Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
460/15.5GAALB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: CRIME DE USURPAÇÃO
REQUISITOS
DESCRIMINALIZAÇÃO
CONTRA-ORDENAÇÃO
NORMAS TRANSITÓRIAS
Nº do Documento: RP20200129460/15.5GAALB.P1
Data do Acordão: 01/29/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADOS PARCIALMENTE PROCEDENTES OS RECURSOS DAS ASSISTENTES
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Comete o crime de usurpação p. e p. pelo artigo 195º, nº 1 do CDADC quem, sem autorização do autor e do produtor do fonograma (aqui se incluindo indirectamente os artistas, intérpretes ou executores), difundiu, no bar de que era sócio-gerente, que explorava e se encontrava aberto ao público, música fixada nesse mesmo fonograma.
II – Se a lei altera a qualificação do facto de crime (ou de contravenção) para contra-ordenação, mas não estabelece, mediante norma transitória, a sua aplicabilidade às acções praticadas antes do seu início de vigência, tais acções são necessária e constitucionalmente despenalizadas.
III – Se, pelo contrário, a lei que converte a infracção penal em contra-ordenação estabelecer, por disposição transitória, a sua eficácia retroactiva, no sentido de tornar extensivo o seu regime e as coimas respectivas aos factos praticados na vigência da lei antiga, evitando, assim, a impunidade geral dos factos ainda não julgados, podem levantar-se, eventualmente, problemas de constitucionalidade da norma transitória.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc n.º 460/15.5GAALB.P1
Tribunal de Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha - Juíz 2

