diafisária da tíbia, a “céu fechado”.
- Em 10/03/2017 – osteossíntese da tíbia e perónio.
- Em 30/06/2017 – tratamento de pseudartrose da diáfise da tíbia.
- Em 17/07/2017 – desbridamento cirúrgico de ulceração até 3% da superfície corporal.
- Em 08/03/2018 – tratamento cirúrgico de unha encravada. E
- Em 03/05/2018, o A. foi submetido a intervenção cirúrgica em que foi feita a amputação do membro inferior pelo respectivo terço médio.
35. No Hospital 2... foi ainda submetido a cirurgia para extracção de dois dentes que haviam sido fracturados no acidente, e colocação de dois implantes dentários.
36. Durante o internamento no Hospital 2..., o A. realizou múltiplas sessões de fisioterapia.
37. E após a cirurgia de amputação do membro inferior esquerdo iniciou tratamento de proteízação.
38. Foi-lhe colocada uma prótese no membro inferior esquerdo.
39. Teve alta administrativa para o domicílio, não curado e medicado, em Julho de 2018.
40. Após a alta hospitalar, manteve a frequência da consulta externa de ortopedia no Hospital 2....
41. Em 09/04/2019, as lesões sofridas pelo A. atingiram a cura definitiva e a consolidação médico-legal.
42. Porém, em 14 de Novembro de 2019, o A. foi submetido, no Hospital 2..., a uma nova intervenção cirúrgica ao coto da perna esquerda.
43. E, em 26/08/2021, foi intervencionada a regularização do coto de amputação MIEsq, com osteotomia do perónio, sem intercorrências, com alta no dia seguinte.
44. Actualmente, em virtude do sinistro, o autor apresenta as seguintes queixas:
- A nível funcional: - postura, deslocamentos e transferências: para se deslocar, necessita de uma ou duas canadianas ou de cadeira de rodas; - cognição e afectividade: imensos pesadelos e choro fácil; - sexualidade e procriação: dificuldade em manter erecção e limitação nos movimentos sexuais por dificuldade em estar de pé e em movimentar-se; - fenómenos dolorosos: dor fantasma no membro inferior esquerdo, sobretudo à noite, fazendo medicação prescrita pelos médicos do Hospital 2... em SOS para alívio de tais dores; lombalgia ocasional, que surge com os esforços, na anca esquerda, sobretudo quando força muito a perna; - outras queixas: hipersensibilidade do coto amputado associada à intervenção cirúrgica mais recente.
- A nível situacional: - actos da via diária: tem uma pessoa amiga que o ajuda nas tarefas domésticas (limpeza da casa, tratamento da roupa e confecção da comida); recorre a terceiros para fazer compras. tem medo de conduzir; tem necessidade de tomar banho sentado na banheira; - vida afectiva, social e familiar: jogava futebol, actividade que não consegue fazer; não tem vontade de conviver com familiares; - vida profissional ou de formação: nunca mais trabalhou.
45. Actualmente, o autor vive sozinho, num apartamento, situado no 1.º andar, com elevador.
46. Actualmente, em virtude do sinistro, o autor apresenta as seguintes sequelas:
- Membro inferior esquerdo: na face anterior do terço distal da coxa, prolongando-se até ao joelho: cicatriz ligeiramente hiperpigmentada, com 11cmx1cm de maior eixo vertical.
- Cicatriz em torno do coto de amputação, circular, nacarada, com ligeira depressão e aderência aos planos profundos.
- Défice de 20º no movimento de extensão do joelho, com estalidos aquando destes movimentos. flexão do joelho completa. Com prótese elástica, a qual coloca e retira de forma eficaz.
- Hipersensibilidade ao toque no coto amputado.
- Espasmos musculares.
- Amputação do membro inferior esquerdo abaixo do joelho.
47. Actualmente em consequência do sinistro, o autor é portador de perturbação persistente do humor.
48. O A., por virtude da amputação que sofreu, para se locomover, tem de usar, no dia-a-dia, uma prótese.
49. Para além disso, tem de se apoiar numa canadiana e, por vezes, em duas canadianas.
50. E muitas vezes também, tem de se deslocar em cadeira de rodas.
51. Sente intensas dores permanentes no membro inferior esquerdo (dor fantasma).
52. Sofre de dores frequentes na anca esquerda e na coluna lombar (lombalgias).
53. Não consegue correr, saltar, nem sequer andar depressa.
54. Aliás, por virtude de dificuldades de adaptação à prótese e quadro doloroso constante no coto e na perna, tem dificuldades na locomoção.
