Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1820/24.6T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ NUNO DUARTE
Descritores: PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
ERRO NA FORMA DE PROCESSO
INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Nº do Documento: RP202410071820/24.6T8PRT.P1
Data do Acordão: 10/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O erro na forma do processo verifica-se sempre que quem move uma acção ou uma execução, para fazer valer a sua pretensão, não utiliza o modelo normativo previamente definido na lei para disciplinar os actos e procedimentos que, para o efeito pretendido, devem ser realizados e observados.
II – O processo de execução fiscal regulado pelo Código de Procedimento e de Processo Tributário, à luz das disposições conjugadas dos artigos 7.º do DL n.º 433/99, de 26-10, 15.º, al. c), 20.º e 21.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais e 12.º, n.º 2, do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, constitui o meio legal próprio para os municípios cobrarem coercivamente créditos emergentes da prestação de serviços de água para consumo, saneamento de águas residuais, bem como de taxas e tarifas municipais de recursos hídricos, disponibilidade e gestão de resíduos urbanos.
III – A pendência num Juízo de Execução dos Tribunais Judiciais da oposição a uma execução que segue as normas do processo de execução fiscal, para aí remetida por Tribunal Administrativo e Tributário que se julgou incompetente em razão da matéria para conhecer esse incidente, não gera a nulidade dos actos processuais praticados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1820/24.6T8PRT.P1
(Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 1)

Relator: José Nuno Duarte.
1.ª Adjunta: Teresa Fonseca.
2.º Adjunto: Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo.

