Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00037591 | ||
Relator: | SOUSA LAMEIRA | ||
Descritores: | SERVIDÃO DE PASSAGEM DIREITOS PRÉDIO | ||
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Nº do Documento: | RP200501170457016 | ||
Data do Acordão: | 01/17/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | O dono de prédio serviente, onerado com servidão de passagem, pode colocar um portão no caminho de acesso ao prédio dominante, desde que entregue ao dono deste prédio chave igual à que utiliza para fechar o portão. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação do Porto I – RELATÓRIO 1- No Tribunal Judicial da Comarca de .........., os Autores B.......... e mulher C.........., residentes no .........., .........., .......... propuseram a presente acção declarativa de condenação com processo sumário contra, D.......... e mulher E.........., residentes no .........., .........., .........., alegando resumidamente: São proprietários de um determinado prédio, que identificam, o qual não tem acesso directo a caminho público, pelo que, desde sempre e para a ele aceder, os autores tiveram que passar por um caminho situado num prédio dos réus, caminho esse que descrevem e que é usado a pé, de carro e mota ao longo dos últimos 23 anos, à vista de todos, sem oposição de ninguém e com a convicção de exercerem um direito próprio de passagem no local. Em meados de Julho do ano de 2000, os réus fizeram um acrescendo ao portão existente nesse caminho e fecharam-no, assim impedindo os autores de aceder ao seu prédio. Concluem pedindo que se declare constituída, por usucapião, uma servidão de uso e passagem sobre o caminho identificado em 10 e 11 da p.i. com o conteúdo alegado em 33 da mesma peça e que onera o prédio dos réus, bem como a condenação destes a reconhecerem a referida servidão e a absterem-se de impedir a passagem que qualquer pessoa ou veículo no caminho, nomeadamente não fechando o portão. 2 - Devidamente citados os Réus contestaram, aceitando parte do alegado na PI e impugnando o restante, dizendo que os autores nunca utilizaram o caminho de carro, mas apenas de mota e a pé, a não ser desde há cerca de 5 anos. Que o portão existente sempre esteve fechado, sendo apenas aberto quando alguém necessitava de passar. Só desde há cerca de 5 anos, quando os autores decidiram alargar a entrada do caminho, para passar com a viatura, é que ela começou a ficar aberta, pois o portão não tinha a mesma largura. Aceitam como verdadeiro que aumentaram o portão e o fecharam, mas tal deveu-se aos abusos dos autores, que começaram a utilizar o caminho como estacionamento de carros, sendo certo que pretenderam entregar aos autores uma chave, através de carta registada, carta esta que não foi por eles reclamada. Concluem pugnando pela procedência parcial da acção na forma descrita. 3 - O processo prosseguiu termos tendo-se proferido despacho saneador, seleccionando-se a matéria de facto assente e controvertida, sem qualquer reclamação. Posteriormente, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, sendo proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência: “A- declarar que sobre o prédio identificado em 2) (dos Réus) e a favor do prédio identificado em 1) (dos Autores) está constituída uma servidão de passagem a pé, com mota e veículo automóvel, desde o prédio dos autores até ao caminho público, por um caminho com 28,28m de comprimento, 3,34m de largura total, sendo 2,55m utilizáveis, situado na extrema e lado Norte do prédio dos Réus, na entrada do qual existe um portão; B- Condenar os Réus a reconhecerem isso mesmo e a absterem-se de praticar quaisquer actos impeditivos de passagem a pé, de mota ou automóvel no caminho descrito, nomeadamente fechando o portão que nele se encontra”. 4 – Apelaram os RR, nos termos de fls.136 a 143, formulando as seguintes conclusões: 1ª- O tribunal a quo equacionou mal as questões a decidir na presente acção pois que nunca existiu qualquer litígio quanto à existência de uma servidão de passagem onerando o prédio dos réus a favor do dos AA, mas apenas quanto ao conteúdo e modo de exercício de tal direito. 