55. Em razão das mencionadas dores, tem dificuldades em dormir e descansar.
56. Tem dificuldades, por virtude das limitações físicas e das mesmas dores, na actividade sexual.
57. O autor apresenta limitação da mobilidade e dores que comprometem as actividades que requeiram funções neuro-músculo-esqueléticas de maior exigência física, tais como transpor degraus, andar longas distâncias, em superfícies diferentes (sobre relva, cascalho ou gravilha), inclinadas, irregulares e com obstáculos.
58. O autor somente consegue conduzir viatura automóvel especificamente adaptada às suas alegadas condições físicas, com caixa de velocidades automática.
59. Desenvolveu um quadro depressivo, reactivo às dores, aos tratamentos e à incapacidade funcional, associado a ideação suicida passiva e choro fácil.
60. Vê o futuro com apreensão, face às grandes limitações físicas e à manutenção das dores e perante as implicações negativas que o seu estado de saúde tem na sua vida pessoal, familiar e social.
61. Os serviços clínicos da B... - Companhia de Seguros, S.A., atribuíram ao A., em sede de acidente de trabalho, uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 60,4%, correspondente a uma Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual.
62. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 9 de Abril de 2019.
63. Em consequência do sinistro e das lesões, o autor teve um défice funcional temporário total fixável num período de 1116 dias (entre 20/03/2016 e 09/04/2019).
64. Teve um período de repercussão temporária na actividade profissional fixável num período total de 1116 dias (entre 20/03/2016 e 09/04/2019).
65. No âmbito da acção laboral, em virtude do sinistro, foi fixada ao autor uma IPP de 97,20%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual de motorista de pesados.
66. O quantum doloris sofrido pelo autor é fixável no grau 6 numa escala de sete graus de gravidade crescente.
67. O dano estético permanente sofrido pelo autor é fixável no grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente.
68. A repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer é fixável no grau 4 numa escala de sete graus de gravidade crescente.
69. A repercussão permanente na actividade sexual é fixável no grau 4 numa escala de sete graus de gravidade crescente.
70. O autor ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 41 pontos.
71. As sequelas são impeditivas do exercício da sua actividade profissional, bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.
72. O autor tem o 4.º ano de escolaridade.
73. Através do desenvolvimento de um plano de reintegração profissional (que apoie a reorganização do seu projecto profissional), o autor poderá realizar outras actividades profissionais cujo conteúdo funcional envolva a actividade dos membros superiores, mas sem grande exigência física, como seja, porteiro de edifícios, recepcionista, estafeta, motorista de automóveis ligeiros (com caixa automática) e, caso haja desenvolvimento de competências técnicas, auxiliar de apoio administrativo.
74. O autor necessita de ajudas medicamentosas, como, por exemplo, analgésicos, antiespasmódicos ou antiepilépticos, definidas em Consulta da Dor e Consulta de Medicina Física e Reabilitação e pelo médico de família.
75. O autor necessita de acompanhamento psiquiátrico e/ou psicológico, com eventual necessidade de medicação e/ou tratamentos prescritos.
76. O autor necessita de tratamentos médicos regulares, designadamente fisioterapia e acompanhamento clínico regular em consulta da Dor e consulta de Medicina Física e Reabilitação, para prescrição das próteses/substituição dos seus componentes e de tratamentos periódicos, tendo como objectivo melhorar a sintomatologia álgica e a capacidade de marcha com a prótese.
77. O autor necessita das seguintes ajudas técnicas e das seguintes adaptações do domicílio e do veículo:
- Adaptação do veículo automóvel, para caixa de velocidades automática.
- Prancha para banheira com barra de apoio, cujo custo ascende a € 30,00 + Iva, a qual deverá ser substituída de 5 em 5 anos.
- Tapete anti deslizante para a banheira, cujo custo ascende a € 20,00 + Iva, o qual deverá ser substituído de 5 em 5 anos.
- Prótese transtibial endosquelética com encaixe em carbono/acrílico, interface com sistema de suspensão por pino, perna tubular leve, pé em carbono com retorno de energia e revestimento cosmético, cujo custo oscila entre € 6.500,00/€ 9.000,00 + Iva, a qual necessitará de ser substituída, por regra, de 2 em 2 anos, para além da necessidade da respectiva manutenção/revisão anual e de substituição periódica dos seus componentes (6 meses para as interfaces, 2 meses para o revestimento cosmético).
- Prótese transtibial de banho com interface com sistema de suspensão por pino e pé aquático, cujo custo oscila entre € 5.500,00/€ 7.500,00 + IVA, a qual deverá ser substituída de 2 em 2 anos.
78. O autor necessitará de exérese/necrólise de neurinoma do coto por ortopedia, nos termos a prescrever pelo médico assistente.
79. O autor nasceu em 13/08/1979.
80. À data do sinistro, o autor tinha a profissão de motorista de pesados de mercadorias e reboques, actividade que exercia por conta e ao serviço da sociedade “C..., Lda.”, sua entidade patronal.
