Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
564/07.8TBMCN.P4
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
DIREITO DE PREFERÊNCIA
Nº do Documento: RP20240409564/07.8TBMCN.P1
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A omissão de pronúncia pressupõe que o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse conhecer.
II - No caso, tendo o direito de preferência reclamado pelos autores nestes autos sido já reconhecido por decisão judicial proferida em sede de recurso e transitada em julgado, não pode impor-se que em primeira instância se reapreciem os pressupostos desse direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 564/07.8TBMCN.P4

*

………………………………

………………………………

………………………………


*
Relator: João Diogo Rodrigues
Adjuntos: João Proença;
                Rui Moreira.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório

1- AA, BB, CC, DD e EE, instauraram a presente ação declarativa de condenação contra, FF, GG, HH e II, pedindo que:

a) Sejam, os AA., AA, CC e EE, declarados e reconhecidos como únicos e universais herdeiros de JJ e KK, seus pais, e como tal habilitados;

b) Seja declarado e reconhecido judicialmente que integra a herança destes, já aceite e ainda ilíquida e indivisa, pertencendo-lhe o prédio rústico de terra inculta denominado “...”, sito no lugar ..., da freguesia ... e ..., inscrito na matriz da sob o artigo ... e a confrontar atualmente do nascente com LL, poente com os Réus FF e mulher GG, norte com II e sul com A..., Limitada, não descrito na Conservatória do Registo Predial e com a área de 4.300 m2, por ter sido adquirido a título gratuito pelos “de cujus”;

c) Seja declarado e reconhecido judicialmente o direito de preferência na compra e venda do prédio rústico inscrito na matriz de ... e ... sob o artigo ..., a favor da herança de seus pais, JJ e KK, representada pelos AA., AA, CC e EE, para ser integrado no seu acervo hereditário e, consequentemente, no seu património, substituindo-se a herança aos RR., FF e GG, quanto à titularidade de tal prédio;

d) Seja ordenado o cancelamento de todos os registos porventura efetuados pelos RR. compradores a seu favor.

Isto, em síntese, porque confrontando os dois referidos prédios entre si e tendo ambos uma área inferior à unidade de cultura, não foi, oportunamente, facultado à dita herança, nem a nenhum dos seus representantes, o exercício do direito de preferência, na compra e venda indicada.

2- Contestaram os RR. refutando os aludidos pedidos, uma vez que, em resumo, os AA. renunciaram ao dito direito de preferência, este encontra-se também extinto por caducidade e não há identidade de culturas entre os prédios em questão.

Caso assim não se entenda, deduzem reconvenção com base nas benfeitorias que dizem ter realizado no prédio transacionado.

Pedem, assim, que se declare que:

a) Pelos RR., enquanto possuidores e proprietários, com posse titulada em virtude do contrato-promessa de compra e venda celebrado com os anteriores e legítimos proprietários do prédio “...”, foram feitas ao longo de quase 7 anos diversas benfeitorias necessárias e úteis, as quais conservaram e valorizaram o prédio cuja preferência os AA. pretendem, aumentando-lhe o valor em 4.850,00€;

b) Em virtude do exercício do direito de preferência pelos AA, os primeiros Réus têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias e úteis efetuadas, já que nenhumas delas podem ser levantadas sem perda ou detrimento, condenando-se os Autores a pagarem a indemnização de 4.850,00€ aos primeiros RR., a tal título.

c) Se condenem os AA. em multa e indemnização, por litigância de má fé.

3- Após vicissitudes várias sem interesse para este recurso, a A., AA, foi judicialmente habilitada para prosseguir na lide em substituição dos AA. e, ulteriormente admitida a intervenção espontânea do seu marido, BB.

4- Em face do falecimento do R., II, foram habilitados para ocupar a sua posição processual:

- HH;

- MM, divorciado;

- NN e OO;

- PP e QQ;

- RR e SS;

- TT e UU;

- VV e WW.

5- Seguidamente, no dia 10/09/2019, foi proferido despacho saneador, no qual, para além do mais, se enunciaram assim o objeto do litígio e os temas da prova:

“IV. Objeto do Litígio:

Considerando a causa de pedir e pedidos deduzidos, o objeto do litígio consiste em saber se estamos perante uma situação de incumprimento de dar preferência aos Autores; ou se, pela negativa, os Autores renunciaram ao direito de preferência; se estão preenchidos os pressupostos do direito real de preferência.


*

V. Temas da Prova:

a) Propriedade do prédio rústico de terra inculta denominado “...”, sito no lugar ..., da freguesia ... e ..., inscrito na matriz da sob o artigo ... e a confrontar atualmente do nascente com LL, poente com FF e GG, norte com II e sul com A..., Limitada, não descrito na Conservatória do Registo Predial e com a área de 4.300 m2, pelos Autores;

b) Pressupostos do direito de preferência na compra e venda do prédio rústico inscrito na matriz de ... e ... sob o artigo ..., a favor dos Autores;

c) Renúncia ao direito de preferência pelos Autores, nos termos dos arts. 23.º, 24.º e 26.º da contestação;

d) Benfeitorias efetuadas, pelos Réus, no prédio rústico inscrito na matriz de ... e ... sob o artigo ..., e respetivo valor;

e) Litigância de má fé”.

6- Realizada a perícia ordenada, prosseguiram, depois, os autos para julgamento.

7- Já no decurso do mesmo, os RR. vieram requerer a ampliação do pedido reconvencional, reformulando-o de modo a nele ser compreendido o direito a “juros à taxa legal, contados desde a data de formulação do presente pedido reconvencional e até efectivo pagamento, os quais em 04 de Janeiro de 2022 se computam em 2.831,34€”.

