Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0352466
Nº Convencional: JTRP00034708
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: EXECUÇÃO
TELECOMUNICAÇÕES MÓVEIS
DEVER DE INFORMAR
Nº do Documento: RP200305260352466
Data do Acordão: 05/26/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 7 V CIV PORTO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: .
Decisão: .
Área Temática: .
Legislação Nacional: CPC95 ART519.
L 91/97 DE 1997/08/01.
Sumário: Em processo de execução para pagamento de quantia certa pode ser imposta à operadora de telecomunicações a obrigação de informar a quem pertencia o número do telemóvel indicado pela exequente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

......... Banco .........., S.A., intentou em 17.3.2000, pelos Juízos Cíveis da Comarca do ........, actualmente .. Vara Cível, Execução Para Pagamento de Quantia Certa, com processo ordinário contra:

Walter .......... e mulher Virgínia ............

Pedindo a citação dos executados para, solidariamente, lhe pagarem a quantia de 1.009.785$00 de capital, resultante de incumprimento de obrigações cambiárias, juros vencidos no valor 17.191$00 e vincendos, ou, para no prazo legal nomearem bens à penhora.

O processo prosseguiu os seu termos, sem oposição dos executados, tendo a fls. 112, a exequente requerido que a “Vodafone Telecel Comunicações Pessoais, S.A.”, informasse em que nome e qual a morada em que está registado o telemóvel ...........

Deferida tal pretensão, a “Vodafone”, por comunicação de fls.162 a 165, veio informar o Tribunal que o cliente titular daquele número solicitara confidencialidade dos seus dados, aquando da subscrição do serviço de telemóvel, pelo que, estando obrigada ao sigilo das comunicações, nos termos do art. 34º, nº1, da C.R. e art. 17º, nº2, da Lei 91/97, de 1.8, não poderia fornecer tal informação, tanto mais que se não destinava a processo criminal.

Por despacho, de fls. 166 a 167, o Tribunal, invocando o preceituado no art.519º-A do Código de Processo Civil, determinou à “Vodafone” que prestasse a informação recusada, por estar a impedir o regular andamento do processo, dispensando-a da confidencialidade.
***

Inconformada recorreu a Vodafone que, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1. O artigo 519°-A do Código de Processo Civil é aplicável apenas aos serviços administrativos, natureza que a Vodafone, ora Agravante, não comunga, pelo que, ao aplicá-lo no caso “sub judice”, o M.mo. Juiz “a quo” violou frontalmente o aludido preceito;

2. Aliás, tal preceito não poderia jamais entender-se aplicável, por qualquer forma, ao caso dos autos, porquanto os princípios e a lógica subjacentes às entidades administrativas são ostensivamente diversos dos que assistem à Agravante, razão pela qual, aliás, o dever de sigilo que sobre esta impende, enquanto empresa do sector privado, permanece incólume.

3. Quando está em causa o sigilo profissional sobre dados na posse de entidades privadas, como é o caso dos autos, o preceito aplicável é o 519º, n°3, alínea c) e n° 4 do mesmo Diploma, que remete para o processo penal, cabendo apenas ao Tribunal aferir da legitimidade da escusa invocada; ao limitar-se a aplicar o artigo 519°-A do Código de Processo Civil, o M.mo Juiz “a quo” violou também os artigos 519º do Código de Processo Civil e 135º, nos 2 e 3, do CPP.

4. A ora Agravante está efectivamente vinculada ao sigilo profissional, abrangendo este os chamados dados de base - elementos relativos à conexão à rede, que incluem, entre outros, o nome e a morada do utilizador -, pelo que, ao decidir pela dispensa de confidencialidade, o M.mo Juiz “a quo” violou, além das regras de processo civil e penal já referenciadas, os artigos 34º e 35º da CRP, 12º, n°2. da Lei 91/97, de 1 de Agosto, 5º e 11º, n°2, alínea a) da Lei 69/98, de 28 de Outubro, 17º, n°1. da Lei 67/98, de 26 de Outubro, que vinculam a Vodafone, enquanto operadora de telecomunicações, ao sigilo das comunicações e, em particular, ao segredo profissional.

