Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
273/20.2T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: SEGURO FACULTATIVO
ÂMBITO DA COBERTURA
PAGAMENTO DA INDEMNIZAÇÃO
DEVER DE INFORMAÇÃO
PRIVAÇÃO DO USO
Nº do Documento: RP20221010273/20.2T8PVZ.P1
Data do Acordão: 10/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No seguro (facultativo) de coisas, a privação de uso bem, se não acordada entre as partes, não faz parte da cobertura, dado que o dano a atender é apenas o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro.
II - Mas, havendo incumprimento da obrigação essencial do contrato (pagamento da indemnização) ou violação de deveres acessórios ao mesmo (por. ex. do dever de informação que se revele essencial) o incumpridor pode ser condenado a título do aludido dano da privação do uso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 273/20.2T8PVZ.P1

Recorrente – X..., SA
Recorrido – AA

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
AA intentou a presente ação comum contra a sociedade X..., S.A., peticionando a condenação desta no pagamento (i) da quantia de 13.289,85 € correspondente ao valor seguro descontado o valor da franquia e o valor do salvado; (ii) da quantia diária de 50,00€ a título de privação de uso, desde a data do sinistro (9.03.2019) até efetiva e integral disponibilização da indemnização referida em (i), computando à data (14.02.2020) em 17.100,00 €; (iii) juros moratórios, vencidos e vincendos, ao dobro da taxa legal sobre o montante indicado em (i), calculados desde 30.04.2019 [o termo do prazo de 15+8 dias úteis a contar da conclusão da peritagem (26.03.2019)] e até à data em que o pagamento de tal quantia se venha a concretizar; (iv) juros moratórios, vencidos e vincendos contados à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento sobre a quantia reclamada em (ii).

Para tanto e em síntese, alegou que celebrou com a ré um contrato de seguro automóvel para o veículo do qual era proprietário com a matrícula ..-UT-.., o qual incluía a cobertura de “Danos próprios”. Em 09.03.2019 ocorreu um acidente de viação com o referido veículo seguro, por colisão com o veículo com a matrícula ..-..-UU, da qual resultou a perda total do mesmo. Nesse seguimento, o autor contactou a ré, a qual, por missiva datada de 26.03.2019 e após vistoria efetuada à viatura, comunicou que colocava condicionalmente à sua disposição a quantia de 13.289,85€, já deduzida a franquia contratual e mantendo ele a posse do veículo com danos (salvado), tendo atribuído a este último o valor de 5.580,00€. Em 04.04.2019, o autor fez saber à ré que aceitava a proposta condicional, tendo a mesma respondido por carta datada de 8.05.2019, informando que, afinal, declinava qualquer responsabilidade pela via extrajudicial. Após várias solicitações de esclarecimentos, a ré manteve a sua posição e recusou o envio da documentação solicitada, designadamente do relatório de peritagem, porquanto se tratava de informação interna.

Regularmente citada, a ré apresentou contestação e pugnou pela improcedência da ação, alegando que apurou um conjunto de circunstâncias que lhe geraram a convicção de que o acidente de viação não ocorreu da forma descrita, nem de forma súbita, aleatória e inesperada, mas antes foi provocado de forma intencional e dolosa. De forma sucinta, argumentou que: - o local do acidente era ermo, com iluminação pública insuficiente e à hora do acidente já era noite escura; - o seu averiguador constatou ali vestígios recentes do embate participado, mas não encontrou quaisquer vestígios de marcas de derrapagem e/ou de travagem que lhe pudesse associar (nomeadamente, marcas de borracha), haviam marcas de borracha, mas algumas não eram recentes e outros tinham uma configuração circular; - o seu averiguador deslocou-se aos Postos Territoriais da G.N.R. da Póvoa de Varzim, Vila do Conde e Vila Nova de Famalicão, bem como Destacamento de Trânsito da G.N.R. do Porto e à Esquadra de Trânsito da P.S.P. da Póvoa de Varzim, inexistindo qualquer participação dessas entidades, o que estranhou porquanto das declarações do autor à data, as autoridades tinham estado no local; - deslocou-se ainda o averiguador às oficinas onde os veículos se encontravam parqueados, tendo o mesmo constatado que o veículo seguro não apresentava quaisquer danos compatíveis com um embate produzido em movimento; - apurou ainda o averiguador que o outro veículo interveniente no acidente se encontrava aparentemente muito mal conservado, cheio de pontos de ferrugem e faltas de tinta, não evidenciando igualmente danos compatíveis de uma colisão numa outra viatura em movimento, como sejam riscos, sulcos ou mossas na sua parte frontal – existiam mas não são compatíveis – bem como problemas mecânicos e falta de manutenção adequada, designadamente ao nível do óleo do motor (nível abaixo do recomendado e lubrificante com elevado desgaste); - os airbags do lugar do condutor e do passageiro da frente deste outro veículo interveniente no acidente não se abriram, constatando aquele averiguador que esta viatura já não os possuía e, além disso, envergava marcas evidentes de ter sofrido, pelo menos, um outro acidente frontal, o qual foi reparado de forma grosseira; - acresce que a inspeção obrigatória deste outro veículo interveniente no acidente terminava no dia 31.03.2019 e o contrato de seguro automóvel do mesmo terminava no dia 27.03.2019; - os condutores de ambos os veículos não sofreram quaisquer danos corporais em virtude do acidente. Finalmente, alegou ainda que o veículo seguro, à data do sinistro, tinha um valor comercial inferior a 15.000,00€, invocando a invalidade do contrato de seguro na parte excedente àquele valor e, por último, que não houve lugar à violação de quaisquer deveres acessórios de conduta.

Dispensada a realização de audiência prévia foi proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova. Realizou-se a audiência final de discussão e julgamento e foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “a) Condeno a Ré X..., S.A. na obrigação de pagamento ao Autor AA: i. da quantia de 13.289,85 EUR (treze mil, duzentos e oitenta e nove euros e oitenta e cinco cêntimos), a título de prestação contratual principal, acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal para as obrigações meramente civis, desde 30/04/2019 até efetivo e integral pagamento; ii. da quantia de 7.500,00 EUR (sete mil e quinhentos euros), a título de dano da privação do uso, acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal para as obrigações meramente civis, desde a data da prolação da presente sentença até efetivo e integral pagamento; iii. da quantia de 10,00 EUR (dez euros) diários, a título de dano da privação do uso, desde a data da prolação da presente sentença até efetivo e integral pagamento da quantia referida em i). b) Absolvo a Ré do demais peticionado”.