2ª - Julgou incorrectamente a matéria dos quesitos 15 e 16, cujas respostas devem ser alteradas para “não provados” com base nos depoimentos das testemunhas F.......... (cassete 1 de 14/03/2002, lado A, registo 000 a 2452), G.......... (idem, registo 2452 a 2537) e H.......... (cassete 1 de 02/04/2002, lado A, registo 2529 a 4000) e nos documentos n.ºs 8 e 9 juntos com a petição inicial da providência cautelar apensa, 3ª - Errou também no sentido que atribuiu à matéria das respostas aos quesitos 17, 18, 19 e 20 que mais não é do que a oposição legitima ao estacionamento abusivo de veículos em tal caminho, como o provam os depoimentos das testemunhas I.......... (cassete 1 de 02/04/2002, lado A, registo 0000 a 1586), J.......... (idem, registo 1586 a 2529) e L.......... (idem, registo 4000 a 4673), 4ª - Mesmo assim, face à resposta (conjunta) dada aos quesitos 3º, 4º e 5º, não se pode considerar adquirida por usucapião a servidão com o conteúdo passagem de carro (mais precisamente de veículo automóvel) por os recorridos não terem logrado provar que a sua posse desse conteúdo houvesse durado pelos prazos do artigo 1296 do CC. 5ª - Deve ainda improceder o pedido de condenação dos apelantes a manter o portão permanentemente aberto, permitindo a devassa do seu prédio, por tal violar o disposto nos artigos 1305, 1564 e 1565 do CC. Concluem pedindo a procedência do recurso a revogação da sentença recorrida bem como a improcedência da acção. 5 – Nas contra-alegações os apelados defendem a manutenção do decidido. II - FACTUALIDADE PROVADA Encontram-se provados os seguintes factos: 1- Os autores são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano sito no .........., .........., .........., descrito na Conservatória do Registo Predial de .......... sob o n.º 24376, na qual se encontra inscrito a seu favor pela inscrição n.º 39831, e inscrito na respectiva matriz sob o art. n.º 250. 2- Os réus são proprietários de um prédio urbano sito no .........., ........., .........., descrito na C. R. Predial de .......... sob o n.º 21301, na qual se encontra inscrito a seu favor pela inscrição n.º 37279, e inscrito na respectiva matriz sob os arts. 436 e 475. 3- O prédio dos autores foi adquirido por compra e venda, no ano de 1977, e, desde essa altura, entrou na posse dos autores, que o habitam todos os dias, nele procedem às obras de conservação e modificação que entendem necessárias e cultivam o quintal, pagam as contribuições prediais e seguros. 4- A posse referida em 3) sempre foi manifestada de forma pública, pacífica, de boa fé, exercida à vista de toda a gente, sem violência nem interrupções e sem prejudicar interesses de terceiros 5- O prédio dos autores descrito em 1) nunca teve ou tem qualquer acesso directo à estrada ou a caminho público. 6- Em consequência da factualidade descrita em 5), os autores, desde sempre, para acederem ao seu prédio, tiveram de passar por um caminho em terra batida, sito na extrema do prédio dos réus. 7- O carteiro, o padeiro e o peixeiro sempre passaram pelo caminho referido na alínea anterior, bem como todas as demais pessoas que acediam à casa dos autores. 8- Na entrada do dito caminho, junto à rua, sempre existiu um portão. 9- Em meados de Julho de 2000, os réus fizeram um acrescento ao portão referido na alínea anterior e nele colocaram uma fechadura. 10- O prédio dos réus, descrito em 2), está onerado com uma servidão de passagem, a pé e de mota, a favor do prédio dos autores, servidão que estes adquiriram por usucapião. 11- O caminho referido em 6) tem 28,28 metros de comprimento e 3,34 metros de largura total, sendo 2,55 metros utilizáveis. 12- O caminho em causa sempre foi utilizado, há mais de 23 anos, para passagem, além de a pé e de mota, também de carro, de forma contínua e pública, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, pacificamente e sem lesar direitos de terceiros, com manifesta intenção de exercer o direito de passagem pelo caminho, sendo que, no que se refere aos autores e seus familiares directos, a passagem regular de carro se faz há cerca de 9 anos a esta parte. 13- Com excepção dos autores, as pessoas - filhos dos autores, familiares ou amigos - sempre deixaram as viaturas em que se faziam transportar e acompanhar no caminho, acontecendo isso apenas no período anterior aos autores terem comprado a casa onde vivem, designadamente enquanto funcionou a carpintaria do F.........., por baixo da casa que é actualmente dos réus. 14- Sempre os autores procederam à limpeza do referido caminho, o que os réus também fazem na altura das vindimas. 