Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | FERNANDO SAMÕES | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO REPETIÇÃO DO INDEVIDO | ||
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Nº do Documento: | RP20120417891/10.7TJPRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 04/17/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | ALTERADA | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | A seguradora que reparar os danos resultantes de um acidente de trabalho, na convicção errónea de que estava obrigada a fazê-lo, por força de um contrato de seguro que acabou por verificar que não existia na data em que ocorreu, pode exigir da entidade patronal o que pagou a título dessa reparação, ao abrigo do art.° 478.° do Código Civil. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 891/10.7TJPRT.P1 * Relator: Fernando Samões 1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha 2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró Acordam no Tribunal da Relação do Porto – 2.ª Secção: I. Relatório Companhia de Seguros B…, SA, com sede no …, n.º .., Lisboa, instaurou, em 14/5/2010, nos Juízos Cíveis do Porto, onde foi distribuída ao 3.º Juízo, 1.ª Secção, a presente acção declarativa, ao abrigo do DL n.º 108/2006, de 8/6, contra C…, Lda., com sede na …, n.º .., Porto, e D…, residente na Rua …, n.º …, hab. …, na mesma cidade, pedindo que a ré C… seja condenada a pagar-lhe a quantia de 8.000,04 €, acrescida de juros, vencidos e vincendos até integral pagamento, ou, caso assim não se entenda, que a ré D… seja condenada no mesmo pedido. Para tanto, alegou, em resumo, que: No exercício da sua actividade, celebrou com a 1.ª Ré um contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, o qual é um seguro completo e de prémio fixo, cobrindo apenas as pessoas previamente determinadas e pelo montante de retribuições antecipadamente conhecido. No dia 29 de Janeiro de 2007, a 2.ª Ré sofreu um acidente de trabalho ao serviço da 1.ª Ré. Em 6 de Fevereiro de 2007, a 1.ª Ré remeteu à Autora uma proposta de alteração do seguro, no sentido de incluir nas suas garantias a 2.ª Ré, sendo tal proposta, por si, recebida no dia seguinte, que aprovou, tendo considerado a 2.ª Ré incluída nas garantias da apólice desde as 0h00 do dia 8 de Fevereiro de 2007. Habilidosamente, a 1.ª Ré só participou o acidente de trabalho da 2.ª Ré após a alteração do contrato de seguro, induzindo em erro os serviços administrativos da Autora, dando azo a que custeasse todas as prestações que eram devidas à sinistrada. Citadas, apenas a 1.ª Ré contestou por impugnação e dizendo, em síntese, que a matéria dos autos já se encontra julgada no âmbito do processo n.º 1857/07.TTPRT da 1.ª Secção do Tribunal de Trabalho do Porto; comunicou ao agente da Autora a admissão da 2.ª Ré, sendo ele que procedeu ao pedido de aditamento à apólice junto daquela, fazendo-lhe crer que a inscrição se reportava à efectiva data de admissão; comunicou o acidente com a data em que o mesmo efectivamente ocorreu e porque o agente lhe comunicou que a 2.ª Ré estava segurada ao abrigo da apólice. Concluiu pela improcedência da acção. Após algumas suspensões da instância, com vista à obtenção do anunciado acordo, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, nos dias 12 de Julho e 9 de Setembro de 2011, como consta das actas de fls. 233 a 235 e 306 a 309, após o que, em 26/10/2011, foi elaborada sentença que, na procedência parcial da acção, decidiu: - condenar a Ré D… a restituir à autora as quantias de 3.022,93 €, 163,17 € e 726,01 €, acrescidas de juros às taxas legais, contados desde a data da citação e até integral pagamento, absolvendo-a do resto do pedido; - absolver a Ré C…, Lda. do pedido. Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação para este Tribunal e apresentou a sua alegação com as conclusões que aqui se transcrevem: “1- Foi incorrectamente julgada a matéria de facto dos artigos 13º, 18º e 22º da Petição Inicial, os quais deveriam ser todos eles, dados como PROVADOS. 2. Os concretos meios de prova que sustentam tal alteração da decisão da matéria de facto são os documentos nº 6, junto com a Petição Inicial, documentos de fls. 242, 243, 244 a 246 e 247, o depoimento de parte da 2ª Ré, (CD minutos 06:48 a 09:28 e 11:02 a 11:35 a 14:16), os depoimentos da testemunha E… (CD minutos 06:46 a 08:01), e o depoimento da testemunha F… (CD minutos 06:44 a 07:44) 3. Com tal decisão da matéria de facto, deve a acção ser julgada procedente não só nos termos em que o foi mas ainda quanto à totalidade das despesas liquidadas aos G… com assistência à A., no montante global, apenas estas, de € 3.888,76. 4. À errada decisão de tais pontos da matéria de facto acresce pior decisão de direito. 5. Ainda que não tivesse sido feita qualquer prova do pagamento das facturas do G… então, a A. seria então devedora das mesmas a tal entidade. 6. Como quem deveria ter pago toda a assistência à A. era a R. C…, deveria o capital titulado em tais documentos ser dívida sua e nunca da A.. 7. Assim, a R. C… tira total partido da facturação em apreço, ainda que não liquidada (e já o foi) pois que com a mesma se liquida toda a assistência prestada à R. D…, que deveria ter ficado a seu cargo. 