II – DO Recurso
Inconformada, a ré veio apelar, formulando as seguintes Conclusões:
1 - O recurso visa discutir o julgamento acerca da matéria de facto julgada provada/não provada e a decisão acerca da matéria de direito atinente à subsunção dos factos provados ao contrato de seguro e à Lei.
CAPÍTULO I
2 - A apelante não se conforma com apreciação do conjunto da prova produzida no que tange a factualidade vertida nos pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 dos factos provados, bem como, dos pontos c) e d) dos factos não provados e nos pontos 33, 38, 78 e 93 da contestação da ré, visando a impugnação das correspondentes decisões.
3 - Entende que o tribunal, ao responder aos indicados pontos dos factos provados/não provados, incorreu em manifesto erro de julgamento que urge retificar.
4 - No que tange a al. c) dos factos julgados não provados, refere a sentença que não se provou que os veículos intervenientes não evidenciavam riscos, nem sulcos, resultantes do atrito da colisão e compatíveis com o embate de dois veículos em movimento.
5 - Tal al. respeita à matéria de facto alegada pela apelante nos pontos 31, 33 e 38 da sua contestação, que aqui se dão por reproduzidos.
6 - A respeito dos aludidos factos, importa começar por salientar que depôs em audiência a testemunha BB, pessoa que prestou à ré o serviço de averiguação aos factos participados pelo autor.
7 - Recordando o teor do depoimento prestado pela testemunha na audiência do dia 21 de outubro de 2021, pelas 14h52m, constata-se que o mesmo referiu ter analisado os danos do UT e que, - não padecia de danos nas portas da frente e de trás do lado direito, na zona onde o Hyundai tinha embatido no Peugeot (Depoimento entre os minutos 22:15 e 23:35); - que se tratou de um “embate a 90 graus”, semelhante ao que se produziria num embate da frente do Hyundai num veículo estacionado; - não padecia de danos, nem na porta da frente, nem na porta de trás deste último, que fossem compatíveis com tal arrastamento ou fricção entre as duas viaturas em movimento, nomeadamente, de riscos ou sulcos na lateral direita, provenientes do arrastamento desta viatura na frente do Hyundai, (Depoimento entre os minutos 24:10 e 24:42)
8 - Por seu turno, olhando atentamente para as fotografias a cores n.º 9, 10 e 11, juntas com a contestação (consultar na plataforma CITIUS), logo resultam confirmados os factos atestados pela testemunha BB, sendo aí facilmente divisáveis os danos provocados na lateral do UT, especialmente nas suas portas, consubstanciados em mossas profundas, notoriamente provenientes do impacto direto da frente do UU na lateral do UT, acompanhadas por perdas de tinta pouco expressivas, por ter estalado pontualmente, mas não se veem (nem existem) quaisquer danos na lateral do UT provocados por fricção e arrastamento da frente do UU naquelas estruturas, nomeadamente riscos e sulcos horizontais, o que seria natural se o veículo seguro estivesse a circular para a sua frente, ainda que a pouca velocidade, no momento em que foi embatido.
9 - A testemunha BB referiu também ter-se deslocado local onde o UU se encontrava após o embate e ter analisado os danos que o mesmo ostentava, padecendo de danos na parte da frente - decorrentes de um embate num objeto plano e que denotavam um embate que envolveu em simultâneo toda a frente do UU (Depoimento entre os minutos 19:27 e 20:21); - a pintura da frente do Hyundai apresentava-se estalada pela deformação do veículo, mas que não tinha indícios de ter roçado, arrastado ou friccionado num outro veículo em andamento, nomeadamente no UT. (Depoimento entre os minutos 20:21 e 21:00);
10 - Por seu turno, olhando atentamente para as fotografias a cores n.º 12, 13 e 14, juntas com a contestação (consultar na plataforma CITIUS), logo resultam confirmados os factos atestados pela testemunha:- nelas são divisáveis os danos provocados na frente do UU, especialmente no capot, pela lateral do UT: recuo simultâneo de todo o capot, como o produzido num embate frontal numa superfície lisa, sendo patente a inexistência de quaisquer marcas na tinta do capot compatíveis com a fricção ou arrastamento desta peça na lateral de uma outra viatura em movimento.- Existe perda de tinta na zona central do capot do UU – uma marca vertical e compatível com o embate frontal desta peça na coluna das portas do UT, não se prolonga nem arrasta para o lado esquerdo, tal como seria natural e expectável que acontecesse, se o veículo seguro na recorrente estivesse em movimento da esquerda para a direita, atento o sentido do UU, como foi participado pelo autor. - São danos manifestamente compatíveis com o arrastamento ou fricção do capot do UU esta peça na lateral do UT em movimento, mas sim com o impacto direto da frente do UU na coluna das portas do UT, estando esta viatura imobilizada.
11 - Perante os danos evidenciados pelos veículos intervenientes, a testemunha BB declarou tudo lhe levava a crer que o Peugeot se encontrava imobilizado no momento do embate com o Hyundai, não existindo marcas de arrastamento em ambos os veículos, nem marcas de embate nos guarda-lamas frontal e traseiro do veículo seguro, provocados pela sua deslocação a raspar no Hyundai. (Depoimento entre os minutos 46:10 e 46:30).
12 - No seu depoimento, prestado em 21.10.2021, entre os minutos 47:30 e 48:10, a testemunha BB referiu expressamente que se o Peugeot estivesse em movimento no momento do embate com o UU teria de apresentar danos para lá da zona das portas, ora à frente, ora atrás da zona das portas do seu lado direito.
13 - O depoimento desta testemunha, coerente, credível e devidamente justificado nos factos objetivos a que teve acesso, bem como, as fotografias n.º 9 a 14 juntas com a contestação da ré, constituem elementos probatórios que, salvo melhor entendimento, impunham ao Tribunal recorrido decisão diversa da proferida.
14 - Como tal, a decisão proferida a respeito da al. c) dos factos não provados, bem como, a decisão proferida acerca dos factos alegados pela apelante nos pontos 31, 33 e 38 da sua contestação, deve ser revogada e substituída por outra que julgue provado o seguinte: •“Após o embate no HT, o UT não apresentava quaisquer danos compatíveis com um embate produzido em movimento, nomeadamente, não evidenciava riscos, nem sulcos, resultantes do atrito produzido pelo embate entre a lateral direita do veículo seguro, em deslocação para a sua frente, e a parte frontal do HT;” •Quando o UT sofreu o embate causador dos danos que ostentava na sua lateral direita, esta viatura estava imobilizada; •Após o embate que protagonizou com o UT, o veículo UU não apresentava riscos, sulcos ou mossas na sua frente compatíveis com um embate numa outra viatura que então se movia do seu lado esquerdo para o seu lado direito;
15 - No que tange o facto não provado constante da al. i) dos factos não provados, ainda que a asserção nela vertida possa encerrar matéria conclusiva, a testemunha BB também se pronunciou a respeito do seu teor, tendo em consideração todos os factos objetivos a que teve acesso e constam do processo.
16 - No seu depoimento, entre os minutos 47:15 e 47:30, a testemunha BB referiu expressamente que, na sua perspetiva, houve uma manobra propositada de ir com a frente do Hyundai contra a lateral do Peugeot, embatendo ambos na metade esquerda da faixa de rodagem por onde o Hyundai circulava.
17 - Mais referiu, entre os minutos 48:00 e 48:40, que se ambos os veículos estivessem em movimento, aquando do embate, teriam tomado direção diversa da que tomaram e teriam acabado imobilizados longe um do outro, o que não sucedeu.
18 - E de facto, compulsando as fotografias juntas com o articulado inicial constata-se que após o embate, ambas as viaturas acabaram imobilizadas muito próximas entre si.
19 - O depoimento desta testemunha, coerente, credível e devidamente justificado nos factos objetivos a que teve acesso, bem como, as fotografias juntas com o articulado inicial, constituem elementos probatórios que impunham decisão diversa da proferida.
20 - Como tal, a decisão proferida a respeito da al. i) dos factos não provados deve ser revogada e substituída por outra que julgue provado o seguinte: “o embate dos autos foi intencionalmente provocado pelo autor”.
21 - Dando aqui por reproduzida a matéria de facto alegada pela ré no ponto 78 da sua contestação, importa referir que existem elementos probatórios no processo que impunham decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, a seu respeito.
22 - As declarações que o próprio autor prestou no dia 21.10.2021, às 09:51m, entre os minutos 41:19 e 46:00, onde reconheceu que foi contactado pelo averiguador da ré e que redigiu a declaração constante do documento n.º 4 junto com a contestação, impunha que se julgasse provada a factualidade vertida no ponto 78 da contestação.
23 - Como tal, deve tal decisão ser revogada e substituída por outra que julgue provado o seguinte: •“O averiguador da ré solicitou ao autor que descrevesse o teor dos esclarecimentos que lhe havia prestado durante a conversa que tiveram, tendo o autor preenchido e assinado uma declaração nos seguintes termos: “No dia 9 Março de 2019 por volta da 20:00H conduzia Peugeot ... Preta ..-UT-.. na Travessa... a subir e ao chegar a Rua ... abrandei e olho para os 2 lado e não vejo nenhum carro. Acelero e surge do lado drt um Hiynday coope a alta velocidade eu para evitar o choque acelero. Eu não consegui evitar o acidente porque o condutor do Hiunday não trava resultando num embate forte entre a frente do Hionday nas portas drt da peugeot. Tanto eu como o outro condutor tínhamos como destino nacional 206. Tanto eu como o outro condutor eramos os únicos ocupantes nem eu nem outro condutor sofremos qualquer ferimento. Em minha opinião em resultado excessiva do Hiunday como circular em fora de mão. A GNR compareceu no local porque foi ativado o sistema do Alerta da Peugeot. Chegado a GNR ao local não tomaram conta da ocorrência porque eu e o outro condutor preenchemos a declaração Amigável. Comprei a carrinha no stand S... em ... em setembro 2018 por 18.000E, estava em perfeitas condições não tido qualquer acidente antes deste. O embate deu-se na via da esquerda do sentido do outro veículo isto porque eu ainda nem sequer tinha chegado ao eixo da via pelo que o outro veículo me veio bater fora de mão arrastando-me e ficamos os 2 na via da esquerda. Não tenho qualquer relação familiar ou amizade com outro condutor Ficando a conhecê-lo nesse dia."
24 - No ponto 93 da sua contestação alegou que: “93. Na verdade: •o UT foi embatido na sua lateral direita, pela frente do UU; •o UT não se encontrava a circular no momento em que o embate ocorreu; •o UT encontrava-se imobilizado no entroncamento acima descrito, próximo do limite da Travessa da Cerca e do portão acima referido; •desde que sofreu o embate, o UT foi projetado para o seu lado esquerdo, rodopiou no sentido dos ponteiros do relógio e andou ligeiramente para trás; •o UT, desde que foi embatido até se imobilizar de novo, não percorreu mais de 4 ou 5 metros; •o UU desde que embateu no UT não percorreu mais de 4 ou 5 metros até se imobilizar definitivamente, junto à frente deste último;”
25 - Dá-se por reproduzido o acima alegado relativamente ao embate que se produziu entre a lateral do UT e a frente do UU, bem como, quanto à circunstância do UT não se encontrar a circular no momento em que a frente do UU embateu na lateral do UT.
26 - Porém, no que tange o movimento protagonizado pelo UT após o impacto provocado pela frente do UU, salienta-se que existem no processo as fotografias juntas com o articulado inicial, bem como, as fotografias n.º 22 e 23 juntas com a contestação, nas quais é bem visível que ambos os veículos envolvidos no embate se deslocaram para a esquerda após este embate.
27 - Em face dos factos objetivos acabados de descrever, patentes nas fotografias juntas, bem como perante os elementos de prova citados supra a respeito da impugnação da resposta dada aos factos alegados nos pontos 31, 33 e 38 da contestação, não restam dúvidas de que todos eles constituem elementos que impunham decisão diversa da proferida a respeito de parte dos factos vertidos no ponto 93 da contestação.
28 - Como tal, esta decisão deve ser substituída por outra que julgue provado: “Na verdade: •o UT foi embatido na sua lateral direita, pela frente do UU; •o UT não se encontrava a circular no momento em que o embate ocorreu; •desde que sofreu o embate, o UT foi projetado para o seu lado esquerdo; •o UU imobilizou-se junto à frente do UT”;
29 - No que respeita à dinâmica do acidente, começa por salientar-se que a factualidade julgada provada assentou, também, nas declarações do próprio autor, pessoa com evidente interesse no desfecho da lide e cujo depoimento divergiu clara e diretamente do depoimento prestado pela testemunha CC.
30 - Como tal, não podia o tribunal ter reputado as declarações do autor de coerentes e credíveis, quando tais declarações foram postas em causa pelo depoimento da única “testemunha” que depôs a respeito do embate, bem como, pelos elementos objetivos que constam do processo a que acima já nos referimos.
31 - Entre os minutos 02:00 e 03:29 das declarações que prestou às 09:54 do dia 21.10.2021, o autor começou por descrever que chegou ao entroncamento formado entre a Rua ... e a Rua ..., olhou para a direita e, não vendo ninguém, acelerou, colocou o veículo em andamento e nessa altura vem a outra viatura e bateu-lhe arrastando-o para a esquerda.
32 - O autor declarou que quando o embate ocorreu, o veículo que tripulava estava em andamento, a cerca de 10/15 km/h, e que nunca chegou a imobilizar a sua marcha porque não existia ali qualquer sinal de STOP, sendo que, ao chegar mais ou menos a meio da faixa esquerda da Rua ... (onde circulava o Hyundai), foi embatido pelo UU. (Declarações do autor, entre os minutos 13:15 e 15:00)
33 - Por seu turno, a testemunha CC descreveu que conduzia o UU na Rua ... e que quando chegou ao entroncamento desta artéria com a Rua ..., à sua esquerda, surgiu o UT a circular neste arruamento.
34 - Mais referiu que, pretendendo o UT virar à sua esquerda, o seu condutor prosseguiu a sua marcha e ingressou na Rua ... e deu-se o embate entre a frente da sua viatura na lateral direita do veículo do autor. (Depoimento da testemunha CC, entre os minutos 04:00 e 04:55)
35 - Esta testemunha referiu ainda no seu depoimento que o UT saiu do entroncamento à sua esquerda, transpôs totalmente a hemifaixa de rodagem esquerda da Rua ..., atento o seu sentido de marcha, invadiu a hemifaixa de rodagem por onde o UU circulava, onde ocorreu o embate entre a frente do UU e a lateral do UT. (Depoimento da testemunha CC, entre os minutos 11:30 e 12:15)
36 - Mais esclareceu que embateu com toda a frente da sua viatura na lateral direita do UT, não tendo tido tempo para reagir de qualquer modo, declarando, bem assim, que não mudou de direção perante o surgimento do UT a circular na sua frente. (Depoimento da testemunha entre os minutos 14:30 e 15:0 e os minutos 16:00 e 16:40)
37 - A respeito da velocidade praticada pelo condutor do UT, quando este lhe surgiu, a testemunha CC asseverou que aquele circulava a cerca de 60/70 km/h e que não abrandou, nem parou, junto ao entroncamento. (Depoimento da testemunha CC, entre os minutos 17:00 e 17:30)
38 - Por fim, esta testemunha referiu que o UT vinha a circular com velocidade, da esquerda para a direita, atento o seu sentido de marcha, colocando-se na frente do UU no momento em que se deu o embate. (Depoimento da testemunha CC, entre os minutos 48:00 e 49:32).
39 - Ora, perante o depoimento desta testemunha, entende a apelante que estava vedado ao tribunal considerar como provada a versão dos factos tal como ela resultou das declarações do próprio autor.
40 - Como tal, as declarações do autor, de sentido diametralmente oposto ao prestado pela testemunha, são manifestamente inapropriadas para a demonstração dos factos vertidos nos pontos 6 a 12 do elenco dos factos provados.
41 - Por outro lado, o depoimento da testemunha CC, para além de posto em crise pelas declarações prestadas pelo próprio autor, mostra-se totalmente inverosímil e, como tal, insuscetível de servir de prova para os factos 6 a 12 dos factos provados.
42 - Na economia dos factos relatados por esta testemunha, o veículo seguro na apelante surgiu-lhe num entroncamento à esquerda, a circular a grande velocidade da esquerda para a direita e, transpondo o eixo da via em que o UU circulava, colocou-se precisamente na frente deste último, dando-se o embate da frente desta viatura na lateral direita do UT.
43 - Ora, a ser como a testemunha CC descreveu o embate dos autos, fica por explicar por que razão o UT, que circulava a grande velocidade da sua esquerda para a sua direita, foi afinal projetado de novo para a sua esquerda após o embate que ambas as viaturas protagonizaram, regressando para o local de onde surgiu.
44 - A descrição dos factos perfilhada pela testemunha CC atenta contra a natureza das coisas, bem como as mais elementares regras da experiência que nos dizem que se o UU tivesse embatido no UT em tais circunstâncias, esta viatura seria projetada para a direita, atento o sentido de marcha do UU, e nunca de novo para a esquerda, de onde provinha animado com velocidade.
45 - Em face do que se deixa dito, dúvidas não restam de que o depoimento da testemunha CC, porque inverosímil, mostra-se totalmente inadequado para a demonstração dos factos julgados provados nos pontos 6 a 12.
46 - Por manifesta ausência de prova, bem como, pelo facto de estar em contradição com a demais factualidade julgada provada, a decisão que jugou provados os factos 6 a 12 da sentença deve ser revogada e em sua substituição deve ser proferida decisão nos seguintes termos: •“6. No dia 9 de março de 2019, cerca das 20 horas, no entroncamento entre a Rua ... e a Rua ..., na freguesia ..., concelho da Póvoa de Varzim, ocorreu um embate entre o veículo UT supramencionado e o veículo de matrícula ..-..-UU.”
47 - Já os factos vertidos nos pontos 7 a 12 da sentença devem ser julgados não provados. Isto disto,
48 - Atendendo ao elenco dos factos que efetivamente resultaram provados verifica- se que não ocorreu qualquer acidente de viação suscetível de fazer funcionar as garantias do seguro facultativo invocado no articulado inicial.
49 - Como melhor emerge da presente apelação, nos autos resultou provado apenas e tão somente um embate entre a viatura UU e a viatura UT, mas não um verdadeiro acidente de viação, de natureza aleatória e imprevista.
50 - Mais resultou demonstrado que, de acordo com as circunstâncias em que ocorreu, o acidente foi intencionalmente provocado pelo autor, não tendo este logrado demonstrar o carácter aleatório e imprevisto dos factos que descreveu no articulado inicial.
51 - Como tal, não resultou provado nos autos a ocorrência de um “sinistro”, como um evento aleatório, futuro e incerto, suscetível de fazer funcionar as garantias da apólice de seguro invocada no articulado inicial.
52 - Vindo demonstrado nos autos que o acidente foi provocado pelo autor, dúvidas não restam de que está contratualmente excluída a cobertura dos danos sofridos por este último com o embate verificado entre os veículos UU e UT, devendo a decisão de mérito ora em apreço deve ser revogada e substituída por outra que absolva a apelante de todos os pedidos formulados pelo autor, com todas as necessárias consequências legais.
CAPÍTULO II
53 - Face aos factos que julgou provados, a decisão considerou que a apelante violou os deveres acessórios de conduta a que estava contratualmente obrigada perante o autor, nomeadamente, os deveres de informação/esclarecimento que se lhe impunha por força do princípio da boa-fé contratual (artigo 762 n.º 2 do Código Civil), bem como os deveres de diligência e prontidão legalmente previstos nos artigos 36 n.º 1 alínea d) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08, importantes para a cabal compreensão, por parte do autor, dos motivos de declínio de responsabilidade daquela.
54 - Com o que a recorrente não se conforma.
55 - Entende a apelante que esta decisão não pode assentar apenas no arrazoado dos factos provados em que assentou, os quais, de resto, não revelam a totalidade da factualidade provada a seu respeito.
56 - Salvo o devido respeito, a bondade da decisão proferida acerca da alegada violação de deveres acessórios de conduta e da boa-fé, por parte da apelante, importa a consideração dos factos julgados provados n.º 23 a 40, que se dão por reproduzidos.
57 - Considera-se que não é invocado o ressarcimento do dano de privação de uso do veículo seguro ao nível da uma cobertura facultativa contratual (não se olvidando o disposto no artigo 130 n.º 2 e 3 do RJCS), mas antes como consequência da violação dos deveres acessórios de conduta e de boa-fé de natureza contratual.
58 - No caso em apreço, verifica-se que estamos perante um sinistro participado à ré em 11.03.2019 e que foi por ela gerido e averiguado até ao dia 8.05.2019, data em que a apelante comunicou ao autor que não assumia qualquer responsabilidade pelo sinistro uma vez que, após análise aos elementos que integravam o seu processo, nomeadamente a averiguação efetuada, concluiu que o sinistro não tinha ocorrido nos moldes em que foi participado.
59 - Verifica-se, também, que o relatório de averiguação final a este sinistro, datado de 8 de abril de 2019, concluiu que surgiram fortes dúvidas quanto às circunstâncias que originaram o acidente de viação aqui em apreço, tudo apontando para uma situação de fraude.
60 - Após a averiguação levada a cabo, a apelante não se considerou responsável pelo sinistro porque entendeu, justificadamente, que o sinistro participado pelo autor foi por ele provocado intencionalmente.
61 - Como tal, a posição adotada pela apelante perante o autor foi assumida de boa-fé, por ser razoável e compreensível à luz da averiguação realizada e que devidamente justificada perante o autor seu segurado.
62 - Com efeito, comunicando ao autor, o segurado, que de acordo com o seu processo de averiguação o sinistro não tinha ocorrido nos moldes em que aquele o tinha participado, não restam dúvidas de que, perante a extensão da cobertura de choque, colisão e capotamento, tudo apontava para uma situação de fraude.
64 - A exigência da comunicação ao autor do teor do relatório de averiguação para, no caso, se considerar cumprido o dever acessório de conduta acabaria por provocar, necessariamente, uma diminuição muito sensível do direito de defesa da apelante.
65 - Caso o autor conhecesse a linha de defesa da apelante antes de exigir judicialmente o cumprimento do contrato de seguro com arrimo no sinistro e na cobertura de choque, colisão e capotamento, teria configurado a ação de outro modo, acomodando a versão dos factos ao conteúdo da averiguação.
66 - Se é certo que o autor tinha direito a ser informado das razões da recusa da responsabilidade por parte da seguradora - e foi-o de facto - também em certo que esta última tinha e tem o direito à defesa dos seus interesses, direito esse que seria fortemente penalizado caso a apelante estivesse obrigada a partilhar com o autor o resultado das averiguações que levou a cabo aos factos que este lhe participou.
67 - A apelante comunicou ao autor, seu segurado, que não assumia a responsabilidade pelos danos emergentes do sinistro, na medida em que havia resultado da averiguação levada a cabo que o mesmo não tinha ocorrido de acordo com o que foi participado.
68 - Crê a apelante, salvo devido respeito, que a resposta transmitida ao autor aquando da formalização da não assunção de responsabilidade foi suficientemente esclarecedora e, ao mesmo tempo, não colocou em crise o direito da apelante a defender-se de uma pretensão que considera ilegítima.
69 - Entende a apelante que a sua posição se revelou equilibrada, justa e de tomada de boa-fé, face aos direitos de ambas partes, que se impunha compatibilizar.
70 - Por outro lado, no que tange o tempo que mediou entre a participação apresentada pelo autor e a data em que a apelante lhe comunicou a decisão de não assunção de responsabilidade, cerca de 60 dias, importa referir que não configura um período de tempo excessivamente dilatado, face ao estatuído no artigo 36 do DL 291/2007.
71 - Nos termos do n.º 8 do artigo 36 do citado diploma legal, “os prazos previstos no presente artigo suspendem-se nas situações em que a empresa de seguros se encontre a levar a cabo uma investigação por suspeita fundamentada de fraude”, não sendo aplicáveis ao caso em apreço.
72 - Como tal, a excessiva morosidade da averiguação levada a cabo ao sinistro que lhe foi participado pelo autor, e da tomada de posição da apelante perante o autor, deve ter em consideração o facto de estarmos perante uma situação em que a ré assumiu, de boa-fé, que se tratou de um caso de suspeita fundamentada de fraude.
73 - Face à extensão e profundidade da averiguação constante dos autos, a recorrente não violou os deveres de informação/esclarecimento que se lhe impunha por força do princípio da boa-fé contratual (artigo 762 n.º 2 do Código Civil), nem os deveres de diligência e prontidão legalmente previstos nos artigos 36 n.º 1 alínea d) do Decreto-Lei n.º 291/2007, que aqui não se aplicam, face o n.º 8 do mesmo preceito legal.
74 - Salvo o devido respeito, perante os factos provados, não pode afirmar-se, com pertinência, que tenha ocorrido um atraso injustificado da apelante na gestão célere e eficiente do processo de sinistro participado, ou que a mesma não tenha agido com a diligência e prontidão exigíveis nas averiguações, investigações e peritagens julgadas necessárias à aferição das causas do sinistro.
75 - Como tal, não é possível concluir que na execução de tais diligências, a apelante não tenha observado uma conduta conforme o princípio da boa-fé contratual, causando prejuízo ao autor, nomeadamente, o decorrente da privação do uso do veículo seguro.
76 - Como tal, ainda que o CAPÍTULO I da presente apelação não proceda – o que não se concebe, nem se concede – ainda assim deve a decisão recorrida ser revogada no que tange os pontos ii. e iii. do dispositivo da sentença, substituindo-se por outra decisão que absolva a apelante do pedido de indemnização por privação de uso do veículo seguro.
77 - A decisão sob recurso viola os artigos 406 e 762 do Código Civil, bem como, o preceituado no artigo 36 do DL 291/2007.