Acordam os juízes da quinta secção judicial (3.ª secção cível)
do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
AA deduziu oposição judicial em relação ao processo de execução fiscal n.º ... e apensos, instaurados contra si pelo Município ... para a cobrança coerciva de créditos no valor de €:1.229,97, acrescidos de juros, emergentes da prestação de serviços de água para consumo, saneamento de águas residuais, taxa de recursos hídricos, tarifa de disponibilidade e taxa de gestão de resíduos urbanos.
Remetidos os autos de oposição para o Juízo de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, foi aí proferida uma decisão liminar com o seguinte teor: « (…) julga-se este Tribunal Tributário do Porto incompetente em razão da matéria para conhecer o pedido formulado pelo Oponente e competente o Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto, para o qual se remete a presente oposição.»
Nessa sequência, os autos foram remetidos para o Juízo de Execução do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto e, em 31-01-2024, a Juiz 1 desse tribunal proferiu um despacho que culminou com a seguinte decisão:
- “[a]o abrigo do artigo 590º, 196º e 577º, al. b) do CPC declaro a nulidade do processado e indefiro liminarmente a execução”.
Desta decisão do tribunal a quo veio o Município ... interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões:
1- O douto despacho ao entender haver erro na forma de processo e declarar a nulidade do processado e indeferir liminarmente a execução com fundamento no disposto no artigo 590º, 196º e 577, alínea b) do CPC., com o devido respeito, errou no seu julgamento por erro nos seus pressupostos de direito e errada interpretação da lei.
2- Porquanto, no caso dos autos, não existe uma execução nos termos do previsto nos artigos 703º e 724º do C.P.C., o que existe é uma execução fiscal, nem os presentes autos correspondem a uns embargos de executado, como é referido no despacho, mas a uma oposição a execução fiscal.
3- O meio processual adequado para o Município obter a cobrança coerciva desta dívida de fornecimento de água não é a execução comum nos termos do Código de Processo Civil, como determina o despacho, mas continua a ser a execução fiscal, prevista no Código de Procedimento e Processo Tributário.
4- Desde 2018 que pelas A..., Empresa Municipal, SA têm sido emitidas certidões de dívida pelo não pagamento voluntário da dívida de fornecimento de água e das quais o requerido tem sido notificado, sem nada fazer, tendo culminado na citação após penhora do valor de €13,49, em 23 de maio de 2023 para efetuar o pagamento da dívida total de €1.229,97, acrescido de juros e custas do processo no prazo de 30 dias ou opor-se à execução e estas certidões de dívida são título executivo válido para instauração das respetivas execuções fiscais.
5- Citado o executado após penhora para pagar ou deduzir oposição, optou por deduzir oposição à execução fiscal, a qual foi apresentada nos serviços do exequente e remetida ao TAFP pelo órgão de execução fiscal, nos termos do artigo 208º nº l do C.P.P.T., que estipula que autuada a petição, o órgão da execução fiscal remete o processo, por via eletrônica, no prazo de 20 dias, ao tribunal de 1- instância competente com as informações que reputar convenientes, incluindo as respeitantes às apensações de execuções.
6- O TAF do Porto, por sentença e com fundamento na redação da alínea e] do nº 4 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, dada pela Lei nº 114/2019, de 12/09, terá se considerado incompetente para tramitar a execução fiscal em causa, porquanto esta alínea exclui do âmbito da sua competência os "litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.", e os autos foram remetidos aos Juízos de Execução do Porto.
7- A nova redação da alínea e) do nº 4 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, relativamente à cobrança coerciva das relações emergentes de relações de consumo relativas à prestação de fornecimento e serviços públicos essenciais, apenas altera a competência judicial para o seu conhecimento, que transfere dos tribunais administrativos para os comuns, mas não altera o meio processual adequado para obter essa cobrança coerciva, que continua a ser a execução fiscal.
8- Da conjugação do disposto nos artigos 14º e 21º da Lei 73/2013, de 03 de setembro, com os artigos 150º e 151º do CPPT e artigo 7º do D.L. 433/99, de 26 de outubro, supra referidos e que se dão por reproduzidos, o meio processualmente adequado para obter a cobrança coerciva das dívidas de fornecimento do serviço de abastecimento de água pelo Município é a execução fiscal, nos termos previstos no Código de Procedimento e Processo Tributário, e, em consequência, a oposição à execução fiscal também deve seguir a tramitação prevista nesse Código, muito embora a competência para a sua decisão pertença aos tribunais comuns.
9- Infere-se do Acórdão do Tribunal de Conflitos de 01/03/2023, proferido no processo 01301/22.2T8SRE.SI, em parte supratranscrito, que, pela Lei nº 114/2019, a competência dos Juízos de Execução foi ampliada para conhecer e apreciar também as oposições a execuções fiscais para cobrança coerciva de fornecimento de serviços públicos essenciais previstos na lei nº 23/96, de 26 de julho. Sendo certo que, neste acórdão a apreciação da oposição á execução fiscal foi remetida ao Tribunal de Execução.
10- Desconhece-se a existência de qualquer normativo legal que determine que também houve alteração do meio processual para a cobrança coerciva do serviço público essencial de fornecimento de água prestado pelo Município.
11- Assim, a cobrança coerciva de dívida pelo serviço público de fornecimento de água prestado pelo Município ..., aqui recorrente e exequente, continua a seguir a tramitação da execução fiscal prevista no Código de Procedimento e Processo Tributário tendo a Lei nº 114/2019, alterado, apenas, a competência dos tribunais para conhecer tal litígio e excluindo esse conhecimento dos tribunais administrativos e tributários, não havendo, por isso, erro na forma de processo.
12- O título executivo consubstancia um dos títulos previsto no artigo 162º do CPPT, preenche todos os requisitos exigidos no artigo 163º e foi cumprida a tramitação legalmente prevista, designadamente no artigo 208º do C.P.P.T., de, apresentada oposição, a mesma ser autuada e remetida ao Tribunal.
13- Sendo certo que, o único vício legalmente passível de apreciação relativamente ao título executivo na oposição respeita à sua falsidade, como decorre do artigo 203º do CPPT, e que qualquer nulidade da execução, tal como a invocada falta de requisitos do título, tem de ser suscitada e apreciada na própria execução, como dispõe o artigo 165º do CPPT, e não na oposição, como o tribunal fez oficiosamente.
14- Em face de todo o exposto, o douto despacho, ao decidir haver erro na forma de processo e, em consequência, nulidade de todo o processado por a dívida em causa de fornecimento de água pelo Município ... não ter seguido os termos da execução do Código de Processo Civil, previstos nos artigos 703º e 724º, fez incorreta apreciação e aplicação da lei e do direito, violando, nomeadamente, o disposto nos artigos 14º e 21º da Lei 73/2013, de 03 de setembro, nos artigos 150º, 151º, 162Q, 163º, 165º, 203 e 208º do CPPT, entre outros respeitantes à tramitação da execução fiscal e da oposição, e no artigo 110º do Regulamento dos Sistemas Públicos e Prediais de Abastecimento de Água e de Drenagem de Águas Residuais do Município ..., pelo que deve ser revogada e substituída por outra que aprecie a oposição nos termos do C.P.P.T..
Termos em que deve ser dado provimento ao presente Recurso, revogando-se ou anulando-se o despacho recorrido por violação dos comandos legais invocados (…)
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido nos termos que constam do despacho com a ref.ª electrónica 461877496, de 9-07-2024.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO

A) Das questões a decidir
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, sem prejuízo da apreciação por parte do tribunal ad quem de eventuais questões que se coloquem de conhecimento oficioso, bem como da não sujeição do tribunal à alegação das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cf. artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), as questões a tratar no âmbito do presente recurso são as seguintes:
a) apurar se se verificou, ou não, algum erro ao nível da forma do processo gerador da nulidade dos actos que foram praticados nos autos;
b) aferir se existe fundamento jurídico, ou não, para que, por inexistência de processo executivo, inexistência de requerimento executivo, ou falta de título executivo válido, a execução instaurada contra o oponente seja indeferida.

B) Dos factos
A decisão recorrida não contém uma enunciação condensada dos factos em que assentou, circunstância que, no entanto, não constitui motivo de reparo, pois essa decisão baseou-se unicamente em factos processuais objectivos desprovidos de natureza controvertida que reclamem julgamento. De todo o modo, para melhor apreensão da realidade sobre a qual deve incidir o labor deste tribunal de recurso, importa atender aos seguintes factos que resultam dos autos e retratam o desenvolvimento processual havido que deve ser tido em consideração:
i) O Município ... instaurou contra AA um processo de execução fiscal, com apensos, para a cobrança coerciva de créditos emergentes da prestação de serviços de água para consumo, saneamento de águas residuais, taxa de recursos hídricos, tarifa de disponibilidade e taxa de gestão de resíduos urbanos;
ii) Para esse efeito, o município exequente emitiu certidões de dívida referentes ao não pagamento pelo executado de valores que, no seu conjunto, ascendem a €:1.229,97;
iii) No âmbito desse processo, o executado foi citado para efetuar o pagamento do quantitativo monetário titulado pelas referidas certidôes, acrescido de juros e custas do processo, ou opor-se à execução;
iv) O executado apresentou nos serviços do município exequente oposição à execução movida contra si;
v) O município exequente remeteu a oposição do executado para o Juízo de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto;
vi) Em 27-11-2023, foi proferida nesse tribunal uma decisão judicial liminar, que, com base na alteração que a Lei n.º 114/2019, de 12-09, introduziu à redacção da alínea e] do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, declarou a incompetência em razão da matéria do Tribunal Tributário do Porto para conhecer o pedido formulado pelo Oponente e ordenou a remessa da oposição para o Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto.
vii) Recebidos os autos no Juízo de Execução do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, a Juiz 1 deste tribunal, em 31-01-2024, proferiu a decisão recorrida, cujo teor integral é o seguinte:
«Compulsados os autos verifico que flui do despacho proferido no TAF do Porto, e junto no apenso A – oposição à execução fiscal, que aquele tribunal julgou-se materialmente incompetente para a tramitação da execução fiscal, mais declarando competentes os Juízos de Execução do Porto.
Nessa senda, remeteu os autos aos Juízos de Execução do Porto.
Urge em primeira linha chamar à colacção o disposto no art.º129º, nº1, da Lei de Organização do Mapa Judiciário que -“ Compete às secções de execução exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as competências previstas no Código de Processo Civil.(sublinhado nosso) e que são as previstas nos artºs 85º a 90º.”
Temos, ainda, de ter em atenção o que dispõe o C.P.C quanto à incompetência absoluta no seu artº 96ª:: “Determinam a incompetência absoluta do tribunal: a) A infração das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional; b) A preterição de tribunal arbitral.
Por outro lado, dispõe o art.º 99.º do CPC que “1 - A verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar. 2 - Se a incompetência for decretada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que o autor requeira, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, a remessa do processo ao tribunal em que a ação deveria ter sido proposta, não oferecendo o réu oposição justificada.”
Ora, os autos foram remetidos no apenso de oposição à execução fiscal, e aqui assim autuados sendo certo que a oposição à execução constitui incidente e corre por apenso à execução.
A execução fiscal foi instaurada pela Câmara Municipal ..., com base em certidões de divida por falta de pagamento de fornecimento de água, e corre termos nessa entidade exequente.
Citada o executado nessa execução fiscal, veio aquela deduzir oposição nos termos do disposto no art.º 204.º do CPPT, e foi distribuído o processo no TAF do Porto, como “oposição à execução fiscal”.