8. É, assim, irrelevante que as facturas em apreço estejam ou não pagas – a A. é que as deve, é o sujeito passivo, obrigado a liquidá-las, e com tal situação ficou a R. C… eximida da sua obrigação reparatória, pelo que sempre lhe aproveitaria, exonerando-a, a situação de devedora da A.. 9. À situação dos autos nunca se deveria aplicar o estatuído no Art. 477º CCiv. 10. A R. D… foi vítima de um acidente de trabalho, pelo que tinha direito a receber tudo quanto foi prestado pela A., seja a nível de prestações em espécie – tratamentos – seja em dinheiro – indemnizações e pensão. 11. Nada tem, assim, que devolver a quem quer que seja. 12. Quem tem que devolver é a 1ª R. C…, pois que ficou exonerada das suas responsabilidades com a assistência e prestações que a A. – por si ou por terceiros – efectuou à R. D…. 13. Trata-se da situação a que se refere o Art. 478º CCiv. 14. Dado que a A. cumpriu as obrigações da R. C…, convicta que eram obrigações próprias não se tendo provado nem ninguém tendo alegado que a R. D… sabia que a A. nada lhe devia, é a R. C… que, enquanto devedor exonerado deve reembolsar a A. de tudo quanto prestou na medida em que se deu a sua exoneração e consequente locupletamento às custas da A.. 15. Ao decidir diferentemente a decisão em crise violou o disposto no Art. 478º CCiv. Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente Recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a douta sentença revogada IN TOTUM, condenando-se a R. C… não só nas verbas em que se condenou a R. D… mas ainda na totalidade daquilo que a A. pagou aos G…, ou seja, nos € 3.888,76 reclamados a título de assistência hospitalar, fazendo-se assim, inteira e sã JUSTIÇA!” Não foram apresentadas contra-alegações. Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 707.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC. Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso. Sabido que o seu objecto está delimitado pelas conclusões da recorrente (cfr. art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, este na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, aqui aplicável, visto que a propositura da acção é posterior a 1/1/2008 – cfr. art.º 12.º do mesmo diploma), importando conhecer as questões (e não razões) nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. art.º 660.º, n.º 2 do mesmo Código), as questões a dirimir consistem em saber: a) Se deve ser alterada a matéria de facto; b) Se a autora/apelante tem direito a exigir da 1.ª ré a repetição do que pagou indevidamente. II. Fundamentação 1. De facto Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos: 1. A Autora é uma sociedade seguradora que exerce a actividade de seguros e resseguros do Ramo “Não Vida”. 2. No exercício da sua actividade, a Autora celebrou com a 1.ª Ré um “contrato de seguros” do ramo acidentes de trabalho, para trabalhadores por conta de outrem, titulado pela apólice n.º ……./8, junta aos autos a fls. 17 a 33, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. 3. Onde se encontravam incluídas as trabalhadoras H…, I…, J…, K…, L…, M…, N… e O…, todos com a retribuição mensal de € 400,00. 4. A 29 de Janeiro de 2007, a 2.ª Ré, no exercício das suas funções como trabalhadora da 1.ª Ré, cortou-se no dedo indicador da mão esquerda numa peça de metal de um armário situado na cozinha desta. 6. A 6 de Fevereiro de 2007, a 1.ª Ré remeteu à Autora uma proposta de alteração do seguro entre si contratado, no sentido de incluir nas suas garantias a 2.ª Ré, pela remuneração de € 403,00x14 meses. 7. Tal proposta de alteração foi recebida a 7 de Fevereiro de 2007, pela Autora. 8. A Autora aprovou a proposta considerando a 2.ª Ré incluída nas garantias da apólice desde as 0h00 do dia 8 de Fevereiro de 2007, emitindo a 19 de Fevereiro de 2007, nova acta da apólice nº ……./8, junta aos autos a fls. 38, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. 9. A 9 de Fevereiro de 2007, a Autora recebeu a participação do acidente de trabalho sofrido pela 2.ª Ré, subscrita por esta e junta aos autos a fls. 238 e 241, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. 10. A 2.ª Ré apresentou-se no hospital a que recorre a Autora para tratar os sinistrados pelos quais é responsável – G… – onde, a expensas suas, foi assistida, tendo sido sujeita a intervenção cirúrgica em Abril de 2007 e recebido assistência médica até à data da alta, em 15 de Novembro de 2007. 11. A Autora pagou à 2.ª Ré as indemnizações devidas pelos períodos de incapacidade temporária de acordo com a retribuição de € 403,00x14 meses. 12. A 2.ª Ré sofreu ferida corto-contusa do D2 esquerdo, tendo ficado com rigidez de 3 articulações do D2 esquerdo, lesões de que teve alta em 15 de Novembro de 2007, com um IPP de 2,98%. 13. A 2.ª Ré esteve afectada de ITA de 30 de Janeiro de 2007 a 29 de Outubro de 2007 e de ITP de 15% entre 30 de Outubro de 2007 a 15 de Novembro de 2007, data da alta. 14. Por tais períodos e incapacidades, a Autora pagou à 2.ª Ré a quantia de € 3.022,93. 15. Com a intervenção cirúrgica e demais despesas hospitalares, medicamentosas e de tratamento da 2.ª Ré, a Autora despendeu € 726,01, que pagou ao G…. 16. Em transportes, a Autora pagou à 2.ª Ré a quantia de € 163,17. 17. Em preparos para despesas, exames relacionados com o processo especial de acidente de trabalho que correu termos sob o n.