O autor respondeu ao recurso e, sustentando a sua improcedência veio a concluir, em síntese:
- O recorrente que impugne a matéria de facto deve especificar os concretos pontos que considera incorretamente julgados e, uma vez que atualmente a decisão da matéria de facto está integrada na sentença, tal especificação deve ser efetuada por referência aos factos que constam da sentença, sejam os factos nela julgados provados, sejam os não provados, indicando-se os números ou alíneas que a tais factos se reportam.
- Pretendendo a ré que os factos dos artigos 31.º, 33.º, 38.º, 78.º e 93.º da contestação fossem levados aos factos provados, e não tendo os mesmos sido dados como não provados, impunha-se-lhe apontar expressamente à sentença a insuficiência dos factos dados como provados atenta a instrução probatória realizada requerendo o aditamento desses “novos” factos e, nessa parte, não deverá o recurso ser conhecido.
- Ainda que assim não se entenda, a ré não apresentou qualquer assomo de prova dos factos que alega na contestação.
- A argumentação da recorrente apoia-se totalmente na alegada inexistência de riscos e arranhadelas, sinal – diz a recorrente – de que o Peugeot estaria parado quando o Hyundai lhe embateu e que o embate foi propositadamente provocado, mas para que essa conclusão fosse minimamente fundada seria preciso que houvesse outros elementos que tornassem, pelo menos, suspeita a conduta do autor.
- Inexistem razões para alterar o sentido das respostas dadas aos pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 dos Factos Provados, às alíneas c) e i) dos Factos Não Provados ou para acrescentar ao elenco dos provados os factos alegados nos artigos 31.º, 33.º, 35.º, 78.º e 98.º da Contestação.
- A recorrente sindica a resposta dada à alínea I) dos Factos Provados, pretendendo com base no depoimento da testemunha BB que se dê como provado que acidente aqui em causa foi intencionalmente provocado pelo autor. No entanto, a referida testemunha não interveio ou sequer assistiu ao acidente, nem dele tem qualquer o conhecimento, limitando-se a emitir uma opinião com base na sua interpretação dos registos fotográficos que lhe foram apresentados.
- As fotografias juntas com a PI assim como as n.ºs 22 e 23 juntas com a contestação não são aptas a demonstrar a concreta posição dos veículos logo após o embate, ou sequer acerca de como se processou o embate e como os carros se comportaram desde o embate até à respetiva imobilização. À data do acidente não foram efetuadas medições às distâncias dos veículos atenta a posição em que ficaram imobilizados, ou à distância destes ao entroncamento, ou ao possível local de embate.
- A circunstância de a testemunha CC ter procurado atenuar a própria responsabilidade pela produção do sinistro reforça a ideia de que se tratou de uma colisão fortuita, e não de um acidente encenado: caso se tratasse de uma encenação, seria de esperar que autor e CC tivessem combinado o teor dos respetivos depoimentos e que não houvesse quaisquer divergências.
- Não merece qualquer reparo a condenação pela privação de uso, sendo de manter o aí decidido.
- A ré declinou a sua responsabilidade sem fundamentar nem explicar ao autor as razões da sua decisão, não lhe tendo disponibilizado, mesmo perante as insistências da sua advogada, os relatórios de peritagem e de averiguação em que alegadamente fundou a sua tomada de posição. Nem sequer informou o autor de que considerava existirem indícios de que o sinistro foi deliberadamente provocado, tendo-se limitado a declarar, de forma evasiva, que o sinistro não terá ocorrido da forma como foi descrito pelo sinistrado.
- É a própria lei, no art. 36.º, n.º 1, al. d), do DL 297/2007, que impõe à companhia a obrigação de disponibilizar ao tomador do seguro ou sinistrado os relatórios de peritagem no prazo de quatro dias úteis após a conclusão destas, bem como dos relatórios de averiguação indispensáveis à sua compreensão. Tendo a ré acesso ao relatório final de averiguação em 08.04.2019 e não o tendo remetido ao autor, nem informado das concretas razões pelas quais declinava qualquer responsabilidade, mesmo após duas solicitações por escrito (sendo a segunda inclusive através de Advogada), a mesma violou os deveres de informação/esclarecimento que se lhe impunha por força do princípio da boa-fé contratual, bem como os deveres de diligência e prontidão, importantes para a cabal compreensão dos motivos de declínio de responsabilidade, estando obrigada a indemnizar o autor pelos danos positivos provocado pela violação de tais deveres acessórios da prestação principal, sendo ajustado o valor que a esse título foi arbitrado na sentença recorrida.

O recurso foi recebido nos termos legais e, nesta Relação, mantido o sentido do despacho que o recebeu, os autos correram Vistos, nada se observando que obste ao conhecimento do mérito da apelação. Tendo em mente as conclusões apresentadas pela apelante, o objeto do recurso traduz-se em saber se a decisão relativa à matéria de facto deve ser alterada e se, dessa alteração, se deve concluir pela absolvição da ré do pedido e ainda, subsidiariamente, mesmo a manter-se a decisão relativa à matéria de facto, se devem ser revogados os pontos ii. e iii. do dispositivo da sentença, absolvendo-se a apelante do pedido de indemnização por privação de uso do veículo seguro.