No processo de execução com regulamentação prevista no CPC, desde logo, podem servir de títulos executivos, nos termos do disposto no art.º 703.º do CPC, os seguintes:
a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.

Em segundo lugar, a execução tem que ser instaurada, nos precisos termos do disposto no art.º 724.º do CPC,
1 - No requerimento executivo, dirigido ao tribunal de execução, o exequente:
a) Identifica as partes, indicando os seus nomes, domicílios ou sedes e números de identificação fiscal,
e, sempre que possível, profissões, locais de trabalho, filiação e números de identificação civil;
b) Indica o domicílio profissional do mandatário judicial;
c) Designa o agente de execução ou requer a realização das diligências executivas por oficial de justiça, nos termos das alíneas c), e) e f) do n.º 1 do artigo 722.º;
d) Indica o fim da execução e a forma do processo;
e) Expõe sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo, podendo ainda alegar os factos que fundamentam a comunicabilidade da dívida constante de título assinado apenas por um dos cônjuges;
f) Formula o pedido;
g) Declara o valor da causa;
h) Liquida a obrigação e escolhe a prestação, quando tal lhe caiba, e alega a verificação da condição suspensiva, a realização ou o oferecimento da prestação de que depende a exigibilidade do crédito exequendo, indicando ou juntando os meios de prova;
i) Indica, sempre que possível, o empregador do executado, as contas bancárias de que este seja titular e os bens que lhe pertençam, bem como os ónus e encargos que sobre eles incidam;
j) Requer a dispensa da citação prévia, nos termos do artigo 727.º;
k) Indica um número de identificação bancária, ou outro número equivalente, para efeito de pagamento dos valores que lhe sejam devidos.

Ressalta à evidencia, com meridiana clareza, que apesar da remessa dos autos, com base na decisão de incompetência decidida no TAF, inexiste processo executivo, título executivo válido, e inexiste requerimento executivo, o que obsta ao prosseguimento da execução.
Não olvidamos o Acórdão proferido pelo Tribunal de Conflitos em 18.01.2022, in www.dgsi.pt, nos termos do qual
“I - A presente oposição, enquanto se dirige contra a cobrança coerciva de fornecimento de água, respeita à prestação de serviços essenciais, na acepção da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.
II - Não obstante tratar-se do fornecimento por uma entidade pública, no exercício das atribuições que legalmente lhe são deferidas, e estar em causa uma taxa unilateralmente fixada como contrapartida do serviço, a competência para conhecer a oposição encontra-se subtraída à jurisdição administrativa e fiscal pela al. e) do n.º 4.º do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que foi acrescentada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, lei posterior ao n.º 1 do artigo 151.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário.
III - Compete, portanto, aos Tribunais Judiciais a correspondente apreciação, tendo em conta a respectiva competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei n.º 62/2013).”

Porém, não podemos deixar de referir que aquele Tribunal não foi chamado a decidir conflito negativo quanto `execução propriamente dita, mas apenas quanto à matéria de oposição à execução, pelo que o conhecimento da incompetência quanto a esta estava subtraída à sua apreciação.
Todavia sempre se dirá que tendo aquele Tribunal concluído que a matéria referente ao fornecimento por uma entidade pública, no exercício das atribuições que legalmente lhe são deferidas, e estar em causa uma taxa unilateralmente fixada como contrapartida do serviço, a competência para conhecer a oposição encontra-se subtraída à jurisdição administrativa e fiscal pela al. e) do n.º 4.º do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que foi acrescentada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, lei posterior ao n.º 1 do artigo 151.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário, necessariamente temos de concluir que aquele Tribunal também não é competente para o conhecimento da execução, conclusão que sai reforçada da leitura do artº 4º, nº4, al. e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nos teros do qual “ A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.”
O artº 4º, nº4, al. e), não faz qualquer distinção consoante se trate de competência para a execução ou para a oposição. É uma norma, que salvo o sempre devido respeito por opinião contrária” estabelece um limite negativo à competência em razão da matéria dos litígios ali mencionado, pelo entender que apenas a matéria de oposição à execução fiscal estava subtraída à competência daqueles Tribunais, redundava na ofensa daquela norma, dos sistema jurídico entendido como uma unidade jurídica. A entender-se de outra forma teríamos a ingerência dos Tribunais Judicias em matérias da competência dos Tribunais Administrativos, uma vez que do conhecimento da matéria de oposição podem resultar consequências em matéria da execução.
Acrescente-se, ainda, não se vislumbrar qualquer razão lógica, legal, para se entender que a oposição reconduz-se uma relação em que o Estado actua despido do seu jus imperium, e na execução na relação juridica subjacente, actua na sua veste publica.
Retomando a apreciação do caso em análise à luz da competência e das regras do Código de Processo civil para o processo de execução acima exaradas, a mera remessa sem mais, não constitui processualmente o meio adequado a dar inicio à execução, nos termos dos preceitos legais assinalados, pois que os embargos de executado pressupõem a instauração de execução, nos precisos termos previstos nos artigos 703.º e 724.º do CPC, e mediante titulo executivo, um dos previstos no art.º 703.º do CPC. Essa execução inexiste no caso dos autos.
Verifica-se, assim, a existência de erro na forma de processo, nos termos do disposto no art.º 193.º do CPC.
Pese embora o disposto no artigo 193º do Código Processo Civil, donde resulta a necessidade de praticar os actos estritamente necessários para que o processo se aproxime, dentro do possível, da forma estabelecida pela lei, não é possível aproveitar os termos da execução, pelas razões acima apontadas.
Pelo exposto, ao abrigo do artigo 590º, 196º e 577º, al. b) do CPC declaro a nulidade do processado e indefiro liminarmente a execução.»