º 1857/07.0TTPRT, pela 1.ª Secção do Juízo Único do Tribunal de Trabalho do Porto, a Autora despendeu a quantia de € 721,70. 2. De direito Aplicando o direito aos factos tendo em vista a resolução das supramencionadas questões, importa começar, como é óbvio, pela apreciação da alteração da matéria de facto impugnada, pois só depois de esta estar assente nos é licito fazer a sua subsunção jurídica. 2.1. Da alteração da matéria de facto A Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto dentro dos limites previstos no art.º 712.º, n.º 1 do CPC que contempla as seguintes situações: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; e c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou. No caso sub judice, porque houve gravação dos depoimentos prestados em audiência, estamos perante a hipótese prevista na última parte da al. a) do n.º 1 do citado art.º 712.º, o qual deve ser conjugado com o art.º 685.º-B do mesmo diploma legal. Prescreve este artigo o seguinte: 1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição. Por sua vez, este normativo preceitua que “quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, devem ser assinalados na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos”. No caso em apreço, a recorrente especificou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e indicou os meios probatórios que entende fundamentarem tal erro, apontando os correspondentes documentos e indicando depoimentos de testemunhas e localizando-os, na medida do possível, por referência ao assinalado na acta e à sua duração. Por isso, consideramos cumprido tal ónus, pelo que iremos conhecer do recurso, procedendo à reapreciação da prova quanto à matéria de facto cuja alteração pretende. Para este efeito, seguiremos uma tese mais ampla, formada há algum tempo não muito longínquo e que temos vindo a observar nos vários acórdãos que já relatámos, a qual, reconhecendo embora que a gravação dos depoimentos áudio ou vídeo não consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal «a quo», designadamente o modo como as declarações são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória e que existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia, argumentos utilizados pela tese restritiva até há pouco dominante, entende, ainda assim, que na reapreciação da prova as Relações têm “a mesma amplitude de poderes que tem a 1.ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos ou fazer incidir as regras da experiência, como efectiva garantia de um segundo grau de jurisdição”. E quando um Tribunal de 2.ª instância, ao reapreciar a prova ali produzida, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção (a que também está sujeito), “conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição” (cfr. Abrantes Geraldes, em “Reforma dos Recursos em Processo Civil”, Revista Julgar, n.º 4, Janeiro-Abril/2008, págs. 69 a 76; idem, mesmo Autor em “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 2008, págs. 279 a 286, Amâncio Ferreira, em “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 2008, pág. 228, e Acs. do STJ de 01/07/2008 - processo 08A191, de 25/11/2008 - processo 08A3334, de 12/03/2009 - processo 08B3684 e de 28/05/2009 - processo 4303/05.0TBTVD.S1, e desta Relação de 17/11/2009 – processo 140/08.8TBMDR.P1, todos em www.dgsi.pt). Na reapreciação que agora importa efectuar, teremos em conta que a prova deve ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas no seu meio social, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, já que tudo isto contribui, afinal, para a formação de raciocínios e juízos que conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão de cada facto. O Prof. Alberto dos Reis já ensinava que “prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei” (cfr. Código de Processo Civil anotado, vol. IV, pág. 570). A essas regras de apreciação está sujeita a prova testemunhal, como expressamente dispõe o art.º 396.º do Código Civil. Dada a sua reconhecida falibilidade, impõe-se uma especial avaliação crítica com vista a uma valoração conscienciosa e prudente do conteúdo dos depoimentos e da sua força probatória, devendo sempre ter-se em consideração a razão de ciência do depoente e as suas relações pessoais ou funcionais com as partes. Há, ainda, que apreciar a prova no seu conjunto, conjugando todos os elementos produzidos no processo e atendíveis, independentemente da sua proveniência, em face do princípio da aquisição processual (cfr. art.º 515.º do CPC). E, nessa apreciação global, o julgador poderá lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais, isto é, no seu prudente arbítrio, poderá deduzir de certo facto conhecido um facto desconhecido (art.ºs 349.º e 351.º, ambos do C. Civil). Como corolário da sujeição das provas à regra da livre apreciação do julgador, consagrada no art.º 655.º, n.º 1 do CPC, impõe-se-lhe indicar “os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348 e Ac. da RC de 3/10/2000, CJ, ano XXV, tomo IV, pág. 27). Enunciados os princípios e as regras de direito probatório, há que averiguar se a decisão sobre a matéria de facto foi proferida em conformidade com eles. Com este desiderato, procedeu-se à audição integral da prova produzida em audiência, assim como à análise de todos os documentos juntos aos autos, com incidência especial nos depoimentos e documentos indicados pela recorrente. Esta pretende que a matéria, por si, alegada nos artigos 13.