8- Os AA. opuseram-se a esta ampliação e, subsidiariamente, arguiram a prescrição dos juros vencidos há mais de 5 anos, em relação à data daquele pedido.

9- Por despacho proferido no dia 02/02/2022, foi admitida aquela ampliação e relegada para a decisão final a questão da prescrição dos juros.

10- Concluída a audiência de julgamento, foi, depois, proferida sentença na qual, se julgou procedente a invocada exceção de abuso de direito dos AA, AA e marido, BB e, consequentemente, improcedente a presente ação, absolvendo os RR. FF, GG; e HH e II, dos pedidos que contra si foram formulados.

Mais foi decidido absolver os AA., AA e BB, do pedido da sua condenação por litigância de má-fé.

11- Desta sentença interpuseram recurso os AA, recurso esse julgado procedente e decidido:

“1) revogar a sentença recorrida e, na procedência da acção, reconhecer aos autores AA e marido BB o direito de preferência na compra e venda do prédio rústico inscrito na matriz de ... e ... sob o artigo ..., formalizada pela escritura pública a que se alude no ponto 8 do elenco de factos provados, assim se substituindo aos réus FF e GG na titularidade do direito de propriedade sobre tal prédio;

2) determinar que na primeira instância se conheça das questões cujo conhecimento ficou prejudicado pela decisão sobre aquele pedido (de reconhecimento do direito de preferência legal), designadamente o pedido reconvencional”.

12- Regressados os autos à 1ª Instância, sem que aquele Aresto tivesse sido impugnado, foi aí decidido o seguinte:

a) Julgar verificada a exceção perentória de prescrição dos juros de mora vencidos anteriormente aos últimos cinco anos em relação à data do pedido reconvencional deduzido pelos Réus-Reconvintes, FF e mulher, GG;

b) Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada, a reconvenção e, em consequência, declarar que, em virtude do exercício do direito de preferência pelos Autores, os 1.ºs Réus-Reconvintes, FF e mulher, GG têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias e úteis efetuadas, concretamente:

a. Uma vedação do lado nascente constituída na base por uma fiada de granito com a altura de cerca de 0,60 metros, encimada por uma rede plastificada, em parte com 1 metro de altura e noutra parte com 1,50 metros de altura. O suporte faz-se em 18 vigotas de betão pré-esforçado com a altura de cerca de 2 metros e em 4 pilares de granito com a altura de cerca de 2 metros e a secção cerca de 0,25 m. x 0,25 m. Esta vedação tem o comprimento de cerca de 115,70 metros;

b. Uma vedação constituída na base por uma fiada de granito com secção trapezoidal, com a altura média de cerca de 0,90 metros, encimada por uma rede plastificada com 1 metro de altura e numa pequena parte com 1,50 metros de altura. O suporte faz-se em 8 vigotas de betão pré-esforçado com a altura de cerca de 2 metros e num pilar de granito com a altura de 2 metros e a secção cerca de 0,25 m. x 0,25 m. Esta vedação tem o comprimento de cerca de 33 metros;

c. A vedação existente é constituída por um muro de suporte e contenção de terras, em granito, com a altura média de cerca de 1,60 metros, encimada por uma rede plastificada com 1 metro de altura. O suporte faz-se em 22 vigotas de betão pré-esforçado com a altura de cerca de 2 metros e num pilar de granito com a altura de 2 metros e a secção de cerca de 0,25 m. x 0,25 m. Esta vedação tem o comprimento de cerca de 91 metros; e

d. Aproximadamente 20 espécies diferentes de árvores de fruto;

Por não poderem ser levantadas sem perda ou detrimento, condenando-se os Autores a pagarem a indemnização de 4.850,00€ (quatro mil, oitocentos e cinquenta euros) aos 1.ºs Réus-Reconvintes, FF e mulher, GG, a tal título, acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, contados desde há cinco anos.

Absolvendo os Autores do demais peticionado”.  