III – Fundamentação
III.I – Fundamentação de facto
Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Como resulta da segunda conclusão apresentada pela recorrente, pretende a mesma a reapreciação da prova e a alteração da factualidade “vertida nos pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 dos factos provados, bem como, dos pontos c) e d) dos factos não provados e nos pontos 33, 38, 78 e 93 da contestação”. Aqueles primeiros pontos, dados como provados têm a seguinte redação: “6 - No dia 9 de março de 2019, cerca das 20 horas, no entroncamento entre a Rua ... e a Rua ..., na freguesia ..., concelho da Póvoa de Varzim, ocorreu um acidente de viação consistente na colisão entre dois veículos. 7 - Foram intervenientes no acidente de viação o veículo UT supramencionado, conduzido pelo autor, e o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-UU, marca Hyundai, modelo ..., propriedade de CC e por si conduzido. 8 - Naquele dia, hora e local o autor conduzia o veículo UT na Rua ..., em direção à Rua ..., onde pretendia ingressar e virar à esquerda para seguir no sentido da Estrada Nacional ... (EN ...). 9 - Por sua vez, o veículo UU circulava na Rua ..., em direção à EN .... 10 - No referido entroncamento, o autor não parou, apenas reduziu a velocidade. 11 - Nesse momento e local, apresentou-se pela direita o veículo UU, tendo o mesmo embatido, com a sua parte frontal, na lateral direita do veículo UT, no espaço situado entre a roda da frente e a roda de trás. 12 - Nenhum dos condutores conseguiu imobilizar a tempo o veículo por si conduzido”. Por sua vez, nas alíneas c) e d) foi dado como não provado: “c) Ambos os veículos não evidenciavam riscos, nem sulcos, resultantes do atrito da colisão e compatíveis com o embate de dois veículos em movimento. d) No local do acidente estiveram presentes os Bombeiros Voluntários ... que efetuaram trabalhos de limpeza da via”. E a apelante escreveu nos artigos da sua contestação: “33. Todavia, a lateral direita do veículo seguro não tinha qualquer marca desta natureza, sendo evidente, e é verdade, que quando sofreu o embate causador dos danos que ostentava, esta viatura estava imobilizada. 38. Como se disse, porém, o UU também não apresentava riscos, sulcos ou mossas na sua frente compatíveis com um embate numa outra viatura que, de acordo com o participado, se movia do seu lado esquerdo para o seu lado direito. 78. Depois disto, o averiguador da ré solicitou ao autor que descrevesse de uma forma sucinta o teor dos esclarecimentos que lhe havia prestado durante a conversa que tiveram, tendo o autor livremente preenchido e assinado uma declaração à ré nos seguintes termos: "No dia 9 Março de 2019 por volta da 20:00H condicia Peugeot ... Preta ..-UT-.. na Travessa... a subir e ao chegar a Rua ... avrandei e olho para os 2 lado e não vejo nenhum carro. Acelero e surge do lado drt um Hiynday … a alta velocidade au para evitar o choque acelero. Eu não consegui evitar o acidente porque o condutor do Hiunday não trava resoltando num embate forte entre a frente do Hionday nas portas drt da peugeot. Tanto eu como o outro condutor tinhamos como destino nacional 206. Tanto eu como o outro condutor eramos os onicos ocupandes nem eu nem outro condutor sofrmos qualquer ferimento. Em minha openião em resultado excesiva do Hiunday como circular em fora de mão. A GNR compareceu no local porque foi a tivado o sistema do Alerta da peugeot. Chegado a GNR ao local não tomaram conta da ocorencia porque eu e o outro condutor preenchemos a declaração Amigável. Comprei a carrinha no stand S... em ... em setembro 2018 por 18.000 E, estava em perfeitas condições não tido qualquer acidente antes deste. O embate deu-se na via da esquerda do sentido do outro veiculo isto porque eu ainda nem sequer tinha chegado ao eixo da via pelo que o outro veículo me veio bater fora de mão arrastando-me e ficamos os 2 na via da esquerda”. 93. Na verdade: - o UT foi embatido na sua lateral direita, pela frente do UU; - o UT não se encontrava a circular no momento em que o embate ocorreu; - o UT encontrava-se imobilizado no entroncamento acima descrito, próximo do limite da Travessa da Cerca e do portão acima referido; - desde que sofreu o embate, o UT foi projetado para o seu lado esquerdo, rodopiou no sentido dos ponteiros do relógio e andou ligeiramente para trás; - o UT, desde que foi embatido até se imobilizar de novo, não percorreu mais de 4 ou 5 metros; - o UU desde que embateu no UT não percorreu mais de 4 ou 5 metros até se imobilizar definitivamente, junto à frente deste último”.

Depois da identificação do objeto da impugnação, feita na segunda conclusão, que parecia ser a identificação completa do aludido objeto, a apelante, ainda nas suas conclusões, dá conta de pretender a alteração da alínea i) da matéria de facto dada como não provada e remete, em acrescento, para o artigo 31.º da sua contestação. É a seguinte a redação de um e do outro: “i) O acidente de viação foi intencionalmente provocado pelo autor” e “31. Estranhamente, o UT não apresentava quaisquer danos compatíveis com um embate produzido em movimento, nomeadamente, não evidenciava riscos, nem sulcos, resultantes do atrito produzido pelo embate entre a lateral direita do veículo seguro, em deslocação para a sua frente, e a parte frontal do outro veículo dito interveniente no “sinistro”.

O recorrente que pretenda impugnar a decisão relativa à matéria de facto deve dar cumprimento ao ónus previsto no artigo 640 do Código de Processo Civil (CPC) e terá de identificar com precisão, nas conclusões do seu recurso, os concretos pontos de facto que pretende ver alterados (provados ou não provados), modificados na sua redação ou acrescentados, neste caso, se a decisão foi omissa relativamente a factualidade relevante que haja sido alegada ou que, objeto de contraditório, o tribunal devesse considerar. Por outro lado, não há que reapreciar a prova quando a alteração, modificação ou a ampliação pretendida não traga, uma vez ponderadas todas as soluções jurídicas plausíveis, qualquer utilidade para a decisão da ação ou do recurso. Com efeito, e como expressamente se sumaria em recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.06.2022 [Processo n.º 2239/20.3T8LRA.C1.S1, Relator Conselheiro Mário Belo Morgado, dgsi]: “I - Nos recursos apenas se impõe tomar posição sobre as questões que sejam processualmente pertinentes/relevantes (suscetíveis de influir na decisão da causa), nomeadamente no âmbito da matéria de facto. II – De acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão sujeitos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte. III – Deste modo, o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final do litígio”. Assim, como decorre, e se acompanha, a reapreciação da decisão relativa à matéria de facto está dependente do cumprimento do ónus previsto no artigo 640 do Código de Processo Civil (CPC), mas não pode traduzir-se na prática de um ato inútil – e, porque inútil, proibido: artigo 130 do CPC -, e assim se traduziria, nomeadamente, e olhando ao caso em apreço, se os factos que se pretendem ver alterados (modificados, eliminados ou acrescentados) não conduzirem a decisão diferente daquela que o tribunal de recurso adota perante os concretos factos, provados e não provados que foram fixados em primeira instância.

Da leitura das conclusões apresentadas pela apelante não podemos afirmar, ainda assim, que a reapreciação da prova se traduza num ato inútil ao conhecimento do mérito do recurso e, por isso, tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 640 do CPC, há que proceder a essa reapreciação. Diga-se, sem embargo dessa tarefa, que a apelante, invocando a factualidade que deixou alegada na sua contestação, vem a referenciar factos que foram objeto de pronúncia expressa pelo tribunal recorrido, nomeadamente o constante do ponto c), dado como não provado, repetindo-se na sua pretensão. Diga-se, ainda, que se mostra claro – o que é de todo o relevo para a correta definição do objeto recursório no que à impugnação factual diz respeito -, que a pretensão da apelante se traduz na defesa de estarmos perante um acidente dolosamente provocado, e provocado pelo autor/recorrido, enumerando um alargado conjunto de factos que, provados, são instrumentais a esse seu entendimento.

Na apreciação da impugnação da decisão relativa à matéria de facto não deixámos de ler a fundamentação do tribunal recorrido, as razões pelas quais deu como provados e não provados os factos que antecederam a aplicação do Direito. Ficou dito, a tal propósito, o que agora, na parte relevante à impugnação, com síntese, se transcreve e sublinha: “(...) No que concerne à factualidade constante em 6 a 14, a versão trazida pelo Autor logrou convencer o Tribunal quanto às circunstâncias de tempo, modo e lugar do acidente de viação em causa, bem como quanto à dinâmica do mesmo. Nesta matéria, importa referir que o Autor apresentou um discurso detalhado e espontâneo, coerente e consistente com a demais prova documental dos autos, razão pela qual o Tribunal o reputa de verdadeiro e sincero. Com efeito, quer o Autor, quer a testemunha CC (condutor do veículo UU e interveniente do acidente) explicitaram de que forma o acidente ocorreu, sendo os únicos presentes naquele local. Ademais, a declaração amigável de acidente automóvel de fls. 12 (doc. 1 da P.I.), as fotografias constantes dos autos a fls. 14 a 17 (docs. 6 a 19 da P.I.) sustentam aqueles relatos. Aliás, a própria Ré aceita que a colisão entre veículos efetivamente ocorreu, tentando, contudo, colocar em causa algumas das circunstâncias da mesma – o que infra se analisará em sede de motivação da matéria não provada (...) Quanto à matéria não provada, a convicção negativa do Tribunal resulta da insuficiência da prova produzida com vista a atingir o juízo de certeza jurídico-prática que se impõe ou da prova produzida ter apontado no sentido diametralmente oposto, isto é, tendo-se provado o contrário do alegado. A propósito da fixação do valor do capital da cobertura facultativa, apurou-se que foi o mediador de seguros quem, após visualizar o veículo, inseriu os respetivos dados no sistema informático da Ré, daí resultando o valor constante das condições particulares da apólice. Em relação à velocidade a que circulava o veículo UU, nada se apurou e nenhuma prova se fez nesse sentido, sendo que inclusive o seu condutor, CC, refere que circulava a 40/50km/h e o Autor não reparou no surgimento daquele veículo. Quanto à inexistência de riscos, nem sulcos, das várias fotografias juntas aos autos resulta o oposto. Na verdade, é patente a colisão ocorrida entre os dois veículos, vislumbrando-se vários riscos, sulcos e amossadelas. Sobre a incompatibilidade do embate dos dois veículos em movimento, importa dar três notas: por um lado, os acidentes são dinâmicos e as respetivas consequências do mesmo são pluriformes (desde logo pela influência de uma multiplicidade de fatores relativos às caraterísticas dos veículos, modo de condução no momento, morfologia da via, estado do piso, condições atmosféricas, entre outras); uma vez que o Autor reduziu a velocidade no entroncamento (facto 10), é possível e provável de acordo com as regras da experiência comum que o veículo fosse a uma velocidade reduzida; aliás, a própria testemunha da Ré, DD (que avaliou os danos do veículo UT e elaborou o boletim de perda parcial), refere que a existência riscos no decorrer do embate de carros em movimento depende do tipo de material em que bateu, podendo ou não haver. Quanto à presença dos Bombeiros no local do acidente e alegada realização de trabalhos de limpeza da via, nada se apurou, sendo que o Comandante daqueles informou os autos de que não têm registo de qualquer intervenção ali (fls. 195). Em relação à alínea e), as testemunhas arroladas pela Ré, BB e EE, referiram tal facto. Porém, a sua versão não logrou convencer o Tribunal, na medida em que o veículo ficou imobilizado, não podendo aqueles comprovar que o mesmo, em andamento, sobreaquecia com facilidade e, por outro lado, das fotografias juntas aos autos e demais meios de prova resultou que, por força do acidente, o líquido de refrigeração e óleo derramaram na via pública, o que poderá explicar alguns dos problemas detetados. Acresce que, em rigor, o veículo UU tinha sido submetido a inspeção periódica obrigatória no ano anterior (devendo realizar-se a seguinte até 31/03/2019) e a qual lhe foi favorável, razão pela qual não logrou a Ré demonstrar que tal veículo não tinha a manutenção em dia, cumprindo os padrões necessários quanto ao seu estado, idade e caraterísticas. No que respeita à alínea f), provou-se o contrário do alegado (facto 21), ainda que o Autor não tenha recorrido a assistência médica (facto 22). A propósito da alínea g), não logrou a Ré demonstrar que o veículo em causa tinha um valor comercial igual ou inferior a 15.000,00 EUR (...) Finalmente, sobre a alínea i), impõe-se desde já referir o seguinte: os presentes autos dizem respeito a um contrato de seguro automóvel de danos próprios, em que ao Autor compete a prova dos factos constitutivos do seu direito, designadamente a ocorrência do evento e a prova dos respetivos danos daí advenientes; e à Ré incumbe fazer prova dos factos impeditivos, conducentes à exclusão da sua responsabilidade (artigo 342.º do Código Civil). Deste modo, não cabe neste âmbito discutir a culpa dos condutores dos veículos na verificação da colisão, ou seja, se a culpa é do condutor do veículo UT (Autor) ou do condutor do veículo UU – aliás, o condutor do veículo UU nem sequer é Parte nos autos e nenhum contrato assinou com a Ré – mas tão somente se houve ou não um sinistro e, atenta a exclusão da responsabilidade invocada pela Ré, se o Autor o provocou de forma intencional/dolosa. Posto isto, a Ré não logrou demonstrar que a colisão entre os veículos foi intencionalmente provocada pelo Autor. Atenta toda a factualidade dada como provada e não provada, desde logo se constata que várias das dúvidas manifestadas pela Ré na respetiva contestação se quedam: a G.N.R. esteve no local do acidente; há vestígios de marcas de travagem do veículo UU (fotografias de fls. 14 a 16 – docs. 6, 7, 9, 12, 13 e 17 da P.I.); o Autor sofreu danos corporais (factos 21 e 22); não se provou a inexistência de riscos ou sulcos compatíveis com a colisão (pelo contrário, vide fundamentação alínea c); e não se provou que o veículo UU não dispunha de manutenção adequada e o seu motor, quando colocado em funcionamento, sobreaquecia facilmente (alínea e). As demais circunstâncias dadas como provadas são manifestamente insuficientes para daí concluir que o Autor dolosamente provocou aquela colisão. Em acréscimo, nas suas declarações, o Autor referiu-se ao condutor do veículo UU sempre como o outro “Senhor” (formalidade utilizada por quem não se conhece); não foi trazido aos autos qualquer elemento de prova em que se estabelecesse qualquer relação familiar, pessoal, profissional ou económica entre os condutores dos veículos acidentados, nem ainda que o Autor alguma vez se tenha socorrido dos respetivos seguros que celebrou (em número não inferior a 27 nos últimos cinco anos) para cobrir danos dos correspondentes veículos seguros (antes pelo contrário, o mediador de seguros e testemunha FF afirmou que o Autor já ali teve 3/4 seguros e que o mesmo só comunicou um único sinistro – o dos presentes autos)”.