º, 18.º e 22.º da petição inicial seja dada como provada, em vez de não provada, como sucedeu na sentença. Ali, quanto à fundamentação da decisão sobre esta matéria, escreveu-se o seguinte: “Relativamente à restante matéria alegada, a prova produzida não logrou convencer o Tribunal no sentido de lhe responder afirmativamente. Vejamos. 1. Vinha a Autora alegar que a 1ª Ré habilidosamente só participou o acidente após a alteração do contrato de seguro. Provado ficou que o pedido de alteração da apólice de seguro, de forma a nela ser abrangida a 2ª Ré, foi elaborada a 6 de Fevereiro de 2007, recebida pela Autora no dia seguinte. Por outro lado, apurado ficou que a participação do acidente de trabalho foi feita nas instalações da Autora sitas na …, sendo aí entregue, a 9 de Fevereiro de 2007, pela 2ª Ré e não pela 1ª Ré. Por último, apurado ficou que a alteração da apólice teve apenas lugar a 19 de Fevereiro de 2007, embora com efeitos a partir de 8 de Fevereiro de 2007. Destes factos resulta, aliás como a própria Autora confessa no seu articulado, que o pagamento da quantia em causa nos autos se ficou a dever a lapso dos seus serviços, não tendo conseguido demonstrar a intenção da 1ª Ré em a induzir em qualquer erro. 2. Veio a Autora alegar ter pago a quantia de € 3.888,76 ao G…, quantia essa relativa a intervenção cirúrgica, despesas hospitalares, medicamentosas e de tratamento da 2ª Ré. Ora, embora se encontrem juntos aos autos, a saber, os documentos emitidos pelo G… a fls. 242, 243, 244 a 246, 247, 248, 249, 250 e 251, relativas a tratamentos e despesas com medicamentos, despendidas com a 2ª Ré, a verdade é que, ao contrário do que incumbia à Autora, não fez prova do pagamento das quantias a que se referem as facturas juntas a fls. 242, 243, 244 a 246, 247. Na verdade, e ao contrário do que fez relativamente às facturas de fls. 247, 248, 249, 250 e 251, em que se veio demonstrar o pagamento com transferências bancárias referidas nos documentos de fls. 252, 253, 253 e 254, quanto às restantes não foi demonstrado qualquer transferência nem foi junto cópia de cheque ou documento que demonstrasse qualquer encontro de contas…” A recorrente fundamenta a sua discordância, quanto a esta decisão e motivação, no documento que juntou com a petição inicial sob o n.º 6, nos documentos que foram juntos posteriormente e que constituem as fls. 242 a 247 dos autos, bem como nos depoimentos das testemunhas E… e F… e no depoimento de parte da 2.ª Ré. O documento junto sob o n.º 6 encontra-se a fls. 40 dos autos e é constituído pela fotocópia de uma carta, datada de 14/11/2007, assinada pela Directora e pelo Chefe de Serviços da Autora, endereçada à 1.ª Ré, onde consta: “N.º da apólice: ……., N.º do Processo: ………/00, Data do Acidente: 29/01/2007, Data da Inclusão: 08/02/2007, Sinistrado: D… … Reportamo-nos à Participação de Sinistro que nos foi enviada, para comunicar o acidente de trabalho ocorrido na data acima referida. Após análise ao processo de sinistro, e conforme é do conhecimento de V. Exa., a alteração que viabilizou a inclusão da sinistrada na apólice em referência, produziu efeitos em data posterior ao acidente participado. Nestas circunstâncias, concluímos pela inaplicabilidade do contrato de seguro ao sinistro em causa, pelo que cumpre-nos informar que não podemos assumir quaisquer responsabilidades na reparação dos danos emergentes…” Os documentos juntos de fls. 242 a 247 são o resultado da pesquisa de facturação emitida pelo G…, relativa a medicamentos e tratamentos prestados à 2.ª Ré nos meses de Fevereiro, Março, Abril e Maio de 2007. Com relevância para a matéria impugnada, as testemunhas indicadas disseram, em resumo, o seguinte: O E…, que revelou ter conhecimento dos factos em discussão por ser funcionário da Autora e ter acompanhado o processo que nela foi organizado, foi peremptório em afirmar que a participação do acidente de trabalho foi entregue pela sinistrada no dia 9/2/2007, na agência …, e que não tem dúvidas de que o tomador do seguro (1.ª Ré) teve conhecimento disso e de tudo o que se passou posteriormente pela troca de correspondência que houve entre ela e o agente e a própria seguradora. Relativamente às despesas médicas e tratamentos, apesar de ter referenciado os valores dispendidos, não revelou ter conhecimento de terem sido pagos pela Autora. O F…, que também revelou ter conhecimento dos factos em discussão por ser funcionário da Autora, exercendo funções na direcção de acidentes de trabalho, relatou as circunstâncias em que foi feita a alteração do seguro, bem como a participação do acidente, disse que a carta registada a que se reporta o documento de fls. 40 foi enviada para a Ré C… e não foi devolvida e foi peremptório ao afirmar que esta “fez primeiro a alteração e só depois fez a participação”. Quanto às despesas médicas e medicamentosas, não revelou ter conhecimento de terem sido pagas pela Autora, esclarecendo que os pagamentos foram todos feitos à sinistrada. Finalmente, a Ré D… confirmou ter sido ela a efectuar a entrega da participação, depois de a ter assinado, tendo reconhecido como sua a assinatura nela aposta, embora dissesse desconhecer o seu conteúdo, bem como a data em que isso ocorreu. Acrescentou que foi no momento da sua assinatura, no escritório do contabilista, quando ali se deslocou para saber da apólice, que teve conhecimento de que não havia seguro. A cópia daquela participação mostra-se junta a fls. 238 e 241 dos autos e está assinada apenas pela Ré D…. Nela consta o local “Rua …. Agência …. 