13- Inconformados com esta sentença dela recorrem os RR., terminando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:
“I. Entendem os Recorrentes existir falta de pronúncia sobre todas as questões submetidas à apreciação do tribunal a quo, havendo ainda erro de julgamento, porquanto não foi feita a correcta subsunção jurídica dos factos provados ao direito aplicável, imposto pelo art. 608º nº 2 do CPC, causa de nulidade da Sentença, nos termos previstos no art. 615º nº 1 al. c) e d) do CPC.
II. Tendo sido violadas pela decisão em crise as normas jurídicas constantes dos artigos 1380.º e 1381.º do CC; artigos 608.º, n.º 2, alíneas c) e d) e 615.º n.º 1, al. c), CPC.
III. É que a Sentença proferida nestes autos proferida em 18-08-2022 foi revogada por Acórdão proferido pelo TRP, após recurso cujo objecto se situou na necessidade de apreciação de questões que o Tribunal a quo considerou estarem prejudicadas com a decisão proferida, e que constam do Objecto do Litígio e dos Temas da Prova.
IV. Pelo que, baixados os autos, o Tribunal a quo deveria conhecer das questões cujo conhecimento ficou prejudicado pela decisão sobre aquele pedido (de reconhecimento do direito de preferência legal), designadamente o pedido reconvencional.
V. Extraindo-se do advérbio “designadamente”, um sentido exemplificativo, é entendimento dos Recorrentes que sobre o Tribunal a quo impendia a obrigação de apreciação de todas as questões que ficaram por apreciar, sem excepção. E não foi o que aconteceu.
VI. Assim, em 14-10-2023, o Tribunal de primeira instância veio a proferir Sentença, limitado o julgamento a uma parte das matérias que lhe impunha decidir e, por consequência, não fazendo a correcta subsunção jurídica dos factos ao direito.
VII. É que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre questões que constituíam o Objecto do Litígio e os Temas de Prova: Pressupostos do direito de preferência na compra e venda do prédio rústico inscrito na matriz de ... e ... sob o artigo ..., a favor dos Autores, que era o Tema de Prova enunciado na alínea b), questão que era também ela Objecto do Litígio – se estão preenchidos os pressupostos do direito real de preferência.
VIII. A apreciação da existência do direito de preferência, impunha o conhecimento dos requisitos enunciados nos artigos 1380.º, e 1381.º Código Civil, uns constitutivos e outros impeditivos.
IX. É que os Recorrentes invocaram nos artigos 56.º a 60.º da sua Contestação factos impeditivos que se arrogam os Recorridos e que se subsumem à alínea a) do artigo 1381.º, Código Civil.
X. Além disso, do facto não provado a), extrai-se que “Desde sempre o prédio rústico inscrito na matriz sob o anterior art. ... e o prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ... estiveram afetos à exploração agrícola”.
XI. Acresce que também se extrai da sentença recorrida – facto provado 21. – que o prédio objecto do litígio “está na generalidade limpo, parte do solo está afeto à produção florestal, outra parte está afeto a árvores de fruto e jardim e outra parte tem apoiadas construções anexas, feitas e mandadas fazer por FF e GG, como se descreve infra”.
XII. O que necessariamente levaria a que se extraísse a conclusão jurídica assente no artigo 1831.º, alínea a), in fine, Código Civil. Porém, tal não foi feito.
XIII. Torna-se, por isso, mister ponderar o que é o fim diferente da cultura e integrar esse conceito com os factos apurados, designadamente, quanto ao facto provado 21.
XIV. Esclarecem Rui Pinto e Cláudia Trindade – ob. cit., p. 198 – que “a destinação urbana referida na al. a) é a mesma que permite o fracionamento no quadro do artigo 1377.º-a, sendo aferida pelo sentido da vontade do adquirente quanto ao uso que fará com o prédio”.
XV. E o citado artigo 1377.º, alínea a), indica que a proibição de fracionamento não se aplica a terrenos que sejam partes componentes de prédios urbanos, ou se destinem a fim que não a cultura, ensinando ainda Rui Pinto e Cláudia Trindade – ob. cit., p. 193 – que a proibição não é aplicável a logradouros.
XVI.  Considerando o vertido no facto provado 21. da sentença em crise, é possível afirmar que o terreno em causa nos autos é um logradouro.
XVII. Constando, por isso, dos autos, factos que permitirem que o Tribunal a quo cumpra o seu dever de julgamento de todas as questões essenciais ao conhecimento do direito e, até impõem diferente solução jurídica. Quanto mais não fosse, ao abrigo do princípio da aquisição processual – art. 413º do CPC.
XVIII. Em face da aplicação concreta do princípio da aquisição processual, articulado pelos Recorrentes um facto impeditivo do exercício do direito de preferência invocado pelos Recorridos – a diferença quanto ao fim a que se destinou o prédio em causa -, e da prova que sobre tal questão foi produzida, impunha-se que o Tribunal a quo se pronunciasse sobre esse facto impeditivo.
XIX. Com base nos factos provados 19. a 28., impõe-se a conclusão da afectação do prédio em causa nos autos a fim diferente que não a cultura, por parte dos Recorrentes. E, nessa medida, a improcedência da acção por verificados os pressupostos dos factos impeditivos do exercício do direito de preferência – artigo 1381.º, alínea a), Código Civil.
XX. Verifica-se também que a Sentença em crise padece de erro de julgamento por existência de factos relevantes considerados como provados que não mereceram a necessária ponderação para a boa decisão da causa, não tendo havido decisão sobre questões que se impunha conhecer.
XXI. Motivando uma incorrecta interpretação dos factos e subsunção jurídica, viciando a decisão”.
Terminam pedindo que se conceda provimento ao presente recurso e que se determine “que o Tribunal a quo conheça e decida das questões que lhe foram presentes, ou seja da totalidade do Objecto de Litígio e dos Temas da Prova, conforme o alegado pelos Recorrentes nos artigos 56.º a 60º da Contestação, o teor do Relatório Pericial e os Factos Provados nº 19º a 28º dos Factos Assentes, julgando verificado o não preenchimento dos pressupostos do direito de preferência, por verificação da excepção de destinação do prédio a fim diferente que não a cultura, e por via disso a revogação do já decidido, declarando-se a improcedência da acção por parte dos Recorridos”.
14- Os AA. responderam alegando, no essencial, que as questões que os Apelantes submetem à apreciação deste Tribunal já foram definitivamente resolvidas pelo Acórdão proferido por esta Instância, no dia 08/05/2023, já transitado em julgado; que este recurso não é admissível “porquanto a decisão impugnada não lhes é desfavorável, uma vez que corresponde à procedência total do pedido reconvencional que aqueles deduziram nos autos e que foi o objeto da decisão recorrida”; e pedem ainda a condenação dos Apelantes como litigantes de má-fé, dado que os mesmos não podiam ignorar que “as questões que submetem à apreciação do Tribunal de recurso, à data da sentença impugnada”, já se mostravam definitivamente resolvidas pelo dito Acórdão.
15- Ouvidos os Apelantes, vieram os mesmos alegar, em síntese, que deve improceder o pedido para a sua condenação como litigantes de má-fé, uma vez que entendem que na sentença recorrida não foram conhecidas todas as questões que aí deviam ter sido decididas, como já sustentaram no recurso.
16- Nesta altura, preparada que está a deliberação, importa tomá-la.

*

II- Da alegada inadmissibilidade deste recurso:

Como vimos, os Apelados defendem que este recurso não é admissível “porquanto a decisão impugnada não lhes é desfavorável [aos Apelantes], uma vez que corresponde à procedência total do pedido reconvencional que aqueles deduziram nos autos e que foi o objeto da decisão recorrida”.

Mas, não foi com esse fundamento que este recurso foi interposto. Foi, antes, como vimos, porque, a seu ver, a sentença recorrida é omissa quanto a questões que devia ter conhecido e que deviam determinar o “não preenchimento dos pressupostos do direito de preferência, por verificação da excepção de destinação do prédio a fim diferente que não a cultura” e a consequente improcedência desta ação.

Nessa medida, tendo em conta este fundamento, é inegável que aos RR. assiste legitimidade para recorrer (artigo 631.º do CPC).

E, estando preenchidos os demais pressupostos, tal como assinalado pelo Tribunal recorrido no despacho que proferiu no dia 18/01/2024, preparada que está a deliberação, impõe-se conhecer do seu objeto.


*

III- Mérito do recurso

1) Definição do seu objeto

Tendo em conta as conclusões das alegações dos Apelantes - que, como é sabido, em regra e ressalvadas, designadamente, as as questões de conhecimento oficioso [artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil (CPC)] - delimitam o objeto do recurso, este, no caso presente, cinge-se apenas a saber se a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia e por contradição entre os fundamentos e a decisão, e, nesse caso, quais as respetivas implicações processuais e substantivas.

Além disso, importa ainda decidir se há fundamento para condenar, como pretendem os Apelados, os Apelantes como litigantes de má-fé.


*

2) Fundamentação de facto

2.1- Além das ocorrências processuais supra descritas, é útil, para a decisão a tomar neste recurso, ter presentes os factos julgados provados e não provados, estabelecidos na sentença recorrida.

2.1.1- Os factos julgados provados nessa sentença foram os seguintes:

1) JJ faleceu no dia 1.06.1989, no estado de casado com

KK.

2) KK faleceu no dia 20.12.1996, no estado de viúva.

3) A Autora AA é filha de JJ e de KK, e casou com BB.

4) CC é filho de JJ e de KK.

5) EE é filha de JJ e de KK.

6) Integrou a herança de JJ e de KK, o prédio rústico, denominado “...” ou “...” inscrito na matriz sob o artigo ... (doravante apenas designado por “prédio rústico inscrito na matriz sob o anterior art. ...”).

7) AA e, anteriormente, esta e seus irmãos, e anteriormente, os seus antecessores, JJ e KK, estão na posse e fruição exclusivas do prédio rústico inscrito na matriz sob o anterior art. ... há mais de 30 anos, ininterruptamente, à vista e com o conhecimento de todos, extraindo mato e lenha, agindo como donos, pagando as respetivas contribuições.

8) No dia 01.02.2001, HH e II, casados sob o regime da comunhão geral, declararam, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial do Marco de Canaveses, “pelo preço, já recebido de um milhão e novecentos mil escudos, declararam vender ao representado do segundo outorgante”, XX, na qualidade de procurador de FF, casado sob o regime da comunhão de adquiridos com GG, “o prédio rústico denominado “...”, pinhal, sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho pela ficha zero mil quinhentos e cinquenta e um, de dezasseis de janeiro do ano dois mil e um, freguesia ... e ..., registado a seu favor pela inscrição ... e inscrito na matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial de 4.082$00” (doravante apenas designado por “prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ...”).

9) Os Réus não comunicaram à Autora, por si ou como cabeça de casal da herança de seus pais, nem aos seus irmãos, a intenção de vender conforme descrito em 8), nem o preço, as condições de pagamento, a data, o Cartório Notarial para a realização da escritura, ou identificação do comprador.

10) No dia 11.02.2006, AA compareceu no posto de ...., manifestando o desejo de se queixar contra FF, porquanto: «No dia 11-2-2006, pelas 15 horas numa mata de sua propriedade, sito em ..., ..., ..., quando estava acompanhada da Eng. YY, residente em ..., ..., contratada para proceder à elaboração de uma planta de terreno, foi abordada pelo denunciado que chegou com aspeto feroz e disse: “passa-se alguma coisa, tendo a denunciante respondido que nada se passava, pois estava na sua propriedade, ao que ele respondeu ai sim e dá dois empurrões à denunciante, causando-lhe desequilíbrio, recuando desamparada quase caindo no chão (…).

Por pressão, ameaça e tentativa de agressão, não concluiu o trabalho, vendo-se obrigada a retirar-se para não correr o risco de ser agredida, tendo de se ausentar do local, saltando muros invadindo terrenos vizinhos, valendo-lhe a ajuda de um trabalhador que lhe deu boleia cujo nome não sabe (…).

A propriedade em causa foi herdada por morte de seus pais. O denunciado comprou uma propriedade contígua, onde construiu muros com a finalidade de tapar o único caminho de acesso à sua propriedade.