81. Auferindo o salário anual que ascendia a cerca de € 10.358,48 líquidos.
82. Em razão do acidente e do longo período de inactividade que se lhe seguiu, deixou de receber da sua aludida entidade patronal as retribuições correspondentes ao período de ITA, desde o acidente até à alta, ocorrida em 09/04/2019, num total de 1116 dias.
83. A B... pagou ao A., durante parte do período de ITA salários no total de 21.638,15€.
84. A Ré, por sua vez, pagou também ao A., a título de perdas salariais, a quantia de 5.212,00€.
85. Por virtude do acidente e das lesões e sequelas, após a alta, o A. não conseguiu retomar o trabalho e perdeu o emprego que tinha, encontrando-se desempregado.
86. O autor não consegue gozar os prazeres da vida, tais como dançar, divertir-se e praticar desporto.
87. O A., anteriormente ao acidente, praticava futebol de onze, sendo atleta amador federado, e jogava no campeonato distrital de ....
88. Por virtude das sequelas alegadas, teve de abandonar esta actividade desportiva, o que muito o perturba e desgosta.
89. Ficou em situação de amputado e ficou, para o resto dos seus dias, parcialmente dependente do auxílio de terceira pessoa, o que igualmente lhe provoca grande sofrimento físico e psíquico.
90. Tem tendências para o isolamento e evita o convívio com familiares e amigos.
91. Antes do acidente, era saudável.
92. Sente complexos, vergonha e desgosto, quer por virtude das mazelas físicas que possui, quer por estar amputado, quer face às cicatrizes que o marcam e que o desfeiam.
93. Em virtude do acidente, ficaram danificados os seguintes bens pessoais do A.:
- Um telemóvel, no valor de 380,00€. - Um par de botas, no valor de 40,00€. - Um casaco, no valor de 100,00€. - Umas calças, no valor de 50,00€. - Uma T-shirt, no valor de 20,00€, tudo no valor global de 590,00€.
94. Com a realização de avaliação extrajudicial do dano corporal, a fim de instruir a acção, o autor gastou o A. a quantia global de 320,00€.
95. À data do sinistro, o autor encontrava-se sob as ordens do seu empregador, a sociedade “C..., Lda.”.
96. A qual tinha a sua responsabilidade infortunística laboral transferida para a aqui Interveniente, através da apólice n.º ....
97. E, participou à Interveniente o sinistro aqui em causa.
98. Dessa participação resultou a acção especial emergente de acidente de trabalho n.º 902/17.5T8OAZ, no Juízo do Trabalho de Oliveira de Azeméis.
99. No âmbito dessa acção, por sentença proferida em 25/06/2021, foi decidido o seguinte:
a) Reconhecer que o autor sofreu acidente de trabalho em 20/03/2016 que lhe determinou lesões que consolidaram em 09/04/2019 e lhe deixaram sequelas, que lhe determinam uma IPP de 97,2% com incapacidade permanente absoluta para a sua profissão habitual de motorista de pesados.
b) Condenar a Ré B... na prestação ao autor do seguinte:
- Uma pensão anual, vitalícia e actualizável de € 6.177,38 devida a partir de 20/04/2019, actualizada para € 6.220,62 a partir de 1 de Janeiro de 2020, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento.
- O subsídio de elevada incapacidade permanente no montante de € 5.487,22, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde 10/04/2019 até integral pagamento.
- A quantia de € 313,83, a título de diferenças indemnizatórias por períodos de incapacidades temporárias, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 10/04/2019 até integral pagamento.
- A quantia de € 20,00, a título de despesas de deslocação, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia seguinte à tentativa de conciliação até integral pagamento.
c) A prestação ao autor:
- Acompanhamento psiquiátrico e/ou psicológico, com eventual necessidade de medicação e/ou tratamentos prescritos.
- Programa de fisioterapia regular nos termos a prescrever pelo médico assistente.
- Eventual exérese/necrólise de neurinoma do coto por ortopedia, quando tal se mostrar necessária, nos termos a prescrever pelo médico assistente.
- Acompanhamento com consulta de medicina fisiátrica para prescrição das próteses e substituição dos seus componentes e tratamentos periódicos.
- Adaptação de veículo do autor para mudanças automáticas. e
- A revisão do encaixe da prótese, em local especializado, para uma melhor adaptação/ajuste, com a necessidade de troca e/ou revisão da prótese, quando tal se revelar necessário, nos termos a prescrever pelo médico assistente.