15- O portão referido em 8) nunca esteve fechado até à feitura do acrescento referido em 9) e sempre esteve aberto, precisamente para permitir a passagem, sem quaisquer obstáculos, para o prédio dos autores. 16- Quando os réus praticaram os factos descritos em 9) fecharam o portão. 17- A fechadura colocada pelos réus no dito portão teve tranca na parte interior do mesmo, pelo menos até à decisão proferida no apenso de providência cautelar, período durante o qual era impossível, para as pessoas de estatura mediana, como a da autora, proceder à sua abertura pelo exterior, dessa forma tendo os autores ficado impedidos de aceder ao seu prédio da mesma forma que, até aí, tinham feito. 18- Em meados de Julho de 2000, os réus juntamente com os seus filhos, genro e nora, tentaram impedir os filhos e familiares dos autores de saírem de carro pelo caminho, tendo, para tal, chegado a ameaçá-los e impedi-los fisicamente, o que se repetiu a 29 de Julho de 2000, cerca das 19 horas, quando o genro dos réus se dirigiu a um neto dos autores empunhando uma enxada e dizendo-lhe para retirar o carro do caminho, no qual abriu um rego profundo. 19- Os réus mantiveram o portão sempre fechado. 20- O caminho em causa situa-se do lado Norte do prédio dos réus. 21- As medidas referidas em 11) são as reais, após as medições efectuadas no local. 22- Os réus alargaram o portão de entrada que dá acesso ao referido caminho para que o veículo dos autores melhor pudesse passar. 23- Até há cerca de 9 anos a esta parte, o portão referido em 8) era de duas folhas iguais e, quando os réus alargaram a entrada, há cerca de 9 anos, mantiveram as duas folhas. 24- Na altura em que a entrada do caminho foi alargada, as duas folhas tinham menor largura do que a distância que ficou a existir entre os tranqueiros. 25- Nunca naquela entrada existiram padieiras. 26- Desde os factos descritos em 9), os réus passaram a deixar o portão fechado. Só com o trinco, já depois de proferida a decisão na providência cautelar apensa. 27- Estando apenas com o trinco, como actualmente, o portão é facilmente aberto do exterior por qualquer pessoa. 28- Os réus pretenderam até entregar uma cópia da chave ao autor, o que fizeram por carta registada com aviso de recepção, a qual os autores não reclamaram, tendo sido, por isso, devolvida. 29- Os réus e seus familiares têm interpelado os autores e seus familiares, designadamente para não estacionarem os seus carros no caminho e manterem o portão fechado. III – DA SUBSUNÇÃO - APRECIAÇÃO Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir. O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente, artigo 684 nº 3 do Código de Processo Civil. A) As questões a decidir são as seguintes, a saber: 1ª – Alteração da matéria de facto: a) Deve a matéria de facto ser alterada no sentido proposto pelos Recorrentes passando os artigos 15 e 16 da Base Instrutória a ter resposta “Não Provado”? b) Deve a matéria de facto ser alterada no que concerne aos artigos 17º, 18º, 19º e 20º da Base Instrutória? 2ª – Mesmo não se alterando a matéria de facto, face à resposta dada aos quesitos 3º, 4º e 5º, não se pode considerar adquirida por usucapião a servidão com o conteúdo passagem de carro por os recorridos não terem logrado provar que a sua posse desse conteúdo houvesse durado pelos prazos do artigo 1296 do CC? 3ª - Deve ainda improceder o pedido de condenação dos apelantes a manter o portão permanentemente aberto, permitindo a devassa do seu prédio, por tal violar o disposto nos artigos 1305, 1564 e 1565 do CC. B) Vejamos a primeira questão. Como é sabido, a decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto só pode ser alterada pela Relação nos casos previstos no artigo 712 do Código de Processo Civil. Nos presentes autos a prova produzida encontra-se gravada, tendo a Recorrente procedido à indicação dos depoimentos e indicando a prova documental em que fundamenta a sua divergência com a decisão recorrida. Todavia não se encontra transcrita nas alegações como o impõe o artigo 690-A n.º 2 do CPC. Impunha-se sem mais a rejeição do recurso (artigo 690-A n.