Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
13881/24.3T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUELA MACHADO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRESCRIÇÃO
FACTOS CONTROVERTIDOS
Nº do Documento: RP2025032013881/24.3T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 03/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O prazo de prescrição mais longo previsto no n.º 3 do art. 498.º do CC não pressupõe uma efetiva responsabilidade criminal do agente infrator, bastando a verificação de factos que possam ser qualificados como crime.
II - Contudo, não basta a alegação desses factos que possam ser qualificados como crime, impondo-se que sejam apurados e resultem provados, sob pena de se ter encontrado uma forma fácil de contornar o prazo normal de prescrição previsto no nº 1 do art. 498.º do Código Civil.
III - Assim, num caso em que se mostram controvertidos os factos relativos à dinâmica do acidente, cabendo apurar a responsabilidade pela ocorrência do mesmo, o conhecimento da exceção de prescrição deve ser relegado para a decisão final, após julgamento e apuramento das circunstâncias em que o acidente ocorreu, só então ficando esclarecido se a atuação do alegado culpado constitui efetivamente crime, ou não.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 13881/24.3T8PRT-A.P1





Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto



RELATÓRIO:

AA, solteiro, maior, contribuinte fiscal ...08, residente na rua ..., (...) Porto, instaurou contra o FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, com sede na Avenida ..., ..., (...) em ..., ação declarativa sob a forma de processo comum, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe o montante global de 687.439,00 €, acrescido de juros a contar da data de citação até integral pagamento.
Para o efeito alegou, em síntese, que no dia 26 de agosto de 2019 ocorreu um acidente de viação, no local e hora que indica, no qual foram intervenientes o autor, conduzindo o ciclomotor de matrícula ..-RT-.., e um veículo ligeiro de passageiros, que não foi possível identificar, sendo que a culpa pela ocorrência do sinistro se deveu exclusivamente ao condutor do dito veículo ligeiro, o qual não parou, abandonando o local, sendo que o autor, na sequência desse acidente, sofreu danos que quantifica e cujo ressarcimento pretende.
Uma vez citado, o réu FGA apresentou contestação, através da qual, veio arguir a exceção de prescrição, para além de impugnar a factualidade alegada pelo autor, nomeadamente, no que à dinâmica do acidente diz respeito.
O autor apresentou réplica, concluindo pela improcedência da exceção de prescrição, considerando ser aplicável ao caso o prazo previsto no art. 498.º, nº 3 do Código Civil.
Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, através do qual, entre outras questões, foi julgada improcedente a exceção de prescrição.
Consta do despacho respetivo, no que para o recurso interessa, o seguinte:
“Na sua contestação o réu veio invocar a prescrição do direito do autor.
Para tal alega que o acidente se deu em 26.8.2019; que a presente ação foi intentada em 29.7.2024; e que a citação ocorreu em 16/08/2024.
Na sua resposta o autor veio alegar que se está perante a pratica de facto ilícito praticado pelo causador do sinistro, qualificado como crime, pelo que, de acordo com o disposto no artigo 118 do CP o prazo de prescrição é de, pelo menos, cinco anos, devendo ser esse o prazo aplicável nos presentes autos, atento o disposto no artigo 498º, n.º 3 do CC.
Cumpre decidir.
Entendemos que, efetivamente, é de aplicação o disposto n n.º 3 do artigo 498º do C. Civil, uma vez que os factos alegados pelo autor, no que se refere à conduta do condutor a quem aquele atribui a culpa na produção do acidente, são qualificados pela lei penal como crime de ofensa à integridade física por negligência – artigo 148º, n.º 1 do C. Penal – sendo o prazo de prescrição de 5 anos, nos termos do artigo 118º, n.º 1, c) do mesmo C. Penal.
Cumpre ainda dizer que este prazo se aplica independentemente de ter havido um inquérito-crime.
Conforme se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/06/2020, relatado pela Exma. Sra. Juíza Desembargadora, Dra. Cristina Maximiano, e disponível em www.dgsi.pt, “(…) o alargamento do prazo de prescrição constante do nº 3 do art. 498º do Cód. Civil não exige que tenha existido um processo crime em que se tenha apurado a prática de um crime, bastando a verificação que a factualidade geradora de responsabilidade civil e da respectiva obrigação de indemnizar preencha os elementos de um tipo legal de crime, relativamente ao qual a lei penal admite o seu apuramento judicial em prazo mais alargado que o previsto no nº 1 daquele preceito. O que significa, por outro lado, que, na situação de ter existido processo crime, a lei não atribui qualquer relevância ao conteúdo da decisão (de acusação ou de arquivamento) do Ministério Público enquanto titular da acção penal para efeitos de contagem do prazo de prescrição do direito à indemnização em acção cível. Por isto, entende-se que, mesmo arquivado o processo-crime, podem os lesados beneficiar de prazo superior ao de três anos previsto no mencionado nº 1 do art. 498º para intentar a acção cível, desde que aleguem e provem nessa mesma acção que o facto ilícito invocado constitui crime cujo prazo prescricional é superior. (…) quer a interrupção, quer o alargamento do prazo prescricional, aplica-se - é oponível - aos responsáveis meramente civis (nomeadamente seguradoras), na medida em que estes representam (substituem) em última ratio, o lesante civilmente responsável. Na verdade, não só aponta nesse sentido o espírito de unidade do sistema (cfr. art. 9, nº 1 do Cód. Civil), como o nº 3 do art. 498º do Cód. Civil não estabelece qualquer distinção nesse sentido (cujo texto, ao não se referir ao autor do facto ilícito criminal, mas apenas aludir ao facto constitutivo de crime, permite concluir que o pressuposto da sua aplicação a todos os responsáveis, quer criminais quer civis, é apenas o de ter havido crime sujeito a prescrição de prazo mais longo)”.
Assim, e no caso dos autos, o prazo de prescrição do direito do autor é de 5 anos pelo que, mesmo sem fazer referência ao inquérito-crime referido pelo autor, o prazo de prescrição apenas terminou em 26/08/2024, sendo que o réu foi citado antes.
Pelo exposto, julgo improcedente a excepção da prescrição do direito do autor.
Notifique.”
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Não se conformando com tal decisão, o Réu FGA interpôs o presente recurso que foi admitido como de apelação, a subir de imediato, em separado e com efeito meramente devolutivo.
São as seguintes, as conclusões das alegações apresentadas pelo Apelante:
“1) O Tribunal, ao invés de ter julgado a exceção de prescrição, desde já, improcedente, deveria ter relegado o conhecimento da mesma para final;
2) Estando integralmente questionada a matéria de facto atinente à forma como o acidente ocorreu, não pode, neste momento processual, afirmar-se que tenha ocorrido um facto ilícito criminal e que o Autor possa beneficiar do alongamento do prazo de prescrição previsto no n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil;
3) O Tribunal ao decidir como decidiu violou, entre outros, o disposto no n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, nos termos supra expostos.”.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
A matéria fáctica a ter em conta é a que resulta do relatório que antecede.
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MOTIVAÇÃO DE DIREITO:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, a única questão a decidir consiste em apreciar se o Tribunal, ao invés de ter julgado a exceção de prescrição, desde já, improcedente, deveria ter relegado o conhecimento da mesma para final.
Vejamos.
De acordo com o disposto no art. 498.º, nº 1 do Código Civil, o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso.
O nº 3 do mesmo preceito estabelece, por sua vez, que se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.
Posto isto, concorda-se que o prazo de prescrição mais longo previsto no n.º 3 do art. 498.º do CC não pressupõe uma efetiva responsabilidade criminal do agente infrator, bastando a verificação de factos que possam ser qualificados como crime.
Contudo, não basta a alegação desses factos que possam ser qualificados como crime, impondo-se que sejam apurados e resultem provados, sob pena de se ter encontrado uma forma fácil de contornar o prazo normal de prescrição previsto no citado nº 1 do art. 498.º do Código Civil.
Decorrido o prazo de três anos sem que o lesado tenha instaurado a ação de indemnização, seja por que motivo for, bastava alegar que a atuação do alegado culpado pela ocorrência do acidente constitui crime, para a questão da prescrição ser ultrapassada.
Assim, entendemos que num caso em que se mostram controvertidos os factos relativos à dinâmica do acidente, cabendo apurar a responsabilidade pela ocorrência do mesmo, o conhecimento da exceção de prescrição deve ser relegado para a decisão final, após julgamento e apuramento das circunstâncias em que o acidente ocorreu, só então ficando esclarecido se a atuação do alegado culpado constitui efetivamente crime, ou não.
Neste sentido, cfr. Acórdão do STJ, de 04-07-2023, Processo 14654/21.0T8SNT.L1.S1, Relator: Jorge Dias, disponível em dgsi.pt, onde se diz que “É prematuro o julgamento da exceção da prescrição (quer no sentido da procedência ou da improcedência), uma vez que o seu conhecimento depende do apuramento de factos que ainda são controvertidos, face ao alegado pelas partes nos respetivos articulados.”.
Face ao exposto, sem necessidade de outras considerações, assiste razão ao recorrente Fundo de Garantia Automóvel, devendo ser revogada a decisão impugnada, na parte em que decidiu julgar improcedente a exceção de prescrição.

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DISPOSITIVO:
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, e consequentemente, revogar a decisão recorrida, na parte em que julgou improcedente a exceção de prescrição, que se substitui por outra que relegue o respetivo conhecimento para a decisão final, após produção de prova sobre as circunstâncias em que o acidente ocorreu.

Custas pelo Recorrido.







Porto, 2025-03-20.

Manuela Machado
Álvaro Monteiro
Isabel Peixoto Pereira