100. Em virtude do acidente de trabalho, entre 2016 e a presente data, a Interveniente suportou a quantia global de € 158.268,90, assim discriminada:
a) € 21.638,15, paga ao autor a título de indemnização por incapacidades temporárias, quantia esta já referida no ponto 83.
b) € 342,81, paga ao autor, a título de indemnização por incapacidades temporárias.
c) € 80.564,09 (€ 73.553,71 + € 3.879,04 + € 3.131,34), paga a terceiros, a título de despesas com farmácia e cirurgias, internamentos, despesas médicas e material ortopédico.
d) € 10.401,59, a título de despesas de transporte.
e) € 9.974,82, paga ao autor, a título de pensão provisória.
f) € 6.797,75, paga ao autor, a título de complemento por ajuda de terceira pessoa.
g) € 5.993,86, paga ao autor, a título de subsídio por elevada incapacidade.
h) € 20,72, paga ao autor, a título de transporte com deslocação obrigatória a juízo.
i) € 22.535,11, pagos ao autor, a título de duodécimos da pensão anual e vitalícia, incluindo juros.
101. O pedido de reembolso formulado pela Interveniente foi deduzido em 25/01/2021, tendo a Ré sido notificada para o contestar em 26/01/2021.

IV. Matéria de Direito:
A] Da indemnização pelo dano patrimonial futuro, incluindo o dano biológico
A sentença recorrida fixou a indemnização devida ao autor, a título de «danos patrimoniais futuros, incluindo o dano biológico» na quantia de €300.000, condenando a ré a pagar esse valor, abatido do montante das pensões já pagas pela seguradora de acidentes de trabalho, o que conduz ao montante de €261.496,21.
A recorrente insurge-se contra a fixação deste montante argumentando o seguinte: o autor está incapaz para a profissão habitual, mas não para toda e qualquer profissão, pelo que não há uma imediata perda da capacidade de ganho, devendo a indemnização ser fixada com base na equidade; a pensão por acidente de trabalho vai continuar a ser paga, pelo que também o valor das pensões futuras deverá ser abatido ao montante a suportar pela recorrente; a indemnização deverá ser fixada em €100.000.
Vejamos:
A recorrente tem razão quando defende que da fundamentação de facto da decisão não resulta que em virtude das sequelas das lesões corporais sofridas no acidente o autor esteja totalmente incapaz para todo e qualquer trabalho (facto 73), mas apenas incapaz para o trabalho habitual (factos 64, 65 e 71).
Todavia, daí não resulta a ilação que a recorrente almeja, isto é, que para o efeito se deva concluir que está por demonstrar a perda da capacidade aquisitiva do autor e a existência ou dimensão do dano patrimonial futuro.
Com efeito, sempre que estamos a falar de um dano futuro, de um dano que constitui uma perda ou uma despesa que ocorrerão apenas após a decisão, por um período de tempo indeterminado e em função de circunstâncias que podem vir a diferir das que se verificam no momento da decisão, o artigo 564.º do Código Civil manda que a decisão se guie pelo critério da previsibilidade, não da certeza.
Decorre desta norma que o dever de indemnizar não compreende apenas os danos presentes, inclui os danos futuros. Todavia, o legislador não aceitou obrigar o lesado a instaurar sucessivas acções para ser ressarcido dos seus danos demonstrando em cada uma delas os danos que já sofreu (os danos certos) e obtendo em cada uma delas apenas a indemnização por estes danos.
A solução legal, num verdadeiro, mas compreensível, benefício do lesado, é a de que a indemnização atenda aos danos futuros desde que estes sejam previsíveis, ou seja, que segundo juízos de prognose, atendendo às circunstâncias concretas do caso, se preveja, pressinta, estime que muito provavelmente tais danos verificar-se-ão no futuro.
O que a recorrente pretende é que com base apenas numa possibilidade, numa hipótese admissível em teoria, mas que nada nos autos confirma (sendo certo que cabendo-lhe o dever de indemnizar, lhe cabe o ónus de demonstrar todas as hipóteses que possam reduzir a extensão desse dever, v.g. no caso demonstrar que disponibilizou ao lesado uma profissão alternativa compatível com as sequelas das lesões), se recuse aquilo que com toda a probabilidade se pode inferir das concretas circunstâncias do caso.
Refira-se aliás que nos termos da alínea a) do artigo 3.º da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, que fixa os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel de proposta razoável para indemnização do dano corporal, nos casos de danos corporais não causadores da morte do lesado, são indemnizáveis «os danos patrimoniais futuros nas situações de incapacidade permanente absoluta, ou de incapacidade para a profissão habitual, ainda que possa haver reconversão profissional».