º 2 do CPC). Mas ainda que se entenda que se encontram verificados os pressupostos processuais legais para a reapreciação da prova, (artigos 712 n.º 1 al. a) e b) e 690-A ambos do Código de Processo Civil) a pretensão dos Recorrentes não merece acolhimento. Antes de avançar na análise do caso concreto, impõe-se afirmar, citando, o preâmbulo do DL n.º 39/95 de 15 de Fevereiro que “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”. È que o “objecto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova”. Na opinião dos Recorrentes a apreciação da prova feita em primeira instância enfermou de graves erros devendo ser alteradas as respostas a vários artigos da Base Instrutória. Será que lhes assiste razão, face aos elementos de prova que pretende ver reapreciados. Como referimos afigura-se-nos que não. A apreciação da prova produzida está necessariamente ligada ao valor que o Julgador atribui não só a cada depoimento mas também aos diversos documentos que lhe são submetidos. Estamos em face de um problema de valoração da prova produzida em audiência. Nos termos do artigo 655 n.º 1 do Código de Processo Civil o Tribunal aprecia livremente as provas produzidas, decidindo o Juiz segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Tal preceito consagra o principio da prova livre, o que significa que a prova produzida em audiência (seja a prova testemunhal ou outra) é apreciada pelo julgador segundo a sua experiência, tendo em consideração a sua vivência da vida e do mundo que o rodeia. Prova Livre que nas palavras do Prof. Alberto dos Reis “quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”, CPC, Anotado, vol. IV, p. 570. E, não podemos esquecer que o julgador deve “tomar em consideração todas as provas produzidas”, artigo 515 do Código de Processo Civil, ou seja a prova deve ser apreciada globalmente. A prova testemunhal, atenta a sua falibilidade, impõe cuidados acrescidos na sua avaliação afim de poder ser devidamente valorada. Ponderando este principio da prova livre deve o julgador motivar os fundamentos da sua convicção, por forma a permitir o controlo externo das suas decisões. Tendo em consideração estes princípios vejamos a situação concreta. Ouvidos os depoimentos das testemunhas referidas na motivação do recurso (mas não transcritos) bem como de todas as outras e ponderando os documentos juntos aos autos entendemos que não é possível alterar a matéria de facto dada como provada em 1ª instância. Não se vislumbram razões para que o depoimento das testemunhas indicadas pudesse conduzir a que se dessem como provados outros factos que não os que constam da decisão recorrida. Nem tais depoimentos ou os documentos invocados (nomeadamente aqueles que se encontram na providência cautelar apensa) podem permitir que sejam dados como não provados os factos que foram dados como provados em primeira instância. Há todo um conjunto de provas que foram produzidas sobre esta matéria e que o Juiz a quo apreciou segundo o seu prudente arbítrio, não podendo a Relação com base nos invocados depoimentos e documentos alterar as respostas dadas. Os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência (mas não transcritos pelos Recorrentes), não permitem responder à matéria de facto nos termos por eles pretendidos. Desta forma, não vemos razões para nos afastarmos do decidido em 1ª instância. Importa recordar que a gravação sonora (e mesmo a posterior transcrição escrita) não permite captar todos os elementos que influenciaram a decisão do julgador. Na verdade, as testemunhas por vezes têm reacções e comportamentos que apenas podem ser percepcionados e valorados por quem os presencia, não sendo possível à Relação através da gravação (ou transcrição) reapreciar o processo como o julgador formulou a sua convicção. “Há, na verdade, uma profunda diferença entre a posição do Juiz que, dirigindo a audiência, assiste à prestação dos depoimentos, ouvindo o que as testemunhas dizem e vendo como se comportam enquanto ouvem as perguntas que lhes são feitas e a elas respondem, e a outra, bem diversa, daquele que apenas tem perante si a transcrição, nas alegações, do teor dos depoimentos e a possibilidade de ouvir as respectivas gravações sonoras (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos dobre o Novo Código de Processo Civil”, LEX, 1997, pp. 399-400, António Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 2ª ed. Pp. 270-271 e Acórdão do STJ de 19.04.2001, Proc. n.