O trabalho que estava a ser executado pela engenheira destina-se à elaboração de documentos necessários para dar entrada com um processo no tribunal para reposição do caminho».

11) No dia 16.08.2006, FF e GG foram notificados através de notificação judicial avulsa requerida por AA, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seus pais, JJ e KK, da qual consta, além do mais, o seguinte: «(…) os Requeridos intitulam-se donos e são detentores do prédio rústico denominado ..., pinhal, sito no indicado lugar ..., dita freguesia ... e ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ..., ....º Desconhece a Requerente a que título terão adquirido tal prédio rústico ou são seus detentores quando e em que circunstâncias; 4.º Certo é que recentemente os Requeridos procederam à vedação de tal prédio, com um muro em pedra e, dessa forma, cortaram o caminho de acesso, único acesso, para o prédio da herança que a Requerente apresenta e identificado no artigo 1.º; 5.º Além disso, destruíram o caminho existente no prédio do artigo ..., referente ao artigo 2.º desta notificação, aterrando-o;

6.º Com a construção do muro e a destruição do caminho ficou a herança, titular do prédio do artigo 1.º, impedida de aceder ao seu monte e de retirar dele todas as suas utilidades, o que está a causar sérios prejuízos;

7.º Tentou a Requerente já a abertura do caminho, de pé e carral, existente desde há dezenas de anos, mas em vão, porque o Requerido se mostrou agressivo, intratável e perigoso, motivo por que foi instaurado o processo-crime; o requerido foi incapaz de dialogar (…)».

12) No dia 22.01.2007, a Autora, AA, procedeu a buscas nos Cartórios Notariais desta cidade, descobriu e obteve a escritura de compra a que se alude em 8).

13) Só então, a Autora tomou conhecimento, em concreto, dos elementos da compra e venda referida, designadamente do preço (9.477,16€).

14) No dia 13.06.2014, AA, CC e esposa, DD, casados sob o regime da comunhão geral de bens, e EE, solteira, declararam, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial do Marco de Canaveses, que:

«I- Que no dia nove de junho de mil novecentos e oitenta e nove, na freguesia ..., deste concelho do Marco de Canaveses, onde teve a sua última residência habitual no Lugar ..., faleceu, JJ, que também usou o nome e era conhecido por ZZ, natural da freguesia ..., deste concelho, no estado de casado sob o regime da comunhão geral de bens com KK. Que o falecido não fez testamento, nem qualquer outra disposição de bens de última vontade, tendo deixado como seus únicos herdeiros:

1) Sua esposa, KK, entretanto já falecida e adiante melhor identificada; e, 2) Seus filhos: a) AA; b) CC; e, c) EE. Todos antes melhor identificados.

II- E que, no dia vinte de dezembro de mil novecentos e noventa e seis, na freguesia ..., deste concelho do Marco de Canaveses, de onde era natura e onde teve a sua última residência habitual no Lugar ..., faleceu, KK, que também usou o nome e era conhecida por KK, no estado de viúva do referido JJ.

Que a falecida deixou testamento público lavrado no extinto Cartório Notarial Público deste concelho, em doze de novembro de mil novecentos e noventa e três, iniciado a folhas trinta do livro de notas para testamentos e escrituras de revogação de testamentos número sessenta e um-T, no qual instituiu como únicas herdeiras da sua quota disponível, as filhas AA e EE e deixou como únicos herdeiros legitimários, os já referidos três filhos:

a) AA; b) CC; e, c) EE.

Que tudo isto foi declarado na escritura de habilitações de herdeiros, lavrada em vinte e sete de novembro de dois mil e sete, no extinto Cartório Notarial deste concelho da Lic.ª AAA, iniciada a folhas dezanove, do Livro de notas para escrituras diversas número Vinte e Quatro -A.

E acrescentaram:

Que em face do exposto, são eles os únicos interessados na partilha das heranças deixadas por óbito de seus falecidos pais e sogros JJ e KK.

E que, assim, pela presente escritura, vão proceder à partilha dos seguintes bens que integram o património do dissolvido casal.

(…) Número três:

Prédio rústico, denominado “...” ou “...” composto de pinhal, sito no lugar ..., freguesia ..., ... e ..., deste concelho do Marco de Canaveses, - descrito na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canaveses sob a ficha ..., freguesia ... e ..., aí registado a favor dos herdeiros em comum e sem determinação de parte ou direito, pela AP. ... de 03/12/2007, inscrito na matriz sob o artigo ..., que corresponde ao anterior artigo ..., da extinta freguesia ... e ..., com o valor patrimonial para efeitos de IMI de 35,26 euros e para efeitos de IMT e IS de sessenta e nove euros e quarenta e seis cêntimos (69,46 Euros), ao qual atribuem o mesmo valor.

(…)

À primeira outorgante, AA é adjudicada (…) a propriedade plena dos prédios identificados em (…) Três (…).

O prédio identificado em Três, mantém o acesso a pé, carro de bois e trator desde a atual rua... pelas glebas da ..., dos herdeiros de BBB até o atingir, atravessando inclusive a gleba atualmente de FF».

15) O prédio rústico inscrito na matriz sob o anterior art. ... confronta a poente com o prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ....

16) O prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ... tem a área de 2.940,00 m2.

17) De acordo com a carta de ordenamento territorial do Plano Diretor Municipal do concelho de Marco de Canaveses, o solo dos referidos prédios está classificado como “Solo rural – áreas florestais de produção”.

18) O acesso ao prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ..., pela Autora, permite facilitar o acesso ao prédio rústico inscrito na matriz sob o anterior art. ..., na produção de mato e de lenhas.