9/01/2007”. Como é notório, esta data é incorrecta, porquanto é anterior à data do acidente indicada na mesma participação – 29/1/2007-, verificando-se um lapso manifesto de escrita relativo ao mês. É sabido que o depoimento de parte constitui um meio de provocar a confissão, a qual, segundo o art. 352.º do Código Civil, é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (cfr. Prof. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 2.ª, pág. 497; Prof. Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª ed. pág. 539). Por isso, o depoimento de parte não se confunde com a confissão, constituindo uma das vias processuais através das quais a mesma pode ser obtida. No entanto, o depoimento de parte pode levar o juiz à convicção da realidade de um facto desfavorável ao depoente, mas sem que a declaração por ele prestada tenha revestido a forma de uma declaração confessória. A confissão consiste no reconhecimento “dum facto constitutivo dum seu dever ou sujeição, extintivo ou impeditivo dum seu direito ou modificativo duma situação jurídica em sentido contrário ao seu interesse, ou, ao invés, a negação da realidade dum facto favorável ao declarante, isto é, dum facto constitutivo dum seu direito, extintivo ou impeditivo dum seu dever ou sujeição ou modificativo duma situação jurídica no sentido do seu interesse” (cfr. Lebre de Freitas, Acção Declarativa Comum - À Luz do Código Revisto, págs. 227 e 228). O valor probatório atribuído à confissão assenta na regra da experiência segundo a qual ninguém mente contrariamente ao seu interesse. A confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente (cfr. art.º 358.º, n.º 1 do Código Civil). Não sendo reduzida a escrito, a confissão feita no depoimento de parte ficará sujeita à regra da livre apreciação da prova pelo tribunal, conforme determina o n.º 4 do citado art.º 358.º. Lebre de Freitas refere que: “Quando é feita sem os requisitos exigidos para que tenha eficácia probatória plena, a declaração de reconhecimento de factos desfavoráveis falte o requisito da direcção à parte contrária (art.º 358.º, n.ºs 3 e 4). É-o ainda quando a confissão conste duma declaração complexa, nos termos do art.º 360.º do CC, e a parte contrária não se queira dela prevalecer como meio de prova plena. (...) A confissão com valor de prova livre constitui um acto distinto do da confissão com valor de prova plena, que tem requisitos de forma e pressupostos, necessários à sua validade, mais amplos do que os daquela. A sua eficácia probatória exige que o juiz a confronte com todos os outros elementos de prova produzidos sobre o facto confessado para que tire a sua conclusão sobre se este se verificou ou não” (Ibidem, págs. 245-247 e acórdão desta Relação de 19/5/2010, processo n.º 999/06.31BVFR.Pl, em www.dgsi.pt). No caso em análise, apesar de a Ré D… não ter feito declarações confessórias, reduzidas a escrito (não tendo sido feita, por isso, qualquer consignação na respectiva acta – cfr. fls. 308), capazes de terem força probatória plena, não podem deixar de ser consideradas na formação da convicção do julgador, no confronto com a demais prova produzida. Sem lhe poder ser atribuído um valor idêntico aos depoimentos das testemunhas, que não tem, e ainda que não se verifique confissão nos aludidos termos, as declarações prestadas podem ser consideradas na apreciação global que importa efectuar, sobretudo quanto a factos que, directa ou reflexamente, lhe possam ser desfavoráveis. Quanto aos documentos, supra aludidos, porque são particulares, foram impugnados e alguns nem sequer se mostram assinados, apenas podem ser apreciados livremente pelo tribunal (cfr. art.º 366.º do Código Civil). Nessa apreciação, importa distinguir o documento de fls. 40 dos restantes. É que o teor do primeiro foi confirmado pelas testemunhas F… e E…. Já quanto ao teor dos restantes, nada foi dito em audiência de discussão e julgamento, não sendo bastante a referência genérica e conclusiva, por aqueles feita, relativamente às despesas que nelas constam e verificando-se total ausência de prova do seu pagamento. Apreciando a prova no seu conjunto, procedendo a uma análise necessariamente crítica de toda a prova produzida, de acordo com as regras e princípios acima referidos, não é possível formar a convicção que formou a Sr.ª Juíza da 1.ª instância, relativamente à matéria do art.º 13.º da petição inicial. Com efeito, do confronto dos depoimentos das testemunhas, acima resumidos, com o teor do documento de fls. 40 não é possível deixar de concluir que a 1.ª Ré sabia que o acidente ocorrera antes da alteração do contrato de seguro e que a participação só foi feita depois de ter procedido àquela alteração, tendo assim induzido em erro os serviços da seguradora, ainda que a entrega da participação tivesse sido feita pela sinistrada e não obstante ter sido indicada a verdadeira data da ocorrência. Apesar de ter sido a 2.