Ora na data do acidente o lesado tinha 36 anos e tem agora 44 anos de idade, tem apenas o 4.º ano de escolaridade, era motorista de veículos pesados, auferia uma média de €870 líquidos por cada um dos 12 meses do ano, sofreu amputação do membro inferior esquerdo abaixo do joelho, necessita de usar prótese e para se deslocar de usar canadianas ou cadeira de rodas, apresenta limitação da mobilidade e dores que comprometem as actividades que requeiram funções neuro-músculo-esqueléticas de maior exigência física, viu ser-lhe fixada uma IPP de 97,20%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual de motorista de pesados e só através do desenvolvimento de um plano de reintegração profissional poderá realizar outras actividades profissionais cujo conteúdo funcional envolva a actividade dos membros superiores, mas sem grande exigência física, como seja, porteiro de edifícios, recepcionista, estafeta, motorista de automóveis ligeiros (com caixa automática) e, caso haja desenvolvimento de competências técnicas, auxiliar de apoio administrativo.
Nesse quadro factual, atenta a idade do lesado, as suas limitações ao nível dos conhecimentos e aptidões profissionais, a dificuldade de as pessoas com limitações físicas arranjarem novos empregos, a necessidade de um plano de reintegração profissional para o autor poder desempenhar outras funções e a ausência de um estrutura que se encarregue de delinear e concretizar esse plano e localizar no mercado laboral um emprego para o autor compatível com a sua situação, afigura-se-nos perfeitamente previsível e altamente provável que o autor não venha mais a conseguir arranjar um trabalho por conta de outrem que lhe proporcione rendimentos. Por conseguinte, não obstante o que a recorrente refere, entendemos que no cálculo da indemnização não se justifica deixar de considerar que o autor deixou em definitivo de obter os rendimentos que obtinha e que estes não foram e não serão substituídos por outros.
A questão subsequente suscitada pela recorrente tem merecido da jurisprudência dos tribunais superiores e da doutrina uma resposta praticamente consensual.
Conforme se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-03-2023, proc. n.º 3621/19.4T8AVR.P1.S1, in www.dgsi.pt, «entre o regime de indemnização a título de acidente de viação e o regime de indemnização a título de acidente de trabalho existe uma relação de complementaridade, significando, pela negativa, que os dois regimes não devem cumular-se e, pela positiva, que os dois regimes devem completar-se, o que, mais uma vez, é coerente com o (e é mesmo instrumental ao) propósito do ressarcimento completo do lesado» - neste sentido uniforme ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29-03-2022, proc. n.º 119/19.4T8STR.E1.S1, de 12-01-2022, proc. n.º 782/18.3T8BJA.E1.S1, de 17-11-2021, proc. n.º 3496/16.5T8FAR.E1.S1, de 05-05-2020, proc. n.º 30/11.7TBSTR.E1, de 30-04-2020, proc. n.º 6918/16.1T8VNG.P1.S1, de 11-07-2019, proc. n.º 1456/15.2T8 FNC.L1.S1, de 26-02-2019, proc. n.º 184/08.0TBSTB.E1.S1 -.
Existem várias manifestações legais desse princípio no nosso ordenamento jurídico.
O artigo 133.º do regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, estabelece que o seguinte quanto à pluralidade de seguros:
«1. Quando um mesmo risco relativo ao mesmo interesse e por idêntico período esteja seguro por vários seguradores, o tomador do seguro ou o segurado deve informar dessa circunstância todos os seguradores, logo que tome conhecimento da sua verificação, bem como aquando da participação do sinistro. […]
3 - O sinistro verificado no âmbito dos contratos referidos no n.º 1 é indemnizado por qualquer dos seguradores, à escolha do segurado, dentro dos limites da respectiva obrigação.
4 - Salvo convenção em contrário, os seguradores envolvidos no ressarcimento do dano coberto pelos contratos referidos no n.º 1 respondem entre si na proporção da quantia que cada um teria de pagar se existisse um único contrato de seguro.
Está aqui consagrado o princípio segundo o qual a existência de vários contratos de seguro a segurar o mesmo risco não confere ao lesado o direito de exigir o ressarcimento dos seus danos cumulativamente de cada seguradora e de todas as seguradoras, mas apenas o direito de exigir de qualquer delas o ressarcimento da totalidade dos seus danos na medida da respectiva obrigação.
O artigo 23.º do Regime jurídico do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel aprovado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, estabelece o seguinte sobre a pluralidade de seguros:
No caso de, relativamente ao mesmo veículo, existirem vários seguros, efectuados ao abrigo do artigo 6.º, responde, para todos os efeitos legais, o seguro referido no n.º 5, ou, em caso de inexistência deste, o referido no n.º 3, ou, em caso de inexistência destes dois, o referido no n.º 4, ou, em caso de inexistência destes três, o referido no n.º 2 do mesmo artigo, ou, em caso de inexistência destes quatro, o referido no n.º 1 do mesmo artigo.
Neste caso é a própria lei a definir uma ordem de responsabilidade das várias seguradoras que o lesado, querendo exercer o seu direito de indemnização, tem de observar, donde resulta que não poderá exigir a indemnização da seguradora que lhe convenha ou decida escolher, nem do conjunto das seguradoras.