Depois de ouvirmos toda a prova e atendermos aos elementos documentais constantes dos autos (fotografias e relatório pericial), importa, naturalmente, explicar o nosso entendimento, cientes que, na reapreciação da prova em segunda instância, é a (livre) apreciação do Tribunal da Relação que está em causa.

Dos depoimentos prestados, retirámos o apontamento que transcrevemos de seguida.

O autor [Ficheiro n.º 20211021095453] declarou que, no dia 9 de março, de 2018 ou 2019, saiu de casa para ir ao ginásio e, depois meter gasóleo e ao entrar pela rua da Cerca sobe, abranda, olha, põe a carrinha em andamento e da outra rua vem o outro veículo em excesso de velocidade, embate e a carrinha é arrastada. A carrinha faz uma chamada SOS e o depoente diz que está tudo bem, mas precisa de ajuda. Chega a GNR, depois os reboques, e veio a seguir de táxi para casa (min. 5,00). O seu carro ficou inativo e o outro perdeu líquido ou óleo, que viu no chão. Os danos foram na lateral, rebentou os airbags laterais, o depoente foi arrastado, o banco de trás também partiu e por fora [o veículo] tinha uns riscos. No embate, não travou: teve aquele “impacto de acelerar”, mas não conseguiu. Partiram as portas, os vidros, tudo na lateral direita e o outro também ficou muito danificado da parte da frente. A velocidade a que ia... foi ao arrancar, mais ou menos dez quilómetros. Lesionou-se nos braços, “aqui na perna” e o pescoço inchou, mas não foi ao Hospital, naquela altura estava quente, tomou “brufenes”, e pronto (16,00). A velocidade do outro carro... mais de cinquenta, de certeza. Olhou e “o instinto é acelerar, mas não consegui”. É uma reta, a descida, e ele vinha a descer. Quando houve o embate o seu veículo estava em andamento. Foi projetado para o lado esquerdo e rodopiou. Foi arrastado. Houve um contacto SOS, mas não ligaram [pessoalmente] à GNR. A estrada de onde vinha o outro faz uma ligeira curva à direita, mais abaixo. Não se apercebeu em que faixa, direita ou esquerda vinha o outro veículo, mas ele bateu e “fez isto”, foi “para o lado esquerdo da lateral direita da minha carrinha” (32,30). Se imaginarmos uma linha para os dois sentidos, foi ao meio dessa linha, mas quase no limite esquerdo da estrada de onde vinha o outro, mas “tenho alguma dificuldade em perceber”. Se o outro viesse mais à direita não se dava o acidente... é capaz, “mas não posso responder a isso”. Não travou e o outro acha que também não. Foi contactado por um averiguador e assinou uma declaração (44,00). A GNR esteve lá, chamados pelo SOS da carrinha, que também chamou os reboques. O valor que consta da apólice foi dado pelo agente de seguros, presencialmente. Tem feito vários seguros nesse agente (53,30). Vendeu o veículo como salvado, através de um amigo e por 2.500 euros (67,00). Nunca lhe atribuíram veículo de substituição e alugar um carro semelhante deve custar trinta ou quarenta euros por dia, mas nunca alugou. Vendeu os salvados e houve [apenas] a declaração de venda. O veículo era para si e família, porque a carrinha que usa no seu trabalho de feirante está carregada, depois de terminar o trabalho, e passa a utilizar este veículo, que não usa no seu negócio (82,00).

CC, modelador na empresa “N...”, condutor do veículo “UU” [Ficheiro n.º 20211021111925]. Só conheceu [o autor] no dia do acidente. O acidente foi em 2019, em princípios de março, ao final da tarde, entre as 19 e as 20H00. Vinha a descer, há um entroncamento à esquerda com um STOP, e este Senhor aparece, ele vem e vira à esquerda e [a testemunha] bate na lateral do carro dele. Foi ouvido por um perito, na altura disse cor cinzento, referindo-se ao outro carro, ficou com a ideia que era cinzento, mas tirou fotos. O embate foi na faixa de rodagem, na rua ... e ele ia a entrar nessa rua, a virar para entrar na sua rua, vinha a cortar a curva para a esquerda (min. 12,30). Vinha como quem pensa ter prioridade. A testemunha chegou a travar, “foi o instinto de travar, mas houve o embate na mesma”. Quando se apercebe, ele já está em cima de si, não deu tempo para mais nada. A testemunha não mudou de direção, só travou e bateu de frente na lateral direita do outro veículo, o capô ficou dobrado, a frente amassada e o para-brisas estalado. O outro carro, foi a lateral direita que foi para dentro, entre as duas portas e acha que partiu vidros. Vê as fotografia, quem está de colete “sou eu” (22,00). A roda da frente do seu carro ficou de lado e nenhum podia andar. Chamou o seu reboque e sai dali de táxi. A carrinha do Senhor ativou o SOS, que chamou a GNR, mas disseram [aos agentes] que não era necessário [participar] e eles ajudaram a preencher o croqui. O sinal STOP é à direita da via onde vinha o outro veículo. Na altura era de noite e não reparou, mas depois viu que havia um STOP (39,30). A carrinha é escura, mas reconhece que ao perito disse que não se recordava, que era cinzenta e mais clara. Podia vir a 10 ou 20 ou 30 por hora... não, pelo menos a 40, pela rapidez com que apareceu à sua frente. Vinha como se achasse que tinha prioridade e não tem ideia de ele travar, cortou a curva e “quando já está a cortar eu bato na lateral”. Ele não fez perpendicular, mas “foi tudo tão rápido”. Depois do embate, os carros andaram 10, 15 metros, “para aí, talvez à volta de 10 metros (52,00). Lê a declaração amigável que lhe é mostrada: há uma parte que é sua, outra, a letra não é sua, “deve ser do Senhor”; o que ele escreveu, não sabe: “não fui eu que escrevi”. Foi contactado pelo averiguador, e foi quando disse “cinza” referindo-se à carrinha. Não sabe ao certo o que escreveu, mas a dinâmica do acidente foi a que agora relatou. Vinha do ginásio, mas “nunca vi esta pessoa antes do acidente”. Quando referiu 500 metros era a distância a que via o entroncamento, porque o outro veículo só viu no momento do embate, quando surge no entroncamento (64,30).

GG. Militar da GNR [Ficheiro n.º 20211021123821]. É possível que tenha estado no [local do] acidente, mas não consegue precisar. Pode acontecer não ser elaborado auto, se os intervenientes dispensarem a presença [da GNR]. É costume elaborar auto, mas não pode concretizar (min. 11,30).

HH. Camionista [Ficheiro n.º 2021102114711]. Trabalhou para uma empresa de reboques de 2017 a 2019. Confrontado com o doc. n.º 20 esclarece que rebocou um dos veículos: foi num entroncamento, mas não conhece bem a zona, nem se recorda se viu alguém ou se falou com alguém. É a empresa que tem os registos. Confirma ser a sua letra e assinatura a do documento que lhe é mostrado – fls. 17 verso (min. 7,30).

II. Militar da GNR [Ficheiro n.º 20211021143949]. Recorda que foram informados pelo militar de atendimento e, quando chegaram ao local os intervenientes disseram que dispensavam a patrulha, pois estavam a fazer a participação amigável. Nada sabe, em concreto, sobre a localização dos veículos. Não foi feita participação e não foi elaborado auto. Recorda que eram carros escuros, não tendo a certeza de serem os que estão visíveis na fotografia que lhe é mostrada. Sabe que estavam de acordo com a dispensa da patrulha, mas não foi conversado o que entre eles falaram antes (min. 8,30).

BB. Atualmente desempregado, foi perito averiguador por conta própria, e trabalhou, entre outras seguradoras, para a ré [Ficheiro n.º 20211021145213]. Com base nas declarações dos condutores, foram feitas diversas diligências, contactados os condutores e verificadas as viaturas. O local do acidente é ermo e um entroncamento O Peugeot ia no sentido ascendente e o outro no descendente. Não existia sinalização horizontal. Verificou que, entre os dias 20/22 de março e a última visita, estava colocado um STOP, na via do Peugeot, que antes não estava (min. 7,00). Havia uma mancha de óleo, conforme indicado na participação amigável, na proximidade de um portão e uma série de plásticos e vidros dos veículos. Os limites da via, sem sinalização horizontal, eram de 5/6 metros e a mancha de áleo até já aparecia fora desse limite. As estradas entroncam a menos de 90 graus e, no limite do entroncamento, o Peugeot tem uma curva mais pronunciada à esquerda e o outro mais ligeira à direita. Não viu travagem a direito. Foi aos postos da GNR, mas não obteve informação de que se tenham deslocado ao local. Foi às oficinas onde estavam os veículos. O interior do Hyundai não tinha airbags e o veículo já consumia muita água e a vareta do óleo estava seca, tinha vários pontos de ferrugem. A frente estava toda embatida, dando ideia que toda a frente teve um impacto simultâneo. A pintura estava estalada e danificada, mas sem indícios de roçar. O capô em V, dobrado para cima (22,00). Relativamente ao Peugeot, os danos eram nas duas portas do lado direito, onde o Hyundai terá embatido. Terá sido praticamente a 90 graus e as portas ficaram totalmente danificadas. Não viu marcas de arrastamento, terá sido um embate frontal e, pelos danos, foi um embate violento. O Peugeot tinha sido adquirido no ano anterior e o Hyundai tinha a inspeção, ou o seguro, a terminar nesse mês. Os intervenientes não se queixaram de qualquer ferimento, quando contactados, um mês depois do acidente (30,00). O condutor do Hyundai não tinha registos [nos seguros], o do Peugeot um grande registo, mas não encontraram relações entre ambos os condutores... salvo frequência de ginásios, mas não conseguiram ligar os dois. O condutor do Peugeot escreveu o que lhes disse e “foi gentil, mais que o outro” (37,00), nunca se mostrando incomodado. A sua suspeita é de as circunstâncias não serem enquadráveis com os danos, pois tudo leva a crer que o Peugeot estava imobilizado no entroncamento e a suspeita é que o acidente não terá sido aleatório, houve manobra propositada de ir ao encontro do Peugeot (49,00). No relatório escreveu marcas de pneu, óleo e diversos vestígios, mas na altura “não distinguiu”. Confrontado com as fotografias (fls. 124 verso), o que entende é que se veem deformações, mas não raspagens (65,00).