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular n.º 460/15.5GAALB, a correr termos no Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, Juiz 2, por sentença de 28-11-2018, foi decidido «absolver o arguido B… da prática dos crimes de usurpação, previsto e punido pelos artigos 68.º, n.º2, alínea d), 141.º, 178.º, 184.º, 195.º e 197.º, n.º1, todos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, e de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º1, alínea d) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei N.º5/2006 de 23 de Fevereiro, em conjugação com os artigos 2.º, n.º1, alínea a) e 3.º, n.º7, alínea a), que lhes vinham imputados» e julgar «improcedente o pedido de indemnização civil formulado por “C…” e, em consequência,» absolver o demandado B… do mesmo.
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Inconformada, a assistente K… Limitada, interpôs recurso, discordando da solução de direito que fundamentou a decisão recorrida e solicitando que fosse a mesma revogada e o arguido condenado pela prática do crime de usurpação pelo qual vinha acusado, apresentando para tanto as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«a) Discute-se, nos presentes autos, a eventual prática de um crime de usurpação, por parte do arguido, dado que este procedia à execução de obras intelectuais protegidas, em local público, sem estar, para tal, devidamente autorizado pelos respectivos titulares de direitos de autor;
b) O Tribunal a quo decidiu absolver o arguido, uma vez que entendeu que os titulares de direitos conexos - produtores e artistas - têm direito apenas a uma remuneração, não lhes sendo exigível qualquer autorização para a execução pública das suas prestações;
c) A correcta aplicação do direito aos factos considerados provados implicaria, seguramente, a decisão de condenação do arguido;
d) O arguido explorava o bar e oferecia à clientela música ambiente;
e) No dia 19 de de Setembro de 2015, pelas 00.10, estava a ser transmitida a música de um CD gravado dos “D…, E…, F…”;
f) Os titulares dos direitos de autor destas músicas são representados pela Recorrente K…;
g) O arguido não tinha autorização da Recorrente K… para efectuar, no dia dia e hora constantes dos autos, a execução pública das obras;
h) O arguido sabia que não devia executar a música no seu estabelecimento, como o fez, sem autorização, de quem de direito, ou seja dos titulares de direitos, ou de quem os representa, no caso da Recorrente K…;
i) Nos termos do disposto no artigo 195º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC), comete crime de usurpação quem, sem autorização do autor, utilizar uma obra por qualquer as formas previstas neste código;
j) Nos termos do disposto no artigo 67°, o autor tem o direito exclusivo de fruir e utilizar a sua obra, no que se compreendem, nomeadamente, as faculdades de a divulgar e explorar economicamente, directa ou indirectamente;
l)O artigo 68° n.° 2 al. b) do CDADC refere que “assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes” a execução pública de obras protegidas pelo direito de autor;
m) O arguido necessitava de obter autorização dos autores para proceder à execução pública das obras;
n) O arguido sabia que necessitava dessa autorização, e não cuidou de a obter;
o) Uma vez que não era titular de qualquer autorização dos titulares de direito de autor sobre as musicas executadas no seu estabelecimento, o arguido praticou um crime de usurpação;
p) O Tribunal a quo limitou-se a analisar a eventual prática de um crime de usurpação decorrente da falta de autorização dos titulares de direitos conexos;
q) O Tribunal a quo nunca analisou se tinha sido desrespeitada alguma norma do CDADC referente ao direito de autor;
r) Assim, ao decidir nos termos em que o fez, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 67º, 68º n.º 1 al. b) e 195º do CDADC.
s) A decisão proferida em primeira instância deve, por isso, ser alterada, condenando-se o arguido pela prática de um crime de usurpação, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 195º do CDADC.»
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Também a assistente e demandante civil C… não se conformou com a sentença proferida e dela recorreu, solicitando que fosse a mesma revogada e o arguido condenado pela prática do crime de usurpação pelo qual vinha acusado, apresentando para tanto as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«1 O presente recurso foi interposto pela Assistente C…, da decisão, proferida a 15.10.2018, que absolveu o Arguido B… da prática do crime de usurpação, p. e p. pelos artigos 195.º e 197.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC).
2. O recurso merece – com o devido respeito – ser julgado totalmente procedente, pois que, a decisão da Mm.ª a quo, não foi, na perspetiva da Assistente, e com o devido respeito, a mais acertada, bem como a mais correta, relativamente à aplicação do direito aos factos dados como provados.
3. Dispõe o artigo 184.º n.º 2 do CDADC que “Carecem também de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a difusão por qualquer meio, a execução pública dos mesmos e a colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma a que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e do momento por ela escolhido”.
4. Ademais, da conjugação do disposto nos artigos 108.º n.º 2 e 109.º n.º 3, ambos do CDADC, resulta também que sempre que execução ou a comunicação pública não seja efetuada em privado, num meio familiar, o seu utilizador terá de obter a autorização prévia não só dos autores como também dos titulares dos direitos conexos, pagando a respetiva remuneração a artistas e produtores.
5. Já que, reitere-se, a Lei confere aos produtores fonográficos/videográficos, entre outros, o direito de autorizar (ou proibir) a execução/ comunicação pública dos fonogramas/videogramas por eles produzidos e editados.
6. Não entendendo a Recorrente o porquê da utilização, pela Mm.ª Juiz a quo, da expressão «reproduções secundárias», ou sequer, bem assim, a convicção de que tais reproduções não careceriam de autorização prévia – pois os normativos legais resultam claros nesse aspeto: a comunicação pública carece sempre, ex vi do referido art. 184.º n.º 2 do CDADC, de autorização prévia dos produtores dos correspondentes fonogramas/videogramas.
7. Pelo que, dúvidas não poderão restar quanto à verificação, em concreto, do elemento objetivo do crime de usurpação, previsto pelo artigo 195º, nº 1 - por referência ao artigo 184º, nº 2 -, e punível pelo artigo 197º, todos do Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos.
8. Pois a utilização de música levada a cabo pelos utilizadores nos seus estabelecimentos comerciais, e in casu, pelo Arguido, sem para o efeito ter obtido prévia autorização dos produtores fonográficos/videográficos e do pagamento da respetiva remuneração a estes e aos artistas configura uma execução/comunicação pública de fonogramas/videogramas que incorporam prestações artísticas e obras literáriomusicais, consubstanciadora de uma clara violação da lei, nomeadamente do art. 184.º n.º 2 e n.º 3 do CDADC.
9. Ademais, se é o gerente o responsável legal pela abertura e exploração do estabelecimento em causa ao público, será igualmente o gerente, in casu o Arguido B…, enquanto gerente da sociedade exploradora do estabelecimento, que terá que responder criminalmente pela ausência de autorização para a execução pública de música comprovadamente ocorrida nos autos.
10. Preenchendo tal circunstância fática, de forma integral, os elementos do tipo legal do crime de usurpação, p. e p. pelos artigos 195.º e 197.º do CDADC.
11. Acresce que a sentença absolveu o Arguido B… de um pedido de indemnização cível de que a demandante, ora Recorrente, é autora.
12. A justificação, apresentada pela Mma. a quo, para a absolvição do pedido foi o facto de, na sua ótica não ter sido “...possível concluir pela ilicitude do facto praticado pelo arguido.”, o que, com todo o respeito, a Recorrente discorda na totalidade, tendo em conta o já exposto acima.
13. Deve, então, o Arguido ser condenado no pedido de indeminização civil, deduzido pela Recorrente, acolhendo, desta forma, as razões e argumentos aqui invocados, que demonstram a ilicitude do facto praticado pelo arguido.
14. A ora Recorrente discorda, portanto, desta decisão proferida pela Mm.ª a quo, visto que não foi, na perspetiva da Assistente, e com o devido respeito, a mais acertada, bem como a mais correta, relativamente à aplicação do direito aos factos dados como provados.»
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Notificado dos referidos requerimentos de interposição de recurso, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu, pugnando pela respectiva procedência, por considerar que os factos dados como provados integram a prática de um crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 195.º e 197.º do CDADC.
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Também o arguido B… respondeu aos recursos, defendo a correcção da decisão proferida e concluindo que os mesmos não mereciam provimento.
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Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de concordar com a interpretação subjacente aos recursos, considerando que a posição jurídica vertida na sentença recorrida não se mostra válida face à letra da lei, salientando ainda a contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão (art. 410.º, n.º 1, al. b), do CPPenal), considerando, no primeiro caso, o teor do ponto 6. da matéria de facto dada como provada e a tese acolhida pelo Tribunal a quo da desnecessidade da autorização de quem de direito para difundir/reproduzir música gravada em fonogramas e, na segunda situação, entre o referido ponto 6. da factualidade assente e a decisão de absolvição do arguido, contradição evidenciada pela argumentação desenvolvida sobre a Lei 22/2018, de 05-06, que autoriza o Governo a descriminalizar a comunicação pública não autorizada de fonogramas e videogramas editados comercialmente passando a constituir ilícito contraordenacional.
Mais entendeu que, mesmo na óptica da decisão recorrida, sempre se imporia a apreciação do pedido de indemnização civil deduzido, por se ter entendido que era devida prestação pecuniária nos termos do art. 184.º, n.º 3, do CDADC.
Concluiu, assim, pela necessidade de reenvio do processo para sanação do vício, com alteração da subsunção jurídica no sentido de se considerar praticado o crime imputado e de se proceder ao julgamento do pedido de indemnização civil.
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É do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados constantes da decisão recorrida e respectiva motivação e análise jurídica (transcrição):
«II - FUNDAMENTAÇÃO
Factos provados
Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão os seguintes factos:
1 - O arguido era sócio-gerente da sociedade “G…, Ld.ª” que explorava o estabelecimento denominado “H…”, sito na …, …, em Albergaria-a-Velha.
2 - O arguido explorava este bar e oferecia à clientela música ambiente.
3 - No dia 19 de setembro de 2015, pelas 00:10 horas, a GNR de Albergaria-a-Velha procedeu à fiscalização de tal estabelecimento, na ocasião aberto ao público, com clientes.
4 - Realizada tal diligência, foi verificado que estava a ser difundida a música de um CD gravado dos “D…, E…, F…” através de um aparelho fonograma (leitor de CDs) de marca LG “Micro HI FI System CM2520.
5 - Os direitos sobre a obra/música/fonograma em causa pertencem a associada na C….
6 - O arguido difundia a música no referido Bar, sem que fosse titular de autorização da Sociedade K… e da Licença PassMúsica para a difusão pública da obra musical em causa, bem como de outras, sabendo a mesma que só poderia proceder a semelhante difusão, após lhe ser conferida tal autorização por aquelas, que, em território nacional, representam, para defesa dos seus direitos e interesses, os respetivos produtores, intérpretes, artistas, titulares dos respetivos direitos de autor registados.
7 - O arguido sabia que não devia difundir tal música no seu estabelecimento, como o fez, sem a competente autorização pois que procedia a reproduções públicas não autorizadas por quem de direito.
8 - No escritório de tal estabelecimento comercial, encontrava-se, nessa mesma data, uma embalagem de gases comprimidos, com a marca MK3 com capacidade de 50 ml, com a presença de capsaicina com uma concentração inferior a 5%, em boas condições de utilização.
9 - Este aerossol de defesa foi encontrado e apreendido pela GNR de Albergaria-a-Velha.
10 - Tal objeto é uma arma de Classe E.
11 - Ao atuar do modo supra descrito, o arguido fê-lo livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei criminal.
12 – O arguido é animador/ilusionista, trabalha por conta própria, os rendimentos que aufere dependem do número de espectáculos que realiza por mês, sendo que por cada espectáculo aufere entre €100,00 e €150,00, é solteiro e reside em casa dos pais.
13 – Do CRC do arguido nada consta.
14 – O arguido em 2017 solicitou junto da C…, enquanto entidade de gestão colectiva de direitos dos produtores fonográficos/videográficos, o licenciamento PassMúsica.
15 – O estabelecimento comercial “H…” é um estabelecimento de bebidas, restauração e mistos, com pista de dança, com uma lotação até 100 paxs, aberto um ou dois dias por semana.
B) Factos Não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa.
- O arguido detinha na sua posse a embalagem de gases comprimidos referida em 8. dos factos provados.
- O arguido conhecia os efeitos nocivos da utilização de tal spray e sabia que não o podia ter em seu poder, o que não o coibiu de o deter na sua posse.
C) Motivação
Na determinação dos factos que considerou provados, atendeu o tribunal, essencialmente aos elementos documentais juntos autos, designadamente, auto de apreensão de fls. 10, imagens de fls.11 a 14, ofício da Direção de Finanças de Aveiro de fls.40 a 51; declaração da K… a fls.53 e declaração da PassMúsica a fls.80; relatórios de exames periciais a fls.85/86 e 126/127; certidão permanente a fls.94 a 98; auto de exame de objetos a fls.103; declaração da k… a fls.196 e declaração da C… a fls.206, em conjugação com os depoimentos das testemunhas I… e J…, militares da GNR que realizaram a acção de fiscalização no estabelecimento comercial em causa nos autos, os quais prestaram os seus depoimentos de forma isenta, objectiva e credível. O arguido, por sua vez, prestou declarações nas quais pretendeu fazer crer que não exercia a gerência de facto da empresa, no entanto tal mostrou-se contrariado pela conjugação da restante prova produzida, nomeadamente as declarações dos militares da GNR que afirmaram que aquando da acção de fiscalização o arguido se apresentou como o responsável do estabelecimento não tendo indicado qualquer outra pessoa como sendo o gerente, função que sempre assumiu perante eles. Por outro lado, o declarado pelo arguido não colhe porquanto a pessoa que, agora em sede de julgamento, refere como sendo a gerente consta da certidão permanente que há data havia já renunciado à gerência da sociedade e já nem sequer era sócia.
Quanto à situação sócio-económica e familiar do arguido atendeu o Tribunal às declarações do próprio, nada existindo nos autos que infirme as mesmas e quanto aos antecedentes criminais atendeu ao CRC junto aos autos.
Quanto aos factos não provados diga-se que, desde logo, muito embora tenha resultado provado que o aerossol descrito se encontrasse no escritório do estabelecimento comercial explorado pela sociedade da qual o arguido era sócio gerente, como o próprio admitiu que estava, o certo é que tal não é suficiente para dar como provado que tal objecto estava de facto da sua posse ou que era o arguido que o detinha ou que, sequer que tenha sido ele quem la o colocou.
Com efeito, muito embora os senhores militares tenham referido que o arguido se apresentou aquando da fiscalização como sendo o gerente da sociedade que explorava o dito estabelecimento comercial e que foi o mesmo que os conduziu ao escritório da mesma e que tinha a chave com a qual abriu a porta, tal não nos permite concluir que o aerossol lhe pertencia, já que nada nos diz que era apenas o arguido quem utilizava tal espaço, não tendo resultado demonstrada a exclusividade da utilização de tal escritório pelo arguido.
III - O DIREITO
Do Crime de Usurpação de Direitos de Autor e Direitos Conexos
A questão que se coloca em primeiro lugar é a de saber se a factualidade apurada nos autos constituirá ou não a prática do crime imputado ao arguido.
Assim, e desde logo, na situação concreta, há que ter em conta os artigos 184º, 195º e 197º, todos do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos (CDADC).
Ora, prescreve o artigo 195º, nº1, do CDADC, que:
“1 - Comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código.
2 - Comete também o crime de usurpação:
a) Quem divulgar ou publicar abusivamente uma obra ainda não divulgada nem publicada pelo seu autor ou não destinada a divulgação ou publicação, mesmo que a apresente como sendo do respectivo autor, quer se proponha ou não obter qualquer vantagem económica;
b) Quem coligir ou compilar obras publicadas ou inéditas sem autorização do autor;
c) Quem, estando autorizado a utilizar uma obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão radiodifundida, exceder os limites da autorização concedida, salvo nos casos expressamente previstos neste Código.
3 - Será punido com as penas previstas no artigo 197.º o autor que, tendo transmitido, total ou parcialmente, os respectivos direitos ou tendo autorizado a utilização da sua obra por qualquer dos modos previstos neste Código, a utilizar directa ou indirectamente com ofensa dos direitos atribuídos a outrem.”.
Por sua vez, prescreve o artigo 184º do mesmo diploma legal que:
“1 – Carecem de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a reprodução, directa ou indirecta, temporária ou permanente, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, e a distribuição ao público de cópias dos mesmos, bem como a respectiva importação ou exportação.
2 - Carecem também de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a difusão por qualquer meio, a execução pública dos mesmos e a colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma a que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.
3 - Quando um fonograma ou videograma editado comercialmente, ou uma reprodução dos mesmos, for utilizado por qualquer forma de comunicação pública, o utilizador pagará ao produtor e aos artistas intérpretes ou executantes uma remuneração equitativa, que será dividida entre eles em partes iguais, salvo acordo em contrário.
4 - Os produtores de fonogramas ou de videogramas têm a faculdade de fiscalização análoga à conferida nos n.os 1 e 2 do artigo 143º.
Finalmente, prescreve o artigo 197º do mesmo referido diploma legal que:
“1 - Os crimes previstos nos artigos anteriores são punidos com pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a gravidade da infracção, agravadas uma e outra para o dobro em caso de reincidência, se o facto constitutivo da infracção não tipificar crime punível com pena mais grave.
2 - Nos crimes previstos neste título a negligência é punível com multa de 50 a 150 dias.
3 - Em caso de reincidência não há suspensão da pena.”.
Isto posto, quid iuris no caso dos autos?
Ora, antes de mais, a este propósito, importa salientar que se afigura indubitável a necessidade de se obter licença/autorização dos produtores de fonogramas para a reprodução e distribuição de cópias dos mesmos, nos termos do preceituado no artigo 184º, nº1, do CDADC.
Todavia, tal não implica que seja sempre necessária a obtenção de licença/autorização dos produtores ou das entidades que os representem para a execução pública das obras musicais previamente fixadas nos ditos fonogramas.
Com efeito, da conjugação do disposto no nº2 com o nº3 do artigo 184º do CDADC, resulta que a necessidade de obtenção de licença/autorização dos produtores para a execução pública de obras musicais apenas tem lugar quando o fonograma não tiver ainda sido editado comercialmente, pois que se já o tiver sido, como é precisamente o caso dos autos, então o produtor apenas tem o direito de participar na remuneração prevista no mencionado nº3 do artigo 184º do CDADC (cf. neste sentido, OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de Autor e Direitos Conexos, 390/III, Coimbra Editora, 1992, pág. 570).
Trata-se, por conseguinte, de distinguir entre, por um lado, um direito de exclusão, cifrado na possibilidade de impedir que outrem proceda à execução pública de certas obras musicais não editadas comercialmente e, por outro, de um direito de remuneração, decorrente da execução pública de obras já editadas comercialmente.
Neste último caso, que é o dos autos, o produtor não pode, em nosso entender, impedir a execução pública de obra musical, por isso não carecer de licença ou autorização por si emitida, mas já terá o direito de obter compensação económica do utilizador nos termos fixados na lei (nº3 do art. 184º).
Trata-se, de resto, de algo semelhante ao que sucede com a tutela reservada aos artistas, onde também se prevê (artigos 178º e 179º do CDADC) um direito de remuneração mais vasto que o direito de impedir a comunicação ao público das obras interpretadas ou executadas, direito este (de exclusão) que também se limita aos casos em que as obras ainda não tenham sido fixadas ou radiodifundidas (cf. OLIVEIRA ASCENSÃO, ob. cit., pág. 561).
