Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA | ||
| Descritores: | ACOMPANHAMENTO DE MAIOR DATA DE CONVENIÊNCIA DAS MEDIDAS DECRETADAS | ||
| Nº do Documento: | RP20240523902/23.6T8PRD.P1 | ||
| Data do Acordão: | 05/23/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGAÇÃO | ||
| Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A «data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes» que na sentença do processo especial de acompanhamento de maiores, o juiz deve, nos termos do art.º 900.º do CPC, fixar, quando possível, não equivale a «data a partir da qual as medidas decretadas se aplicam», nem tem repercussão na «validade dos actos» do acompanhado. II - No regime do maior acompanhado só as decisões que decretam a cessação ou a modificação do acompanhamento podem ter efeitos retroactivos. III - O objectivo do art.º 900.º do CPC não é fixar a primeira data em que é possível afirmar que as medidas já são convenientes, mas sim fixar a data a partir da qual a conveniência passou a existir, se iniciou. IV - Essa fixação não é possível quando a patologia que gerou a conveniência das medidas evoluiu com o tempo, existe notícia de que a pessoa já terá sido tratada medicamente no estrangeiro, mas se desconhece como se manifestava e como foi tratada. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | RECURSO DE APELAÇÃO ECLI:PT:TRP:2024:902.23.6T8PRD.P1 * SUMÁRIO: ……………………. ……………………. ……………………. ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: I. Relatório: AA, viúva, contribuinte fiscal n.º ...52, residente em ..., ..., instaurou acção como processo especial do maior acompanhado a favor de BB, divorciada, portador do cartão de cidadão n.º ...00, contribuinte fiscal n.º ...55, actualmente residente em ..., .... Requereu o suprimento de autorização cumulado com a aplicação das seguintes medidas de acompanhamento: representação geral, na modalidade de administração total de bens, com poderes de representação junto das instituições na Bélgica, por forma a regularizar o empréstimo, fazer o IRS do ano transacto e tratar dos seus direitos na Mutuelle Belgium; poderes de representação para tomar decisões quanto aos tratamentos e cuidados de saúde que venham a ser necessários, poderes de representação judicial para instaurar acção de anulação/resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado a 14.02.2023; limitação do direito pessoal de testar. Para o efeito alegou que a beneficiária sofre de F29-psicose, SOE, NC Subst/Perturb. Psic. conhecida, não estando no seu total discernimento para entender a natureza e a finalidade da presente acção especial, estando totalmente incapaz de reger a sua pessoa e bens sem apoio permanente de terceiros, o que torna indispensável nomear-lhe alguém que legalmente a represente e que supra a sua incapacidade para reger a sua pessoa e os seus bens. Tramitada e instruída a causa, foi proferida sentença, ma qual se decidiu o seguinte: «... decido aplicar à beneficiária BB as seguintes medidas de acompanhamento e suas especificidades: a) representação geral, na modalidade de administração total – art. 145.º, n.º 2, al. b), do Código Civil – que segue o regime da tutela, com as necessárias adaptações decorrentes da entrada em vigor da Lei nº. 49/2018, de 14.08, com o esclarecimento que consistindo essa representação, na actuação em nome de outrem pelo que no âmbito desta medida incluem-se, entre outros, os poderes para que a acompanhante possa agir no interesse da requerida, concedendo a necessária autorização para prestação de cuidados médicos, internamentos, actos médicos de relevo, representar a beneficiária perante todas as instituições públicas e privadas e proceder à administração dos bens, nomeadamente, movimentar a conta bancária à ordem de que a requerida seja titular mediante a apresentação no respectivo balcão do documento comprovativo do contrato de subscrito com esse bancário, obter cartão de débito, receber pensões e/ou subsídios e geri-los em benefício e de acordo com as necessidades da beneficiária, com a exclusão da celebração de negócios da vida corrente. b) limitação do exercício de direitos pessoais, nomeadamente, de decidir das suas intervenções cirúrgicas e do direito pessoal de testar - art. 147.º, nº 2, Código Civil. Fixação do prazo de Revisão das Medidas aplicadas: A presente medida será revista daqui a cinco (5) anos, sem prejuízo do disposto no art. 904.º, nº 2 do CPC. Fixação da data da aplicação das medidas de acompanhamento decretadas: A requerida é portadora de um quadro clínico que notoriamente demanda a supervisão de terceira pessoa dada a falta capacidade para organizar e gerir o quotidiano e que se verifica, desde o dia 3 de Março de 2023, por corresponder à data mais precoce da informação médica disponível, conforme resulta do relatório pericial e seus esclarecimentos. Assim, fixa-se o início da impossibilidade de exercício pessoal e consciente da plenitude dos direitos e deveres do requerido, data a partir da qual a medida decretada se tornou conveniente, devendo, por consequência, os efeitos da presente decisão devem retroagir à data de 3 de Março de 2023, conforme disposto nos artigos 130.º, 138.º do CC e 900.º, nº 1 do CPC. Representante Legal: Como representante da beneficiária, entendemos nomear como acompanhante AA, na qualidade de mãe da beneficiária e com poderes gerais de representação, com domicílio Rua ..., ... ..., ... nos termos do disposto nos artigos 143.º, do Código Civil. Domicílio Legal: Fixo o domicílio legal à acompanhada, nos termos e para as finalidades previstas no artigo 85º, nº 4 do Código Civil, na Rua ..., ... ..., .... Da nomeação do Conselho de Família: Por ora, dispenso, sem prejuízo de na sequência da apresentação da relação de bens poder rever tal entendimento.» A requerente interpôs recurso de apelação desta sentença, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões: A) Pela douta sentença recorrida, decidiu o tribunal “a quo”, fixar como data de aplicação das medidas de acompanhamento decretadas a data de 3 de Março de 2023. B) Contudo, não pode a Recorrente conformar-se com tal veredicto; porquanto a prova documental e pericial junta aos autos comprova que a beneficiária BB padece de Psicose SOE desde data que não se conseguiu apurar em concreto por falta de elementos clínicos. C) Dos elemento clínicos carreados para os autos (relatórios de avaliação clinica psiquiátrica de fls. 6 e 7, 41 a 44, 61 e 62, 81, 93 a 95 e 97) resulta de forma inequívoca que a doente apresentava sintomatologia psicótica de evolução prolongada iniciada vários meses antes do internamento psiquiátrico ocorrido entre 03.03.2023 e 14.04.2023. D) Conforme decorre expressamente do disposto no art.º 900.º do CPC, num processo de acompanhamento de maior como o dos autos, as questões a decidir dizem respeito à designação do acompanhante (e eventualmente de acompanhante substituto, de vários acompanhantes e, sendo o caso, do conselho de família) e à definição das medidas de acompanhamento, nos termos do artigo 145.º do CC e, quando possível, à fixação da data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes. E) Ora dos autos resulta uma impossibilidade legal por falta de elementos clínicos de fixação da data partir da qual se tornam conveniente as medidas de acompanhamento. F) A fixação de uma data concreta no caso concreto põe em causa a defesa da tutela dos interesses da beneficiária, designadamente no que diz respeito à outorga de contrato promessa de compra e venda a 14.02.2023 junto aos autos a fls. 9 a 11 e consequente apuramento da capacidade desta para celebrar contratos em tal data. G) Ao contrário do afirmado em sede de sentença e relatório pericial do relatório medico de alta emitido pelo serviço de psiquiatria-internamento do Hospital ... – Aveiro, constante de fls. 6 e 7 dos autos conta de forma expressa e inequívoca que existe registo clínico anterior a 03-03-2023 no Centro de Saúde ...: item antecedentes pessoais – contexto sócio-familiar: “(…) segundo registo do RSE do centro de Saúde ... de 30/01/2023 (…), relatório este mencionado na motivação da sentença proferida. H) Resulta ainda comprovado documentalmente que se mantém o tratamento compulsivo em regime de ambulatório de acordo com a Lei de Saúde Mental em vigor, cujos relatórios de avaliação Clínico-Psiquiátrica que se encontram juntos aos autos a fls. 41 a 44, 61 a 62, fls. 81 e fls. 93 a 95 e 97 dos presentes autos, decretado nos autos do processo de internamento compulsivo n.º 651/23.5T8PRD que corre termos no Juízo Local Criminal de Paredes, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, cuja certidão se encontra também junta aos autos a fls. 56 a 63. I) Dos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito juntos aos autos a fls. 98 a 100 consta que a data de 03.03.2023 “foi admitida, apenas como data provável e não de certeza”. J) Logo nunca poderia o tribunal a quo fixar uma data concreta como o fez. K) Estando nós aqui perante um erro flagrante de valoração da prova documental, clínica e pericial junta aos autos, erro este que põe em causa a salvaguarda dos interesses da internanda. L) Todos os relatórios médicos elaborados no âmbito do processo de internamento compulsivo (fls. 6 e 7, 41 a 44, 61 e 62, 81, 93 a 95 e 97) que se mantém em curso são unânimes em referir que se trata de uma doente que esteve emigrada na Bélgica, onde se terá verificado o inicio da sua doença psiquiátrica. M) Não valorou este tribunal nem teve em conta o teor dos relatórios clínico psiquiátricos juntos aos autos a fls. 41 a 44, 61 e 62, 81, 93 a 95 e 97 elaborados pela equipa médica que segue a beneficiária no âmbito do tratamento compulsivo em regime de ambulatório decretados nos autos do processo de internamento compulsivo ainda em curso, da qual também faz parte o Sr. Perito que fez a perícia nos autos, facto este que consubstancia um erro na valoração da prova e consequentemente uma nulidade que aqui expressamente se invoca para os devidos efeitos legais. N) Resulta de forma comprovada, evidente e notória que estamos perante uma doente com sintomatologia psicótica grave de evolução prolongada iniciada vários meses antes do internamento ocorrido em 3 de Março de 2023, facto este que deve fazer parte do elenco dos factos provados. O) A 14-02-2023 data da assinatura do contrato promessa de fls. 9 a 11 a capacidade da internanda já estava comprometida conforme resulta dos elementos clínicos carreados para os autos – já não possuía discernimento para entender o sentido e alcance da outorga de um contrato daquela natureza- facto este que deve fazer parte do elenco dos factos provados. P) Motivos pelos quais, analisada toda a prova documental e pericial deve a decisão ser alterada no sentido de não ser possível apurar a data concreta da afectação da capacidade da internanda, sendo que dos elementos clínicos carreados aos autos resulta que a mesma sofre de sintomatologia psicótica grave de evolução prolongada iniciada vários meses antes do internamento ocorrido em 3 de Março de 2023. Q) Impõe-se igualmente alterar o facto dado como provado no n.º 4 uma vez que resulta do relatório medico de alta emitido pelo serviço de psiquiatria-internamento do Hospital ... - Aveiro, constante de fls. 6 e 7 dos autos e da petição inicial e ao contrário do que consta na sentença que a maior acompanhada está em Portugal desde Janeiro de 2023 e não desde Fevereiro de 2023. R) Facto provado este constante do n.º 4 da fundamentação de facto, que tem que ser alterado em conformidade com a prova por declarações e documental constante dos autos e passar a constar que a beneficiária regressou definitivamente da Bélgica em Janeiro de 2023. S) Impõe-se igualmente alterar o facto dado como provado no n.º 21 no sentido de que a beneficiária nada recebe desde que regressou da Bélgica, conforme resulta das declarações prestadas pela maior acompanhada e sua maior mãe ora recorrente (cf. fls. 37 a 38) e alegação constante do artigo 18 da petição inicial, a maior acompanhada nada recebe desde que regressou a Portugal. T) Pelo que se impõe a alteração do teor de tal facto dado como provado devendo passar a constar apenas o seguinte: A beneficiária emigrou no ano de 1995 para a Bélgica, onde trabalhou como empregada doméstica. Termos em que revogando-se a sentença proferida e substituindo-se por outra em que não seja fixada a data da afectação da incapacidade e alterada a matéria dada como provada conforme exposto se fará Justiça. O Ministério Público respondeu a estas alegações defendendo a manutenção do julgado. Após os vistos legais, cumpre decidir. II. Questões a decidir: As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões: i. Se a fundamentação de facto da sentença deve ser alterada. ii. Se para efeitos do artigo 900.º do Código de Processo Civil, é possível fixar a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes e, na afirmativa, que data deve ser fixada. III. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto: A recorrente impugnou a decisão de julgar provados os factos dos pontos 4 e 21, defendendo que a sua redacção deve ser modificada. Salvo melhor opinião, trata-se de pretensão que não pode ser acolhida. Com efeito, os recursos visam a impugnação de uma decisão, melhor dizendo, do dispositivo da decisão impugnada. O que se pretende que seja revogado, anulado ou alterado pelo tribunal de recurso é a concreta tutela jurisdicional decretada pelo tribunal a quo. A fundamentação de facto de uma sentença apenas é sindicável no recurso quando através da modificação da fundamentação da decisão se pretenda obter a revogação, anulação ou alteração do dispositivo correspondente. Se não há dispositivo cuja alteração o recorrente vise alcançar por essa via, a impugnação da fundamentação da decisão é totalmente desprovida de interesse, porque independentemente da mesma ou da sua alteração sempre subsistirão os efeitos do caso julgado formado pelo dispositivo não impugnado no recurso. Ora tendo a recorrente impugnado apenas a sentença recorrida na parte em que a mesma fixou no dia 3 de Março de 2023 a data a partir do qual as medidas decretadas se tornaram convenientes e não tendo os factos dos pontos 4 e 21 qualquer relevo para a discussão sobre essa data ou sobre essa questão, esta Relação não tem de conhecer da impugnação da decisão sobre estes factos por o recurso não ter por objecto qualquer questão cuja decisão pudesse ter por fundamento esses factos e, por conseguinte, a impugnação não ter qualquer utilidade para as finalidades do recurso. Não se conhecerá, por isso, dessa impugnação. IV. Fundamentação de facto: Encontram-se julgados provados em definitivo os seguintes factos: 1) A beneficiária nasceu a ../../1974, na freguesia ..., ..., filha de CC e de AA, estando, na actualidade, divorciada. 2) A beneficiária frequentou o ensino básico até aos 10 anos, sem que tivesse concluído o 4º ano de escolaridade e apenas lê textos pequenos, assina o nome e faz operações aritméticas de somar e subtrair. 3) A beneficiária sofre de uma patologia mental grave, no caso concreto, Psicose SOE que compromete a capacidade da examinada para gerir a sua pessoa apesar de manter a sua autonomia para o exercício das actividades básicas e instrumentais da vida diária. 4) A beneficiária regressou definitivamente da Bélgica em Fevereiro de 2023 e, entre o dia 03.03.2023 a 14.04.2023, esteve internada no serviço de Psiquiatria do Hospital ..., Aveiro, com um quadro de descompensação psicótica, com actividade delirante e alucinatória de conteúdo persecutório e de prejuízo, tendo no 15º dia desse internamento passado a tratamento compulsivo, tendo sido atribuída alta clínica no dia 14 de Abril de 2023. 5) A beneficiária, quando questionada sobre a sua vida na Bélgica ou sobre as suas filhas entra em pânico e treme. 6) A beneficiária reconhece que precisa de ajuda e tratamento apesar de conseguir tratar da sua higiene pessoal sozinha. 7) Conhece o dinheiro, mas tem muita dificuldade em gerir e perceber como movimentar as suas contas ou realizar uma compra. 8) No entanto, se estiver sozinha deixa de se alimentar ou de tomar a medicação nos termos prescritos. 9) Apresenta dificuldades em se orientar no tempo, designadamente, nos dias e ano. 10) Sozinha tem muita dificuldade em orientar-se e perceber o que lhe é dito pois desconfia de tudo e de todos. 11) A doença mental de que padece impede-a de por si só ser capaz de gerir a sua vida, a sua pessoa e os seus bens, tornando-a inapta para o exercício de qualquer actividade profissional. 12) A beneficiária é titular de uma conta na Banco 1... – conta n.º ...30 e ainda de conta na Bélgica no Banco 2... ...72, constituindo estas os únicos bens que possui. 13) Inexistem registos em nome da beneficiária de subscrição de testamento vital ou procuração para cuidados de saúde, ou qualquer vontade antecipadamente expressa pela mesma, seja sob a forma de procuração de cuidados de saúde. 14) Nada consta do Certificado de Registo Criminal sobre a pessoa indicada para ser acompanhante. 15) A beneficiária teve consulta de psiquiatria no 10.05.2023, para aplicação de medicação injectável e pedido de acompanhamento por equipa de intervenção comunitária sido orientada também para o Hospital de Dia. 16) A filha da beneficiária, DD vive em Aveiro e foi buscar a mãe ao Hospital e, de seguida, deixou a mesma sozinha num hotel em Aveiro. 17) A beneficiária, passou a noite no hotel, sem que se tivesse alimentado, tendo-se levantado de manhã, pegado nas suas poucas coisas, chamado um táxi e veio para casa da mãe, a quem ligou a pedir ajuda e um tecto e com quem, desde então, está a viver. 18) A filha da beneficiária referida em 16), nunca acolheu a mãe na casa onde vive, a mãe enquanto esteve em Aveiro vivia em hotéis. 19) A DD era conhecedora do estado de saúde da beneficiária, tendo-a convencido a comprar um apartamento em Aveiro por €115.000,00, a pretexto de ficar a viver perto da filha, quando bem sabia da sua condição económica e que a fazer aquele negócio ficaria sem dinheiro para se sustentar. 20) E, por conseguinte, a beneficiária assinou o contrato-promessa de compra e venda a 14.02.2023, tendo pago a título de sinal, o valor de €10.000,00 e ainda convenceu a beneficiária a transferir-lhe €10.000,00 para a conta pessoal dela. 21) A beneficiária emigrou no ano de 1995 para a Bélgica, onde trabalhou como empregada doméstica e, por isso, recebe uma pensão de cerca de €1.000,00. 22) A beneficiária passou assim a ficar com o encargo de uma prestação mensal que ronda os € 450,00 referente ao contrato de mútuo sido celebrado num Banco Belga, onde tinha uma conta bancária, estando depositada a quantia de €130,000,00 após a venda da casa de que era proprietária na Bélgica. 23) A escritura da compra e venda referente à aquisição do referido imóvel foi marcada pela filha DD para dia 22-04-2023, tendo a presente acção especial sido proposta no dia 21.04.2023. 24) A beneficiária, quando veio da Bélgica para Portugal já vinha muito transtornada, tendo ficado a residir em casa da requerente. 25) É habitual a beneficiária sair de casa sem dizer nada a ninguém, desaparecendo durante dias. 26) No dia 25.01.2023, a beneficiária foi atendida no Hospital 1..., tendo de lá saído com uma carta fechada e dirigida ao Hospital 2..., no Porto e, onde compareceu, na companhia da sua irmã EE e recusando-se a ser vista ali, rasgou a carte que o médico lhe havia entregue. 27) Por um tempo, a beneficiária residiu em casa do irmão FF, na Maia, mas recusava ajuda e tratamento. 28) A requerente e a beneficiária têm um bom relacionamento, sendo que a requerida apenas confia na sua mãe que apesar de já tem 72 anos ainda se sente capaz de ajudar a sua filha. 29) A mãe da beneficiária declarou aceitar desempenhar o cargo de acompanhante. 30) A beneficiária começou a trabalhar como empregada doméstica aos 15 anos. 31) A beneficiária manteve uma relação marital com o pai das suas filhas até 2009, com historial de violência doméstica. V. Matéria de Direito: A recorrente discorda da decisão que decretou as medidas de acompanhamento unicamente na parte em que fixou no dia 03-03-2023 a «data de aplicação das medidas de acompanhamento decretadas» (sic). A recorrente refere-se ao segmento do dispositivo da sentença que determinou o seguinte: «Fixação da data da aplicação das medidas de acompanhamento decretadas: A requerida é portadora de um quadro clínico que notoriamente demanda a supervisão de terceira pessoa dada a falta capacidade para organizar e gerir o quotidiano e que se verifica, desde o dia 3 de Março de 2023, por corresponder à data mais precoce da informação médica disponível, conforme resulta do relatório pericial e seus esclarecimentos. Assim, fixa-se o início da impossibilidade de exercício pessoal e consciente da plenitude dos direitos e deveres do requerido, data a partir da qual a medida decretada se tornou conveniente, devendo, por consequência, os efeitos da presente decisão devem retroagir à data de 3 de Março de 2023, conforme disposto nos artigos 130.º, 138.º do CC e 900.º, nº 1 do CPC.» Salvo melhor opinião, na génese do recurso está um equívoco que é transversal à decisão. O artigo 900.º do Código de Processo Civil dita que na sentença do processo especial de acompanhamento de maiores, o juiz, reunidos os elementos necessários, designa o acompanhante, define as medidas de acompanhamento nos termos do artigo 145.º do Código Civil e, quando possível, fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes. Ao contrário do que parece emergir do texto do dispositivo e do teor das alegações de recurso, não há equivalência entre data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes e data a partir da qual as medidas decretadas se aplicam, rectius, a fixação da data daquele evento não equivale a afirmar a data a partir do qual se aplicam as medidas decretadas. No regime do maior acompanhado só existe uma situação em que a decisão judicial pode ter efeitos retroactivos. É o caso das decisões que decretam a cessação ou a modificação do acompanhamento, para as quais o n.º 2 do artigo 149.º do Código Civil estabelece que os seus efeitos «podem retroagir à data em que se verificou a cessação ou modificação referidas no número anterior». Nem nessas situações, contudo, a produção dos efeitos da sentença em data anterior à sua prolação é automática ou forçosa. A norma só estabelece que os seus efeitos podem retroagir a momento anterior, pelo que caberá ao julgador, consoante as circunstâncias do caso e as necessidades do acompanhado, decidir se os efeitos da sentença devem, no caso, ter esse efeito retroactivo. Não existe norma legal que preveja ou consinta esse efeito retroactivo das decisões que decretam as medidas de acompanhamento. O que a lei dá ao juiz é, nos termos do n.º 2 do artigo 138.º do Código Civil, a possibilidade de em qualquer altura do processo, determinar as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido. Precisamente por a sentença e as medidas nela decretadas não terem efeito retroactivo, mas, antes da decisão, poder haver necessidade urgente de acautelar a pessoa ou os bens do requerido, a lei confere ao juiz a possibilidade de decretar medidas provisórias cujos efeitos estarão naturalmente dependentes de a final, na sentença, ser deferido o acompanhamento e decretarem-se medidas de acompanhamento que absorvam ou consumam as medidas provisórias. Portanto, não é correcto afirmar que os efeitos da sentença retroagem a 03-03-2023, nem que as medidas de acompanhamento decretadas se aplicam desde essa data. O que a lei manda é fixar, quando possível, a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes, isto é, o momento em que para assegurar o bem-estar, a recuperação, o pleno exercício de todos os direitos e o cumprimento dos deveres do maior passou a ser vantajoso ou benéfico decretar medidas de acompanhamento. Esta fixação só ocorre quando for possível, ou seja, se forem reunidas informações que permitam situar no tempo o início dessa situação. Por isso, a fixação da data não tem efeito ou interesse que vá para além de sinalizar aos terceiros que contactem com o acompanhado que o tribunal localizou a situação numa determinada data, a fim de que no seu relacionamento com o acompanhado possam actuar ou levar em consideração a existência nessa data das circunstâncias pessoais que tornavam conveniente a adopção de medidas que não estavam ainda decretadas. Isto não se confunde com a questão da validade dos actos do acompanhado. Sobre essa questão rege o disposto no artigo 154.º do Código Civil que estabelece o seguinte regime: Actos do acompanhado 1- Os actos praticados pelo maior acompanhado que não observem as medidas de acompanhamento decretadas ou a decretar são anuláveis: a) Quando posteriores ao registo do acompanhamento; b) Quando praticados depois de anunciado o início do processo, mas apenas após a decisão final e caso se mostrem prejudiciais ao acompanhado. 2 - O prazo dentro do qual a acção de anulação deve ser proposta só começa a contar-se a partir do registo da sentença. 3 - Aos actos anteriores ao anúncio do início do processo aplica-se o regime da incapacidade acidental. Este regime replica, com as devidas adaptações, e sintetiza aquele que vigorava antes no regime da interdição. Era a seguinte a redacção dos artigos 148.º a 150.º do Código Civil, na redacção anterior à Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, que criou o regime jurídico do maior acompanhado: Artigo 148.º (Actos do interdito posteriores ao registo da sentença) São anuláveis os negócios jurídicos celebrados pelo interdito depois do registo da sentença de interdição definitiva. Artigo 149.º (Actos praticados no decurso da acção) 1. São igualmente anuláveis os negócios jurídicos celebrados pelo incapaz depois de anunciada a proposição da acção nos termos da lei de processo, contanto que a interdição venha a ser definitivamente decretada e se mostre que o negócio causou prejuízo ao interdito. 2. O prazo dentro do qual a acção de anulação deve ser proposta só começa a contar-se a partir do registo da sentença. Artigo 150.º (Actos anteriores à publicidade da acção) Aos negócios celebrados pelo incapaz antes de anunciada a proposição da acção é aplicável o disposto acerca da incapacidade acidental. Como se vê, tal como sucedia antes com o interdito, se depois do registo da sentença de acompanhamento o acompanhado praticar um acto em desconformidade com as medidas de acompanhamento decretadas na sentença, o acto é anulável - art. 154.º, n.º 1, alínea a) -. Se o acto for praticado depois de instaurado o processo judicial de acompanhamento, mas antes do registo da sentença respectiva, o acto é igualmente anulável, mas apenas após a decisão final, e desde que no momento da sua prática já tenha ocorrido a publicitação do início do processo e o acto tenha causado prejuízo ao beneficiário - art. 154.º, n.º 1, alínea b) -. Se o acto tiver sido praticado antes do anúncio do início do processo, tal como sucedia no regime da interdição, aplica-se o regime da incapacidade acidental do artigo 257.º, por remissão do n.º 3 do artigo 154.º do Código Civil. O acto é anulável desde que do lado do declaratário e do lado do declarante estejam preenchidos os pressupostos do artigo 257.º. Em relação ao declarante é necessário que este se encontrasse acidentalmente incapacitado de entender o sentido da declaração negocial que fez ou não tivesse o livre exercício da sua vontade; em relação ao declaratário, é necessário que aquela incapacidade fosse notória ou conhecida do declaratário. Se não tiver sido instaurada nenhuma acção de acompanhamento, os actos praticados pelo maior também podem ser anulados, mas por aplicação directa do regime da incapacidade acidental, ou seja, desde que se demonstrem os respectivos pressupostos, independentemente de saber se a demonstração deste tornava ou não necessária ou conveniente a adopção de medidas de acompanhamento. A «data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes» não interfere minimamente com este regime porquanto não existe norma legal que lhe atribua esse (ou outro) efeito. E isso também ocorria no domínio da legislação pretérita com a sentença de interdição, para a qual o artigo 901.º do Código de Processo Civil, na redacção então vigente, também estabelecia que o juiz fixasse «sempre que possível, a data do começo da incapacidade». No Comentário ao Código Civil: parte geral / [coord. De Luís Carvalho Fernandes, José Brandão Proença]. – Lisboa: Universidade Católica Editora, 2014, página 331, assinala-se a esse respeito o seguinte: «É assim, exigível a prova da incapacidade no momento do acto, não bastando demonstrar um estado habitual de insanidade de espírito, à época do negócio, como se chegou a sustentar no âmbito do CC1867 (...; Ac. STJ 22.01.2009). Importa, contudo, ter presente o relevo prático, nesta matéria, da sentença de interdição, quando esta fixe, por ser possível, a data em que se iniciou a incapacidade natural (artigo 901.º, n.º 1, do CPC2013). Na vigência do Código de Seabra, doutrina autorizada fazia decorrer da declaração da data do começo da incapacidade constante da sentença que decretava a interdição o valor de presunção, elidível por prova em contrário, de que o acto impugnado realizado posteriormente a essa data se realizou em momento em que o seu autor estava incapaz (Manuel de Andrade, 1954: 263, Ferrer Correia, 1954:295; Manuel de Andrade, 2003: 91). Na vigência do CC1966, a doutrina e a jurisprudência têm recusado atribuir a tal declaração judicial o valor de presunção legal de existência de incapacidade no momento da prática do acto - seja presunção iuris et de iure, seja mesmo iuris tantum -, atribuindo-lhe, maioritariamente, o valor de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência, que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da prova da existência da incapacidade no momento da prática do acto - ónus que impende sobre quem pede a anulação, a quem cabe completar a prova de primeira aparência com outros factos que demonstrem a incapacidade (neste sentido, Emídio Santos, 2011: 93 e 94; Anabela de Sousa Gonçalves, 2012: 122; Ac. STJ 19.06.1973; Ac. STJ 14.01.1975; Ac. STJ 8.04.1981; Ac. STJ 28.02.1985; Ac. STJ 9.12.2004; Ac. STJ 22.01.2009, Ac. STJ 16.03.2011). Referindo-se a uma forte presunção de que o negócio praticado depois da data em que principiou a incapacidade natural, segundo a sentença, foi celebrado por pessoa incapacitada de entender o sentido da declaração ou privada do livre exercício da sua vontade, cfr. Pires de Lima/Antunes Varela, 1987: 157. No sentido de que a presunção de facto inverte o ónus da prova, cfr. Menezes Cordeiro, 2011: 499, Ac. STJ 5.07.2001 e Ac. RC 10.03.2009.» Sendo este o enquadramento jurídico da fixação da data em questão, cumpre agora ver se e como devia a mesma ser fixada. Para o efeito importa ter presente que o objectivo da norma é que se defina a data em que teve início a situação que tornou convenientes as medidas decretadas, rectius, que se fixe a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes. O artigo 900.º do Código de Processo Civil diz que a data só deve ser fixada quando possível. Ora, se o objectivo fosse o de fixar uma data a partir da qual se devem considerar convenientes as medidas decretadas, então essa fixação era sempre possível porque no mínimo tinha de se fixar essa data no dia da própria sentença já que elas têm de ser convenientes ao menos ... quando estão a ser decretadas. A hipótese de não ser possível fixar a data só se compreende interpretando a norma como querendo referir-se ao apuramento da data em que as medidas se tornaram convenientes, ou seja, em que se iniciou a situação pessoal em função da qual estas se tornaram necessárias. É esse momento que pode não ser possível apurar se a patologia que lhe está na origem foi evoluindo com o tempo e não tem propriamente estados ou fases conhecidas que permitam situar no tempo o surgimento da conveniência das medidas. Não assim, por exemplo, quando a patologia é fruto de um acidente, de um evento instantâneo. A ser assim, com pensamos, não é correcto fixar a data no primeiro dia em que é possível afirmar que a conveniência existe, havendo elementos que permitam admitir que a mesma já existia antes, só não se sabendo desde quando. Como vimos, a Mma. Juíza a quo fixou essa data de 3 de Março de 2023 por este dia corresponder «à data mais precoce da informação médica disponível». Essa data corresponde, pois, ao dia em que a acompanhada deu entrada no serviço de Psiquiatria do Hospital de Aveiro apresentando um quadro de psicose que motivou o seu internamento e tratamento. Todavia, existem elementos nos autos que permitem saber que a patologia que a acompanhada apresentava se havia começado a manifestar anos antes e terá inclusivamente requerido tratamento médico que lhe terá sido prestado na Bélgica, país onde residia. Como os peritos médicos que a observaram em Portugal não tiveram acesso a essa informação, nem conheceram a acompanhada antes da sua entrada no serviço de Psiquiatria do Hospital de Aveiro, designadamente quando esta vivia na Bélgica, respondem o óbvio, isto é, que só «de acordo com a informação clínica disponível, admite-se como data provável do seu [da afectação que ela agora apresenta] início o dia 03.03.2023». O que daqui se retira é que o momento a partir do qual as medidas se tornaram convenientes é desconhecido; o mais que se pode afirmar é que numa determinada data (aquela em que teve lugar o contacto da acompanhada com a instituição de saúde mental em Portugal) essa conveniência já existia. Todavia, isso não exclui que já anteriormente aquelas medidas não fossem necessárias ou, ao menos, convenientes. Com efeito, segundo o relatório pericial, o diagnóstico de «Psicose SOE» é ainda «provisório» e recorre a «um termo genérico, para se referir a um conjunto de patologias da saúde mental, em geral graves», sendo certo que «a informação disponível é pouco adequada para realizar um diagnóstico especifico» que pode vir a traduzir-se em «perturbação esquizofrénica, doença afectiva bipolar, perturbação esquizoafetiva, perturbação delirante persistente ou depressão psicótica», que naturalmente são perturbações diferentes e que poderão ter justificado medidas de acompanhamento em momentos distintos. Por isso, e concluindo, entendendo-se que o objectivo da norma não é fixar a primeira data em que (já) é possível afirmar que as medidas são convenientes, mas sim fixar a data a partir da qual essa conveniência passou a existir (leia-se, se iniciou), e que no caso concreto esta data não pôde ser apurada por falta de conhecimento da informação clínica anterior que se apurou dever existir na Bélgica, o segmento da sentença recorrida deve ser revogado, não se fixando qualquer data. Com esse fundamento e nessa medida, procede o recurso. VI. Dispositivo: Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida na parte em que fixou o dia 03-03-2023 como «data da aplicação das medidas de acompanhamento decretadas», «data a partir da qual a medida decretada se tornou conveniente» e data a que retroagem os «efeitos da decisão», não se fixando qualquer data. Sem custas. * Porto, 23 de Maio de 2024. * Os Juízes Desembargadores Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 824) 1.º Adjunto: Judite Pires 2.º Adjunto: Isoleta Almeida Costa [a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas] |