C) Do direito
1. A fim de enquadrar a actividade dos tribunais e dos interessados que a eles recorrem para obterem a tutela das suas pretensões, a nossa lei estabelece padrões normativos disciplinadores dos actos e procedimentos que, face ao tipo de pretensão apresentada em juízo, devem ser realizados e observados. São as formas de processo, modelos ordenadores da tramitação processual a adoptar, cuja existência se justifica pela necessidade de defender os cidadãos da incerteza e do arbítrio procedimental e conceder-lhes melhores garantias do desenvolvimento de um processo justo e equitativo.
As formas do processo – que se aplicam tanto às acções declarativas (que têm como objectivo fundamental obter uma declaração do tribunal sobre a solução que, daí em diante, deve ser dada a um determinado litígio), como às acções executivas (destinadas a obter a realização coerciva de direitos violados) – reconduzem-se a dois tipos fundamentais: o processo comum, aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial; e o processo especial, aplicável aos casos expressamente designados na lei (cf. artigo 546.º do Código do Processo Civil).
Uma vez que “[é] em face da pretensão de tutela jurisdicional deduzida pelo autor que deve apreciar-se a propriedade da forma de processo[1], haverá erro na forma do processo sempre que quem move a acção ou a execução não utiliza o modelo que se encontra definido na lei para a tramitação que, para fazer valer a sua pretensão, deve ser seguida. A verificação desse erro, em princípio, não determina a nulidade dos actos que tenham sido praticados, pois “[i]mporta unicamente a anulação dos actos processuais que não possam ser aproveitados devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei” (artigo 193.º, n.º 1, do Código do Processo Civil).
No caso sub judice, o Município ..., para fazer valer a sua pretensão de cobrança coerciva de créditos emergentes da prestação de serviços de água para consumo, saneamento de águas residuais, taxa de recursos hídricos, tarifa de disponibilidade e taxa de gestão de resíduos urbanos, lançou mão de um processo especial, o processo de execução fiscal regulado pelo Código de Procedimento e de Processo Tributário. Terá havido erro na forma do processo?
A resposta à questão que acaba de ser colocada é, claramente, negativa. Com efeito, a nossa Lei confere ao Estado e a outras pessoas colectivas de Direito Público competências para, através de processo de execução fiscal, cobrarem coercivamente dívidas de tributos, coimas e outras sanções, bem como de outras dívidas expressamente previstas que devam ser pagas por força de actos administrativos praticados por essas entidades (cf. artigo 148.º do Código do Procedimento e Processo Tributário [CPPT], aprovado pelo DL n.º 433/99, de 26-10). Ora, entre as entidades investidas de tais competências, encontram-se justamente os municípios, os quais, face ao disposto no artigo 7.º do DL n.º 433/99, de 26-10, e nos artigos 15.º, al. c), 20.º e 21.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais (RFAL), estabelecido pela Lei n.º 73/2013, de 3-09, têm poderes para, entre o mais, cobrarem coercivamente as dívidas relativas a taxas municipais e a preços das actividades de exploração de sistemas municipais ou intermunicipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos sólidos urbanos. Quanto à forma como deve ser efectuada essa cobrança coerciva, o n.º 2 do artigo 12.º, n.º 2, do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais (RGTAL), aprovado pela Lei n.º 53-E/2006, de 29-12, não deixa margem para dúvidas: “[a]través de processo de execução fiscal, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
Assim, no caso dos autos, é manifesto que o Município ... recorreu ao meio processual que, à luz de todos os normativos legais acima referidos, é o próprio e adequado para fazer valer a sua pretensão de cobrança coerciva de créditos, não se tendo verificado, por isso, qualquer erro ao nível da forma do processo. É certo que o processo de execução fiscal tem natureza judicial, mas isso não impede que seja reconhecida aos serviços da administração tributária a qualidade de órgão da execução fiscal (cf. artigo 149.º do CPPT) e que caiba a estes instaurar as execuções por créditos tributários e realizar os actos que a estas respeitam (cf. artigo 10.º, n.º 1, al. j), do CPPT). Apenas há um limite: a prática de actos de natureza jurisdicional (vide artigo 103.° da Lei Geral Tributária, aprovada pelo DL n.º 398/98, de 17-12), o que leva a que a decisão de incidentes, embargos, oposição e de reclamação seja já da competência dos tribunais tributários ou, em certos casos, dos tribunais comuns (cf. artigo 151.º, n.ºs 1 e 2 do CPPT). Ora, mais uma vez falando da específica situação dos autos, este limite foi in casu respeitado, pois, após o executado deduzir oposição à execução, essa oposição foi encaminhada pelos serviços do município exequente para o Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF), tal como se encontra previsto no artigo 208.º, n.º 1, do CPPT. A partir de tal momento, mais não ocorreu do que o desenvolvimento normal de um processo judicial, com a prolação pelo juiz do TAF titular do processo de um despacho (que declarou a incompetência em razão da matéria do Tribunal Tributário do Porto para conhecer a oposição e ordenou a remessa dos autos para os tribunais comuns) de cujo mérito se pode concordar ou não, mas que constitui um acto inquestionavelmente legítimo. Consequentemente, a distribuição dos autos no Juízo de Execução do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto mais não foi do que o resultado do cumprimento de uma determinação judicial legítima, passando a partir de então a caber ao juiz titular do processo decidir sobre os ulteriores termos processuais.