Assim, parece-nos que a execução pública de uma obra já editada comercialmente não deverá importar qualquer responsabilidade criminal, pois que o tipo criminal de usurpação de direitos de autor (artigo 195º, nº1, do CDADC) apenas tutela, em nosso entender, os casos em que é necessário obter autorização/licença do produtor e já não aqueles em que ele tem apenas o direito a uma compensação patrimonial pela utilização da obra.
Caso assim não fosse, então teríamos a situação, a nosso ver injusta, de o produtor vir a obter, por via de um pedido de indemnização civil a referida compensação monetária e, ainda assim, o arguido veria a sua condenação a título criminal.
Coloca-se, então, a questão de saber se a factualidade provada nos autos integra a previsão do crime de usurpação de direitos de autor e direitos conexos, previsto e punido pelos artigos 184º, 195º e 197º do C.D.A.D.C.
Importa pois e em primeiro lugar definir o que são os Direitos de Autor e os Direitos Conexos e verificar o que visam proteger.
Como diz Menezes Leitão, “Direito de Autor”, Livraria Almedina, 2 011, pág. 45, os direitos de autor “resultam da actividade de criação intelectual e têm por objeto uma obra intelectual”. Refere ainda que “se trata de um direito que incide sobre uma realidade unitária, a qual consiste na obra intelectual”. E, em síntese, que constituem a “permissão normativa de aproveitamento de uma obra intelectual”. Neste caso, o seu beneficiário é ainda o artista ou autor.
Nos termos do disposto no artigo 1º do C.D.A.D.C. “consideram-se obras as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, que, como tais são protegidas no âmbito deste Código, incluindo-se nessa proteção os direitos dos respectivos autores”.
O respetivo n.º 3) assinala que este direito incorpóreo que se materializa numa obra “é independente da sua divulgação, publicação, utilização ou exploração”. Com efeito, uma coisa é a materialização da obra num livro ou num fonograma e outra é a própria obra intelectual em si, que essa mesmo goza da proteção dos direitos de autor.
A par dos direitos de autor e não prejudicando estes (art.º 177º C.D.A.D.C.), protege também a lei os direitos conexos.
“Os direitos conexos pressupõem uma prestação complementar à obra intelectual, que pode consistir na sua execução, na sua produção técnica e industrial ou na sua radiodifusão – Menezes Leitão, op cit., pág. 243.
No caso, está em causa a reprodução por som e ao público de um CD gravado reproduzindo músicas de autores.
Nos termos do disposto no art.º 176º/3 C.D.A.D.C., o “produtor de fonograma ou videograma é a pessoa singular ou coletiva que fixa pela primeira vez os sons provenientes de uma execução ou quaisquer outros”.
E, nos termos do disposto nos artigos 108º/2, 149º/3 e 184º/1 e 2 do C.D.A.D.C. são os produtores fonográficos e não os artistas, os titulares do direito de autorizar a comunicação pública e a difusão de fonogramas/videogravuras. E que devem também os autores autorizar, por si ou pelos seus representantes (art.º 68º/2, e), C.D.A.D.C.).
Comunicação pública ou difusão que está obviamente em causa, quando num Bar se ouve como música ambiente ou de dança, determinada obra fonográfica.
Porém, a questão sobre que versam os autos é mais específica. Estava em causa a difusão pública de um “CD gravado” com músicas originais: Ora, a fixação do fonograma e sua difusão já tinham sido, obviamente, autorizadas quando do licenciamento do “CD original”. E, com efeito, a compra de um “CD” original não permita a sua retransmissão pública (art.º 141º/4 C.D.A.). Já a sua reprodução e difusão pública carecem de autorização do produtor (art.º 184º/1 e n.º 2), C.D.A.D.C.).
Porém, já o n.º 3 deste art.º 184º trata de um caso distinto – o do “fonograma ou videograma editado comercialmente”, aliás, como é o caso dos autos. É esta parte, que distingue a previsão deste artigo dos artigos anteriores. E, para este caso, o que a lei prevê é o pagamento pelo utilizador, ao produtor e artista de uma “remuneração equitativa”. Nas reproduções secundárias não se fala pois, expressamente, da necessidade de qualquer nova autorização ou licença. Como diz Oliveira Ascensão, a sua comunicação pública não carece de qualquer autorização – em “Direito Civil – Direitos de Autor e Direitos Conexos”, Coimbra Editora, 1 992, págs. 570/571.
Esta tese é a sufragada no Parecer que se junta do Senhor Professor Pinto Monteiro e é ainda defendida pelo Professor Menezes Leitão, na obra supra citada sobre Direitos de Autor.
Para estes autores, a difusão secundária teria ainda de ser autorizada pelo produtor do fonograma. A isso obrigavam os referidos ns.º 1) e 2) do art.º 184º do C.D.A.D.C. que teriam uma previsão genérica que abrangeria também os casos de fonogramas já editados comercialmente.
Ora, esse n.º 3 do art.º 184º do C.D.A.D.C. (introduzido pela Lei n.º 114/91, de 3/9) tem como origem o artigo 12º da Convenção de Roma (“Convenção Internacional para a Proteção dos Artistas, Intérpretes ou Executantes, dos Produtores de Fonogramas e dos Organismos de Radiodifusão”), que também ele fala em “remuneração equitativa” e nunca em autorização ou licenciamento, pelos produtores – de resto, a reprodução daquele normativo é quase integral. Convenção de Roma pois, que não falava em qualquer necessidade de uma nova autorização ou licença.
É que, como se disse, a autorização ou licença já foi dada quando da introdução do fonograma no mercado, naturalmente contra o pagamento dos respectivos direitos de autor. E, o produtor ganha na venda desse mesmo fonograma.
O art.º 184º/3 do C.D.A.D.C. prevê assim, um duplo direito a retribuição, quer para o produtor, quer para o autor.
Mas, já não um duplo licenciamento ou autorização da reprodução da obra intelectual. Temos assim, que os ns.º 1) e 2) do art.º 184º do C.D.A.D.C. se referem à obrigação de licenciamento e autorização de obras ainda não “editadas comercialmente” e o n.º 3), como ele próprio refere, ao direito à renumeração por reprodução secundária, no caso das obras já comercialmente editadas – neste sentido Oliveira Ascensão, op. cit., págs. 570/571.
Nestes casos, em que se insere o dos autos, há pois o direito a uma nova remuneração para autores e produtores, mas não a obrigação de uma nova autorização ou licenciamento, por parte de ambos.
Tratam-se pois de realidades distintas e que não podem ser confundidas.
O artigo 195º do C.D.A.D.C. vem inserido no Título do mesmo Código referente à “violação e defesa do direito de autor e dos direitos conexos”. Trata-se da previsão de tipo criminal, na defesa exatamente dos Direitos de Autor e Direitos Conexos. O crime é o de usurpação desses direitos e é punido nos termos do disposto no artigo 197º/1 do C.D.A.D.C. e também a título de negligência (art.º 197º/2 do mesmo diploma).
Sucede exatamente quando alguém utiliza uma obra por qualquer das formas previstas neste Código, sem autorização do autor, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão.
A tónica vem pois, na ausência da referida “autorização” ou licença. Autorização que, naturalmente, tem de ser devida ou obrigatória.
O art.º 195º/1 do C.D.A.D.C. traça a tipificação genérica do crime. As três alíneas do seu n.º 2) tipificam taxativamente outros casos de cometimento do crime que não cabem, à partida, na previsão do n.º 1. A previsão é pois mista: por conceito legal e depois, por tipificação taxativa.
No caso, não se está perante qualquer das alíneas do n.º 2), do referido art.º 195º.
E, quanto ao n.º 1), também não cabe o caso dos autos na respetiva tipificação, pois como se disse, o produtor só teria direito a uma dupla remuneração, mas já não teria de aprovar ou licenciar qualquer desempenho.
Do que resulta que os factos constantes da factualidade provada não merecem censura penal pelo que se impõe a absolvição do arguido.
Refira-se, por fim, que terá sido talvez devido à dificuldade em integrar as condutas de quem procede à reprodução e difusão de fonogramas já autorizadas quando do licenciamento do “CD original” no tipo legal de crime previsto no artigo 195º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, que levou a que a Assembleia da República recentemente tenha aprovado uma autorização legislativa para que o Governo descriminalize e passe a prever apenas como ilícito contra-ordenacional a exibição não autorizada de filmes e músicas, editados comercialmente.
Com efeito, a Lei n.º 22/2018, de 5 de junho, autoriza o Governo a descriminalizar a comunicação pública não autorizada de fonogramas e videogramas editados comercialmente passando esta a ilícito contraordenacional
De acordo com o texto do diploma, "a autorização legislativa visa prever que a comunicação não autorizada ao público, direta ou indireta, de fonogramas e videogramas editados comercialmente, deixe de constituir crime de usurpação", como previsto no artigo 195.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, "passando estes factos a ser puníveis como ilícito contraordenacional", nos termos do mesmo Código.
Conforme consta da Exposição de Motivos da referida Lei “O regime que regula as entidades de gestão coletiva do direito de autor e dos direitos conexos necessitou de ser conformado com a Diretiva n.º 2014/26/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa à gestão coletiva dos direitos de autor e direitos conexos e à concessão de licenças multiterritoriais de direitos sobre obras musicais para utilização em linha no mercado interno. Nesse contexto, o Governo levou a cabo um processo amplo de auscultação no âmbito do setor, no sentido de rever a Lei n.º 26/2015, de 14 de abril, com o objetivo de prever um conjunto de normas que descrevam as condições para a concessão, pelas entidades de gestão coletiva, de licenças multiterritoriais de direitos em linha sobre obras musicais. A alteração então operada pelo Decreto-Lei n.º 100/2017, de 23 de agosto, visou, também, melhorar vários outros aspetos da referida lei, estabelecendo normas mais precisas sobre os deveres de informação das entidades de gestão coletiva junto dos titulares de direitos, membros, outras entidades de gestão coletiva com quem celebram acordos de representação e terceiros interessados, bem como sobre os direitos dos titulares de direitos, a utilização de receitas de direitos, a distribuição dos montantes e a relação com os utilizadores.
No entanto, parte da intervenção legislativa que o Governo tencionava conduzir, em resultado de estreita colaboração não só com as entidades do setor, mas também com representantes do setor da hotelaria e restauração, passava por uma alteração adicional ao Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos, para lá da realizada pelo referido decreto-lei. Esta alteração visava prever que algumas das condutas então subsumíveis no artigo 195.º deixassem de constituir um ilícito criminalmente punível, sendo tramitadas em processo contraordenacional, mais concretamente nos casos de comunicação pública, direta ou indireta, de fonogramas e videogramas editados comercialmente, atenta a natureza, gravidade e censurabilidade das respetivas condutas.”
Face ao exposto, é nosso entender que a factualidade imputada ao arguido e dada como provada não deverá importar qualquer responsabilidade criminal para o arguido, pois que o tipo criminal de usurpação de direitos de autor (artigo 195º, nº1, do CDADC) apenas tutela, em nosso entender, os casos em que é necessário obter autorização/licença do produtor e já não aqueles em que ele tem apenas o direito a uma compensação patrimonial pela utilização da obra.
Caso assim não fosse, então teríamos a situação, a nosso ver injusta, de o produtor vir a obter, por via de um pedido de indemnização civil a referida compensação monetária e, ainda assim, o arguido veria a sua condenação a título criminal.
(…)
Do pedido de indemnização civil
“C…” deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de €3.310,55 a título de indemnização pelos danos sofridos em consequência da sua conduta, acrescida dos respectivos juros.
Prescreve o artigo 129º do Código Penal: “a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.”.
Assim, a decisão sobre o pedido de indemnização civil formulado em processo penal, tem que ser apreciada e julgada, sob o ponto de vista substantivo, com recurso à lei civil, pelo que a essa lei – art. 483º e segs. e art. 562º e segs. – se têm de ir buscar não só os pressupostos da responsabilidade civil, como também as regras de determinação dos danos a indemnizar.
Os pressupostos de que depende o direito de indemnização assente na modalidade de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, que é a que aqui nos interessa, são: a) o facto voluntário do agente, b) a ilicitude do facto, c) a imputação subjectiva do facto ao lesante (culpa), d) o dano e, e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano (vide, entre outros, COSTA, Almeida, in Direito das Obrigações, 5.ª edição, pág. 446; VARELA, Antunes, in Das Obrigações em Geral, vol. I, pág. 495 e ALARCÃO, Rui de, in Direito das Obrigações, 1983, pág. 238), sendo que só a reunião destes elementos poderá constituir o lesante na obrigação de indemnizar o lesado, só assim surgindo o correspondente direito de crédito deste último.
In casu, não foi possível concluir pela ilicitude do facto praticado pelo arguido. Ora, face à falta de comprovação de que o arguido tenha praticado qualquer facto ilícito, não se verificam os pressupostos de que depende o direito de indemnização assente na modalidade de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, pelo que deve o demandado ser absolvido do pedido de indemnização civil contra si formulado.»
*
II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
A única questão que as recorrentes colocam à apreciação deste Tribunal de recurso é a de saber se, em face da matéria de facto provada, a solução de direito pela qual enveredou o Tribunal a quo está incorrecta, devendo o arguido, diversamente à decisão tomada na sentença recorrida, ser condenado pela prática do crime de usurpação pelo qual vinha acusado, bem como, segundo a recorrente C…, no pedido de indemnização civil.
*
A questão de direito controvertida resume-se, como muito bem sintetizou o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, à interpretação do art. 184.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC).
Com efeito, na perspectiva do Tribunal a quo, «da conjugação do disposto no nº2 com o nº3 do artigo 184º do CDADC, resulta que a necessidade de obtenção de licença/autorização dos produtores para a execução pública de obras musicais apenas tem lugar quando o fonograma não tiver ainda sido editado comercialmente, pois que se já o tiver sido, como é precisamente o caso dos autos, então o produtor apenas tem o direito de participar na remuneração prevista no mencionado nº3 do artigo 184º do CDADC (cf. neste sentido, OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de Autor e Direitos Conexos, 390/III, Coimbra Editora, 1992, pág. 570).»
Tal posição, a nosso ver, não encontra qualquer correspondência com o texto do CDADC ou das convenções internacionais que versam sobre tal matéria, e é contrária ao espírito que perpassa todo o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, sendo certo que a ordem jurídica portuguesa é em exclusivo a competente para determinar a protecção jurídica a atribuir a uma obra, sem prejuízo das convenções internacionais rectificadas ou aprovadas – art. 63.º do CDADC.
Obras, na acepção do referido código, «são as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas», as quais são independentes da sua divulgação, publicação, utilização ou exploração - art. 1.º, n.ºs 1 e 3, do CDADC
Entre as criações intelectuais compreendem-se, para o que aqui importa, as composições musicais, com ou sem palavras e as obras fonográficas – art. 2.º, n.º 1, als. e) e f), do CDADC.
O direito de autor pertence, em regra, ao criador intelectual da obra e abrange direitos de carácter patrimonial, que se traduzem no direito exclusivo de dispor da sua obra e de fruí-la e utilizá-la, ou autorizar a sua fruição e utilização por terceiro, total ou parcialmente, e direitos de natureza pessoal (direitos morais), designadamente o direito a reivindicar a paternidade da obra e de assegurar a sua genuinidade e integridade – arts. 9.º e 11.º do CDADC.
Concretizando um pouco estes conceitos com referência à situação em análise, realça-se que no caso de uma obra fonográfica consideram-se autores dessa obra os autores do texto ou da música fixada – art. 24.º do CDADC.
O titular original de uma obra, bem como os seus sucessores ou transmissários, podem autorizar a utilização da obra por terceiro ou transmitir ou onerar, no todo ou em parte (aqui delimitada pelas formas de utilização da obra identificadas no acto de transmissão ou oneração), o conteúdo patrimonial do direito de autor da obra – arts. 40.º e 43.º do CDACD.
Entre os direitos de fruição e utilização da obra de que é titular o autor compreendem-se, nomeadamente, a faculdade de divulgar, publicar e explorar economicamente a mesma, sendo que a garantia das vantagens patrimoniais resultantes dessa exploração constitui, do ponto de vista económico, o objecto fundamental da protecção legal – art. 67.º do CDADC.
As formas de exploração e utilização da obra são várias, como se descreve no art. 68.º do CDADC, entre as quais se inscreve, designadamente, a publicação, a representação, a execução, a reprodução ou a difusão da obra por qualquer processo de reprodução de sons, detendo o autor o direito exclusivo de proceder a tais utilizações ou de autorizar as mesmas por terceiro – art. 68.º, n.ºs 1 e 2, al. e) do CPPenal.
Este direito tem, contudo, limitações, como decorre do texto do art. 75.º do CDADC, onde avulta a utilização da obra pelas várias formas descritas no referido art. 68.º para fins públicos de natureza informativa, para fins sociais, de segurança, de ensino, privados e genericamente sem fins lucrativos e comerciais, nas condições melhores especificadas para cada caso, como resulta do texto do mencionado art. 75.º e do disposto nos arts. 80.º a 82.º-C do mesmo diploma legal.
Os arts. 83.º a 175.º do CDADC abordam de forma especial os direitos de autor em algumas formas de utilização da obra, até de acordo com a sua própria natureza, como sejam a edição, a representação cénica, a recitação, a execução, a produção cinematográfica, a fixação fonográfica e videográfica, a radiodifusão e outros processos destinados à reprodução dos sinais, dos sons e das imagens, a exposição e reprodução de artes plásticas, gráficas e aplicadas, a obra fotográfica, a obra publicada em jornais e outras publicações periódicas, e a tradução e outras transformações.
A par dos direitos do autor existem ainda os direitos dos artistas intérpretes ou executantes (actores, cantores, músicos, bailarinos e outros que representem, cantem, recitem, declamem, interpretem ou executem de qualquer forma obras literárias ou artísticas), dos produtores de fonogramas e de videogramas e dos organismos de radiodifusão, denominados de direitos conexos (arts. 176.º a 194.º do CDADC).
Perante o quadro geral enunciados, vejamos então como o direito de autor e os direitos conexos protegem e regulam a utilização de fonogramas, posto que, na situação dos autos, está em causa o facto de o arguido explorar, na qualidade de sócio-gerente, o estabelecimento de bar denominado “H…” e de nesse local, no dia 19 de Setembro de 2015, pelas 00:10 horas, na ocasião aberto ao público, estar a ser difundida a música de um CD gravado dos “D…, E…, F…” através de um aparelho fonograma (leitor de CD’s) de marca LG “Micro HI FI System CM2520, sem que o estabelecimento fosse titular de autorização da Sociedade K… e da Licença PassMúsica para a difusão pública da obra musical em causa, bem como de outras, sabendo que só poderia proceder a semelhante difusão, após ser conferida tal autorização por aquelas entidades, que, em território nacional, representam, para defesa dos seus direitos e interesses, os respectivos produtores, intérpretes e artistas, titulares dos respectivos direitos de autor registados.
Ficou ainda provado que os direitos sobre a obra/música/fonograma em causa pertenciam a associada na C… (pontos 1 a 6 da matéria de facto provada).
Fonograma, segundo a acepção que consta do art. 176.º, n.º 4, do CDADC é o registo resultante da fixação, em suporte material, de sons provenientes de uma prestação ou de outros sons, ou de uma representação de sons e produtor de fonograma é a pessoa singular ou colectiva que fixa pela primeira vez os sons provenientes de uma execução ou quaisquer outros (n.º 3 do mesmo preceito).
No âmbito do direito de autor, determina o art. 141.º do CDADC que:
«1 - Depende de autorização do autor a fixação da obra, entendendo-se por fixação a incorporação de sons ou de imagens, separada ou cumulativamente, num suporte material suficientemente estável e duradouro que permita a sua percepção, reprodução ou comunicação de qualquer modo, em período não efémero.
2 - A autorização deve ser dada por escrito e habilita a entidade que a detém a fixar a obra e a reproduzir e vender os exemplares produzidos.
3 - A autorização para executar em público, radiodifundir ou transmitir de qualquer modo a obra fixada deve igualmente ser dada por escrito e pode ser conferida a entidade diversa da que fez a fixação.
4 - A compra de um fonograma ou videograma não atribui ao comprador o direito de os utilizar para quaisquer fins de execução ou transmissão públicas, reprodução, revenda ou aluguer com fins comerciais.»

Vemos assim que o autor da obra tem o poder de autorizar ou não a fixação da obra em fonograma e ainda o poder de autorizar ou não a sua execução, radiodifusão ou transmissão por qualquer modo da obra fixada ao público, podendo o titular desta autorização ser uma entidade diversa da que procedeu à fixação da obra em fonograma.
Esta previsão específica para o capítulo da fixação fonográfica concretiza apenas o que já constava do art. 68.º, n.º 1, als. d) e e) do CDADC.
Mas esclarece ainda o art. 141.º, n.º 4, do CDADC, sem margem para qualquer dúvida, que a compra de um fonograma, por exemplo um CD, não atribui ao comprador o direito de o utilizar para fins de execução ou transmissão pública. O seu direito de utilização é meramente privado e sem fins comerciais – é o que resulta da conjugação deste preceito com o disposto nos arts. 68.º e 75.º do mesmo diploma legal.
Não há, pois, qualquer dúvida que no caso dos autos era necessário que o autor da obra ou quem o representasse desse autorização para que no bar explorado pelo arguido, em horário em que se encontrava aberto ao público, fosse difundida a obra fixada no CD em questão.
A vantagem económica que resulta dessa difusão – sendo a música elemento essencial para criar o clima de um estabelecimento e chamar clientela, logo para potenciar os lucros do bar – não pode deixar de beneficiar sempre o autor da obra, pois esse é o cerne da protecção legal no âmbito da vertente patrimonial do direito de autor – art. 67.º do CDADC.
E as normas supramencionadas que regem a livre utilização da obra de modo algum admitem esta vantagem patrimonial gratuita para terceiro em detrimento de uma remuneração adequada do autor pela utilização da sua obra, que será alcançada, naturalmente, através da autorização para a sua difusão ou transmissão.
Mas idêntico regime de protecção é estabelecido ao nível dos direitos conexos, sendo certo que estes não afectam a protecção dos autores sobre a obra utilizada – art. 177.º do CDADC.
Assim, cabe ao produtor do fonograma o direito exclusivo de autorizar, por si ou pelos seus representantes, a comunicação ao público de fonograma, incluindo a sua difusão por qualquer meio e execução pública directa ou indirecta, em local público, na aceção do n.º 3 do artigo 149.º do CDADC[2] – art. 184.º, n.º 1, al. e), do mesmo diploma legal.
Esta formulação resulta da alteração introduzida ao referido art. 184.º pelo DL 100/2017, de 23-08, que ainda não estava em vigor à data dos factos (19-09-2015).
Mas o sentido do preceito, apesar da alteração da redacção e da própria estrutura do artigo, manteve-se, como se percebe da letra do então n.º 2 da norma em análise (na redacção dada pela Lei 16/2008, de 01-04) que determinava que carecem também de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a difusão por qualquer meio, a execução pública dos mesmos e a colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma a que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.
Em ponto algum se salvaguardava que esta previsão era aplicável apenas aos fonogramas não editados comercialmente como se defende na decisão recorrida.
Com efeito, determinava este art. 184.º o seguinte (redacção conferida pela Lei 16/2008, de 01-04):
«1 - Carecem de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a reprodução, directa ou indirecta, temporária ou permanente, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, e a distribuição ao público de cópias dos mesmos, bem como a respectiva importação ou exportação.
2 - Carecem também de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a difusão por qualquer meio, a execução pública dos mesmos e a colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma a que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.
3 - Quando um fonograma ou videograma editado comercialmente, ou uma reprodução dos mesmos, for utilizado por qualquer forma de comunicação pública, o utilizador pagará ao produtor e aos artistas intérpretes ou executantes uma remuneração equitativa, que será dividida entre eles em partes iguais, salvo acordo em contrário.
4 - Os produtores de fonogramas ou de videogramas têm a faculdade de fiscalização análoga à conferida nos n.os 1 e 2 do artigo 143.º».