º 435/01)”, Ac. do STJ de 12/03/2002, Proc. n.º 697/01. O Juiz da 1ª instância é quem se encontra em melhor posição para avaliar e decidir quanto ao valor a atribuir a determinado depoimento. Essencial é o modo e a forma como os factos provados se encontram fundamentados. Ora, não vemos, em como é que o depoimento das referidas testemunhas pode abalar ou contraditar a fundamentação expressa na decisão recorrida, (importa recordar que não ocorreram reclamações contra as respostas à matéria de facto por falta da sua motivação). Como se referiu não se vislumbram razões para alterar a matéria de facto relativamente às respostas dadas aos quesitos tendo em consideração os depoimentos das testemunhas em causa. De igual forma não existem factos, seja decorrentes dos referidos depoimentos seja decorrentes dos documentos invocados pelos Recorrentes (nomeadamente os documentos juntos com a providência cautelar) que possam conduzir a que sejam dados como provados factos diversos ou para além daqueles que constam da decisão recorrida. A matéria de facto apenas pode ser alterada com base em documentos quando estes superam, pela sua natureza, tudo o que puder ser extraído de quaisquer outros que não a tenham impondo decisão diversa. Ora, os documentos em causa não têm essa virtualidade ou seja, por si só não impõem uma resposta diferente. Do conjunto desses documentos (e não nos podemos esquecer que, como resulta da motivação das aos quesitos outras provas foram tidas em consideração) não é possível alterar a factualidade no sentido indicado pelos Recorrentes. Não se vislumbram, pois, razões para alterar a matéria de facto provada. Em resumo, a decisão recorrida está devidamente fundamentada e a factualidade provada e não provada não pode ser colocada em crise pelos depoimentos das invocadas testemunhas nem pelos documentos referidos, pelo que se impõe a improcedência da primeira questão arguida pelos Recorrentes. Em suma e em conclusão impõe-se a improcedência desta conclusão. C) Resolvida esta questão importa verificar se face à resposta dada aos quesitos 3º, 4º e 5º, não se pode considerar adquirida por usucapião a servidão com o conteúdo passagem de carro por os recorridos não terem logrado provar que a sua posse desse conteúdo houvesse durado pelos prazos do artigo 1296 do CC. Nos termos do artigo 1543 do CC “servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia”. Dispõe o artigo 1296 do CC que “não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má-fé”. E “podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor”, artigo 1544 do CC. Esta noção genérica de servidão evidencia o seguinte: a) servidão é um encargo, uma restrição ou limitação ao direito de propriedade; b) o encargo recai sobre um prédio (o onerado ou serviente); c) o mesmo aproveita exclusivamente a outro prédio (o dominante); d) os prédios devem pertencer a donos diferentes (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., págs. 613 a 617). Os Recorrentes não colocam em questão que a favor do prédio dos Autores, ora recorridos, esteja constituída uma servidão de passagem que onera o seu prédio. Apenas questionam o conteúdo dessa servidão. Pretendem os Recorrentes que a servidão constituída a favor do prédio dos Autores seja reduzida no seu conteúdo, ou seja, em concreto, que não abranja também uma servidão de passagem de veículo automóvel (sendo apenas servidão de passagem a pé e de mota). Os Recorrentes fundamentam a sua pretensão nas respostas dadas aos quesitos 3º, 4º e 5º. Os quesitos em causa mereceram resposta conjunta do seguinte teor: O caminho em causa sempre foi utilizado, há mais de 23 anos, para passagem, além de a pé e de mota, também de carro, de forma contínua e pública, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, pacificamente e sem lesar direitos de terceiros, com manifesta intenção de exercer o direito de passagem pelo caminho, sendo que, no que se refere aos autores e seus familiares directos, a passagem regular de carro se faz há cerca de 9 anos a esta parte. Afigura-se-nos perante esta factualidade que a servidão de passagem se constituiu com o conteúdo que foi fixado na decisão recorrida. Na verdade ficou demonstrado que a passagem