5. Com efeito, é doutrina da Procuradoria-Geral da República, conforme teor da Directiva n° 5/2000, de 28 de Agosto, que “os dados de base relativamente aos quais os utilizadores tenham requerido um regime de confidencialidade”, como é o caso dos autos, “estão sujeitos ao sigilo das telecomunicações”, impondo-se idêntica conclusão do estatuído no artigo 35°, n°2, da CRP.

6. Na verdade, tais dados são objecto de um típico sigilo profissional que deriva de um direito do utilizador, exercido no caso dos autos, em manifestar-se pela não divulgação daqueles, sigilo esse que vincula a ora Agravante.

7. A escusa apresentada pela Agravante é, pois, legítima.

8. Assim sendo, o douto despacho do M.mo. Juiz “a quo” que ordenou a dispensa de confidencialidade e a prestação da informação coberta pelo sigilo profissional, com a consequente e inevitável quebra do mesmo, está ferido também de incompetência, por violação do artigo 135°, n°3, do CPP, uma vez que apenas a Tribunal superior cabe decidir pela prestação de informação com quebra de sigilo.

9. Atendendo a que se desconhece se o utilizador do telemóvel em causa é, de facto, um dos devedores, o interesse público subjacente ao dever de sigilo deverá prevalecer, tanto mais que o direito de crédito da Exequente subsiste íntegro, seja ou não prestada a informação objecto de escusa!

10. É, por fim, entendimento da Relação de Lisboa, em acórdão de 09.09.1999, que “a devassa dos registos da Agravada [entenda-se, “in casu”, da Agravante] não constitui o único meio de aquisição do conhecimento da morada” e da identificação do utilizador em causa, pelo que, tudo exposto, se entende não dever proceder o despacho ora em crise.

Nestes termos deverá dar-se provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, assim se fazendo Justiça.

Não houve contra-alegações.

O Senhor Juiz sustentou o seu despacho.
***

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, tendo em conta que a matéria de facto relevante, é a que antes se aludiu no Relatório.

Fundamentação:

A questão objecto do recurso, delimitada pelo teor das conclusões do recorrente, que recortam o âmbito do recurso, consiste em saber se, no caso concreto, o Tribunal poderia impor à “Vodafone”, a obrigação de informar a quem pertencia o número do telemóvel indicado pela exequente.

O artigo 519º do Código de Processo Civil estabelece:
(Dever de cooperação para a descoberta da verdade)

“1 – Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.
2 – Aqueles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal apreciara livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº2 do artigo 344º do Código Civil.
3 – A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no nº4.
4 – Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, e aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.

O despacho recorrido, sem dúvida, que se baseou no dever de cooperação a que se acham obrigados, não só as partes no processo, como terceiros, com vista à obtenção de uma justiça pronta.

Essa cooperação resulta dos arts. 266º. 519º, 155º e 266º-A do Código de Processo Civil.

Todavia, a Lei, tendo em conta natureza de certos interesses, admite a existência de segredo e sigilo não só profissional, como relativamente ao exercício de certas actividades, em ordem a salvaguardar a intimidade pessoal e a reserva da vida privada, valores inerentes à honorabilidade e privacidade dos cidadãos, e que estão constitucionalmente assegurados – art. 34º,nº1, da Constituição da República.

No caso em apreço, depois de várias diligências para localizar a executada, no contexto da execução cambiária, a exequente pediu que o Tribunal identificasse que em era o titular do número de telemóvel que indicou.

O cliente desse número requereu confidencialidade e, também por esse motivo, a “Vodafone” pretende escusar-se a fornecer a identificação requerida.

O nº3, al. b) do citado art. 519º estabelece que – “A recusa é, porém, legítima se a obediência importar”: [...] “b) intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.