ª Ré a proceder à entrega da participação, em 9/2/2007, a ela não é alheia a 1.ª Ré, já que era a esta que competia participar a ocorrência do acidente, na qualidade de entidade empregadora, sendo à entidade seguradora, nos termos estabelecidos na apólice, no caso de ter transferido a sua responsabilidade, tal como impõe o art.º 15.º do DL n.º 143/99, de 30/4, em vigor na data do acidente, o qual é aqui aplicável[1]. E, não tendo transferido a sua responsabilidade (como acabou por se verificar), tinha o dever de o participar ao tribunal competente, por escrito, independentemente de qualquer apreciação das condições legais da reparação, no prazo de oito dias, contados a partir da data do acidente ou do seu conhecimento, nos termos do art.º 16.º, n.ºs 1 e 2, independentemente da faculdade de participação por outras entidades referidas no art.º 19.º, ambos do aludido diploma. Tudo isto, sob pena de incorrer em responsabilidade contra-ordenacional, nos termos do art.º 67.º, n.º 2 do citado DL n.º 143/99. Sendo assim, como é, torna-se demasiado evidente que quem tinha interesse em efectuar a participação nos termos em que foi feita era a 1.ª Ré, enquanto entidade patronal, para tentar evitar não só a sua responsabilização civil como contra-ordenacional. Acresce que ela própria confessou no art.º 6.º da contestação que “procedeu à comunicação do sinistro”. Aliás, a motivação da decisão da Sr.º Juíza, relativamente a esta matéria, nem sequer versou sobre meios de prova ou ausência deles, referindo apenas outros factos provados e uma alegada “confissão” da Autora. Mas o mesmo já não pode dizer-se da matéria alegada nos art.ºs 18.º e 22.º, referente ao pagamento da intervenção cirúrgica e demais despesas hospitalares, medicamentosas e de tratamento com a 2.ª Ré. Nesta parte, afigura-se-nos que a decisão está correcta e mostra-se suficientemente fundamentada. Ninguém demonstrou ter conhecimento desse pagamento e os autos são totalmente omissos quanto ao mesmo. Assim, mantém-se como não provada a matéria alegada nos art.ºs 18.º e 22.º e altera-se a decisão relativa à matéria do art.º 13.º, dando-se como provado apenas que “a 1.ª Ré participou o acidente de trabalho ocorrido com a 2.ª Ré, através desta, depois de ter pedido a alteração do contrato de seguro, supra aludida no ponto 6, induzindo em erro os serviços administrativos da Autora”. 2.2. Da repetição do indevido Para fundamentar a sua pretensão, a apelante invocou o disposto no art.º 478.º do Código Civil. Este artigo estatui: “Aquele que cumprir obrigação alheia, na convicção errónea de estar obrigado para com o devedor a cumpri-la, não tem o direito de repetição contra o credor, mas apenas o direito de exigir do devedor exonerado aquilo com que este injustamente se locupletou, excepto se o credor conhecia o erro ao receber a prestação”. A modalidade de repetição do indevido, aqui prevista, tal como consta da epígrafe do artigo, consiste no “cumprimento de obrigação alheia na convicção de estar obrigado a cumpri-la”. Prevê-se neste preceito a hipótese de o solvens cumprir uma obrigação alheia, na convicção de estar obrigado a cumpri-la. Tal como ensina o Prof. Menezes Cordeiro, “Numa situação dessas, o solvens ficará empobrecido, já que foi pagar uma obrigação que não era sua e que não estava obrigado a cumprir, embora, disso, estivesse convencido. Potencialmente enriquecidos ficam: - ou o credor, que surgirá satisfeito, independentemente das áleas que possam atingir o verdadeiro devedor; - ou o verdadeiro devedor, que verá, sem esforço, efectivado aquilo que a ele competia. … A lei, na linha de uma opção correcta de defesa de uma relação de confiança que se estabelece entre o solvens e o legítimo accipiens – que pode e deve, nos termos expostos, receber a prestação de um terceiro – opta por consolidar o cumprimento, submetendo ao enriquecimento o devedor e isso desde que o credor desconhecesse o erro, ao receber a prestação (art.º 478.º, in fine). Queda, ao solvens, exigir do devedor exonerado aquilo com que injustamente se locupletou” (in Tratado de Direito Civil Português, II, Tomo III, págs. 266 e 267). Diferente desta situação é a prevista no art.º 477.º, relativo ao cumprimento de obrigação alheia na convicção de que é própria. Embora ambos pressuponham o cumprimento de obrigação alheia, a convicção desse cumprimento por parte do solvens é diferente. No art.º 477.º supõe-se que “o autor do cumprimento julgava que a dívida era sua: ele é que era o devedor”. No art.º 478.º “supõe-se o conhecimento de que a dívida era alheia; mas julgou-se ter a obrigação de a cumprir” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., pág. 438). Na sentença recorrida, a situação dos autos foi subsumida ao art.º 477.º. Porém mal, já que a autora não cumpriu a dívida no convencimento de que era própria, mas alheia e que estava obrigada a cumpri-la. É pacífico que estamos perante um acidente de trabalho. Como tal foi considerado pelas partes e é o que resulta da matéria de facto descrita no n.º 4 dos factos provados e do disposto no art.º 6.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97[2], de 13/9, e do citado DL n.