EE. Coordenador da equipa de averiguadores, prestando serviços também à Seguradora ré [Ficheiro n.º 202111021160905]. Acompanhou o perito [testemunha anterior], tendo contactado os intervenientes e visualizado as viaturas. No local, encontraram poucos vestígios, além de uma mancha de fluídos perfeitamente visível. Nesse dia, 5.04.2019, encontraram-se com os intervenientes. Marcas de travagem, havia algumas, mas não pode afirmar que fossem deste acidente, mas na direção dos fluídos havia uma marca de travagem. Na primeira visita não havia sinal STOP, mas na segunda havia. Da conversa com o autor achou qualquer coisa estranha, parecia que ele queria ser culpabilizado pelo acidente, porque saiu do STOP. Relativamente ao outro interveniente, achou estranho o facto de ele circular a 500 metros de distância e se ter atravessado quando chegou ao local de embate, tendo feito um desvio para o lado esquerdo, quando devia ser para o seu lado direito. O embate foi referido por ambos como tendo ocorrido no lado esquerdo da via (min. 13,00). Foram ver os veículos e o Hyundai tinha danos na parte frontal, o Peugeot nas portas, na lateral, dando a entender um embate perpendicular, frontal: “é preciso apontar para lá”. O Peugeot não estaria em movimento, porque, a estar, teria que haver uma rotação para a direita do Hyundai. Visionando as fotografias, acha que o normal seria deixar marcas de travagem em linha reta. Reafirma que o Peugeot tinha que estar parado, pois o Hyundai vem numa trajetória para a esquerda e não há arrastamento (22,00). Aprovou o relatório elaborado pelo perito e que foi junto ao processo e o sua perceção é que o Peugeot estava imobilizado à saída da via e o outro veículo dirige-se para a esquerda e embate nele. O Hyundai estaria sem condições de circular, com sobreaquecimento e óleo completamente queimado. O móbil do acidente seria vender a viatura e há incongruências dos intervenientes em relação ao circunstancialismo do acidente. O Hyundai “dirigiu-se para ali propositadamente” (28,30). Podia acontecer [como aconteceu] mas sempre o Peugeot teria de estar praticamente imobilizado, a iniciar a marcha, e não a uma, mesmo que reduzida, velocidade, a 20 Km/hora (36,00).

JJ. Desempregado. Chapeiro do ramo automóvel, conhece o autor há muitos anos [Ficheiro n.º 20211108144133]. Conheceu ao autor o veículo Peugeot, que era o carro dele para o dia a dia. Viu-o depois do acidente, em casa dele, mas não quis repará-lo. Informou um amigo e pensa que ele o adquiriu por 2.500 euros. Estava danificado do lado direito, mais sobre as portas O acidente é um acidente, já viu carros desfeitos sem um risco... o carro foi “caçado a meio”. Era uma carro que ele tinha e gostava, não o queria “mandar para o lixo”. Só viu o carro depois do acidente. Acha que também pode acontecer com o carro parado, “tudo é possível” (min. 15,00).

KK. Perito avaliador; presta serviços à ré desde há cerca de 4 anos [Ficheiro n.º 20211108150444]. Fez a avaliação dos danos de uma carrinha Peugeot ... e, conforme se lembra, os danos eram superiores ao capital seguro, eram danos avultados, da traseira até à frente. Foi elaborado o relatório de avaliação, com fotografias (min. 7,00).

FF. Consultor de Seguros (Ficheiro n.º 20211108151543]. O sinistro não passou por si, mas conhece o veículo, porque o viu antes de fazer o seguro. Era um carro cinzento/branco e comprido, ele teve outros carros e, connosco, 3 ou 4 seguros. Era um carro importado e o autor, segundo acha, era feirante, mas “só teve um Peugeot connosco e nunca comunicou outro sinistro” (min. 9,00). A companhia é das que não desvalorizam os carros importados e o sistema permite um excedente de 10% relativamente ao valor, mas não fez a gestão do processo e é a Companhia que analisa (13,00).

Além dos depoimentos que antecedem, prestámos atenção às diversas fotografias juntas aos autos com a petição e como documentos n.ºs 2 a 19 (folhas 1083 a 1091 do processo eletrónico – p.e.), como documentos n.ºs 24 a 27 (fls. 1043 a 1044 do p.e.) como documentos/fotos n.ºs 1 a 23, juntos pela ré (fls. 902 a 913 do p.e.), bem como relatórios elaborados (com fotografias), que foram esclarecidos pelos depoimentos prestados em audiência.

Procedendo a uma análise crítica da prova, importa dizer o que segue. Em nosso entendimento, o depoimento do autor é o que mais se coaduna com o embate entre os veículos, embate que a recorrente reconhece ter existido. O autor refere que foi embatido na sua lateral direita quando, seguindo a pouca velocidade, pretendia ingressar na via de onde provinha o veículo Hyundai. A divergência entre este depoimento e o do condutor do veículo Hyundai (divergência que a recorrente salienta para afastar o valor de ambos os depoimentos, sustentando que o primeiro não é credível em razão do segundo e que o segundo é inverosímil) não nos parece, aliás, muito acentuada, salvo na velocidade excessiva que cada um imputa ao outro. Tenha-se presente, no entanto, que o depoimento do condutor do Hyundai não deixou de estar condicionado pelo afastamento liminar da sua responsabilidade, sendo certo que só na parte final do mesmo depoimento lhe é esclarecido pelo tribunal que não está em causa a culpa dos condutores e que não é a “sua ação”. No entanto, independentemente de alguns pormenores a que não damos relevância significativa, capaz de afastar outra realidade que temos por provada, o que temos, e a ré não o nega, repetimos, é que ocorreu um embate entre a frente do Hyundai e a lateral direita do Peugeot, à entrada do entroncamento. Perante esta inequívoca realidade, a recorrente sustenta (e é esse o fulcro da sua impugnação e do seu recurso) que o acidente foi propositadamente (dolosamente) provocado. Provocado, reconhecem os senhores peritos (da ré) pelo condutor... do Hyundai que, em razão da precaridade do veículo, se lançou contra o Peugeot (ainda que não seja fundamental à apreciação da matéria de facto ou do recurso, note-se que uma das razões da pretensa intenção do condutor do Hyundai advinha de ter proximamente que realizar a inspeção periódica do veículo, e ter a validade do seguro quase a terminar, o que, sem outros elementos, nos permite dizer que, precisamente a inspeção é periódica e normalmente os seguros são renovados anualmente). Mas a questão relevante é que a recorrente considera que o embate ocorreu, mas o acidente foi dolosamente provocado pelo autor. Por isso, e necessariamente, conluiado com o condutor do outro veículo. Ora, salvo o devido respeito, absolutamente nenhuma prova evidente permite essa conclusão, sendo até de estranhar que o autor (com vários seguros feitos, mas apenas com a participação de um sinistro) se fosse colocar a jeito, permanecendo dentro do carro (os airbags acionaram), à espera de um embate com a violência que acabou por ter. Acresce que, não obstante todas as diligências feitas pela ré, sequer conseguiu apurar-se que os intervenientes se conhecessem anteriormente. Dir-se-á, ou dirá a recorrente, que o dolo e o necessário conluio resulta de incongruências na descrição do sinistro e, acima de tudo, da circunstância de o veículo Peugeot ter que estar imobilizado e, além disso, não se verem nele riscos de raspagem. Salvo o devido respeito, é muito pouco para aquela conclusão, ou seja, tais factos, ainda que se mostrassem verdadeiros, poderiam imputar a conduta dolosa ao condutor do Hyundai (como sustentam os peritos), mas não ao condutor do Peugeot (como nunca sustentaram os peritos). E, acrescente-se, o autor refere a velocidade diminuta a que seguia (quis acelerar e não conseguiu), o condutor do Hyundai dá conta de ter travado repentinamente, e os riscos no veículo, olhando as fotos, não são evidentes, mas não se podem dar como não provados. E ainda que estejamos a considerar factos meramente instrumentais, num contexto de um acidente de viação (onde, como se sabe, não pode aplicar-se à posteriori a certeza física da conjugação da velocidade, aceleração, movimento, atrito e caraterísticas dos veículos), nem quanto a esses temos por adquirida a versão da ré: as incongruências compreende-se na imputação da responsabilidade (total ou parcial) entre intervenientes e o embate direto pode resultar da guinada do Hyundai à esquerda, na sequência de uma travagem brusca. Reconhecemos que os rastos de travagem não indiciam esta última hipótese e as fotografias da posição dos veículos, após o acidente, suscitam dúvidas de que o mesmo tenha ocorrido como relatado. No entanto, é preciso vincar: a recorrente aceita que ocorreu o embate entre aqueles veículos e naquele tempo e local; refere que suspeita fortemente que o condutor do Hyundai lançou o veículo contra o Peugeot, mas nenhum elemento probatório decisivo coloca o recorrido numa situação que permitisse imputar-se o conluio, ou seja, a vontade de ser embatido. Dito ainda de outro modo, não ficámos convencidos de que o condutor do Hyundai, combinado com o autor, se tenha lançado contra o veículo deste, ali imobilizado, à espera do que sucedesse, desde que o que sucedesse fosse um grave acidente, mas sem feridos. A apreciação da prova é um juízo de normalidade fundado nas regras de experiência e a construção da apelante, depois de admitir o embate, não se revela plausível, com todo o respeito por melhor saber.

Em conformidade com o que se deixa dito, entendemos manter integralmente a factualidade provada e não provada, nada havendo a alterar-lhe ou a acrescentar-lhe, improcedendo a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

São os seguintes os factos provados e não provados a considerar:
A – Factos provados
1 - O autor AA foi proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-UT-.., marca Peugeot, modelo ..., tendo-o adquirido em 8 de junho de 2018, pelo valor de 18.000,00€ à sociedade comercial “S..., UNIPESSOAL LDA”.
2 - Em 14 de setembro de 2018, o autor transferiu para a ré a responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da circulação do veículo UT, através de contrato titulado pela apólice n.º ....
3 - A apólice assegurava ainda os danos e perdas incluídas nas coberturas de Responsabilidade Civil Facultativa, na modalidade que a ré designou como “Top”, em que se incluíam as seguintes coberturas: Assistência, Proteção de ocupantes e condutor e Danos próprios (quebra de vidros; furto ou roubo; incêndio, raio ou explosão; fenómenos da natureza; atos de vandalismo; choque, colisão e capotamento).
4 - No que respeita à cobertura facultativa de Danos próprios, o capital seguro foi fixado pela ré em 20.646,53€, indexado a uma tabela de desvalorização automática mensal e com uma franquia de 250,00€.
5 - Das Condições gerais da apólice consta, entre outras, a seguinte cláusula: “Cláusula 40.ª – Exclusões. 1. Para além das exclusões previstas na cláusula 5.ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações: (...) b) Danos causados intencionalmente pelo Tomador do Seguro, Segurado, pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis ou às quais tenham confiado a guarda ou utilização do veículo seguro;”.
6 - No dia 9 de março de 2019, cerca das 20 horas, no entroncamento entre a Rua ... e a Rua ..., na freguesia ..., concelho da Póvoa de Varzim, ocorreu um acidente de viação consistente na colisão entre dois veículos.
7 - Foram intervenientes no acidente de viação o veículo UT, conduzido pelo autor, e o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-UU, marca Hyundai, modelo ..., propriedade de CC, e por si conduzido.
8 - Naquele dia, hora e local o autor conduzia o veículo UT na Rua ..., em direção à Rua ..., onde pretendia ingressar e virar à esquerda para seguir no sentido da Estrada Nacional ... (EN ...).
9 - Por sua vez, o veículo UU circulava na Rua ..., em direção à EN ....
10 - No referido entroncamento, o autor não parou, apenas reduziu a velocidade.
11 - Nesse momento e local, apresentou-se pela direita o veículo UU, tendo o mesmo embatido, com a sua parte frontal, na lateral direita do veículo UT, no espaço situado entre a roda da frente e a roda de trás.
12 - Nenhum dos condutores conseguiu imobilizar a tempo o veículo por si conduzido.
13 - Naquele momento era de noite e a iluminação pública estava ligada e funcional, ainda que pouco iluminado o local.
14 - Não chovia e o piso estava seco, asfaltado e em razoável estado de conservação.
15 - Em consequência da colisão, o veículo UT sofreu extensos estragos na carroçaria do lado direito, designadamente ao nível de ambas as portas, vidros, embaladeira e componentes adjacentes, airbags, chassi e revestimento interior.
16 - O veículo UT ficou imobilizado no local e impossibilitado de circular pelos próprios meios.
17 - A colisão determinou o acionamento automático do serviço de SOS desta viatura, assim como a assistência em viagem.
18 - Em consequência da colisão, o veículo UU também sofreu vários estragos na parte
frontal da carroçaria, designadamente: as laterais do para-choques frontal abriram em leque, deformando-se de dentro para fora; os guarda-lamas dianteiros, esquerdo e direito, resultaram empenados e dobrados para fora; o capô recuou de forma linear e uniforme, tanto do lado esquerdo como do lado direito, ficando levantado e em ângulo, entre a frente do veículo e o para-brisas, encostado pelo interior, quer no radiador, quer no motor do veículo, onde embateu; o capô ficou amolgado na sua parte central, de forma linear e tendencialmente plana, ou seja, com marcas de um embate num obstáculo (uma superfície) regular e mais alto, o que moldou na forma como ficou amolgado, compatível com a lateral direita do UT.
19 - No local compareceram dois guardas da GNR, os quais não lavraram auto de ocorrência uma vez que os condutores de ambos os veículos assinaram declaração amigável de acidente automóvel.
20 - Foram enviados para o local dois serviços de reboque de veículos, bem como dois táxis para o transporte dos respetivos condutores.
21 - Em consequência direta e necessária do acidente, o autor sentiu dores nos braços e pernas, ficou pisado na zona do cinto e com o pescoço inchado, tendo tomado Brufen.
22 - O autor não recorreu nem solicitou assistência médica.
23 - Em 11 de março de 2019, o autor participou o acidente à ré.
24 - Por email remetido em 26 de março de 2019, a ré informou o autor, entre o mais, do seguinte: “No seguimento da vistoria efetuada pelos nossos serviços técnicos à viatura ..-UT-.. na oficina, informamos que a estimativa de reparação (€22.922,26) se torna excessivamente onerosa face ao valor seguro. Nos termos do Decreto-Lei n.º 214/97, de 16 de agosto, o valor seguro à data do sinistro é de €19.119,85 e o veículo com danos avaliado em €5.580,00. Face ao exposto, embora ainda não nos seja possível assumir uma posição quanto a responsabilidades, colocamos condicionalmente à sua disposição a quantia de €13.289,85, já deduzida a franquia contratual de €250,00 e mantendo V/Exa(s). a posse do veículo com danos do qual pode dispor livremente, pelo que aguardamos que nos remeta fotocópias do cartão de cidadão ou bilhete de identidade e cartão de contribuinte do proprietário, assim como dos documentos da viatura. Na eventualidade de pretender desde já comercializar o veículo sinistrado, no estado em que se encontra, pelo valor de €5.580,00, indicamos desde já a entidade que deverão contactar (...) (Alertamos que a proposta de aquisição termina no dia 16-05-2019, pelo que a partir desta data não nos responsabilizamos pela redução deste valor)”.
25 - Por carta datada de 4 de abril de 2019, o autor informou a ré que aceitava a proposta de 13.289,85 EUR, bem como a proposta da empresa de salvados, a qual iria contactar, remetendo ainda os documentos solicitados.
26 - O relatório de averiguação final da ré, datado de 8 de abril de 2019, concluiu que surgem fortes dúvidas quanto às circunstâncias que originaram o acidente de viação.
27 - Por carta datada de 8 de maio de 2019, a ré informou o autor do seguinte: “Serve a presente para informar V. Exa. (s) que, após análise aos elementos que integram o nosso processo, nomeadamente à averiguação efetuada, concluímos que o sinistro não ocorreu nos moldes em que nos foi participado. Em face ao exposto, declinamos qualquer responsabilidade pela via extrajudicial, pela liquidação dos danos decorrentes do mesmo”.
28 - Por carta datada de 10 de maio de 2019, o autor informou a ré que não concordava com a respetiva tomada de posição, solicitando cópia do relatório do averiguador, uma revisão da posição assumida e uma justificação com base legal da recusa em atribuir uma indemnização.
29 - Por carta datada de 24 de maio de 2019, a ré informou o autor que, após nova análise do processo, mantinha a posição anterior assumida, declinando a responsabilidade.
30 - Por e-mail remetido em 13 de setembro de 2019, a Mandatária do autor remeteu à ré fotografias do acidente e comprovativo do reboque, requerendo ainda esclarecimentos, por escrito, “das razões pelas quais concluem que o sinistro não ocorreu conforme as circunstâncias descritas na participação bem como de que forma a ser assim – o que não se concede – tal importa a não assunção da responsabilidade indemnizatória e encerramento do processo”.
31 - Por email remetido em 8 de outubro de 2019, a ré informou a Mandatária do autor, entre mais, do seguinte: “(...) após ter sido feita uma reanálise cuidada ao nosso processo de sinistro tendo em consideração a informação adicional fornecida por V. Exa., entendemos que a decisão tomada e já transmitida é a correta, pelo que a reiteramos. Mais informamos que relativamente às diligências levadas a cabo pela Companhia, as mesmas tratam-se de informação interna, pelo que não poderemos dar seguimento à sua pretensão, dado que as mesmas apenas poderão ser disponibilizadas nas entidades competentes e se solicitadas.”
32 - O autor é comerciante de vestuário e artigos de utilidade doméstica, exercendo a sua atividade nas feiras e mercados locais.
33 - Vive com a sua companheira e tem três filhos.
34 - O autor comprava e vendia com frequência veículos automóveis.
35 - Conduzia diariamente o veículo UT maioritariamente a título particular, nas deslocações do quotidiano e de lazer, sozinho ou acompanhado de familiares ou de amigos.
36 - O autor é proprietário do veículo de matrícula ..-..-RR, marca Ford, modelo ..., o qual conduzia maioritariamente no exercício da sua atividade profissional.
37 - Em 28 de maio de 2019, o autor vendeu o veículo UT, enquanto salvado, pelo valor de 2.500,00€.
38 - À data do acidente o veículo UU não possuía airbags, a respetiva inspeção obrigatória deveria realizar-se até 31.03.2019 e a respetiva responsabilidade civil emergente da circulação desta viatura encontrava-se transferida para a sociedade comercial “Y... - Companhia de Seguros, S.A.” e com término em 27.03.2019.
39 - À data do acidente o autor dispunha de dois contratos de seguro automóvel ativos em seu nome, designadamente do veículo UT e do veículo RR.
40 - Nos cinco anos anteriores à data do acidente, o autor teve pelo menos 27 contratos de seguro automóvel em seu nome.

B – Factos não provados
a) O autor indicou à ré que pretendia fixar como capital da cobertura facultativa do risco de choque, colisão e capotamento do veículo UU, o valor de 20.646,53€.
b) No momento da colisão, o veículo UU seguia a uma velocidade superior a 80km/hora.
c) Ambos os veículos não evidenciavam riscos, nem sulcos, resultantes do atrito da colisão e compatíveis com o embate de dois veículos em movimento.
d) No local do acidente estiveram presentes os Bombeiros Voluntários ... que efetuaram trabalhos de limpeza da via.
e) À data do acidente, o veículo UU não dispunha de manutenção adequada e o seu motor, quando colocado em funcionamento, sobreaquecia com facilidade e carecia de constantes retificações do nível de água do circuito de arrefecimento.
f) Nenhum dos condutores sofreu qualquer lesão corporal em virtude do acidente.
g) À data do sinistro, o veículo UT tinha um valor comercial não superior a 15.000,00€.
h) O veículo UT foi importado diretamente para o autor, no âmbito da sua atividade comercial de compra e venda de veículos automóveis usados.
i) O acidente de viação foi intencionalmente provocado pelo autor.

III.II – Fundamentação de Direito
No final do Capítulo II das suas conclusões (conclusão 76) a apelante sustenta: “ainda que o CAPÍTULO I da presente apelação não proceda – o que não se concebe, nem se concede – ainda assim deve a decisão recorrida ser revogada no que tange os pontos ii. e iii. do dispositivo da sentença, substituindo-se por outra decisão que absolva a apelante do pedido de indemnização por privação de uso do veículo seguro”.

É esta questão que importa apreciar, uma vez que mantida a decisão relativa à matéria de facto, há que manter o decidido na primeira parte do dispositivo da sentença.

Nos pontos II e III do dispositivo da sentença – o que agora a recorrente questiona – decidiu-se condenar a ré no pagamento “ii. da quantia de 7.500,00 EUR (sete mil e quinhentos euros), a título de dano da privação do uso, acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal para as obrigações meramente civis, desde a data da prolação da presente sentença até efetivo e integral pagamento; iii. da quantia de 10,00 EUR (dez euros) diários, a título de dano da privação do uso, desde a data da prolação da presente sentença até efetivo e integral pagamento da quantia referida em i). b) Absolvo a Ré do demais peticionado”.

Entendendo que as aludidas condenações decorrem de uma incorreta aplicação do Direito aos factos provados, a recorrente sustenta, em síntese: “(...) Considera-se que não é invocado o ressarcimento do dano de privação de uso do veículo seguro ao nível da uma cobertura facultativa contratual (não se olvidando o disposto no artigo 130 n.º 2 e 3 do RJCS), mas antes como consequência da violação dos deveres acessórios de conduta e de boa-fé de natureza contratual. No caso, verifica-se que estamos perante um sinistro participado à ré em 11.03.2019 e que foi por ela gerido e averiguado até ao dia 8.05.2019, data em que a apelante comunicou ao autor que não assumia qualquer responsabilidade pelo sinistro uma vez que, após análise aos elementos que integravam o seu processo, nomeadamente a averiguação efetuada, concluiu que o sinistro não tinha ocorrido nos moldes em que foi participado. Verifica-se, também, que o relatório de averiguação final a este sinistro, datado de 8 de abril de 2019, concluiu que surgiram fortes dúvidas quanto às circunstâncias que originaram o acidente de viação aqui em apreço, tudo apontando para uma situação de fraude. A posição adotada perante o autor foi assumida de boa-fé, por ser razoável e compreensível à luz da averiguação realizada e que devidamente justificada perante o autor seu segurado. A exigência da comunicação ao autor do teor do relatório de averiguação para, no caso, se considerar cumprido o dever acessório de conduta acabaria por provocar, necessariamente, uma diminuição muito sensível do direito de defesa da apelante. Caso o autor conhecesse a linha de defesa da apelante antes de exigir judicialmente o cumprimento do contrato de seguro com arrimo no sinistro e na cobertura de choque, colisão e capotamento, teria configurado a ação de outro modo, acomodando a versão dos factos ao conteúdo da averiguação. Se é certo que o autor tinha direito a ser informado das razões da recusa da responsabilidade por parte da seguradora - e foi-o de facto - também em certo que esta última tinha e tem o direito à defesa dos seus interesses, direito esse que seria fortemente penalizado caso a apelante estivesse obrigada a partilhar com o autor o resultado das averiguações que levou a cabo aos factos que este lhe participou. Por outro lado, no que tange o tempo que mediou entre a participação apresentada pelo autor e a data em que a apelante lhe comunicou a decisão de não assunção de responsabilidade, cerca de 60 dias, importa referir que não configura um período de tempo excessivamente dilatado, face ao estatuído no artigo 36 do DL 291/2007. Face à extensão e profundidade da averiguação a recorrente não violou os deveres de informação/esclarecimento que se lhe impunha por força do princípio da boa-fé contratual (artigo 762 n.º 2 do Código Civil), nem os deveres de diligência e prontidão legalmente previstos nos artigos 36 n.º 1 alínea d) do Decreto-Lei n.º 291/2007, que aqui não se aplicam, face o n.º 8 do mesmo preceito legal”.