Finalmente, o artigo 9.º da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, estabelece o seguinte para os casos em que o acidente é simultaneamente de viação e de trabalho:
1 – […] se o acidente que originou o direito à indemnização for simultaneamente de viação e de trabalho, o lesado pode optar entre a indemnização a título de acidente de trabalho ou a indemnização devida ao abrigo da responsabilidade civil automóvel, mantendo-se a actual complementaridade entre os dois regimes.
2 - Sendo o lesado indemnizado ao abrigo do regime específico de acidentes de trabalho, as indemnizações que se mostrem devidas a título de perdas salariais ou dano patrimonial futuro são sempre inacumuláveis.
3 - Nos casos em que não haja lugar à indemnização pelos danos previstos na alínea a) do artigo 3.º, é também inacumulável a indemnização por dano biológico com a indemnização por acidente de trabalho.
Decorre desta norma que os regimes de indemnização por acidente de viação (regras gerais) e de indemnização por acidentes de trabalho (regras específicas) são complementares entre si e o lesado pode optar pela indemnização que lhe for mais favorável, o que não pode é cumular ambas as indemnizações pelo mesmo dano.
Desse modo é necessário distinguir os danos para definir se estamos perante o mesmo dano que só pode ser indemnizado uma vez ou se estamos perante danos distintos cada um dos quais gera o correspondente direito de indemnização. Na primeira situação cabe apurar depois se e como se distribui pelas seguradoras automóvel e laboral a responsabilidade pela única indemnização que o lesado pode exigir; na segunda situação há lugar a mais que uma indemnização, mas isso não representa uma cumulação ilegal de indemnizações, sendo certo que nalguns casos só uma das seguradoras responde pelo dever de indemnizar (quando a responsabilidade da outra é menos extensa e não compreende esse dano) e noutros respondem ambas as seguradoras.
As lesões que o autor sofreu no corpo e na saúde em consequência do acidente (em simultâneo de trabalho e de viação) geraram no caso dois danos distintos.
Por um lado, como acontece sempre, geraram um dano biológico, isto é, uma afectação ou perturbação da integridade psicofísica (o corpo e a saúde) da vítima que se repercute no desempenho das tarefas diárias da vida da vítima, sejam elas pessoais ou profissionais (e aqui estamos a incluir o chamado dano do esforço e/ou sofrimento acrescido no desempenho das tarefas profissionais ou da vida pessoal). Este dano pode ser temporário (a lesão é curada totalmente e não deixa sequelas), ou definitivo (apesar da cura a lesão deixa sequelas). No caso, o dano biológico é permanente e extenso, deve ser indemnizado além do mais como dano futuro, com base na equidade.
Por outro lado, essas lesões desencadearam a perda genérica de potencialidades funcionais do lesado, a redução efectiva das suas capacidades para angariar rendimentos do trabalho, razão pela qual o dano tem, no caso, repercussão patrimonial que deve ser levada em conta no método de cálculo da indemnização, autorizando o cálculo do dano com recurso às tabelas financeiras conhecidas.
A seguradora de acidente de trabalho apenas indemniza o dano da perda de rendimentos do trabalho, precisamente porque a sua finalidade normativa e social que justificou a instituição do seguro obrigatório para protecção do trabalhador é a de impedir que no infortúnio o trabalhador se veja privado dos rendimentos do trabalho de que em regra necessita para viver. A indemnização do dano biológico não cabe no âmbito da responsabilidade daquela e por isso não se encontra incluída na condenação proferida no processo de acidentes de trabalho a que faz referência o facto do ponto 99.
Sendo assim, importa distinguir estes danos e a respectiva indemnização porque enquanto a indemnização pelo dano biológico só pode ser exigida da seguradora de acidentes automóveis ora recorrente, a indemnização pelo dano da perda de rendimentos pode ser exigido de qualquer das seguradoras, rectius, pode ser exigida à seguradora de acidentes de trabalho na medida da responsabilidade desta, pode ser exigida a ambas até ao limite em que a responsabilidade de ambas coincida e pode ser exigida à ora recorrente na medida em que a sua responsabilidade exceda ou ultrapasse a medida da responsabilidade da seguradora de acidentes de trabalho, não podendo em qualquer caso haver cumulação de indemnizações.
Quanto ao dano biológico, a fixar com base na equidade, levamos em conta essencialmente a amputação do membro inferior esquerdo, as dificuldades nos movimentos e deslocações, a necessidade de apoio nesses actos (com canadianas ou cadeira de rodas), a repercussão futura das sequelas a justificar acompanhamento médico e medicamentoso, a repercussão nos actos da vida diária e íntima, a repercussão psicológica do trauma. Com esses dados afigura-se-nos adequada a indemnização de €100.000,00.