E determina o mesmo preceito na sua actual redacção que:
«1 - Assiste ao produtor do fonograma ou do videograma o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:
a) A reprodução, direta ou indireta, temporária ou permanente, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, do fonograma ou do videograma;
b) A distribuição ao público de cópias dos fonogramas ou videogramas, a exibição cinematográfica de videogramas bem como a respetiva importação ou exportação;
c) A colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, dos fonogramas ou dos videogramas para que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido;
d) Qualquer utilização do fonograma ou videograma em obra diferente;
e) A comunicação ao público, de fonogramas e videogramas, incluindo a difusão por qualquer meio e a execução pública direta ou indireta, em local público, na aceção do n.º 3 do artigo 149.º
2 - (Revogado.)
3 - Quando um fonograma ou videograma editado comercialmente, ou uma reprodução dos mesmos, for utilizado por qualquer forma de comunicação pública, o utilizador tem de pagar, como contrapartida da autorização prevista na alínea e) do n.º 1, uma remuneração equitativa e única, a dividir entre o produtor e os artistas, intérpretes ou executantes em partes iguais, salvo acordo em contrário.
4 - Os produtores de fonogramas ou de videogramas têm a faculdade de fiscalização análoga à conferida nos n.os 1 e 2 do artigo 143.º»

A correcta interpretação destes preceitos leva a concluir apenas e tão-só que:
● o produtor de fonogramas tem o direito exclusivo de autorizar a reprodução, distribuição, importação, exportação, difusão e execução pública e colocação à disposição do público dos fonogramas que produziu; e
● quando se trate fonogramas editados comercialmente, ou de uma reprodução dos mesmos, e os mesmos forem utilizados por qualquer forma de comunicação pública, o utilizador pagará determinada quantia.
Com o devido respeito, consideramos que a tese perfilhada no acórdão recorrido, respaldada na posição de Oliveira Ascensão, percursor do desenvolvimento desta área do direito no nosso país, assumindo-se, por isso, como uma posição de grande valia jurídica, e que defende que o direito de autorização dos produtores de fonogramas contemplado na primeira parte do preceito apenas se aplica aos casos em que os mesmos não estão editados comercialmente, não tem a melhor proximidade com os dizeres da lei e com a lógica do diploma.
A última parte do preceito, seja na redacção vigente à data dos factos seja na actual, não isenta o utilizador que paga uma remuneração pela utilização de fonogramas editados comercialmente de pedir autorização para essa mesma utilização.

A este propósito, e fazendo ainda uma análise da posição de Oliveira Ascensão, pronunciou-se António Menezes Cordeiro[3], embora enfatizando a questão da radiodifusão mas não só, argumentando o seguinte:
«III. Quanto a fonogramas ou videogramas, funciona o artigo 184.º:
– carecem de autorização do produtor a sua reprodução e difusão (184.º/1 e 2);
– quando se trate de fonograma ou de videograma editados comercialmente, o utilizador pagará determinadas quantias (184.º/3).
À partida nem se percebe como houve dúvidas: um produtor pode pretender colocar no comércio uma obra e proibir a sua radiodifusão. Basta ler a etiquetagem de qualquer cd/vídeo: compram-se no mercado, mas está proibida a sua pública execução ou radiodifusão. Só assim não seria perante lei expressa.
Logo, o n.º 3 não dispensa a autorização para radiodifusão; apenas acrescenta que esta, quando permitida, dá lugar a um pagamento equitativo a repartir igualmente pelo produtor e pelo intérprete, salvo cláusula em contrário. Esta cláusula poderá fixar: ou uma retribuição “não equitativa” (para mais ou para menos) ou uma diversa repartição do seu valor.
IV. O problema surgiu mercê de uma interpretação circunstancial de Oliveira Ascensão.
Em nome da verdade científica, cabe recordar que este Autor teve um papel decisivo na elaboração do Código do Direito de Autor de 1985, tal como resultou do Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março. Na altura, este Código originou uma forte reação dos meios ligados à gestão dos direitos de autor: daí resultou a Lei n.º 45/85, de 17 de Setembro, que desvirtuou profundamente, do ponto de vista do seu Autor material, o diploma inicial. Oliveira Ascensão reagiu com convicção e passou, na sua obra, sempre excelente, a criticar asperamente os diversos preceitos legais. O estilo manteve-se: basta ler algumas páginas do livro em causa para se apreender um tom menos habitual em obras jurídico-científicas. E aqui temos como, passado mais de um quarto de século e em área que nem tem a ver com os desaguisados de 1985, ainda se mantêm um forte ataque à lei em vigor.

Este Autor veio defender, na base de uma articulação vocabular entre os números 3 e 2 do artigo 184.º, que havendo uma “edição comercial”, a autorização do produtor para a radiodifusão não seria necessária.
V. Salvo o devido respeito, esta orientação não resulta da lei. Tão-pouco se pode dizer que se trata de uma solução contra o público: porque não contra as multinacionais de radiodifusão? Ou a favor do público, prevenindo cópias piratas?
Há que prevenir pré-entendimentos emotivos. De todo o modo, a questão suscitada por Oliveira Ascensão constitui um ensejo para aprofundar a temática subsequente.
(…)
V - A interpretação do artigo 184.º
23. Os “direitos” de reprodução e de comunicação
I. Os elementos obtidos permitem, agora, interpretar mais cabal e fundadamente o artigo 184.º. Desde logo, todo ele é dominado pela epígrafe “autorização do produtor”.
Vamos recordar os seus dois primeiros números, na redação dada pela Lei n.º 50/2004, de 24 de Agosto:
1. Carecem de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a reprodução, direta ou indireta, temporária ou permanente, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, e a distribuição ao público de cópias dos mesmos, bem como a respetiva importação ou exportação.
2. Carecem também de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a difusão por qualquer meio, a execução pública dos mesmos e a colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.
Esses dispositivos completaram os que advinham da anterior redação dada pela Lei n.º 114/91, de 3 de Setembro.
II. Os dois números em causa advêm dos artigos 2.º e 3.º da Diretriz n.º 2001/29, de 22 de Maio: o primeiro relativo à reprodução e o segundo, à comunicação ao público. Deixam claro que quer a reprodução, em qualquer das suas modalidades, quer a difusão, também por qualquer das vias possíveis, carecem de autorização do produtor.
III. A exigência de autorização para a radiodifusão, por parte do produtor, resulta diretamente da ideia da proteção dos fonogramas. Como temos vindo a enfocar, tal proteção seria letra morta quando fosse permitida uma radiodifusão não autorizada.
E não se trata, simplesmente, de assegurar ao produtor a possibilidade de recuperar o investimento feito, se possível com lucro: a dimensão pessoal do direito está em causa. Quer o autor, quer o intérprete, quer o produtor, podem ter razões legítimas para limitar a circulação da obra.
24. A remuneração equitativa
I. E com isto chegamos ao nosso já conhecido artigo 184.º/3, que reproduzimos para facilidade de análise:
Quando um fonograma ou videograma editado comercialmente, ou uma reprodução dos mesmos, for utilizado por qualquer forma de comunicação pública, o utilizador pagará ao produtor e aos artistas intérpretes ou executantes uma remuneração equitativa, que será dividida entre eles em partes iguais, salvo acordo em contrário.
Este preceito foi retirado do artigo 8.º/2 da Diretriz n.º 92/100, de 19 deNovembro, que dispõe:
Os Estados-membros deverão prever um direito tendente a garantir o pagamento de uma remuneração equitativa e única pelos utilizadores que usem fonogramas publicados com fins comerciais ou suas reproduções em emissões radiodifundidas por ondas radioelétricas ou em qualquer tipo de comunicação ao público, bem como garantir a partilha de tal remuneração pelos artistas intérpretes ou executantes e pelos produtores de fonogramas assim utilizados.
II. Interessa desfazer, desde já, um grave equívoco: a Diretriz n.º 92/100 não estabelece qualquer “licença legal”. O artigo 8.º/1 faz depender a radiodifusão de autorização dos artistas intérpretes. O que se passa é tão-só: aquando da produção, o produtor acorda com o artista intérprete se sim ou não a radiodifusão é possível. Normalmente, não o será, salvo (uma) autorização, que o produtor poderá dar em nome e por conta do artista se, para tal, tiver poderes.
A preocupação comunitária não foi a de dispensar a (óbvia) necessidade de uma específica autorização para radiodifusão: foi, antes, a de assegurar a “remuneração equitativa” e a sua repartição. A ideia surge retomada pela Diretriz n.º 2001/29 que, no seu artigo 5.º/2, e), chega a (só) permitir
(...) reproduções de transmissões radiofónicas, por instituições sociais com objectivos não comerciais, tais como hospitais ou prisões, desde que os titulares dos direitos recebam uma compensação justa.
III. A Diretriz refere “fonogramas publicados com fins comerciais”, isto é, que visem o lucro. Neste sentido há de ser entendida a expressão “editado comercialmente”: esta, tomada à letra, absorveria todo o universo dos fonogramas.
IV. Isto dito: o artigo 184.º/3 deve ser lido depois dos números 1 e 2. As autorizações previstas nestes dois preceitos são sempre necessárias; só depois fará sentido ponderar a “remuneração equitativa”. A radiodifusão proibida é ilícita, não podendo ser legitimada por qualquer remuneração.
Como temos vindo a retomar: não haveria qualquer proteção de fonograma caso este pudesse ser pura e simplesmente radiodifundido. O próprio artigo 185.º/1, quando fixa, como condição de proteção, a menção, nas cópias autorizadas, do símbolo “P”, perderia o sentido: proteção contra o quê se a cópia puder ser radiodifundida sem autorização?
Voltamos a sublinhar: estão em jogo não só os aspetos patrimoniais como, também, os pessoais ou de personalidade.»

Esta apreciação, que acolhemos na íntegra, realiza uma análise lúcida do contexto legal da questão.
O Autor, para realçar a incongruência da tese que vem rebatendo, levanta ainda as seguintes interrogações:
E uma empresa de radiodifusão, invocando as dificuldades práticas em fixar a remuneração equitativa, decide nada pagar: pode radiodifundir tudo sem limites?
E uma empresa que, no limiar da insolvência, decida não pagar: pode radiodifundir de graça?»

A leitura do regime aplicável ao caso dos autos pela qual optou o Tribunal a quo, para além de não ter reflexo na letra da lei e de estar em desalinho com o espírito do diploma, abre a porta a incongruências e injustiças como as realçadas nas hipóteses indicadas.
Não impressiona, por isso, contrariamente ao argumento apresentado na sentença recorrida, que o produtor obtenha uma compensação monetária e o arguido cometa o crime caso actue nos termos comprovados nos autos, ou seja, difunda música proveniente de fonograma sem previamente obter autorização para a respectiva comunicação pública. A concessão dessa autorização a troco do pagamento de uma remuneração adequada e a penalização pela sua não obtenção garante a efectiva remuneração do produtor do fonograma que é quem dispõe do direito à sua difusão pública.