19) O prédio rústico inscrito na matriz sob o anterior art. ... está afeto à produção florestal e está vedado pelo lado poente na totalidade (confrontação com o prédio objeto de preferência) e parcialmente no lado sul, onde existe um muro na crista do talude.

20) O prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ... está vedado pelos lados nascente, sul e poente e está aberto na zona o caminho que faz a ligação à rua..., no lado norte, onde existe um portão de ferro.

21) Este prédio, prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ..., está na generalidade limpo, parte do solo está afeto à produção florestal, outra parte está afeto a árvores de fruto e jardim e outra parte tem apoiadas construções anexas, feitas e mandadas fazer por FF e GG, como se descreve infra.

22) Aí existe, uma vedação do lado nascente constituída na base por uma fiada de granito com a altura de cerca de 0,60 metros, encimada por uma rede plastificada, em parte com 1 metro de altura e noutra parte com 1,50 metros de altura. O suporte faz-se em 18 vigotas de betão pré-esforçado com a altura de cerca de 2 metros e em 4 pilares de granito com a altura de cerca de 2 metros e a secção cerca de 0,25 m. x 0,25 m. Esta vedação tem o comprimento de cerca de 115,70 metros e com o custo estimado de 3.471,00€.

23) Do lado sul, existe uma vedação constituída na base por uma fiada de granito com secção trapezoidal, com a altura média de cerca de 0,90 metros, encimada por uma rede plastificada com 1 metro de altura e numa pequena parte com 1,50 metros de altura. O suporte faz-se em 8 vigotas de betão pré-esforçado com a altura de cerca de 2 metros e num pilar de granito com a altura de 2 metros e a secção cerca de 0,25 m. x 0,25 m. Esta vedação tem o comprimento de cerca de 33 metros e com o custo estimado de 990,00€.

24) Do lado poente, a vedação existente é constituída por um muro de suporte e contenção de terras, em granito, com a altura média de cerca de 1,60 metros, encimada por uma rede plastificada com 1 metro de altura. O suporte faz-se em 22 vigotas de betão pré-esforçado com a altura de cerca de 2 metros e num pilar de granito com a altura de 2 metros e a secção de cerca de 0,25 m. x 0,25 m. Esta vedação tem o comprimento de cerca de 91 metros e com o custo estimado de 4.550,00€.

25) No lado norte, entre a parcela de terreno constante do art. rústico ... e o logradouro e quintal do prédio urbano do Réu, existe um portão em ferro com a largura de 3,10 metros e a altura de 1,70 metros – com o valor estimado de 500,00€.

26) No limite do caminho com a rua..., a fazer a vedação, existe um portão de 4 folhas, em ferro, com a largura de 3,90 metros e a altura de 1,08 metros – com o valor estimado de 400,00€.

27) No caminho interior e no limite de outro prédio, existe um portão em tubos de ferro e rede com a largura de 1,20 metros e a altura de 1,40 metros – com o valor estimado de 150,00€.

28) Existem aproximadamente 20 espécies diferentes de árvores de fruto – com o valor estimado de 800,00€.

29) Aquando da instalação de unidade fabril de enchidos, denominada “A...”, foi cortada a possibilidade de acesso por essa zona ao prédio rústico inscrito na matriz sob o anterior art. ....


*

2.1.2- Na mesma sentença julgaram-se não provados os factos seguintes:

a) Desde sempre o prédio rústico inscrito na matriz sob o anterior art. ... e o prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ... estiveram afetos à exploração agrícola.

b) O preço a que se alude em 8) é exorbitante face à natureza e à área do prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ..., o que visou desencorajar, no futuro, qualquer exercício do direito de preferência.

c) Antes da outorga da referida escritura, no início do ano de 2001, o Réu II e o pai da Ré GG contactaram a Autora AA e EE, e a procuradora de CC e mulher, a quem deram conhecimento do propósito da venda do prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ..., das exatas condições em que tal venda seria concretizada, nomeadamente o preço, a forma e o tempo de pagamento, a data e o local da escritura, bem como de que os adquirentes seriam os Réus FF e mulher, GG.

d) Tendo afirmado que não pretendiam comprar o aludido prédio, mas que “haveriam de conversar sobre a possibilidade de ali abrirem um caminho para a sua tapada, que tinha ficado sem caminho quando foi feito o desaterro da fábrica de enchidos A...”.

e) Com a presente ação, a Autora pretende apenas exercer sobre os Réus pressão para obter acesso mais direto ao prédio rústico inscrito na matriz sob o anterior art. ....

f) A vedação do prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ... ficou concluída em dezembro de 2006.


*

3) Fundamentação jurídica

Na base deste recurso, como vimos, está o entendimento dos Apelantes (RR.) de que a sentença recorrida é nula. Nula, por alegada omissão de pronúncia e por contradição entre os fundamentos e a decisão nela tomada, uma vez que, em síntese, por um lado, não se teria assumido posição expressa sobre a falta de identidade de culturas nos dois prédios que estão em causa nestes autos, ou seja, entre aquele que, agora, pertence aos AA. e o outro, alienado, sobre o qual foi pedido o reconhecimento do direito de preferência, e, por outro lado, porque “os factos essenciais apurados e com relevância para a aplicação do direito, não foram considerados na decisão, sendo que em caso da sua consideração a solução jurídica a extrair seria oposta à constante da Sentença em crise”.

Desde já se diga que este último fundamento não integra nenhuma nulidade da sentença. Designadamente, a prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC. Com efeito, se é verdade que a sentença deve expressar um raciocínio lógico, isto é, deve intermediar entre as suas premissas e a conclusão nela retirada um juízo lógico de conformidade ou desconformidade, já não é passível de afetar a validade formal da sentença a mera relação de inconcludência ou mesmo o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, que extravase aquele tipo de juízo.

Ora, no caso, não é da referida desconformidade que os Apelantes se queixam. É antes e apenas de, no fundo, não se ter chegado a outra conclusão jurídica com base na factualidade provada e não provada. Só que isso, repetimos, não inquina a validade formal da sentença. Pode, quando muito, inquinar o seu mérito.

Por conseguinte, é linear que não se verifica esta nulidade.

Nem a baseada na alegada omissão de pronúncia. Mas, a este respeito, impõem-se maiores desenvolvimentos.

Efetivamente, daquilo que os Apelantes se queixam, fundamentalmente, é de, como vimos, na sentença recorrida não se ter assumido posição expressa sobre a falta de identidade de culturas agrárias, que por eles foi alegada na contestação (artigos 56.º a 60.º), fundamento este que conduziria à improcedência desta ação, por esse ser um facto impeditivo do reconhecimento do direito de preferência de que os AA. se arrogam titulares.

Acontece que este mesmo direito já foi reconhecido aos AA. por Acórdão proferido nestes autos, por este Tribunal da Relação, no dia 08/05/2023, que não foi oportunamente impugnado.

Assim, tendo esse Aresto transitado em julgado, não mais pode ser questionado aquele direito. O artigo 619.º, n.º1, do CPC é bem claro a este propósito: “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 792.º”. Isto é, como ensinava Manuel Andrade[1], “[o] caso julgado material (ou interno) vincula e obriga não só dentro mas também fora do processo em que foi proferida a respectiva decisão, impedindo uma nova e diversa apreciação – no mesmo ou em novo processo – da relação ou situação jurídica concreta sobre que ela versou (imutabilidade substancial)…”.

A regra, portanto, é a de que as decisões judiciais, transitadas em julgado, são imutáveis e vinculantes. São imutáveis porque a situação jurídica substantiva por elas definida não mais pode ser jurisdicionalmente reapreciada com base nos mesmos pressupostos e entre as mesmas partes[2]. A exceção do caso julgado, prevista e caracterizada nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, al. i), 580.º e 581.º, do CPC, tem, justamente, esse efeito. É o chamado efeito negativo ou impeditivo. E, por outro lado, as ditas decisões são também vinculantes, na medida em que, devido ao seu caracter impositivo, se tornam obrigatórias, nomeadamente para os tribunais, funcionando como condicionantes para a apreciação de outros objetos processuais em ações judiciais subsequentes. É o chamado efeito positivo ou vinculativo[3].

Ora, repetimos, o direito de preferência reclamado pelos AA. nesta ação já lhes foi reconhecido pelo aludido Acórdão, que transitou em julgado.

Assim, não mais pode haver neste processo outra decisão que ponha em causa esse direito ou o seu reconhecimento jurisdicional, como sucederia se, como pretendem os Apelantes, fossem apreciadas as alegadas causas impeditivas da existência desse mesmo direito.

É verdade que no dito Acórdão também se determinou “que na primeira instância se conheça das questões cujo conhecimento ficou prejudicado pela decisão sobre aquele pedido (de reconhecimento do direito de preferência legal), designadamente o pedido reconvencional”. O que os Apelantes interpretam como sendo no sentido de obrigar a primeira instância a conhecer das causas impeditivas da existência daquele direito; designadamente, da não identidade de culturas já referenciada.

Mas, não é assim.

O histórico das decisões proferidas ajuda a compreendê-lo.

Com efeito, na sentença primeiramente proferida, ou seja, a que foi prolatada no dia 18/08/2022, concluiu-se que, embora se mostrassem “preenchidos os elementos de que a lei faz depender o reconhecimento aos Autores do direito de preferência que por estes foi invocado” e depois de analisadas as exceções de caducidade e renúncia a esse direito pelos AA., ainda assim, o mesmo não podia ser reconhecido porque os AA. atuariam em abuso de direito. E, por isso mesmo, porque assim se concluiu, mostrava-se “prejudicada a apreciação e a decisão das restantes questões suscitadas nos presentes autos, nomeadamente o conhecimento do pedido reconvencional, assim como da exceção perentória da prescrição dos juros de mora relativa à requerida ampliação do pedido reconvencional, que havia sido relegada para a [aquela] decisão”, tendo, nessa sequência, sido decidido “julgar procedente a invocada exceção de abuso de direito dos Autores, AA e marido, BB e, consequentemente, julgar improcedente a presente ação, absolvendo os Réus FF e mulher, GG; e HH e marido, II, dos pedidos que contra si foram formulados”. Isto, para além de ter sido decidido também “absolver os Autores AA e marido, BB do pedido de condenação por litigância de má-fé, formulado pelos Réus”.

Esta sentença foi objeto de recurso e no Acórdão já identificado, pelo contrário, concluiu-se que os AA. não agiram em abuso de direito. Como aí se refere, “não se divisa na actuação dos autores o “factum proprium” criador de uma situação objectiva de confiança merecedora de tutela jurídica ou a tal representação nos réus de que eles jamais exerceriam o direito de preferência legal”. Por isso mesmo, depois de na definição do objeto do recurso se ter considerado que o direito de preferência “nunca foi contestado pelos réus”, concluiu-se que há “que reconhecer aos recorrentes o direito de preferência na referida alienação e a legitimidade e tempestividade do seu exercício, pelo que não pode manter-se a decisão recorrida”.