Para calcular a indemnização pela perda de rendimentos, levamos em conta a idade do lesado à data do acidente, a remuneração líquida que ele auferia à data, o coeficiente do défice funcional permanente, a esperança de vida activa, uma taxa de crescimento da prestação de 2% e uma taxa de rentabilidade da indemnização recebida de uma só vez e de forma antecipada de 4%. Com esses pressupostos e fazendo cálculos com recurso às tabelas financeiras normalmente usadas para este fim, alcançamos uma indemnização que se fixa em €200.000,00.
É sobre este valor que se repercute a indemnização suportada e a suportar pela interveniente em resultado da condenação no processo de acidentes de trabalho. O autor só tem direito a receber este montante, pelo que o que receber a esse título da seguradora de acidentes de trabalho deve ser abatido naquilo que pode exigir da aqui ré. De acordo com os factos provados já recebeu a esse título (e a ré foi condenada a pagar à interveniente a título de reembolso) €38.503,79, pelo que a decisão incorporará já o abatimento desse montante, sem prejuízo dos futuros abatimentos das pensões que vierem a ser pagas após o momento reflectido na fundamentação de facto.
B] Da indemnização pelos danos não patrimoniais:
A recorrente insurge-se contra o montante da indemnização por danos não patrimoniais que a sentença recorrida fixou em €160.000 e que na opinião da recorrente não deve exceder €60.000.
Este dano consiste nas manifestações psíquico-somáticas negativas do trauma na pessoa do lesado e na repercussão dessas manifestações nos seus sentidos, sentimentos, projectos e projecções.
Por isso, compreende as dores intensas prolongadas e para continuarem no tempo, os incómodos, as preocupações e as angústias com a recuperação, o tempo de vida consumido na recuperação, a estadia em ambiente hospitalar, a sujeição a cirurgias, consultas e tratamentos, o prejuízo estético e de afirmação pessoal decorrente da amputação do membro inferior, o rompimento de um plano de vida e a necessidade de refundar o modo de vida e se adaptar a novas circunstâncias adversas, a perda da profissão habitual e da auto-estima que o exercício de uma profissão desempenha.
Refira-se que perante a dificuldade de justificar os valores indemnizatórios atribuídos se tornou corrente as decisões judiciais apresentarem um rol extenso de outras decisões escolhidas para tornar verosímeis os valores da decisão. Com todo o devido respeito, trata-se de mais uma tentativa vã (como o obsoleto e excêntrico critério do «carro de gama média» que no seu tempo fez carreira) de procurar objectivar o que dificilmente é possível objectivar porque o critério é, sempre, a … equidade, e esta é intrínseca e irreversivelmente casuística, e os casos raramente resistem a comparações porque cada caso é um caso e as manifestações das lesões são quase sempre distintas de pessoa para pessoa e de situação para situação (curiosamente, em simultâneo e de forma paradoxal, recusa-se a única tentativa válida de dar algum tratamento objectivo e uniforme ao critério de fixação das indemnizações encetada pela Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, embora se tenha de imediato importado o conceito de dano biológico que esta trouxe para o direito nacional).
Como assim, sopesando os factos julgados provados a esse respeito e as decisões do Supremo Tribunal de Justiça publicadas que definem um fio condutor dos montantes actualmente considerados mais adequados, afigura-se-nos que a indemnização fixada pelo tribunal a quo deve ser mantida.
Para o efeito assinalamos de modo particular a circunstância de o lesado ter passado dois anos hospitalizado, o que representa a perda de dois anos de uma vida normal vida, a perda de autonomia e liberdade e a privação dos benefícios pessoais e psicológicos do enquadramento sociofamiliar. Da mesma forma que teve de ser sujeito a 6 intervenções cirúrgicas, o que o sujeitou a reiterados períodos de stress, ansiedade, sofrimento e risco acrescido.
C] Das despesas com a substituição da prótese:
A recorrente foi condenada a pagar a quantia de €139.655,00 a título de despesa com a substituição da prótese.
Esse montante foi fixado com base na equidade, partindo do pressuposto de que a prótese deve ser substituída em regra de dois em dois anos e tem presentemente um custo entre €6.500 e €9.000, mais IVA.
Pese embora seja inequívoca a demonstração do dano futuro correspondente à despesa com a substituição da prótese e a inevitabilidade desta, afigura-se-nos que não existem elementos que permitam já a fixação do montante indemnizatório.
Desde logo, porque o dano consistirá sempre numa despesa certa e documentada que terá de ser ressarcida segundo a teoria da diferença e não por critérios de equidade. Depois, porque a evolução tecnológica pode alterar significativamente aqueles pressupostos, designadamente ao nível do custo das próteses ou da respectiva durabilidade, o que gera incerteza sobre o montante da indemnização. Finalmente, porque a adaptação do corpo do lesado à prótese pode vir a alterar-se, modificando aqueles pressupostos num sentido que de momento não é possível antever.
Nesse sentido e salvo melhor opinião deve alterar-se a decisão no sentido da condenação no pagamento não de um valor já definido, mas no valor que vier a ser necessário para substituir a prótese sempre que necessário, a liquidar ulteriormente.
D] Das despesas futuras:
A sentença recorrida condenou ainda a ora recorrente a pagar as quantias que se vierem a liquidar a título de despesas futuras com a revisão da prótese, medicamentos, tratamentos de fisioterapia, consultas da dor, medicina física, reabilitação e médico de família, acompanhamento psiquiátrico e/ou psicológico.
Defende a recorrente que não deve ser condenada nessas prestações porque o acidente foi simultaneamente de viação e de trabalho, cabendo à seguradora de acidentes de trabalho, nos termos da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, a reparação dos danos por esses acidentes, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, a qual foi já condenada a satisfazer as prestações dessa natureza.
Salvo melhor opinião, a recorrente inverte as coisas.
A circunstância de a Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, estabelecer que essas prestações estão abrangidas pela cobertura do seguro de acidentes de trabalho determina a obrigação de a seguradora de acidentes de trabalho proporcionar ao lesado tais prestações, mas não exclui que havendo um responsável pelo evento lesivo causador das lesões este seja responsável (cumulativamente com aquela nos termos já assinalados) pela reparação da totalidade dos danos sofridos pelo lesado e, consequentemente, por todas as prestações necessárias para obter o ressarcimento integral dos danos, incluindo os danos futuros. Quem causou o evento lesivo e responde pelas respectivas consequências tem o dever de indemnizar a totalidade dos danos, ainda que parte deles beneficie da cobertura de outro seguro e, por isso, haja outro responsável pela reparação dessa parte dos danos.
Não se exclui que possa haver prestações que a lei coloque a cargo da seguradora de acidentes de trabalho e que pressupondo embora o acidente e a ocorrência de danos para o trabalhador, consistam não na reparação de um dano, mas na criação de condições para que o trabalhador consiga continuar a desempenhar actividades profissionais. Estamos a pensar na hipótese de prestações destinadas a fornecer ao trabalhador novas competências profissionais. Se for possível considerar que essas prestações não têm a natureza e a finalidade de ressarcir ou eliminar um dano sofrido pelo lesado, mas apenas dar-lhe novas ferramentas para o mercado de trabalho em função da sua situação pessoal, então sim podemos estar perante prestações pelas quais o causador do acidente já não deve ser responsabilizado ainda que a seguradora de acidentes de trabalho o seja.
Todavia, as despesas futuras com a revisão da prótese, com medicamentos, com tratamentos de fisioterapia e com consultas da dor, de medicina física, de reabilitação, de psicologia ou psiquiatria e com médico de família são todas elas despesas que têm como causa adequada o acidente e as lesões corporais dele resultantes e se justificam pela necessidade de continuar a acompanhar, tratar, prevenir e controlar as sequelas físicas e psicológicas dessas lesões e do trauma do acidente, da amputação e da mudança significativa de vida do lesado.
Logo, parece inequívoco que, independentemente da actuação devida pela seguradora do acidente de trabalho e do correspondente direito desta sobre a ora ré quanto ao custo desses actos, o ressarcimento dessas despesas é ainda responsabilidade da ora ré. Nessa parte a sentença recorrida tem, por isso, de ser confirmada.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do tribunal da Relação julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, alteram a decisão recorrida nos seguintes pontos objecto deste recurso:
- quanto à indemnização «a título de danos patrimoniais futuros, incluindo dano biológico», condenam a ré a pagar ao autor «a título de dano biológico», a quantia de €100.000 (cem mil euros) e a título de «dano patrimonial futuro decorrente da perda aquisitiva» a quantia de €200.000 (duzentos mil euros) (com a ressalva de que a este último valor deve ser abatido o montante de €38.503,79 que o autor já recebeu da seguradora de acidentes de trabalho a esse título, bem como o que vier a receber com o mesmo fundamento), quantias acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde o dia seguinte ao da prolação da presente sentença até integral pagamento;
- o montante a liquidar ulteriormente e sempre que necessário correspondente às despesas futuras com a substituição da prótese, sempre que técnica e/ou medicamente necessária.
No mais confirmam a decisão recorrida.
Custas do recurso por ambas as partes na proporção do decaimento respectivo (que quanto à parcela do montante a liquidar ulteriormente se distribui provisoriamente em igual medida por ambas as partes), sem prejuízo do apoio judiciário de que o autor beneficia.
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Porto, 21 de Março de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 809)
Isoleta de Almeida Costa
Carlos Portela

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]