Abre-se aqui um parêntesis para esclarecer que este concreto direito de que vimos tratando está, pelo menos presumidamente, subtraído aos artistas intérpretes ou executantes (com a configuração supramencionada), conforme resulta do disposto no art. 178.º, n.º 1, do CDADC, onde se prevê que assiste aos mesmos o direito exclusivo de autorizarem, por si ou pelos seus representantes, a radiodifusão e a comunicação ao público, por qualquer meio, da sua prestação, excepto quando a prestação já seja, por si própria, uma prestação radiodifundida ou quando seja efectuada a partir de uma fixação.
No fundo, a ideia é a de que este direito se transmite ao produtor do fonograma aquando da autorização para fixação da prestação, a quem assiste, de acordo com o disposto no art. 184.º do CDADC, o direito de autorizar ou não a comunicação pública (por oposição à noção de utilização privada e sem fins comerciais), por exemplo, do fonograma.
Mas para que qualquer dúvida não restasse, o n.º 2 daquele art. 178.º determina que:
«Sempre que um artista intérprete ou executante autorize a fixação da sua prestação para fins de radiodifusão a um produtor cinematográfico ou audiovisual ou videográfico, ou a um organismo de radiodifusão, considerar-se-á que transmitiu os seus direitos de radiodifusão e comunicação ao público, conservando o direito de auferir uma remuneração inalienável, equitativa e única, por todas as autorizações referidas no n.º 1, à excepção do direito previsto na alínea d) do número anterior. A gestão da remuneração equitativa única será exercida através de acordo colectivo celebrado entre os utilizadores e a entidade de gestão colectiva representativa da respectiva categoria, que se considera mandatada para gerir os direitos de todos os titulares dessa categoria, incluindo os que nela não se encontrem inscritos.»

Os artistas intérpretes ou executores transmitem, ou presume-se que transmitem[4], ao produtor do fonograma o direito a autorizar a comunicação ou transmissão pública da prestação, que é quem passa a gerir tal matéria, mas continuam a receber uma remuneração inalienável, equitativa e única que abrange esse direito e os demais previstos nas als. a) a c) no n.º 1 do art. 178.º do CDADC.
Tal preceito, quanto aos seus números 1 a 3, não sofreu qualquer alteração desde a prática dos factos, pelo que se conclui que, nada se provando em contrário, apenas os produtores de fonograma mas já não os artistas intérpretes ou executantes tinham o direito de autorizar a comunicação ao público de fonogramas.

Em suma: à data dos factos, os autores e os produtores de fonogramas tinham de autorizar, por si ou pelos seus representantes, a difusão pública por qualquer meio dos fonogramas cuja produção realizaram.

E a circunstância de se tratar de um fonograma original ou de uma cópia deste em nada releva para tal questão, como parece depreender-se da decisão recorrida, sem prejuízo de se poder ainda suscitar a questão de estarmos, para além do mais, perante uma cópia ilícita (pirata) caso o original não pertença ao seu utilizador, o que no caso dos autos não resulta da factualidade assente.

Importa ainda esclarecer que o arguido, enquanto sócio-gerente de facto e de direito do referido estabelecimento, é responsável pelos actos que praticou nos termos do art. 12.º do CPenal.

Em face do que fica exposto, não restam dúvidas de que, perante o conjunto dos factos dados como provados, o arguido cometeu um crime de usurpação p. e p. pelo art. 195.º, n.º 1, do CDADC, posto que, sem autorização do autor e do produtor do fonograma (aqui se incluindo indirectamente os artistas intérpretes ou executores) difundiu, no bar de que era sócio-gerente e que explorava e se encontrava aberto ao público, música fixada nesse mesmo fonograma, utilização que só àqueles, por si ou através dos representantes, cabia decidir e autorizar.

Apurado que está este quadro, temos de concordar em absoluto com o levantamento de vícios levado a cabo pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu.
Com efeito, a matéria de facto provada reproduz a factualidade constante da acusação respeitante à prática do crime de usurpação, p. e p. pelo art. 195.º, n.º 1, do CDADC, contendo todos os elementos objectivos e subjectivos necessários à verificação do crime de acordo com a análise antecedente.
Entre o mais, o Tribunal a quo deu como provado que:
«6 - O arguido difundia a música no referido Bar, sem que fosse titular de autorização da Sociedade K… e da Licença PassMúsica para a difusão pública da obra musical em causa, bem como de outras, sabendo a mesma que só poderia proceder a semelhante difusão, após lhe ser conferida tal autorização por aquelas, que, em território nacional, representam, para defesa dos seus direitos e interesses, os respetivos produtores, intérpretes, artistas, titulares dos respetivos direitos de autor registados.
7 - O arguido sabia que não devia difundir tal música no seu estabelecimento, como o fez, sem a competente autorização pois que procedia a reproduções públicas não autorizadas por quem de direito.»

Ora, se o Tribunal a quo, ao analisar o tipo legal em questão, concluiu que na concreta situação em apreço não era necessária a autorização dos produtores de fonogramas para que o arguido pudesse difundir no bar que explorava a música que então ali tocava não podia igualmente dar como provado os pontos indicados que pressupõem o conhecimento por parte do arguido da necessidade da referida autorização.
Assim como não podia fixar tais factos e na mesma decisão concluir pela absolvição do arguido da prática do crime imputado.
Em coerência com o entendimento jurídico acolhido pelo Tribunal a quo, aqueles factos deviam ter merecido um juízo de não provados quanto ao conhecimento por parte do arguido da necessidade da referida autorização, que pressupõe efectivamente a respectiva necessidade, ou, pelo menos, devia ter sido dado apenas como provado que o arguido estava convencido de que era necessária a referida autorização.
Mais, a própria fundamentação de direito contém argumentação que, ao contrário do que se pretendeu demonstrar, leva necessariamente a concluir que em termos legais a situação dos autos devia ser considerada crime quer à data dos factos quer à data da prolação da decisão, posto que invoca que a Lei 22/2018, de 05-06, autorizou o Governo a descriminalizar a comunicação pública não autorizada de fonogramas editados comercialmente, passando tal conduta a integrar ilícito de mera contraordenação. Daqui se infere com relativa clareza que tal conduta é crime, de outro modo não se estaria a ponderar a sua descriminalização.
Estas incongruências integram o vício da contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, com previsão no art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPPenal.

Com efeito, é jurisprudência pacífica a que considera que os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, e designadamente, para o que aqui nos importa, o acima identificado, previsto na alínea b) do mencionado preceito, são defeitos que têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum. São falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detectáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente perceptíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.

Porém, a constatação de que a sentença recorrida padece do vício da contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPPenal, não determina automaticamente o reenvio do processo para novo julgamento. O reenvio só deve ocorrer quando não seja possível por outra forma colmatar as falhas detectadas, conforme decorre do disposto no art. 426.º, n.º 1, do CPPenal.
No caso dos autos, constando da matéria de facto provada toda a informação necessária à prolação de uma decisão de direito coerente com o regime legal em vigor, nada obsta a que este Tribunal de recurso profira tal decisão, sendo aqui aplicável o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 4/2016 para fixação de jurisprudência (DR 36 I Série de 22-02-2016), segundo o qual «Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.»

É inequívoco, atendendo à análise antecedente, que à data da prática dos factos e da prolação da decisão recorrida o arguido praticou um crime de usurpação, p. e p. pelo art. 195.º, n.º 1, do CDADC.
Contudo, recentemente, através da Lei 92/2019, de 04-09, entrada em vigor 30 dias após a respectiva publicação, a Assembleia da República decidiu descriminalizar a execução pública não autorizada de fonogramas e videogramas editados comercialmente e, em consequência, acrescentar ao art. 195.º do CDADC um n.º 4 com o seguinte teor:
«O disposto nos números anteriores não se aplica às situações de comunicação pública de fonogramas e videogramas editados comercialmente, puníveis como ilícito contraordenacional, nos termos dos n.os 3, 4 e 6 a 12 do artigo 205.º».

Por seu turno, o art. 205.º do mesmo diploma legal sofreu profunda alteração, passando o seu n.º 3 a ter a seguinte redacção:
«Constitui contraordenação punível com coima entre 125 (euro) e 1500 (euro), no caso das pessoas singulares, e de 250 (euro) a 7500 (euro), no caso das pessoas coletivas, a comunicação ao público de fonogramas previamente editados comercialmente, obras e prestações neles incorporadas, sem autorização do respetivo autor, produtor do fonograma ou dos seus representantes, se a mesma for legalmente exigida, nas seguintes modalidades:
a) Sob a forma de execução pública, por qualquer meio e em qualquer lugar público, na aceção do n.º 3 do artigo 149.º;
b) Sob a forma de radiodifusão audiovisual de fonogramas previamente incorporados em obras audiovisuais com autorização dos respetivos titulares.»

É nesta previsão que em face do regime actual se enquadra a conduta do arguido dada como provada nestes autos.
Esta alteração veio clarificar, fora de qualquer dúvida, que os factos que se discutem nestes autos integravam a prática de um crime de usurpação, p. e p. pelo art. 195.º, n.º 1, do CDADC, e que a distinção realizada na tese defendida pelo Tribunal a quo quanto à leitura do art. 184.º, limitando a aplicação dos seus n.ºs 1 e 2 (redacção vigente à data) aos casos de fonogramas não editados comercialmente, não tinha qualquer correspondência ou suporte na lei.

Mas a questão para a qual este novo regime nos interpela é a de saber qual a solução jurídica a adoptar nos casos, como o dos presentes autos, em que a lei descriminalizou uma conduta que antes constituía crime e passou a enquadrar esses mesmos comportamentos como ilícito contraordenacional.

Esta questão foi abordada de forma clara e assertiva no acórdão da Relação do Porto de 15-11-2006[5], com a fundamentação que aqui deixamos transcrita por concordarmos na íntegra com a mesma e com a solução jurídica que determina:
«A questão dos presentes autos passa por saber que consequências advêm pelo facto de o legislador deixar de qualificar determinada conduta como crime para passar a qualificá-la como contra-ordenação.
O Dr. Taipa de Carvalho in “Sucessão de Leis Penais”, 2ª edição revista, pgs. 120 e segs., trata aprofundadamente a questão.
Diz, nomeadamente:
“A L.N. é despenalizadora, logo eficácia retroactiva da despenalização (CRP, art. 29º, 4.-2ª parte; CP 1982/95, art. 2º, 2; CP 1886, art. 6º, 1 a).
A conversão da qualificação jurídico-legal de uma conduta de infracção penal (crime ou contravenção) em infracção de natureza administrativa (contra-ordenação) foi e continua a ser uma questão não resolvida, apesar do seu enorme alcance prático. Não é ousado afirmar que, também aqui, se jogam as garantias individuais do cidadão para cuja defesa se afirmou e consagrou constitucionalmente a proibição da retroactividade da lei penal desfavorável. Razões mais que suficientes são estas para que se procure equacionar, devidamente, o problema e se apresentem as soluções claras que princípios já centenários impõem, sem se ceder aos falaciosos argumentos da praticabilidade dos complexos sistemas sociais dos nossos dias. A rendição da doutrina e da jurisprudência a tais «argumentos» constituirá meio caminho para que o poder político, sob o peso da sua ambição e a pressão das circunstâncias, subverta os mais genuínos princípios-fundamentos do Estado-de-Direito, sob a aparência da legalidade.
É urgente, portanto e em minha opinião, enfrentar o problema e resolvê-lo no respeito dos princípios fundamentais do Estado-de-Direito (formal e material) sobre esta matéria da vigência ou eficácia temporal da lei penal.
Sendo - devendo ser - indiscutido o princípio da aplicação da lei penal favorável, tendo em conta as suas rationes jurídico-política e político-criminal e esclarecidos os pressupostos da sucessão de leis penais stricto sensu, a questão fulcral e decisiva passa a centrar-se na natureza das contra-ordenações: constitui o ilícito de mera ordenação social um ilícito essencialmente distinto do ilícito penal ou tratar-se-á apenas de uma distinção não essencial, não material, mas apenas de grau, sendo a infracção penal e a infracção contra-ordenativa espécies do mesmo género de infracções de direito público sancionatório?
Se a resposta for a de que a contra-ordenação é uma infracção de natureza administrativa, distinta, na sua natureza essencial e nos fins do seu sancionamento (punição), da infracção penal - o crime e mesmo a contravenção -, não pode existir a mínima dúvida de que a conversão legislativa de uma infracção penal numa contra-ordenação constitui uma despenalização da respectiva conduta e, necessariamente (CRP, art. 29º, 4, 2.ª parte; CP 1982/95, art. 2º, 2; CP 1886, art. 6º, 1), tem eficácia retroactiva; jamais, a partir da entrada em vigor da lei que alterou a qualificação, poderá aplicar-se a L.A. e, tendo já sido aplicada em sentença transitada em julgado, cessam a execução da pena e os efeitos penais da condenação. A responsabilidade penal, derivada do facto praticado antes do início de vigência da L.N., extinguese plenamente.
Problema diferente - mas que já não respeita à vigência temporal da lei penal - é o da eficácia temporal da L.N., na medida em que passou a qualificar o facto (a hipótese legal) como contra-ordenação. Ora o princípio geral é o de que a lei que «cria» contra-ordenações só se aplica aos factos praticados depois da sua entrada em vigor (Dec. Lei n.º 433/82, art. 3º, 1 - eficácia pós-activa). Todavia, não está constitucionalmente consagrada - pelo menos de forma expressa - a proibição da retroactividade da lei sobre contra-ordenações.
Assim, se a lei que altera a qualificação do facto de crime (ou de contravenção) para contra-ordenação, não estabelece, mediante norma transitória, a sua aplicabilidade às acções praticadas antes do seu início de vigência, tais acções que, necessária e constitucionalmente, são despenalizadas, também não podem ser julgadas como ilícitos de mera ordenação social. Tornaram-se, portanto, juridicamente irrelevantes.

Se, pelo contrário, a lei, que converte a infracção penal em contra-ordenação, estabelecer, por disposição transitória, a sua eficácia retroactiva, no sentido de tornar extensivo o seu regime e as coimas respectivas aos factos praticados na vigência da lei antiga (evitando, assim, a impunidade geral dos factos ainda não julgados), podem não levantar-se, mas também poderão surgir problemas de constitucionalidade da norma transitória.

Equacionado o problema, há que ver qual a solução imposta pelo nosso sistema jurídico. Depende esta - como já dissemos - da resolução da questão prévia da autonomia material e legislativa da contra-ordenação face à infracção penal. Se esta autonomia, se esta diferença essencial existir e, sobretudo, se for assumida pelo legislador, então a solução final, quanto à eficácia temporal da lei penal, tem de ser a de que a lei que converte um crime (ou uma contravenção) numa contra-ordenação é uma lei despenalizadora e, em consequência, extingue toda a responsabilidade penal (pena principal e penas acessórias e efeitos penais de uma eventual condenação já transitada em julgado). Em sentido rigoroso, não haverá um problema de sucessão de leis (da mesma natureza) e, portanto, não intervém o princípio da aplicação da lei mais favorável.
Cabe-nos, agora, demonstrar que não só a maioria da doutrina mas também o legislador consideram que entre crime (infracção penal) e contra-ordenação há uma autonomia essencial. Saliente-se, desde já, que o decisivo nesta matéria - em que estão em causa direitos fundamentais e a correspondente exigência de segurança jurídica que é servida pelo princípio da legalidade penal - são as normas jurídico-constitucionais e as normas ordinárias delas imediatamente decorrentes.
Efectivamente, analisando os art.ºs 27º, 2., 29º, 165º, 1 c) da CRP e os art.ºs 2º 49º, 1 do CP actual e, quanto às contravenções, art.ºs 6º e 123º do CP 1886, e confrontando-os com o art.º 165º, l d) da CRP e os art.ºs 3º e 33º do Dec. Lei n.º 433/82, constata-se que as contra-ordenações e as respectivas sanções são assumidas e positivadas pelo legislador constitucional e ordinário como infracções e sanções de natureza essencialmente diversa das infracções e sanções penais.
Independentemente da existência ou não de um critério material de distinção, que vincule o legislador ordinário na decisão legislativo-qualificativa, e das críticas, mesmo com possível base constitucional, que se possam fazer ao regime legal das contra-ordenações - e neste segundo aspecto, acho que muito pertinentes quanto à administrativização da justiça contra-ordenacional, pois que não hão-de ser interesses pragmáticos de economia processual-judicial que a justificarão - o que é decisivo para o nosso problema da eficácia temporal da lei penal é o indiscutido facto de o legislador português considerar e tratar o ilícito de mera ordenação social como infracção de natureza essencialmente diversa da infracção penal, recusando, assim, uma simples distinção gradualista, e nem sequer as reconhecendo como espécies que entroncassem num género comum.

Proclama a Introdução do Dec. Lei n.º 232/79, de 24 de Julho: «Necessidade, de dotar o país ... de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal ... uma forma autónoma de ilicitude que reclame um quadro próprio de reacções sancionatórias e um novo tipo de processo ... A contra-ordenação «é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal»... Não é, por isso, admissível qualquer forma de prisão, preventiva ou sancionatória, nem sequer a pena de multa ou qualquer outra que pressuponha a expiação ético-pessoal que aqui não intervém. A sanção normal do direito de mera ordenação social é a coima, sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridades administrativas ... A consagração do regime geral relativo às contra-ordenações ... destinava-se, assim, naturalmente, a vigorar para o futuro ... Apesar disso, considera-se conveniente submeter, desde já, ao regime deste decreto-lei as contravenções e transgressões previstas na lei vigente, bem como outros casos que a lei venha a descriminalizar ..».
Reforça, por sua vez, o Relatório do Dec. Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (que revogou o Dec. Lei n.º 232/79): «Manteve-se, outrossim, a fidelidade à ideia de fundo que preside à distinção entre crime e contra-ordenação. Uma distinção que não esquece que aquelas categorias de ilícito tendem a extremar-se, quer pela natureza dos respectivos bens jurídicos quer pela desigual ressonância ética. Mas uma distinção que terá, em última instância, de ser jurídico-pragmática e, por isso, também necessariamente formal».
Passando dos dois diplomas, instituintes da figura das contra-ordenações e do respectivo regime geral, para o campo da sua implementação-concretização, reparemos no Preâmbulo do Dec. Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro: «De acordo com as mais modernas correntes do direito criminal, e a fim de concorrer para a desejada harmonia do sistema jurídico, despenalizaram-se certos tipos de infracções, englobando-se os comportamentos respectivos no direito de mera ordenação social ... havendo o particular cuidado de extremar rigorosamente os campos dos 2 ilícitos em presença, a fim de evitar sobreposições ou confusões entre as previsões dos correspondentes tipos legais. Quer isto dizer que se relegaram para o capítulo das contra-ordenações apenas aqueles comportamentos que não põem em causa interesses essenciais ou fundamentais da colectividade e que, por isso, carecem de verdadeira dignidade penal».
No âmbito doutrinal, FIGUEIREDO DIAS: «Descriminalizar significará aqui expurgar as contravenções do domínio do direito penal - com todas as consequências que isso implica, quer ao nível da caracterização do ilícito respectivo, quer ao nível da determinação das espécies de sanções que lhes devem caber .. quer ao nível do processamento das infracções - para constituir com elas um autêntico «ilícito de mera ordenação social». Recentemente, o mesmo Autor escreveu: «O CP operou a referida descriminalização ... eliminando para o futuro, ainda por outro lado, a categoria das contravenções e substituindo-a pela categoria não penal das contra-ordenações ...»”.
No campo da jurisprudência, acrescentamos nós, o Dr. GONÇALVES FERREIRA, escreveu em voto de vencido: “A coima não é uma multa mais branda ... A contra-ordenação não tem natureza penal, é algo de diferente, como o são o ilícito disciplinar, administrativo ou civil... Estamos em planos e mundos diferentes: o direito de mera ordenação social é autónomo e distinto do direito penal, como se salienta no preâmbulo do Dec. Lei n.º 433/82”.
O Ac. da RP de 7 de Novembro de 2004 in CJ, Ano XIX, tomo 5, pg. 244, salienta:
“Deste modo, a conduta em questão que constituiria contravenção prevista na legislação então em vigor (agora revogada) foi retirada ao âmbito do direito penal e passou e enquadrar-se no âmbito do chamado ilícito de mera ordenação social, ilícito este que é distinto e autónomo daquele, como se refere no preâmbulo do Dec. Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, reafirmando o que, de modo mais desenvolvido, se dissera já no relatório do Dec. Lei n.º 232/79, de 24 de Julho.
Com efeito e respigando algumas passagens do relatório do diploma de 1979, constata-se que ele se insere num movimento de descriminalização, assim se respondendo às necessidades de «purificação do direito criminal de formas de ilícito, cuja sede natural é o direito de mera ordenação social. E o que, por exemplo, deverá acontecer com as contravenções, tradicional e indevidamente integradas no ordenamento jurídico-penal».
Ainda conforme se refere no preâmbulo do mesmo diploma, entre os dois ramos de direito (penal e de mera ordenação social) «medeia uma autêntica diferença; não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza». E, de seguida, citando Eduardo Correia, Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social, in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1973, pág. 268, diz-se que a contra-ordenação «é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal».
Aliás, a própria sanção - coima - tem «natureza administrativa, aplicada por autoridades administrativas», podendo «adoptar-se um processo extremamente simplificado e aberto aos corolários do princípio da oportunidade»”.
Sufraga-se integralmente tudo quanto vem de ser explanado.
Pois bem.
Concluindo-se, como se conclui que a contra-ordenação é uma infracção de natureza administrativa, distinta na sua natureza essencial e nos fins do seu sancionamento (punição), da infracção penal, então também não restam dúvidas de que a conversão legislativa de uma infracção penal numa contra-ordenação constitui uma despenalização da respectiva conduta e, necessariamente, tem eficácia retroactiva.
Como diz o Dr. Taipa de Carvalho, ob. citada, pg. 133, “Não pode deixar de concluir-se que, quanto à responsabilidade penal, uma lei que «converte» uma infracção penal (crime ou contravenção) numa contra-ordenação é uma lei despenalizadora e que, enquanto tal, se aplica retroactivamente. Não se trata, pois, de uma verdadeira sucessão de leis penais, não intervindo, assim, o princípio da lex mitior (CP 1982/95, art. 2º, 4, e CP 1886, art. 6º-2), mas o princípio da lei despenalizadora, isto é, extintiva da responsabilidade penal (CP 1982/95, art. 2º, 2., e CP 1886, art. 6º, 1 e 3)”.
Ressalvando, naturalmente, a situação em que a lei que altera a qualificação do facto de crime para contra-ordenação estabelece, mediante norma transitória, a sua aplicabilidade às acções praticadas antes do seu início de vigência.
Neste sentido decidiram, designadamente:
O Ac. da RP de 12/01/2005 in www.dgsi.pt, Acs. da Relação do Porto;
O Ac. do STJ de 9/5/2002 in www.dgsi.pt, Acs. do STJ, este com votos de vencidos dos Ex.mos Conselheiros Simas Santos e Abranches Martins;
O Ac. do STJ de 5/01/1995 in www.dgsi.pt, Acs. do STJ.
Resta aplicar a doutrina aos factos.
O DL 36/2003, de 5 de Março, qualificou como contra-ordenação factos que antes eram tipificados como sendo crime.
Não contém qualquer norma transitória expressa destinada a fazer retroagir o regime contra-ordenacional então criado.
Consequentemente, por aplicação da doutrina que subscrevemos, a conduta da arguida está despenalizada. Tornou-se juridicamente irrelevante.»