2. Aqui chegados, mais fácil se torna concluir que também não assiste razão ao tribunal a quo quando, para sustentar a sua decisão de anulação do processado e de indeferimento da execução, observou que esta não teve na sua base um dos títulos executivos previstos no artigo 703.º do Código do Processo Civil e não foi instaurada através da apresentação de um requerimento executivo, nos termos do disposto no artigo 724.º do Código do Processo Civil, acrescentando, ainda, que, segundo o seu entendimento, nem sequer existe nos autos uma execução pois “[a] mera remessa dos autos de oposição para o Juízo de Execução não constitui processualmente o meio adequado para dar inicio à execução”.
Como vimos, a remessa da oposição à execução para o Juízo de Execução do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto resultou da prolação de uma decisão judicial legítima que, não sendo contrariada pelas partes ou pelo tribunal para onde os autos foram remetidos, através dos meios próprios previstos na lei, tem que ser respeitada. Por outro lado, uma vez que os autos não se regem pela forma de processo de execução comum regulada no Livro IV do Código do Processo Civil, mas sim por uma forma de processo especial, não faz sentido exigir que sejam cumpridos requisitos formais, designadamente quanto ao título e ao requerimento executivo, próprios daquela forma do processo.
Desta forma, sem necessidade de mais desenvolvimentos, impõe-se reconhecer que assiste razão ao município recorrente e que a decisão recorrida, ao declarar a nulidade do processado e ao indeferir a execução, fez incorrecta apreciação e aplicação da lei e do direito, o que deve importar a sua revogação, devolvendo-se ao tribunal a quo a decisão sobre os ulteriores termos do processo.
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III – DECISÃO
Por tudo o exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que decida sobre os ulteriores termos do processo.
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Custas da apelação, atento o critério do proveito, a cargo do recorrente (artigo 527.º, n.º 1 in fine, do Código do Processo Civil).
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Notifique.
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SUMÁRIO
(da exclusiva responsabilidade do relator - artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C.)
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Acórdão datado e assinado electronicamente
Porto, 7/10/2024
José Nuno Duarte
Teresa Fonseca
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo

(redigido pelo primeiro signatário segundo as normas ortográficas anteriores ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990)
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[1] A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 1.º vol, 2.ª ed. revista e ampliada, Almedina, 1998, p. 280.