O art.519º-A do Código de Processo Civil, estabelece:
(Dispensa de confidencialidade pelo juiz da causa)

“1. A simples confidencialidade de dados que se encontrem na disponibilidade de serviços administrativos, em suporte manual ou informático, e que se refiram à identificação, à residência, à profissão e entidade empregadora ou que permitam o apuramento da situação patrimonial de alguma das partes em causa pendente não obsta a que o juiz da causa, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, possa, em despacho fundamentado, determinar a prestação de informações ao tribunal, quando as considere essenciais ao regular andamento do processo ou à justa composição do litígio.
2. As informações obtidas nos termos do número anterior serão estritamente utilizadas na medida indispensável à realização dos fins que determinaram a sua requisição, não podendo ser injustificadamente divulgadas nem constituir objecto de ficheiro de informações nominativas”.

O espírito da Reforma do Código de Processo Civil de 1995/96, no que toca ao capítulo da produção dos meios de prova, é evidenciado no relatório do respectivo diploma, nos seguintes termos:

“Procurou introduzir-se alterações significativas, com vincados apelos à concretização do princípio da cooperação, redimensionado, não só em relação aos operadores judiciários, como às instituições e cidadãos em geral, adentro de uma filosofia de base de obtenção, em termos de celeridade, eficácia e efectivo aproveitamento dos actos processuais. de uma decisão de mérito, o mais possível correspondente, em termos judiciários, à verdade material subjacente, sem embargo de se manter, como actualmente, e como momento de eleição para a respectiva produção, a audiência de discussão e julgamento, não se criando, assim, uma fase de instrução caracaterizadamente diferenciada”.

A Lei 91/97, de 1 de Agosto, instituiu a nova Lei de Bases das Telecomunicações, revogando a Lei 88/89, de 11.9, consagrando os princípios da liberdade de estabelecimento e da prestação de serviços de telecomunicações – arts. 7º e 11º.

O art. 17º da Lei de 1997, estabelece o sigilo das comunicações.

Importa, para esclarecimento da questão objecto do recurso, articular o conteúdo daquela Lei, com a Lei 69/98, de 20.10, que regula o tratamento de dados pessoais e a protecção da privacidade no sector das comunicações.

O art. 11º (“Lista de Assinantes” ) consigna:

“1 - Os dados pessoais inseridos em listas impressas ou electrónicas de assinantes acessíveis ao público ou que se possam obter através de serviços de informações telefónicas
devem limitar-se ao estritamente necessário para identificar um determinado assinante, a menos que este tenha consentido inequivocamente na publicação de dados pessoais suplementares.
2 - O assinante tem o direito de, a seu pedido e gratuitamente:
a) Não figurar em determinada lista, impressa ou electrónica;
b) Opor-se a que os seus dados pessoais sejam utilizados para fins de marketing directo;
c) Solicitar que o seu endereço seja omitido total ou parcialmente;
d) Não constar nenhuma referência reveladora do seu sexo.
3 - Os direitos a que se refere o n° 2 são conferidos aos assinantes que sejam pessoas singulares ou pessoas colectivas sem fim lucrativo”.

No caso em análise, quem é titular do número indicado pela exequente, solicitou confidencialidade acerca do seu endereço.

O art. 34º da CR estabelece que “o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis”, e que “é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”.

No Parecer da PGR nº21/2000, de 16.6.2000, publicado no D.R. II Série de 28.8, foi posta a questão (por uma empresa concorrente de “Vodafone”) que consta assim:

“Têm os operadores de telecomunicações a obrigação de divulgar tais informações (refere-se o texto às informações confidenciais relativas aos utilizadores dos serviços de telecomunicações) quando as mesmas são solicitadas no âmbito de Processo Cível, embora através de ordem judicial?”