Deste modo – continua o referido Aresto –, “[t]endo sido julgado improcedente o pedido de reconhecimento do direito de preferência, na sentença recorrida considerou-se prejudicado o conhecimento das demais questões, designadamente a decisão sobre o pedido reconvencional.

Com a revogação daquela decisão, impõe-se o conhecimento dessas questões, mas que terá de realizar-se na primeira instância, sob pena de se eliminar um grau de jurisdição”.

Daí que se tenha determinado que assim se procedesse.

Ou seja, bem ou mal, não é esta a sede própria para o sindicar, o que ficou por decidir, como resulta do já exposto, não foi a existência do já aludido direito de preferência, mas tão só e apenas a viabilidade do pedido reconvencional e as questões com ele relacionadas, designadamente, a invocada prescrição de juros.

Quanto ao reconhecimento daquele direito, o mesmo deve ter-se por definitivo. Até porque, a ser de outro modo e permitindo-se que fossem reavaliados os pressupostos, positivos e negativos, que contendem com a sua existência, inevitavelmente se correria o risco de contradizer aquela decisão; o que não pode suceder já que é justamente essa contradição que se visa prevenir com o instituto do caso julgado. Isto, em nome da certeza e segurança jurídica.

Recorde-se, para melhor compreensão, que, como se refere Ac. do STJ de 03/02/2011([4]), “sendo as decisões judiciais actos formais, amplamente regulamentados pela lei de processo e implicando uma «objectivação» da composição de interesses nelas contida – temos como seguro que se tem de aplicar a regra fundamental segundo a qual não pode a sentença valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (princípio estabelecido para os negócios formais no art. 238º do CC e que, valendo para a interpretação dos actos normativos – art. 9º, nº2 -, tem identicamente, por razões de certeza e segurança jurídica, de valer igualmente para a fixação do sentido do comando jurídico concreto ínsito na decisão judicial)”.

É este, no fundo, o método para determinar a extensão objetiva do caso julgado material e a sua força vinculativa[5].

Ora, tendo presente tal critério interpretativo – já o adiantámos -, não se pode admitir que naquele Aresto se tivesse reconhecido o direito de preferência aos AA. e, simultaneamente, se tivesse deixado em aberto a possibilidade de, neste processo, ulteriormente não o reconhecer. Seria um contrassenso que não tem qualquer apoio no seu texto.

Consequentemente, nem houve nenhuma omissão de pronuncia na sentença recorrida, a este respeito, posto que essa omissão pressupõe, como decorre do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, que o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse conhecer, nem, consequentemente, pode ser determinado esse conhecimento, como advogam os Apelantes ou, como resulta do disposto no artigo 665.º do mesmo Código, ter esse mesmo conhecimento lugar nesta sede.

Resta a questão da má-fé que os Apelados imputam aos Apelantes.

Sobre esta problemática, dispõe o artigo 542.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, o seguinte:

“1- Tendo litigado com má-fé, a parte é condenada em multa e indemnização à parte contrária, se esta a pedir.

2- Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.

No fundo, consagrou-se neste normativo a noção que já vinha desde o Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, que introduziu nesta matéria importantes alterações.

Como reflexo e corolário do princípio da cooperação, instituiu-se, expressamente, o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por ação ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjetivos[6].

As partes, pois, estão obrigadas a agir de boa-fé. E agir de boa-fé pressupõe que não se incorra em qualquer uma das condutas já referenciadas e tipificadas como sinónimo do comportamento contrário.

Mas não só. Pressupõe igualmente que estas condutas típicas sejam adotadas com dolo ou negligência grave; isto é, com consciência e vontade de as realizar ou mesmo, de forma temerária, com culpa grave ou erro grosseiro[7].

Ora, no caso, não temos por verificados os aludidos pressupostos.

Embora se possa admitir que os Apelantes tinham conhecimento de todas atos praticados neste processo e, sobretudo, das decisões já referenciadas, temos para nós que a leitura que delas é feita por aqueles não é necessariamente dolosa ou grosseiramente negligente. Consequentemente, a sua condenação a este título é de julgar improcedente.

Em resumo, o presente recurso improcede, tal como improcede o aludido pedido de condenação dos Apelantes como litigantes de má-fé.


*

IV- Dispositivo

Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, mantém-se em vigor a sentença recorrida.

Quanto ao pedido de condenação dos Apelantes como litigantes de má-fé, acorda-se em julgar o mesmo improcedente.


*

- As custas deste recurso são da responsabilidade dos Apelantes – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.


Porto, 9/4/2024
João Diogo Rodrigues
João Proença
Rui Moreira
_______________
[1] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, Coimbra Editora, págs. 138 e 139.
[2] Ressalvada a hipótese de revisão (artigos 696.º a 792.º do CPC).
[3] No mesmo sentido se pronuncia Teixeira de Sousa, quando refere que “A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contraria na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (...).Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente (“O objecto da sentença e o caso julgado material”, BMJ 325, pág.171 e segs.) [citação extraída do Ac. RC de 28/09/2010, Processo n.º 392/09.6TBCVL.C1, consultável em www.dgsi.pt].
[4] Proferido no Processo n.º 190-A/1999.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. neste sentido também o Ac. STJ de 19/01/2016, Processo n.º 126/12.8TBPTL.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt
[6] Texto adaptado do preâmbulo ao Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro.
[7] Neste sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3ª Ed., Almedina, pág.456.