Na sentença apelada, a propósito, deixou-se dito o que ora, com síntese, se transcreve e sublinha:
“Em relação ao dano da privação do uso do veículo, o Autor peticiona a condenação da Ré no pagamento da quantia diária de 50,00 EUR (cinquenta euros) desde a data do sinistro até efetiva e integral disponibilização da indemnização pela perda total. Para fundamentar a pretensão, invoca a violação de obrigação de resposta fundamentada constante dos artigos 36.º n.º 1 alínea d) e 40.º do Decreto-Lei n.º 297/2007, de 21/08, porquanto a Ré colocou condicionalmente à disposição do Autor 13.289,85 EUR, tendo posteriormente declinado qualquer responsabilidade, uma vez que a averiguação efetuada concluiu que o sinistro não ocorreu nos moldes em que foi participado (...) no caso em apreço, ficou demonstrado que o Autor conduzia diariamente o veículo UT maioritariamente a título particular, nas deslocações do quotidiano e de lazer, sozinho ou acompanhado de familiares ou de amigos (facto 35), provando assim a frustração de um propósito real, concreto e efetivo de proceder à utilização da viatura. Aqui chegados, importa também clarificar que não é invocado o ressarcimento deste dano ao nível da cobertura facultativa contratual, mas antes como consequência da violação dos deveres acessórios de conduta e de boa fé contratuais. Ora, tal como consta do elenco de Acórdãos mencionados na petição inicial, a jurisprudência tem entendido que, no âmbito do contrato de seguro, ressaltam vários deveres para a Seguradora, arvorados no princípio da boa-fé, sendo que a violação desses mesmos deveres a constituem no dever de indemnizar o Tomador pela privação do uso do veículo correspondente ao período que medeia entre a violação daqueles e o terminus do dano correspetivo (...) Aderimos a este entendimento, alicerçado no artigo 762.º n.º 2 do Código Civil e ainda na legislação constante quer do RJCS e, no tocante ao caso concreto, no Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08. Com efeito, no âmbito de uma relação contratual, para além das obrigações principais, resultam os chamados deveres laterais/acessórios de conduta (provenientes do princípio da boa-fé), distinguindo a doutrina entre os deveres de segurança/proteção; deveres de informação/ esclarecimento e deveres de lealdade/correção. Coloca-se então a questão, violou a Ré algum dever acessório de conduta? A resposta é necessariamente afirmativa. Da factualidade provada resulta o seguinte: - No dia 09/03/2019 ocorreu o acidente de viação (facto 6); - No dia 11/03/2019 o Autor participou o acidente à Ré (facto 23); - Por email remetido em 26/03/2019, a Ré informou o Autor que, embora ainda não seja possível assumir uma posição quanto a responsabilidades, colocava à sua disposição a quantia determinada quantia, tendo igualmente solicitado o envio de alguma documentação (facto 24); - Por carta datada de 4/04/2019, o Autor aceitou a proposta da Ré, remetendo ainda os documentos solicitados (facto 25); - A averiguação do sinistro e respetivo relatório final ficaram concluídos em 8/04/2019 (facto 26); - Por carta datada de 8/05/2019, a Ré declinou qualquer responsabilidade pela liquidação dos danos decorrentes do sinistro, uma vez que concluiu que o mesmo não ocorreu nos moldes em que foi participado (facto 27); - Por carta datada de 10/05/2019, o Autor solicitou cópia do relatório do averiguador, uma revisão da posição assumida e uma justificação com base legal da recusa em atribuir uma indemnização (facto 28); - Por carta datada de 24/05/2019, a Ré informou o Autor que mantinha a posição anterior, declinando qualquer responsabilidade (facto 29); - Por email remetido em 13/09/2019, a Mandatária do Autor remeteu à Ré fotografias do acidente, comprovativo de reboque, requerendo ainda esclarecimentos quanto às “razões pelas quais concluem que o sinistro não ocorreu conforme as circunstâncias descritas na participação bem como de que forma a ser assim – o que não se concede – tal importa a não assunção da responsabilidade indemnizatória e encerramento do processo” (facto 30); - Por e-mail remetido em 08/10/2019, a Ré informou a Mandatária do Autor que mantinha a não assunção de responsabilidade, recusando disponibilizar quaisquer elementos por se tratar de informação interna. Ora, tendo a Ré acesso ao relatório final de averiguação em 08/04/2019 e não o tendo remetido ao Autor, nem informado das concretas razões pelas quais declinava qualquer responsabilidade, mesmo após duas solicitações por escrito (sendo a segunda inclusive através de Advogada), a mesma violou os deveres de informação/esclarecimento que se lhe impunha por força do princípio da boa fé contratual (artigo 762.º n.º 2 do Código Civil), bem como os deveres de diligência e prontidão legalmente previstos nos artigos 36.º n.º 1 alínea d) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08, importantes para a cabal compreensão, por parte do Autor, dos motivos de declínio de responsabilidade daquela (...) Por tudo isto, não obstante a indemnização pela privação de uso não se encontrar especialmente contemplada na cobertura facultativa em causa, assiste ao Autor, neste caso concreto, o direito de ser indemnizado por ter suportado esse relevante prejuízo, em consequência da Ré não ter cumprido, como devia e de forma intencional, os deveres acessórios de informação e esclarecimento supramencionados. Esse direito indemnizatório deve ser contabilizado a partir da primeira violação daqueles deveres laterais, isto é, a partir de 24/05/2019 e até integral e efetivo pagamento da quantia de 13.289,85 EUR (...)”.

A sentença recorrida, como resulta da transcrição que antecede, aborda a questão que ainda é objeto do presente recurso de modo profundo e compreensível, aplicando o Direito aos factos dados como provados. Importa agora ver, nesta sede, se o faz com acerto.

Nos termos do disposto no artigo 130, n.ºs 2 e 3 da Lei do Contrato de Seguro (LCS) [“2. No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado. 3. O disposto no número anterior aplica-se igualmente quanto ao valor da privação do uso do bem”] a cobertura de lucros cessantes ou de privação de uso do bem está dependente de previsão contratual, ou seja, “o regime supletivo é o da não cobertura”[2].

No caso presente, a privação do uso do veículo não fazia parte do seguro de danos próprios celebrado entre recorrente e recorrido, e invocado nestes autos. No entanto, a razão de ser, o fundamento jurídico da indemnização atribuída, apoia-se no disposto no artigo 762, n.º 2 do Código Civil (CC) e na violação, pela recorrente, dos deveres plasmados no artigo 36 do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), concretamente na alínea d) do seu n.º 1, de acordo com a qual “1 - Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve: (...) d) Disponibilizar os relatórios das peritagens no prazo dos quatro dias úteis após a conclusão destas, bem como dos relatórios de averiguação indispensáveis à sua compreensão”.

De acordo com o disposto no citado n.º 2 do artigo 762 do CC, “No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé”.

O preceito citado dá relevo ao princípio da boa-fé no cumprimento da obrigação, boa-fé na sua aceção objetiva, “enquanto norma de conduta ou critério do agir humano”, sendo que aquele princípio “tem uma importância genética, na medida em que fundamenta a constituição de deveres acessórios ou laterais de conduta, não diretamente explicitados num preceito da lei ou no conteúdo contratual”[3]. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela[4], este dever de agir de acordo com a boa-fé “envolve, além do mais dois corolários importantes. Por um lado, o devedor não pode limitar-se a uma realização puramente literal ou farisaica da prestação a que se encontra adstrito (...). Por outro lado, o dever de boa-fé não se circunscreve ao simples ato da prestação, abrangendo ainda, na preparação e execução desta, todos os atos destinados a salvaguardar o interesse do credor da prestação (...). É nesta área do cumprimento da obrigação que especialmente se concentra a vasta galeria dos deveres acessórios de conduta (deveres de proteção, de esclarecimento e de lealdade)”. Também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.12.2010 [Processo n.º 984/07.8TVLSB.P1.S1, Relator, Conselheiro Silva Salazar, dgsi] refere, no respetivo sumário : “I - Os contratos incluem não só as obrigações deles expressamente constantes, mas também deveres acessórios inerentes à prossecução do resultado por eles visado. II - Estes deveres resultantes acessoriamente do próprio contrato, em paralelo com a obrigação principal e destinados a assegurar a perfeita execução desta, a ponto de a sua violação poder gerar uma situação de incumprimento, implicam a adoção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento exato da prestação, com destaque para o dever de cooperação, sem o qual muitas vezes a utilidade final do contrato não é alcançada. III - Tais deveres são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma atuação de boa-fé – art. 762.º, n.º 2, do CC – entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade e consideração pelos interesses da outra parte – princípio da concretização”.

Invoca a sentença a violação do disposto na já citada alínea d) do n.º 1 do artigo 36 do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, contrapondo a apelante que não tinha de fornecer ao autor o resultado da sua averiguação. O preceito citado está previsto para o seguro obrigatório, inexistindo norma semelhante aplicável ao seguro facultativo. Sempre se diga, no entanto, que a obrigação nele contida é a manifestação evidente de um dever de informação, acessório ao contrato e imposto pela boa-fé, e parece-nos de todo insustentável que o incumprimento desse dever (de informação e esclarecimento) possa dispensar-se com base numa eventual cautela relativa à futura ação e à versão do segurado na defesa do seu direito, como sustenta a recorrente. Efetivamente, a recusa de disponibilização do relatório pericial equivale – e no caso equivaleu – à recusa de informação fundamentada, precisamente porque se recusam fornecer as razões para a não aceitação da responsabilidade, quando as mesmas, no próprio entendimento da apelante, se fundam na perícia que mandou realizar.

Dito isto e louvando-nos nos factos em que a sentença sustenta [data da participação, a 11.03.2019, disponibilidade cautelar da quantia indemnizatória pela recorrente, aceitação dessa quantia, relatório pericial, a 8.04.2019, não aceitação da responsabilidade, pedido do relatório e recusa do seu fornecimento, esta a 24.05.2019], a condenação ora em causa suporta-se adequadamente na violação dos deveres de informação a que a recorrente estava adstrita, recorrente que, por isso, não agiu com a exigida boa-fé no cumprimento do contrato celebrado com o recorrido.

A consequência, entendeu a decisão recorrida, não se restringe ao pagamento dos juros de mora devidos, ainda que a obrigação em causa tenha natureza pecuniária, mas à obrigação de minorar os danos sofridos o que, no caso, envolve o ressarcimento da privação do uso do veículo.

À mesma conclusão final, concretamente a de ser devida a compensação pela privação do uso do veículo, se chegaria se considerarmos “que o que está em causa é a violação de uma obrigação essencial do contrato, qual seja a de proceder ao pagamento da prestação acordada em caso de verificação do sinistro, sendo os danos que o recorrente pretende ver ressarcidos nesta apelação consequência do inadimplemento daquela obrigação”[5].
Com efeito, e continuamos a citar o acórdão referido em nota de rodapé, “como resulta inequívoco do disposto no artigo 798º do Código Civil, o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor, incumbindo ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procedem de culpa sua (artigo 799º, nº 1, do Código Civil). E, de acordo com o disposto no artigo 562º do Código Civil, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, sendo certo que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (artigo 564º, nº 1, do Código Civil)”.

No enquadramento acabado de considerar, há que ter em conta o disposto no artigo 104 da LCS (ou RJCS), sendo certo que se o recorrido tivesse recebido a indemnização a que tinha direito no prazo que desse preceito decorre, naturalmente que, na posse do respetivo montante tinha os meios para gozar de outro veículo ou, o que é mesmo, deixar de estar privado, da correspondente privação do gozo do veículo acidentado.

Ora, como se refere na nota 17 do acórdão que temos citado, o artigo 104 “prescreve que a obrigação do segurador se vence decorridos trinta dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o artigo 102º, ou seja, após confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências. No caso da seguradora se recusar a assumir o sinistro, sustentando que o mesmo não ocorreu ou que ocorreu em condições não cobertas pelo seguro contratado, deve entender-se que, caso o segurado venha a comprovar judicialmente que a posição da seguradora foi infundada, que o vencimento da obrigação da seguradora se verificou no momento daquela recusa, sob pena de se privilegiar, indevidamente a seguradora inadimplente, em confronto com a que honra as suas obrigações. Assim, nesta linha de pensamento, a doutrina tem entendido que a recusa categórica e definitiva de cumprimento constitui automaticamente o devedor em mora (veja-se, por todos, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Portuguesa 2018, anotação 6, ponto V, páginas 1130 e 1131 – anotação da responsabilidade de Maria da Graça Trigo e de Mariana Nunes Martins)”.

Assim, também por esta via, há que considerar a recusa categórica da recorrente como tendo ocorrido a 24.05.2019, data que a sentença considerou, podendo dizer-se que que, quer por manifesta violação do dever acessório de informação, mas desde logo por incumprimento contratual, a condenação da ré mostra-se correta.

Por tudo o que fica dito, o presente recurso mostra-se totalmente improcedente e, em consequência, a apelante, porque decaiu, é responsável pelo pagamento das respetivas custas.

IV – Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirma-se a sentença proferida em primeira instância.

Custas pela apelante.

Porto, 10.10.2022
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho
__________________
[1] Seguindo de perto o relato constante da sentença apelada.
[2] Arnaldo Costa Oliveira, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 4.ª Edição, Almedina, 2020, pág. 451. No mesmo sentido, Francisco Rodrigues Rocha (Do Princípio Indemnizatório no Seguros de Danos, Almedina, 2015, pág. 207): “Relativamente à cláusula de cobertura do dano de privação uso do bem, assim como acontece com a cobertura de lucros cessantes, também esta tem de ser acordada pelas partes (artigo 130.º, n.º 3)”.
[3] Ana Filipa Morais Antunes, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Universidade Católica Editora, 2018, págs. 1030/1031.
[4] Código Civil Anotado, Volume II, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 1986, pág. 3.
[5] Citamos o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto [relator, Desembargador Carlos Gil, aqui 1.º Adjunto, Processo n.º 3571/19.4T8VNG.P1, dgsi], com o seguinte sumário: “I - No seguro de danos, a prestação devida pelo segurador com base no contrato de seguro está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro. II - O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor, incumbindo ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procedem de culpa sua. III - A omissão da seguradora de pagamento da prestação acordada no contrato de seguro de danos sem cobertura do dano da privação do uso obstou a que o segurado pudesse proceder à reparação do seu veículo e gozar do mesmo desde a data do vencimento daquela obrigação e bem assim a suportar despesas de parqueamento da viatura, ou seja, desde a data da recusa infundada da seguradora em assumir a obrigação de pagamento da prestação acordada no contrato de seguro”.