º 143/99. Também é inquestionável que o mesmo acidente não está coberto por qualquer seguro, designadamente o referenciado nos autos, já que ocorreu antes da alteração efectuada ao contrato então existente. Nem isso vem posto em causa! Não havendo seguro à data do acidente, por não ter transferido atempadamente a sua responsabilidade pela correspondente reparação, como devia, (cfr. art.ºs 10.º e 37.º, n.º 1, ambos da citada Lei n.º 100/97), a única responsável por tal reparação e demais encargos previstos naquela lei é a1.ª Ré, nos termos do art.º 11.º do mencionado DL n.º 143/99. Trata-se, por conseguinte, de uma obrigação alheia à Autora. No entanto, esta cumpriu-a, reparando os danos decorrentes do acidente, na convicção de estar obrigada a cumpri-la, certamente no pressuposto de que aquele estava coberto pelo seguro. Ao assim proceder, ficou empobrecida, pois cumpriu uma obrigação que não era sua e que não estava obrigada a cumprir, embora estivesse convencida, erroneamente, de que devia cumpri-la. Não se mostra que a 2.ª Ré, credora daquela obrigação, ao receber as prestações feitas pela Autora tivesse conhecimento do erro em que esta incorreu, nem isso foi sequer alegado, muito menos provado! Estamos, assim, perante um caso claramente abrangido pelo citado art.º 478.º. A 1.ª Ré, verdadeira devedora, foi a beneficiária do empobrecimento da Autora, pois viu satisfeito o que lhe competia, sem qualquer esforço, e porque a prestação efectuada por esta terceira é, potencialmente, liberatória, por via do art.º 767.º, n.º 1 do Código Civil. Por isso mesmo, o referido art.º 478.º confere à Autora o direito de exigir da 1.ª Ré aquilo com que injustamente se locupletou. E só a esta. Nunca à 2.ª Ré, como foi entendido na sentença recorrida, pois de nada beneficiou indevidamente!... Não obstante a condenação errada da 2.ª Ré, ali efectuada, não podemos alterar essa condenação, como avança a Autora/apelante, pela simples razão de que esta não tem legitimidade para impugnar a sentença nessa parte e aquela não recorreu dela. Aliás, com o devido respeito, não podemos deixar de manifestar estranheza por tal pretensão, tanto mais que a acção já foi estruturada com base no mencionado art.º 478.º e, mesmo assim, foi formulado o aludido pedido subsidiário contra a 2.ª Ré. Quanto a esta condenação, nada mais há a fazer senão apelar ao prudente critério e bom senso da Autora no sentido de evitar a correspondente execução. Relativamente ao que a Autora pode exigir da 1.ª Ré, enquanto devedor exonerado, diz o mencionado art.º 478.º que é “aquilo com que este injustamente se locupletou”. A Autora não provou, como lhe competia, nos termos do art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil, que tivesse procedido ao pagamento das despesas médicas, no montante de 3.888,76 €, como reclama no recurso. Contrariamente ao que ali é afirmado, a emissão das alegadas facturas e a sua inserção na contabilidade não conferem à Autora/apelante o direito de exigir o seu valor não só porque não as pagou, não tendo, por isso, ficado empobrecida, mas também porque a 1.ª Ré não teve o correspondente locupletamento injusto, pressupostos necessários à repetição ao abrigo do aludido art.º 478.º, sendo que a entidade que prestou os serviços nelas mencionados sempre poderá exigir o seu pagamento à verdadeira responsável. Não podemos também olvidar que, como se depreende do princípio geral consagrado no art.º 473.º do Código Civil, para além de outros requisitos, a obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição. É o que ensinam os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, págs. 427 a 429, onde escreveram: “A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos: a) É necessário, em primeiro lugar, que haja um enriquecimento. […] b) A obrigação de restituir pressupõe, em segundo lugar, que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido. […] c) A obrigação de restituir pressupõe, finalmente, que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição”. Na página seguinte, escreveram “Para que haja lugar à obrigação de restituir é necessário, ainda, que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga o direito à restituição”. E, na pág. 439 da mesma obra, escreveram: “O objecto da obrigação de restituir é determinado em função de dois limites: a) Em primeiro lugar, o beneficiado não é obrigado a restituir todo o objecto da deslocação patrimonial operada (ou o valor correspondente, quando a restituição em espécie não seja possível). Deve restituir apenas aquilo com que efectivamente se acha enriquecido, podendo haver diferença — e diferença sensível — entre o enriquecimento do beneficiado à data da deslocação patrimonial e o enriquecimento actual […]. O enriquecimento assim delimitado corresponderá à diferença entre a situação real e actual do beneficiado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria, se não fosse a deslocação patrimonial operada […] b) Em segundo lugar, o objecto da obrigação de restituir deve compreender «tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido». Além do limite baseado no enriquecimento (efectivo e actual), a doutrina corrente tem aludido a um outro limite da obrigação de restituir, que consistiria no empobrecimento do lesado”. E, na pág. 440, acrescentam: “O momento em que deve computar-se o montante do enriquecimento é o da verificação de algum dos factos referidos nas alíneas a) e b) do artigo seguinte, ou seja, o da citação judicial para a restituição ou o do conhecimento da falta de causa ou da falta do efeito visado (cfr. n.