era utilizada, há mais de 23 anos, não apenas a pé e de mota mas também de carro. Ou seja havia uma utilização daquele caminho por veículos automóveis que se dirigiam para o prédio dos Autores. E importa recordar que estamos perante uma servidão de passagem a favor de um prédio (o dos Autores) onerando um outro (o dos RR). Não é necessário que a utilização dos veículos automóveis fosse praticada pelos Autores pessoalmente. Basta lembrar que podiam os Autores não ter carro mas servirem-se do caminho em carros de amigos, por estes conduzidos. Ou podiam os Autores até não ter carta de condução que lhes permitisse ter carro mas utilizarem a passagem para aceder de carro (por exemplo de táxi) a sua casa. Ou ainda, como ficou demonstrado, para que as viaturas daqueles que iam a sua casa passassem pelo referido caminho. Tal utilização do caminho é inequívoca no sentido de que se constituiu uma servidão de passagem de carro a favor do prédio dos AA. È certo que se esclareceu que concretamente os autores apenas utilizam veículo automóvel há cerca de 9 anos. Mas este facto não impede aquela conclusão, pois a utilização do caminho por viaturas automóveis era feita para casa dos Autores, ou seja para o prédio dos Autores. A passagem – de carro – era feita através de um prédio (o dos RR) para outro (o dos AA), onerando o primeiro. Não é necessário que fossem os próprios Autores a conduzirem ou a utilizarem os carros que passavam pelo caminho, o que é fundamental é que o caminho fosse utilizado para a passagem de tais veículos automóveis. Deste modo é manifesto que se constituiu a servidão de passagem com o conteúdo que foi fixado na decisão recorrida. Em suma e em conclusão, impõe-se a improcedência desta questão não merecendo, nesta parte, a sentença recorrida qualquer censura. D) Importa analisar a terceira questão deduzida pelos Recorrentes. Deve improceder o pedido de condenação dos apelantes a manter o portão permanentemente aberto, por tal violar o disposto nos artigos 1305, 1564 e 1565 do CC. Vejamos. Dispõe o artigo 1305 do CC que “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”. E, nos termos do artigo 1356 do CC “a todo o tempo o proprietário pode murar, valar, rodear de sebes o seu prédio, ou tapá-lo de qualquer modo”. Será que os Apelantes podem colocar um portão no caminho? E podendo, será que devem manter esse portão sempre aberto? Ou será que o podem fechar?. Importa antes de mais recordar que a decisão recorrida não impediu os Apelantes de colocar o portão. Apenas e neste ponto a decisão é clara, impõe que os Apelantes se abstenham de praticar quaisquer actos que impeçam a passagem, nomeadamente fechando o portão. A decisão recorrida admite claramente que os Apelantes coloquem o portão. O que os impede é de o fecharem. É contra esta decisão que se insurgem os Apelantes pois entendem estes que a decisão recorrida os obriga a terem o portão permanentemente aberto. Apesar de a redacção da parte final da condenação não ser inteiramente feliz e permitir a interpretação dada pelos Recorrentes afigura-se-nos que tal condenação tem e deve ser entendida em termos hábeis. O cerne da questão está no sentido e alcance do termo utilizado “fechando”. Afigura-se-nos que o sentido a retirar da parte final da decisão recorrida apenas pode ser o de impedir os Recorrentes de fecharem o portão de modo a que os Recorridos (os Autores) não pudessem aceder ao caminho. Ou seja os Apelantes estão impedidos de fecharem o portão à chave, a cadeado ou de qualquer outra forma que impeça os Autores de entrarem. Todavia também este impedimento deve ser entendido de forma razoável, pois nada impede que os Apelantes fechem o portão à chave desde que previamente facultem aos Autores uma chave do mesmo portão que lhes permita fruírem da servidão de passagem. A jurisprudência é pacífica neste entendimento e sempre decidiu nestes termos. [A título de exemplo cfr. Ac. R Porto, de 19-02-2001, Relator Desembargador Ribeiro de Almeida “O dono do prédio serviente pode vedá-lo ou tapá-lo com portão ou cancela, mesmo fechada, desde que seja apenas com o trinco e aberta à mão com toda a facilidade, de modo a não estorvar o uso da servidão de passagem.”; Ac. R. Porto, de 21-03-2000, Relator Desembargador Lemos Jorge “A existência de uma servidão de passagem