No caso dos autos, contrariamente à situação analisada no aresto citado, a Lei 92/2019, de 04-09, tem uma norma transitória quando à solução jurídica a adoptar, a qual dispõe que:
«1 - As contraordenações previstas nos n.os 3, 4 e 6 do artigo 205.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de março, com a redação dada pela presente lei, são aplicáveis a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor sempre que tais factos fossem criminalmente puníveis na data em que foram praticados.
2 - Os processos-crime abrangidos pelo disposto no número anterior instaurados até à data da entrada em vigor da presente lei são convolados em procedimentos contraordenacionais, passando a ser tramitados e instruídos nos termos do regime contraordenacional previsto no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de março, com a redação dada pela presente lei, com as seguintes especificidades:
a) Cabe ao Ministério Público determinar a remessa dos autos à Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC), que instrui o correspondente processo contraordenacional, aproveitando todos os atos processuais entretanto já praticados, sendo subsidiariamente aplicável o disposto no Código de Direito de Autor e dos Direitos Conexos em matéria de contraordenações;
b) Nos processos-crime que se encontrem em fase de instrução ou de julgamento, devem os juízes titulares remeter os autos ao Ministério Público, para os efeitos previstos na alínea anterior.»

Assim, na situação em apreço, apesar da lei descriminalizadora ter como efeito apagar a conduta aqui analisada do elenco das infracções penais (art. 2.º, n.º 2 do CPenal) ela própria prevê que os factos ocorridos à luz do regime anterior sejam sancionados como contraordenação caso então constituíssem crime, como se verifica em concreto nestes autos.

O processo deveria, pois, regressar à 1.ª instância para determinação da coima aplicável, posto que esta questão não se colocou em momento algum até à subida dos autos à Relação, surgindo, fruto de alteração legislativa recente, já na pendência do recurso nestes Tribunal, sendo nessa perspectiva, questão novo que não pode ser decida pela 2.ª Instância.
Contudo, considerando que em causa está o cometimento de contraordenação punível com uma coima de €125 (cento e vinte e cinco euros) a €1500 (mil e quinhentos euros) quanto às pessoas singulares, como é o arguido, e que os factos ocorreram a 19-09-2015, impõe-se concluir que há muito prescreveu a responsabilidade contraordenacional do arguido, matéria que é de conhecimento oficioso.
Com efeito, de acordo com o disposto no art. 27.º, al. c), do DL 433/82, de 27-10 (institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo - RGCO), subsidiariamente aplicável ao caso dos autos por via do art. 204.º do CDADC, o prazo de prescrição pela contraordenação em causa, prevista no art. 205.º, n.º 3, do CDADC, é de 1 (um) ano.
De acordo com o disposto no art. 28, n.º 3, do DL 433/82, de 27-10, a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade, que no caso dos autos é de 6 (seis) meses.
Quanto ao período de suspensão da prescrição, o mesmo é no máximo de 6 (meses) até à prolação da decisão administrativa – art. 27.º-A do mesmo diploma legal.
No caso em apreço, procurando um paralelismo entre a tramitação dos autos e a subjacente ao processo contraordenacional, vemos que a acusação foi proferida a 06-12-2017, mais de (2) dois anos após a prática dos factos e mais ainda da remessa do processo para julgamento, momento aproximado ao previsto no art. 27.º-A, n.º 3 (notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima).
Assim, no caso dos autos, no limite, a responsabilidade contraordenacional do arguido prescreveu a 19-11-2017, 2 (dois) anos após a prática dos factos (1 (um) ano e 6 (seis) meses nos termos do art. 28.º, n.º 3, a que acrescem 6 (seis) meses nos termos do art. 27.º, todos do DL 433/82, de 27-10).

Resulta do anteriormente enunciado que quanto à vertente criminal do recurso, apesar da verificação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPPenal apontados, torna-se desnecessária a baixa dos autos para correcção, pois tal reparação foi efectuada, porque possível, por este Tribunal de recurso.
Contudo, resta ainda a questão do pedido de indemnização civil, sendo inevitável concluir, em face de tudo o que já foi dito, que esta parcela da sentença padece igualmente do mesmo vício do art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPPenal que a decisão recorrida quanto à parte crime, pois em face da matéria de facto provada, e em coerência com o regime jurídico então vigente, não podia o Tribunal a quo ter considerado que “não foi possível concluir pela ilicitude do facto praticado pelo arguido”, logo pela verificação de todos os pressupostos de que depende o direito de indemnização.
Relativamente a esta matéria, talvez fruto da posição jurídica defendida na sentença recorrida, não se preocupou o Tribunal a quo em elencar na factualidade provada e não provada os factos alegados no pedido de indemnização civil essenciais à respectiva apreciação, designadamente quanto ao dano patrimonial invocado. Neste aspecto, a matéria de facto é claramente insuficiente para uma correcta decisão de direito.
Nesta parte, para além do vício já apontado, sofre a decisão de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPPenal.
Sobre o enquadramento do apontado vício pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 27-09-2017[6], entre muitos outros, onde decidiu:
«VI - Existe insuficiência da matéria de facto quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.
(…)
IX - O vício a que alude o art. 410.º, n.º 2, al. a) do CPP, não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão nem com o erro de julgamento, não contemplando as situações em que o recorrente manifesta a sua discordância relativamente aos factos dados como provados e porque está fora da competência deste STJ exercer censura sobre a valoração que o tribunal recorrido procedeu dos diversos meios de prova e sobre a convicção que sobre eles formou, à luz do princípio da livre apreciação.»

Tal vício, à semelhança do já apreciado (contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão), determina o reenvio do processo para novo julgamento. Porém, como já referido, este não opera automaticamente. O reenvio só deve ocorrer quando não seja possível por outra forma colmatar as falhas detectadas, conforme decorre do disposto no art. 426.º, n.º 1, do CPPenal.
Tratando-se de vício que afecta a configuração da matéria de facto pode o Tribunal de recurso procurar a sua modificação em ordem à correcção das falhas apuradas nas condições previstas no art. 431.º do CPPenal, isto é, se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base, se a prova tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, n.º 3, do referido diploma legal e se tiver havido renovação da prova[7].
No caso concreto, são de afastar liminarmente as três hipóteses de sanação do vício, seja porque a modificação a produzir depende do teor das declarações e depoimentos produzidos, logo não dispondo o processo de todos os elementos de prova em causa, seja porque a prova não foi impugnada nos termos do n.º 3 do art. 412.º, seja ainda porque não foi requerida renovação da prova e esta não opera oficiosamente, conforme decorre do disposto no art. 430.º do CPPenal[8].

Assim, mostra-se impossível a este Tribunal de recurso suprir as insuficiências detectada em ordem à composição de uma matéria de facto completa que permita uma solução jurídica de procedência ou improcedência do pedido de indemnização civil deduzido.
Resta, em conformidade com a avaliação antecedente, determinar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPPenal, a realizar de acordo com as regras estabelecidas no art. 426.º-A do CPPenal e com intervenção de diferente magistrado judicial, restringido apenas à questão específica do pedido de indemnização civil, tomando-se em consideração a posição jurídica adoptada nesta decisão quanto à questão crime que o recurso suscitou.
*
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedentes os recursos e, em consequência:
a) - Reconhecer verificado o vício da contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão nos termos supramencionados, vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPPenal, mas saná-lo com a modificação da solução jurídica nos termos enunciados e, nesta sequência, declarar descriminalizado o crime de usurpação, p. e p. pelo art. 195.º, n.º 1, do CDADC imputado ao arguido e prescrito o procedimento contraordenacional pela prática pelo arguido da contraordenação p. e p. pelo art. 205.º, n.º 3, do CDADC;
b) - Reconhecer verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPPenal nos termos supramencionados, e, nesta sequência, determinar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPPenal, a realizar de acordo com as regras estabelecidas no art. 426.º-A do CPPenal e com intervenção de diferente magistrado judicial, restringido à questão específica do pedido de indemnização civil, tomando-se em consideração a posição jurídica adoptada nesta decisão quanto à questão crime que o recurso suscitou.
Sem tributação, considerando a alteração jurídica ocorrida após apresentação dos recursos (arts. 513.º, n.º 1, e 515.º, n.º 1, al. b), do CPPenal).

Porto, 29 de Janeiro de 2020
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora)
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
______________________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Segundo aquele preceito, entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, ainda que com reserva declarada do direito de admissão.
[3] Da reprodução de fonogramas sem autorização do produtor perante o Direito português vigente, artigo doutrinal inserto na revista O Direito, ano 143.º (2011) V, págs. 931 a 964. A análise do art. 184.º do CDADC que é realizada neste artigo tem por base, como a data do mesmo faz subentender, a redacção do preceito vigente à data dos factos apreciados nestes autos.
[4] Nada impede, cremos, que haja acordo em sentido diverso.
[5] Proc. 510619, acessível in www.dgsi.pt.
[6] Proc. n.º 427/14.0JACBR.C1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[7] Sobre esta questão, embora chegando a solução diversa no caso concreto, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2018, Proc. n.º 1188/15.1PHLRS.L1.S1 - 3.ª Secção, onde se decidiu (sumário):
«III - Decorre do art. 426.º do CPP que, quando se reconheça a verificação de um dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, a decisão de reenvio constituirá a excepção e só tem lugar se «não for possível decidir da causa» no tribunal de recurso, cabendo em regra a sanação do vício ao próprio tribunal de recurso.
IV - A decisão de aditamento de um ponto aos factos provados, levada a cabo pelo Tribunal da Relação no acórdão recorrido, surge por reconhecimento da existência do vício invocado pelo arguido – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, prevista no art. 410.º, nº 2, al. a), do CPP - e tendo considerado ser possível decidir com os elementos constantes dos autos, procedeu à sanação do vício e consequentemente não determinou o reenvio do processo para a 1.ª instância. Esta forma de sanação do vício não excede os poderes de cognição da Relação (arts. 428.º, 410.º, n.º 2, al. a), e art. 426.º, n.º 1, todos do CPP).»
[8] Nesse sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de processo Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª edição, anotação 2 ao art. 430.º, pág. 1158.