º 2 do art.º 473.º)”. O Professor António Menezes Cordeiro, no Tratado de Direito Civil Português, II, Tomo III, a propósito dos requisitos gerais deste instituto, referindo-se ao enriquecimento e depois de elencar as situações em que ele pode traduzir-se, escreveu que, dado estarmos no campo do direito das obrigações, “o instituto do enriquecimento só pode ser activado quando algo transite de uma pessoa para a outra” (cfr. pág. 226). Referindo-se ao empobrecimento, depois de referir que ele pode traduzir-se nas figuras inversas às apontadas a propósito do enriquecimento e que lhe basta o dano em abstracto, acrescentou, no entanto, que era necessária “a deslocação patrimonial ou o acervo de vantagens que se destinariam ao empobrecido mas que, mercê do fenómeno em estudo, surgem na esfera do enriquecido” (cfr. pág. 228). Quanto à relação entre o enriquecimento e o empobrecimento defende que ela deve existir, por decorrer da expressão “à custa de outrem”, a qual tem utilidade desde que seja devidamente integrada, devendo ser entendida como “uma proposição específica de enriquecimento sem causa, que exprime uma relação entre os futuros credores da obrigação de restituir o enriquecimento e o devedor da mesma” (cfr. págs. 230 e 231). Defende, ainda, que daquela expressão deriva a necessidade da imediação entre o enriquecimento de uma das partes e o empobrecimento da outra e que a relação entre o enriquecido e o empobrecido deve ser directa, já que “Um certo enriquecimento pressupõe uma precisa relação jurídica (logicamente) entre dois sujeitos. Essa relação é determinada por um juízo de valor…”, o qual “vai ter por base a ideia fecunda do conteúdo da destinação” (cfr. pág. 234). Relativamente à obrigação de restituir, ensina o mesmo Professor que ela está sujeita a três limites, a saber: “- deve ser restituído todo o enriquecimento (1.º limite); - (mas) desde que obtido à custa do empobrecido, isto é, nos limites do dano deste” e até ao dano em abstracto (2.º limite); - ou em concreto (3.º limite), consoante o que se mostre mais elevado (cfr. págs. 246 a 248). E remata: “Quando se fala no enriquecimento em concreto, obtido à custa do dano concreto ou abstracto, tem-se em vista uma causalidade. Apenas por essa via se poderá associar um certo enriquecimento a determinado dano. Tal causalidade terá de obedecer a uma lógica de adequação naturalística: um certo enriquecimento terá a ver com determinado dano quando, pelas regras da experiência, seja a causa adequada e normal deste último. Afastamos, com isso, causalidades anómalas, que se prendem com situações hipotéticas. […] O enriquecimento sem causa trabalha, no terreno, com situações reais. Isso implica afastar cenários subjectivos ou hipotéticos, que nos levam a comparar, em vez de patrimónios (reais) antes e depois do enriquecimento, um património real antes do enriquecimento e um património hipotético depois dele, património esse no qual fosse possível inserir o produto de causalidades anómalas (ainda que, porventura, demonstráveis) ou de decisões totalmente individuais. Não temos qualquer base legal que nos leve a transferir, para o enriquecido (ou para o empobrecido) riscos que não tenham a ver com a causalidade normal” (cfr. pág. 249). Destes ensinamentos resulta que aquilo que a Autora pode exigir da 1.ª Ré corresponde ao que pagou que, conforme resulta da matéria de facto provada, ascende a 3.912,11€. Esta importância vence juros, à taxa legal, a partir da citação, nos termos dos art.ºs 480.º, al. a) e 559.º, ambos do Código Civil. Procedem, por conseguinte, parte das conclusões, o que determina a alteração da sentença impugnada. Sumariando nos termos do n.º 7 do art.º 713.º do CPC, em jeito de síntese conclusiva: A seguradora que reparar os danos resultantes de um acidente de trabalho, na convicção errónea de que estava obrigada a fazê-lo, por força de um contrato de seguro que acabou por verificar que não existia na data em que ocorreu, pode exigir da entidade patronal o que pagou a título dessa reparação, ao abrigo do art.º 478.º do Código Civil. III. Decisão Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente, pelo que se condena a Ré C…, Lda., a pagar à Autora a quantia de 3.912,11 € (três mil, novecentos e doze euros e onze cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, desde a sua citação até integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado. * Custas em ambas as instâncias pela Autora/recorrente e pela 1.ª Ré/recorrida, na proporção do respectivo decaimento.* Porto, 17 de Abril de 2012Fernando Augusto Samões José Manuel Cabrita Vieira e Cunha Maria das Dores Eiró de Araújo ______________ [1] Este diploma acabou por ser revogado pela Lei n.º 98/2009, de 4/9, que apenas se aplica aos acidentes ocorridos após a sua entrada em vigor, ocorrida em 1/1/2010 (cfr. art.ºs 186.º, 187.º, n.º 1 e 188.º). [2] Também revogada pela referida Lei n.º 98/2009, mas aplicável ao presente caso, nos termos já aludidos quanto ao DL n.º 143/99. |