Aquele Parecer, depois de referir que a questão releva no contexto do princípio da “cooperação intersubjectiva”, enunciado no art. 266º do Código de Processo Civil, e nos princípios da boa-fé, e depois de abordar o regime do “dever de cooperação”, previsto no art. 519º e o preceituado no art. 519º-A do Código de Processo Civil, consigna:

“[...] Os dados relativos aos utilizadores de serviços de telecomunicações de uso público, que se encontram na disponibilidade dos fornecedores de rede ou prestadores de serviços, estão abrangidos pelo sigilo profissional por efeito das referenciadas disposições dos artigos 17°, n° 3, da Lei de Bases de Telecomunicações (Lei n° 91/97, ou 1 de Agosto) e 5° da Lei de Protecção de Dados Pessoais no Sector das Telecomunicações (Lei n° 69/98, de 28 de Outubro).
Aí se incluindo os elementos de informação gerados por uma ligação telefónica, como são os designados dados de tráfego e dados de conteúdo.

A obtenção desse tipo de informação por parte dos tribunais, no âmbito de processos de natureza civil para efeitos instrutórios ou para assegurar o bom andamento dos processos, depara com a legitimidade de recusa por parte dos operadores de telecomunicações, em conformidade com o disposto no artigo 519°, n° 3, alínea b), do CPC, encontrando-se, por isso, claramente excepcionada do dever de cooperação.

Não tem aqui qualquer aplicação o regime de dispensa de confidencialidade a que se refere o artigo 519°-A do CPC. A previsão desse preceito abarca certas categorias de informação que se encontrem na posse de serviços administrativos - entendendo-se como tais as unidades orgânicas ou funcionais que integram as pessoas colectivas públicas -, não abrangendo a recolha e o tratamento de dados pessoais que tenha sido efectuado por entidades que, como (....) e os restantes operadores de telecomunicações, pertencem ao sector privado.
Em relação, no entanto, aos dados de conexão à rede, chamados dados de base (número de acesso, identidade e morada do utilizadores), valem “mutatis mutandis” todas as considerações já anteriormente expendidas quanto ao índice ou grau de confidencialidade que está aí em causa.

O carácter sigiloso dos dados deriva, nessa hipótese, da circunstância de o interessado ter manifestado a oposição à sua publicitação (que poderia ocorrer, designadamente por via da inclusão em listagens de assinantes), relevando, por conseguinte, no plano dos simples interesses pessoais que não contendem com a esfera privada íntima.

A divulgação dessas informações, dentro dos limites consentidos pelos fins da actividade instrutória no âmbito do processo civil, não afecta a confiança do público nos serviços de telecomunicações, nem a reserva de intimidade da vida privada.

Nesse caso, deve prevalecer o interesse público fundamental subjacente ao dever de cooperação com a administração da justiça.
E se as entidades requisitadas, na ponderação dos valores em presença, vierem a invocar escusa, com base no disposto na alínea c) do nº3 do artigo 519°, funciona então o mecanismo previsto no artigo 135° do Código de Processo Penal, por força da remissão operada pelo n° 4 daquele artigo”. (sublinhados e destaques nossos).

Concordando o com Douto Parecer, cremos que o fornecimento da identidade do titular do número do (a) cliente da “Vodafone”, destinando-se ao restrito fim da concreta cooperação que entidades públicas ou privadas, devem aos Tribunais, em ordem ao valor superior da administração da Justiça, não viola a reserva da intimidade privada, nem coloca em causa deveres que à “Vodafone” cumpra legalmente acautelar, porque excepcionados do dever de sigilo que implicam a postergação deste, dada a natureza e finalidade da informação requerida.


Dispõe o art. 335º do Código Civil:

1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.

2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.

Havendo colisão de direitos, deve prevalecer o direito que, socialmente, se situe num patamar de interesse (público) superior.

No caso em apreço, entre o direito de confidencialidade requerido pela titular do indicado número de telemóvel da cliente da “Vodafone”, e o interesse no regular e célere andamento do processo, tendo sido considerada pelo Tribunal, a necessidade e utilidade daquela informação, deve preponderar o direito que ao Tribunal cumpre assegurar.

Decisão.

Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pela recorrente.

Porto, 26 de Maio de 2003
António José Pinto da Fonseca Ramos
José Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale