Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA | ||
Descritores: | INVENTÁRIO SUBSQUENTE AO DIVÓRCIO REMOÇÃO DO CABEÇA DE CASAL DIREITO À PROVA | ||
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Nº do Documento: | RP202305181694/21.9T8VCD.P1 | ||
Data do Acordão: | 05/18/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A remoção do cabeça de casal pode ser requerida por quatro fundamentos alternativos: a sonegação de bens; o modo como ele administra os bens da herança, o modo como ele cumpre no processo de inventário os deveres de actuação que a lei impõe ao cabeça de casal, a sua competência para o exercício do cargo. II - Se na pendência do casamento o cônjuge tinha competência para administrar os bens comuns não é pelo mero facto do divórcio que deixa de possuir essa competência quando passa a cabeça de casal. III - Os meios de prova requeridos para prova do fundamento de um incidente manifestamente improcedente devem ser rejeitados por desnecessidade para a boa decisão do incidente. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | RECURSO DE APELAÇÃO ECLI:PT:TRP:2023:1694.21.9T8VCD.G.P1 * SUMÁRIO: …………………… …………………… …………………… ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: I. Relatório: Por apenso à respectiva acção de divórcio, veio AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente nas ..., Vila do Conde, requerer a instauração de inventário para partilha de bens comuns do dissolvido casal antes constituído por ela e por BB, contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., Vila do Conde. O requerido foi nomeado cabeça de casal e de seguida citado para no prazo de 30 dias de apresentar a relação de bens e o compromisso de honra do fiel exercício das suas funções. Esse prazo esgotou-se em 26 de Abril de 2022. No dia 3 de Maio de 2022, o cabeça de casal apresentou um requerimento pedindo a «prorrogação do prazo actualmente em curso por mais 30 dias, porquanto o elevado número de bens móveis e imóveis a relacionar e, ainda, pelo facto de, neste hiato temporal, o Requerido padecer de problemas de saúde que o conduziram, inclusive, a um internamento hospitalar». Por despacho de 5 de Maio de 2022, foi concedida «ao cabeça de casal nomeado a requerida prorrogação do prazo por trinta dias», despacho que se considera notificado no dia 12 de Maio de 2022. No dia 7 de Junho de 2022, a requerente veio «nos termos do disposto no art.º 2086º do C.C., requerer a remoção e substituição do cabeça de casal», alegando para o efeito que os bens a partilhar são todos conhecidos e estão identificados, não havendo dificuldade na sua identificação e o cabeça de casal só não apresenta compromisso de honra, não presta declarações e não apresenta a relação de bens, porque quer obstar à partilha e prejudicar a ex-mulher, o que constitui uma ostensiva violação do dever de cooperação, razão pela qual deve ser destituído do exercício de funções uma vez que o seu comportamento é de total incumprimento perante os deveres legais a que está adstrito. Alega ainda que o requerido revela incompetência para o exercício do cargo na administração da empresa e na gestão diária do barco de Pesca ... porque «o pescado descarregado em Portimão … perfaz um valor mensal entre 13.000,00€ e 15.000,00€», o qual «não chega … para pagamento dos encargos … e prestações à banca», o requerido «está a fazer isto propositadamente com o único e exclusivo intuito de desvalorizar os bens» já que «em Setembro próximo se vence uma prestação elevada do empréstimo à construção do barco no financiamento europeu», e «não havendo dinheiro, porque já gastou tudo o que estava amealhado … e já retirou todo o dinheiro do banco … quer provocar a venda ao desbarato», só para prejudicar a requerente». Terminou requerendo a remoção do requerido do cargo de cabeça de casal «nos termos do nº , als. c) e d) do art.º 2086º do C.C.» e a sua nomeação para o cargo. Em sede de indicação dos meios de prova, indicou os seguintes: «A) a dos autos; B) requisição à Doca Pesca do Registo da descarga de pescado nos portos de Portugal da embarcação “...”, matrícula VC-..2-C, no ano de 2022; C) requisição dos extractos bancários mensais das contas da sociedade desde Novembro de 2021 até à data; D) requisição à Banco 1... da Póvoa de Varzim dos saldos dos empréstimos e dos vencimentos dos mesmos e respectivos montantes». O requerido apresentou compromisso de honra e relação de bens no dia 8 de Junho de 2022. O requerido deduziu oposição ao incidente. Por fim, foi proferida a seguinte decisão [que se reproduz na parte que interessa]: «[…] a requerente funda a sua pretensão de afastar o cabeça de casal do cargo com base na falta de cumprimento deste “ao estabelecido no artº 1102º, n.º 1, b) do CPC, não apresentando compromisso de honra, não prestando declarações e não apresentando a Relação de bens, porque quer obstar à partilha e causar sofrimento à Requerente ex-mulher”, acusando-o de “falta de interesse” e “falta de respeito pelas partes e pelo Tribunal”, sem que tenha para tal justificação, tanto mais que todo o património a partilhar é já alvo de arrolamento no processo apenso e não lhe é conhecida nenhum problema de saúde que o impeça no desempenho do cargo. Como prova do incidente, a requerente apenas remete para “a dos autos” e pede a requisição de diversas informações a entidades, para apuramento de pescado descarregado e de extractos e saldos bancários. Ora, esta prova, embora adequada para a instrução e apreciação da relação de bens, não é apta a demonstrar o fundamento do incidente, qual seja o incumprimento injustificado e atempado dos deveres do cabeça de casal. Em conformidade, por impertinência para a apreciação deste incidente - tal qual está configurado -, indeferem-se as diligências de prova requeridas pela interessada.» Do assim decidido, a requerente interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões: A) O recurso tem por objecto a decisão da Exma. Sra. Juiz a quo que indeferiu todas as diligências probatórias pertinentes para a descoberta da verdade material, essencialmente as que se concretizam como imprescindíveis e fundamentais para demonstrar o incumprimento injustificado e atempado dos deveres de cabeça de casal, facto que motivou o incidente de remoção e de substituição do cabeça de casal nos termos do art.º 2086.º do Cód. Civil; B) Apesar de o cabeça de casal/recorrido ter acesso desde sempre a toda a identificação dos bens e rendimentos, e por isso ter as tarefas facilitadas, nem assim se disponibilizou a apresentar a relação de bens atempada e correctamente; C) Nem mesmo depois de lhe ter sido deferido o pedido de prorrogação do prazo, continuou sem dar cumprimento ao estabelecido no art.º 102.º, n.º 1 al. b) do CPC; D) Só quando a recorrente deduziu incidente é que o cabeça de casal apresentou uma pretensa relação de bens, de manifesta sonegação, razão pela qual é legítimo à recorrente concluir que se trata de uma actuação de manifesta má-fé, abusiva e prepotente, com o único fim de obstar à partilha e causar sofrimento à aqui Recorrente; E) É manifesto que os comportamentos do recorrido/cabeça de casal reflectem falta de atitude, compromisso, interesse e falta de respeito para com a Recorrente e até para com o próprio tribunal, os quais integram um uso manifestamente reprovável do processo para entorpecer a justiça e protelar a partilha, em ostensiva violação do dever de cooperação previsto nos arts.º 7.º e 417.º do CPC; F) Tais condutas e comportamentos estão-se a reflectir na administração da empresa e na gestão diária do barco de Pesca “...”, uma vez que o pescado descarregado em Portimão tem sido entre 13.000,00€ e 15.000,00€ mensais, o que não tem chegado sequer para o pagamento dos encargos com o gasóleo, salários, ao que acresce os encargos sociais e prestações à banca; G) Todos os comportamentos do recorrido são demonstrativos de falta de interesse no cumprimento, dos deveres do cargo de cabeça de casal, e de administração da empresa e na gestão diária da embarcação “...”, para cuja prova é relevante e pertinente que se conheçam os extractos bancários mensais da conta da sociedade, para perceber o declínio da mesma; H) Bem como a requisição à Doca Pesca do Registo da descarga diária do pescado nos portos de Portugal da embarcação “...”, desde o início do 2.º semestre de 2021 e durante o ano de 2022; I) Tudo isto, sem prejuízo dos extractos mensais da conta bancária, no mesmo período de tempo, relativamente às contas da sociedade. J) A actuação (omissão) da Exma. Sra. Juiz a quo ao indeferir todas as diligências probatórias essenciais para prova dos factos alegados concretiza uma situação de nulidade processual nos termos do art.º 195.º do CPC, por violação dos arts.º 6.º; 7.º; 411.º; 417.º; 418.º e 436.º do CPC, uma vez que impede liminarmente a produção de prova dos factos que podem conduzir à verificação dos factos e à justa composição do litígio; K) Já que, apesar de a recorrente ser titular de 50% do capital da sociedade, os documentos reclamados não estão na disponibilidade mesma, não havendo outra forma de os obter que não seja através das requisições pedidas, pelo que a Exma. Sra. Juiz tinha o poder-dever de as promover, nos termos do art.º 411.º CPC; L) Por isso, o despacho recorrido padece de nulidade processual, seja porque viola o princípio da prova legal autêntica, a que resulta dos autos, seja porque indefere a realização de diligências probatórias essenciais e imprescindíveis para descoberta e apuramento da verdade por forma a permitir a aliciação da lei. O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso, pugnando pela manutenção do julgado e pedindo a condenação da recorrente como litigante de má fé. A Mma. Juíza a quo admitiu o recurso, mas omitiu o despacho previsto no n.º 1 do artigo 617.º do Código de Processo Civil, apesar do que se dispensa a baixa do processo para que seja proferido. Após os vistos legais, cumpre decidir. II. Questões a decidir: As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões: i. Se o despacho recorrido enferma de nulidade passível de ser conhecida no recurso. ii. Se devem ser admitidos e produzidos os meios de prova requeridos pela recorrente. iii. Se a recorrente litiga de má fé. III. Da nulidade: A recorrente começa as suas alegações de recurso mencionando no respectivo corpo que o despacho recorrido «é em si próprio contraditório entre os fundamentos e o decidido e integra manifesta oposição entre o decidido e o direito aplicável». Mais à frente, ainda no corpo das alegações, defende que «ao indeferir todas as diligências probatórias … que se afiguram essenciais para prova dos alegados factos» foi cometida uma «nulidade processual nos termos do art.º 195.º do CPC, por violação do disposto nos artigos 6.º, 7.º, 411.º, 417.º, 418.º e 436.º todos do Código de Processo Civil». Por fim, nas conclusões das alegações, a recorrente torna a este argumentário apenas nas conclusões J), K) e L), sustentando que o indeferimento dos meios de prova traduz determina uma «nulidade processual». Salvo melhor opinião, estas ideias misturam conceitos distintos e confundem vícios diferentes. Uma coisa é a contradição entre os fundamentos e o dispositivo de uma decisão. Trata-se da situação em que os fundamentos apontam num determinado sentido ou conduzem naturalmente a um determinado desfecho, mas o juiz acaba por decidir coisa diferente ou oposta àquela que resultaria normalmente do percurso lógico-jurídico dos motivos nos quais alicerça a sua decisão. Nessa situação estaremos perante uma nulidade da sentença ou do despacho, prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), primeira parte, do Código de Processo Civil, a qual pode ser (o único ou um entre outros) fundamento de recurso da sentença ou do despacho (artigo 617.º do Código de Processo Civil). Outra coisa é haver oposição entre a decisão e o direito aplicável. Tal sucederá quando as normas legais aplicáveis estabelecem para um caso concreto uma certa consequência jurídica e a sentença ou o despacho retiram e determinam um efeito jurídico diverso, contrário ou não. Aqui estamos já perante o chamado erro de julgamento: a decisão não é nula, o que sucede é que nela o juiz aplica mal o direito e por isso a sua decisão está errada, podendo o erro ser alegado no recurso como fundamento para a alteração da decisão, pedindo ao tribunal de recurso que altere a decisão ajustando-a a uma boa e correcta escolha, interpretação e aplicação do direito. O que na sequência disso o tribunal de recurso irá apreciar é a bondade, o acerto da decisão, não o conteúdo formal da mesma, designadamente a existência de uma nulidade da decisão. Finalmente, distinta de qualquer das duas situações anteriores, temos a figura da nulidade processual que ocorre quando o tribunal pratica um acto que a lei não admite ou omite a prática de um acto ou uma formalidade que a lei prescreve (artigos 186.º e seguintes). Este vício distingue-se dos demais porque o seu objecto são actos e formalidades previstas na lei processual, não são decisões judiciais, como acontece com qualquer dos anteriormente mencionados. Este vício também não é fundamento de recurso, podendo apenas ser arguido perante o próprio tribunal que cometeu a infracção (artigo 195.º e seguintes do Código de Processo Civil) e, verificando-se os requisitos gerais de recorribilidade da decisão, cabendo recurso sim da decisão que vier a recair sobre essa arguição. A recorrente olvida ainda que constitui posição sólida, reiterada e amplamente conhecida da jurisprudência que o thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não sendo permitido ao tribunal ad quem conhecer de questões que extravasem as conclusões de recurso, excepto se as mesmas forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 608.º, n.º 2, 609.º, n.º 1, 635.º, n.º 4, e 639.º, do Código de Processo Civil). É em função das conclusões das alegações, e não do corpo das alegações, que se demarcam as questões de que o tribunal de recurso pode e deve conhecer. Por esse motivo, o tribunal de recurso tal como não pode conhecer de questões suscitadas em conclusões que não correspondam a questões tratadas no corpo das alegações (é necessário que se exponha e desenvolva a fundamentação para depois dar corpo a uma conclusão), também não pode conhecer de questões que foram levantadas no corpo das alegações, mas para as quais o recorrente não formulou depois a competente conclusão. Sendo deste modo, este tribunal de recurso não pode, por um lado, pronunciar-se sobre a nulidade da decisão recorrida (não foi levada às conclusões) nem, por outro lado, decidir sobre a nulidade processual (a competência para a apreciar cabia ao tribunal recorrido e desde que tivesse sido arguida perante ele). E quanto ao acerto da decisão, essa já não é uma questão de nulidade, é uma questão de erro de julgamento que caberá apreciar no momento próprio. Por ora, basta decidir que não há nulidade que cumpra ou caiba aqui conhecer e/ou declarar. Pela simplicidade da questão, não se terminará sem dizer que é manifesto que nem a decisão recorrida é nula (a fundamentação que apresenta é, independentemente do seu mérito, consonante do ponto de vista da racionalidade jurídica com a decisão), nem foi cometida qualquer nulidade processual (a partir do momento em que cabe ao juiz legalmente proferir decisão sobre a admissão dos meios de prova, a rejeição dos mesmos nunca pode traduzir a omissão de um acto … prescrito na lei precisamente porque é a lei processual, ao atribuir poderes ao juiz para decidir desse modo, que autoriza a não prática dos meios de prova que resulta da decisão), o que pode questionar-se é somente o acerto da decisão. IV. Fundamentação de facto: Os factos que importam para a decisão a proferir são processuais e constam do relatório desta decisão. V. Matéria de Direito: A apreciação do mérito do recurso exige que previamente se concretize devidamente o objecto do recurso. O tribunal a quo decidiu indeferir a produção de meios de prova, mais especificamente a requisição a terceiros de informações e documentos (a «prova dos autos» também arrolada não foi obviamente indeferida até pela simples razão de que se ela se encontra nos autos já está produzida). No despacho que proferiu a quo não se pronunciou ainda sobre o incidente no qual esse requerimento de meios de prova foi apresentado para demonstração dos respectivos fundamentos (tendo ordenado outra diligência antes de julgar o incidente, o que veio a fazer mais tarde através de outra decisão). O recurso vem interposto do despacho proferido sobre os meios de prova. Por conseguinte, o que cumpre avaliar é exclusivamente o acerto da decisão de indeferir a produção dos meios de prova, não o acerto da decisão sobre aquele incidente. No entanto, se para admitir os meios de prova tivermos de formular qualquer juízo sobre o objecto e os fundamentos do incidente não poderemos deixar de o fazer, independentemente do reflexo que isso tiver para a decisão sobre o incidente. Por outras palavras, não nos é possível decidir o incidente (ao contrário do que a dado momento das suas alegações a recorrente pretende) mas, se e na medida em que tal for necessário para a decisão do recurso, para decidir a admissibilidade dos meios de prova, podemos e devemos analisar os fundamentos do incidente. Passemos a essa análise. Segundo o artigo 2.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, a todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo. Atenta essa relação forçosa entre o modo como a acção é configurada e as necessidades que o objectivo do reconhecimento do direito coloca, num qualquer processo cível existem dois fundamentos para recusar à parte a produção de um meio de prova pretendido pela mesma: a manifesta falta de interesse do meio de prova para a demonstração dos factos relevantes (porque o facto que o meio de prova visa demonstrar já se encontra provado por outro meio de prova produzido ou porque o facto nenhum interesse tem para a decisão do litígio); a violação das regras de direito probatório formal que regulam a admissão e produção desse meio de prova. A partir do momento em que ao juiz não é consentido que se abstenha de decidir quando não se sinta suficientemente elucidado sobre os factos relevantes e que existem regras relativas ao ónus da prova que definem contra qual das partes o tribunal deve decidir em caso de dúvida sobre a realidade de um facto relevante, é inerente à natureza equitativa do processo a atribuição às partes do mais amplo direito à produção da prova, balizado apenas pela necessidade de proteger direitos legítimos (v.g. proibições de prova, direito ao sigilo) ou pela absoluta falta de interesse da diligência probatória pretendida. Escreve Lebre de Freitas in Introdução ao Processo Civil – conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3.ª edição, pág. 129, nota 12, que “no tribunal constitucional federal alemão fixou-se a jurisprudência no sentido de só a admissão de provas manifestamente irrelevantes poder ser recusada, pois se entende que as partes têm o direito, não só à proposição, mas também à admissão das provas relevantes para o objecto da causa (…). Nesse juízo de manifesta irrelevância não devem entrar considerações derivadas duma valoração da prova (ainda não produzida) apressadamente feita à priori (…). O Supremo Tribunal Federal (…) admitiu-o quando o juiz já estivesse convencido da realidade do facto que a parte pretende provar com o meio de prova, recusando-o apenas na hipótese inversa de convicção de que o facto não se verificou (…); mas, em decisão mais recente (de 2002), negou em qualquer caso, a admissibilidade desse juízo prematuro (…)”. É esse igualmente o nosso entendimento. No entanto, este direito à produção da prova, sendo embora um direito de natureza processual, encontra-se, como todos os demais, sujeitos a limites no respectivo exercício, sob pena de se tornar abusivo e, por isso, ilegítimo. Não pode por isso ser exercido em excesso, de forma desproporcionada, para atingir objectivos estranhos à concreta lide, para tutela de direitos que por mais legítimos que possam ser excedem o objecto da instância onde os meios de prova são requeridos. O que significa, pura e simplesmente, de que a coberto da afirmação de um direito o seu titular não pode pretender a realização de todo e qualquer meio de prova apenas porque a seu ver o mesmo permitirá demonstrar os pressupostos do direito. Estando em causa, por exemplo, a ingerência na vida e na reserva de pessoas jurídicas estranhas à lide, o direito à produção de prova carece de ser concatenado com a defesa dos igualmente legítimos direitos dos terceiros, pelo que só deverão ser deferidos os meios de prova realmente indispensáveis, que não possam ser substituídos por outros. Outra ideia fundamental que é necessário sublinhar é a de que nos termos do artigo 411.º do Código de Processo Civil incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer. Esta norma impõe ao juiz aquilo que hodiernamente se pode chamar de posição proactiva na condução da produção de prova, com vista à realização de todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade, no que goza mesmo de autênticos poderes-deveres de actuação oficiosa que acentuam a necessidade de só muito residualmente indeferir o requerido pelas partes com esse objectivo. Se o juiz tem esse poder-dever, naturalmente que a decisão sobre os requerimentos das partes de realização de diligências probatórias se deve guiar pelo mesmo critério da necessidade para o apuramento da verdade. Todavia, esse poder-dever pressupõe uma actuação dinâmica ao longo do processo. Não é por recusar uma determinada diligência de prova assim que a mesma é requerida por nesse momento ter entendido que a mesma não é necessária ou que o facto pode ser demonstrado por outra via sem prejudicar ou afectar direitos de terceiros ou mesmo outros direitos relevantes da própria parte, que o juiz deixa de estar vinculado à sua realização se vier a constatar que afinal esse meio de prova é realmente necessário, caso em que antes de julgar a matéria de facto em conformidade com as regras do ónus da prova deverá ordenar essa ou outra diligência de prova equivalente. São várias as normas processuais relativas ao chamado direito probatório adjectivo que subordinam a actividade instrutória e consequentemente a (admissibilidade da) produção de prova ao critério da necessidade, nos termos do qual apenas devem ser produzidos os meios de prova necessários ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, razão pela qual os meios de prova impertinentes ou cuja produção seja meramente dilatória não devem ser admitidos (cf. artigos 410.º, 448.º, n.º 3, 476.º do Código de Processo Civil). Isto dito, centremos a atenção no caso particular. A produção dos meios de prova indeferidos foi requerida no âmbito e para os efeitos de um incidente de remoção do cabeça de casal. Este incidente encontra a sua previsão material no artigo 2086.º do Código Civil que reza assim: 1 - O cabeça-de-casal pode ser removido, sem prejuízo das demais sanções que no caso couberem: a) Se dolosamente ocultou a existência de bens pertencentes à herança ou de doações feitas pelo falecido, ou se, também dolosamente, denunciou doações ou encargos inexistentes; b) Se não administrar o património hereditário com prudência e zelo; c) Se não cumpriu no inventário os deveres que a lei lhe impuser; d) Se revelar incompetência para o exercício do cargo. Decorre desta norma que a remoção do cabeça de casal pode ter fundamentos distintos. O primeiro está relacionado com a sonegação de bens; o segundo com o modo como ele administra os bens da herança, o terceiro com o modo como ele cumpre no processo de inventário os deveres de actuação que a lei impõe ao cabeça de casal, o quarto com a sua competência para o exercício do cargo. No primeiro e segundo fundamentos a remoção funda-se na relação anómala que o cabeça de casal estabelece com os bens da herança, seja na administração dos mesmos, seja no reconhecimento e respeito pela sua integração na herança. O terceiro fundamento provém da imposição legal de o cabeça de casal cumprir no processo de inventário as funções próprias do cargo, praticando com diligência os actos que decorrem dessas funções e sendo removido se o não fizer. O último fundamento reporta-se às competências do cabeça de casal para o exercício do cargo, as quais variam naturalmente em função da natureza dos bens que compõem a herança e dos cuidados que a administração dos mesmos requer, e que o cabeça de casal há-de reunir. Já não está em causa se ele administra bem ou mal os bens, o que pode ocorrer mesmo com quem é competente para a administração, mas sim se ele possui os conhecimentos, a aptidão e a diligência que o exercício do cargo requer na situação concreta (ainda que seja fácil de concluir que na génese deste fundamento se encontra a presunção legal de que se ele não tem competências para o cargo não irá realizar uma administração capaz, prudente e zelosa). No requerimento inicial do incidente, a requerente apresenta, conforme ela mesma conclui no artigo 10.º do articulado, dois fundamentos distintos para pedir a remoção: o «incumprimento dos deveres legais a que está adstrito», o que remete para a previsão da alínea c), e a «incompetência para o exercício do cargo», o que remete para a previsão da alínea d) do n.º 1 do artigo 2086.º do Código Civil. Os meios de prova requeridos então não visavam a prova do primeiro fundamento. Nem podiam, porque, por um lado, o incumprimento em causa é revelado no próprio processo de inventário e pelos actos nele praticados ou omitidos e, por outro lado, aceitando a requerente que o cabeça de casal tinha todas as condições e elementos para poder apresentar prontamente a relação de bens, nenhuma diligência junto de terceiros podia ser necessária para obter informação que não afinal de contas não era necessária para o acto omitido e apresentado como fundamento de remoção (a não apresentação tempestiva da relação de bens). Tais meios de prova foram exclusivamente requeridos para demonstração do segundo fundamento. Aqui, como resulta do atrás mencionado, a requerente mistura e confunde duas situações: uma é a de o cabeça de casal não administrar o património hereditário com prudência e zelo, o que pode dever-se a várias razões intencionais ou não, dolosas ou não, ilícitas ou não; a outra é a de ele não possuir sequer competências para o cargo, independentemente do reflexo que isso produz ao nível da concreta administração dos bens. O que alega a requerente concretamente a este respeito? Alega que (i) o peixe descarregado pelo barco de Pesca ... perfaz um valor mensal entre €13.000,00 e €15.000,00, (ii) que esse montante não chega sequer para pagamento da totalidade dos encargos relacionados com o barco e o seu funcionamento, (iii) que o requerido está a procurar desvalorizar os bens da herança, levando à venda do barco ao desbarato para prejudicar a requerente. É para demonstração deste fundamento que a requerente requer a produção dos meios de prova indeferidos. Esses meios de prova deviam ter sido admitidos por haver necessidade deles? A resposta é claramente negativa, conforme entendeu e decidiu o tribunal a quo. Desde logo, porque se até aqui era o requerido que administrava os bens, que geria o barco e a respectiva actividade, era porque requerente e requerida lhe reconheciam e atribuíam competência pessoal e profissional para o cargo. Uma tal competência, que pela especificidade da actividade não é acessível a qualquer pessoa e requerer experiência e prática, obviamente não desapareceu com o divórcio ou com o inventário! Nessa medida, em face do alegado, rectius, do não alegado, é manifestamente improcedente a invocação desse fundamento pela requerente, não sendo necessária a produção de qualquer meio de prova para assim decidir. Por outro lado, mesmo alterando a qualificação jurídica dos factos alegados da previsão da alínea d) do n.º 1 do artigo 2086.º (incompetência) para a previsão da alínea b) do mesmo preceito (má administração), a verdade é que a pretensão continua a ser manifestamente improcedente. Com efeito, não há na alegação da requerente a mais pequena alusão às razões pelas quais o pescado descarregado só atinge aquele valor, quando, em teoria, são possíveis várias explicações e muitas delas totalmente alheias ao requerido. Tal pode acontecer, por exemplo, por haver ou não haver peixe no mar, pelas condições marítimas, atmosféricas e geofísicas da actividade, pelas variações do preço de mercado do peixe ou porque o próprio cabeça de casal ordena aos seus colaboradores que não pesquem mais quantidade de peixe ou que libertem no mar o peixe pescado a mais, hipótese não impossível, mas naturalmente inverosímil e por isso não passível de qualquer alegação meramente implícita ou presunção judicial. Por outro lado, atenta a natureza da actividade desenvolvida e dos movimentos financeiros constantes que a mesma implica seria impossível retirar do simples facto de haver contas bancárias com determinados saldos, quaisquer que eles sejam, a ilação de que o cabeça de casal não está a administrar os bens da herança com zelo e prudência. O requerido até pode falhar um pagamento e, não obstante, estar a fazer a melhor administração dos bens da herança … possível. Por essas razões, em função dos factos alegados para fundamentar o pedido de remoção da cabeça de casal a pretensão é manifestamente improcedente, desfecho que torna desnecessária a produção dos meios de prova requeridos. A terminar diga-se que não existem elementos para condenar a recorrente como litigante de má fé no recurso porque neste ela se limita a defender uma tese sobre a necessidade dos meios de prova rejeitados, o que é passível de ser feito independentemente do acerto da alegação factual que suporta o incidente, razão pela qual é impossível concluir que ela adultera a verdade dos factos para obter um benefício a que não tem direito. VI. Dispositivo: Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam o despacho recorrido. Mais absolvem a recorrente do pedido de condenação como litigante de má fé. Custas do recurso pela recorrente, a qual vai condenado a pagar ao recorrido, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos. * Porto, 18 de Maio de 2023. * Os Juízes DesembargadoresAristides Rodrigues de Almeida (R.to 747) Francisca Mota Vieira Paulo Dias da Silva [a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas] |