não impede que o dono do prédio serviente proceda à colocação de um portão no local por onde aquela se exerce, desde que entregue uma chave ao dono do prédio dominante.”; Ac. R. Porto, de 18-02-97, Relator Desembargador Mário Cruz “I – O direito de tapagem, quanto a prédio onerado com servidão de passagem, tem de ser conciliado com o direito que assiste ao proprietário dominante de passar por aquele. II – O proprietário serviente pode vedar o seu prédio, deixando entrada servida de cancela, porta ou portão que permita o exercício da servidão, nada obstando a que esses meios de tapagem sejam dotados de fechadura desde que se dê ao titular da servidão a respectiva chave. III – Formulando o pedido de retirada do portão, pode condenar-se o réu na entrega da chave, por não resultar daí condenação além do pedido ou objecto diverso dele.”; Ac. R. Porto, 24-10-94, Relator Desembargador Azevedo Ramos “I – O direito de tapagem ou vedação consagrado no artigo 1356 do Código Civil, fundamentalmente destinado a impedir o livre trânsito de pessoas e animais, constitui uma das faculdades inerentes ao direito de propriedade e um meio de assegurar a exclusividade de fruição. II – Se o dono de um prédio exerce o direito de tapagem deve deixar acesso livre e cómodo àquele que, através desse mesmo prédio, tenha um direito de servidão de passagem. III – O acesso é livre e cómodo quando, sendo fechado o prédio serviente com um portão sem chave, exerce o proprietário do prédio serviente o seu direito de tapagem e o proprietário do prédio dominante não encontra nisso uma incomodidade relevante. IV – O princípio de que o proprietário do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão terá de ser entendido em termos hábeis, de modo a ser conciliado com o direito de tapagem que assiste ao proprietário do prédio serviente. V – A simples incomodidade de ter de abrir e fechar o portão sempre que utilize a servidão não é de interesse relevante para obstar ao direito de passagem.”] Desta forma outro não pode ser o sentido da condenação referida na alínea B) da parte decisória da sentença recorrida, ou seja os Apelantes encontram-se condenados a abster-se de praticar quaisquer actos impeditivos de passagem a pé, de mota ou de carro no caminho em causa, nomeadamente fechando o portão à chave, a cadeado ou de qualquer outra forma que impeça os Autores de entrarem, nada obstando a que fechem o portão dando aos Autores uma chave que lhes permita entrarem no caminho e fruírem da servidão. Só deste modo se concilia o direito de servidão de passagem dos Autores com o direito de tapagem que assiste aos Apelantes. Ao referir e usar o termo fechar a sentença recorrida pretende claramente indicar que o portão se não pode encontrar bloqueado, não acessível sem a utilização de chaves, afastando claramente a hipótese de o portão estar encerrado mas não fechado – à chave, ou de outra forma. Não impõe que os Apelantes tenham o portão sempre aberto – também entendido no sentido de não se encontrar o portão corrido, a tapar a propriedade – mas apenas que o portão não se pode encontrar fechado – no sentido de bloqueado (à chave ou de outro modo). O portão pode encontrar-se encostado (fechado) mas não bloqueado (fechado à chave ou de outro modo). Desta forma impõe-se a improcedência desta questão e consequentemente do presente recurso de Apelação. E) Conclusão Em suma e em conclusão a decisão recorrida não padece de censura uma vez que o sentido e o alcance da condenação da alínea B) deverá ser o agora enunciado, que mais não é do que a explicitação daquela condenação, ou seja aquela decisão condenou os Apelantes a abster-se de praticar quaisquer actos impeditivos de passagem a pé, de mota ou de carro no caminho em causa, nomeadamente fechando o portão à chave ou por outra forma que impeça os Autores de entrarem nada obstando a que fechem o portão dando aos Autores uma chave que lhes permita entrarem no caminho e fruírem da servidão. IV – DECISÃO Por tudo o que se deixou exposto e nos termos dos preceitos citados, acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação, e em consequência confirma-se a decisão recorrida. Custas pelos Apelantes. Porto, 17 de Janeiro de 2005 José António Sousa Lameira José Rafael dos Santos Arranja Jorge Manuel Vilaça Nunes |