Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA DA LUZ SEABRA | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA SEPARAÇÃO/RESTITUIÇÃO DE BENS USUCAPIÃO ACESSÃO NA POSSE | ||
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Nº do Documento: | RP20230613482/11.5TYVNG-X.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/13/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA. | ||
Indicações Eventuais: | 2. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Em processo cujo valor exceda a alçada do tribunal, a decisão que determine o pagamento da taxa de justiça devida pela apresentação de contra-alegações cujo valor seja inferior a metade da alçada do tribunal não é recorrível, já que o art. 629º nº 1 do CPC não distingue essa situação das demais em que a admissibilidade do recurso fica dependente da conjugação entre o valor da alçada e o valor da sucumbência. II - A propositura da acção para exercício do direito à separação ou restituição de bens de terceiro indevidamente apreendidos para a massa insolvente, nos termos dos arts. 141º nº 1 e 146º do CIRE, tem como fundamento a existência de um direito real ou pessoal de gozo por parte de um terceiro sobre o bem apreendido, que lhe atribua a posse em nome próprio, sendo o caso mais comum o de o bem ser da propriedade desse terceiro. III - Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse e, nesse caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título. IV - A acessão na posse pressupõe um acto translativo que seja formalmente válido, pelo que, tendo a posse do actual possuidor origem num acto de transmissão nulo, o possuidor só pode invocar a sua posse, não podendo somar à sua a posse do anterior possuidor. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 482/11.5TYVNG-X.P1- APELAÇÃO Origem: Juizo de Comércio de Vila Nova de Gaia- Juiz 1 Recorrentes: AA BB Recorridos: Massa Insolvente de A..., Lda ** Sumário (elaborado pela Relatora): …………………………………………. …………………………………………. …………………………………………. ** I. RELATÓRIO: 1. AA intentou Ação para Separação da Massa Insolvente de fração autónoma, por apenso aos autos de Insolvência de A..., Lda, contra a devedora A..., Lda, a Massa Insolvente de A..., Lda e os credores da devedora, peticionando que seja o Autor reconhecido como proprietário da fração identificada no art. 2º da PI por a ter adquirido por usucapião antes da insolvência e a reconhecer-se que a posse que alicerça a usucapião teve o seu início em 13/3/1990, pelo que a aquisição do direito de propriedade se reporta a essa data e, em consequência, que seja ordenada a sua separação da massa insolvente. Como fundamento da referida pretensão, alegou em síntese que, no dia 18/2/2019 foi apreendida para a massa insolvente uma fração autónoma, que identifica, que lhe pertence, uma vez que a insolvente celebrou contrato escrito de promessa de venda em Março de 1990 à sociedade B..., Lda, tendo-se tratado não de uma promessa de venda, mas de uma dação em pagamento, através da qual a insolvente deu em pagamento parcial da empreitada de electricidade que aquela sociedade fez no edifício construído pela insolvente, entregando-lhe a posse efectiva de tal fração para que a utilizasse como coisa sua em 1991, quando ficou pronta, sem que fosse celebrada escritura de dação em pagamento, passando a comportar-se como proprietária, até que negociou com o Autor em Dezembro de 1996 contrato de cessão de posição contratual , tendo-lhe o Autor pago o preço e recebido a fração em causa, que passou a possuir como coisa sua, dando-a de arrendamento, habitando-a noutro período de tempo e recentemente cedendo-a em comodato, pagando todas as despesas, bem como as contribuições de condomínio, fazendo obras de reparação, tendo a posse há mais de 20 anos, apesar de não ter sido formalizada a escritura de compra e venda. 2. A Ré Massa Insolvente deduziu contestação, suscitando a excepção da ilegitimidade do Autor e, impugnando os factos alegados na petição inicial 3. Dispensada a realização da audiência prévia, foi posteriormente proferido despacho saneador, no âmbito do qual foi relegado o conhecimento da excepção da ilegitimidade para decisão final, foi fixado o objecto do litígio, os factos assentes, bem como os temas de prova, que não foi objecto de reclamação. 4. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, nos seguintes termos: “Em consequência do exposto e atento o direito indicado, julga-se a presente acção improcedente por ilegitimidade do A. para propor a presente acção. Custas a cargo do Autor (cfr. art. 148º do CIRE). Registe e notifique, designadamente o Sr. Administrador de Insolvência.” 5. Inconformado, o Autor/Apelante interpôs recurso de apelação da sentença final, formulando as seguintes CONCLUSÕES Quanto à matéria de facto:1ª Não pode aceitar-se que se dê como não provado na sua totalidade que “A sociedade B..., Lda. tenha negociado com o A., em Dezembro de 1996, contrato de cessão de posição contratual, pelo qual este lhe pagou o valor convencionado de 5.000.000$00, e recebeu a fracção em causa”. 2ª Isto, porque o A., desde então, passou a ter a posse da fracção, com conhecimento da sociedade, sem oposição desta, que abriu mão da posse definitivamente, deixando de a dar de arrendamento, como fazia antes, e foi compensada por isso pelo A., assim resolvendo os seus problemas financeiros. Só não ficou esclarecido o valor exacto da compensação o que é irrelevante para o que aqui interessa. 3ª Por conseguinte, deve anular-se o conteúdo do item “não provado que” e deve aditar-se à matéria provada que, em 1996, a sociedade B..., Lda., por contrato oneroso, cujo preço e exacta natureza se desconhecem, transferiu para o A. a posse e a propriedade da fracção que aqui se discute, sendo este quem passou a possuí-la até ao presente, quer habitando-a, quer disponibilizando-a por contrato de comodato, com absoluto conhecimento pela dita sociedade. 4ª Deve também aditar-se à matéria de facto todo o conteúdo do contrato de comodato, cuja validade não foi impugnada, antes foi expressamente aceite pela contestante, 5ª E aditar-se também que o A., depois de lhe ser transferida a posse, habitou na fracção que se discute antes de celebrar o contrato de comodato atrás referido. 6ª E, ainda, que os actos de habitação própria, bem como de habitação pelo comodatário são por sua natureza actos públicos, com mais que evidente publicidade. 7ª Ficou também provado que o A. é sócio-gerente da sociedade B..., Lda. Quanto ao direito: 8ª Dos factos provados resulta que, desde os princípios de 1991, a insolvente abdicou da posse da fracção que aqui se discute, por tê-la dado em pagamento à sociedade B..., Lda., 9ª Tendo esta sociedade passado a possuí-la em nome próprio, incluindo dando-a de arrendamento, 10ªE tendo instaurado acção de despejo de um inquilino, que foi procedente, por falta de pagamento de renda. 11ªPor acordo entre a sociedade referida e o aqui A. ocorrido em 1996, este recebeu dela a posse da fracção. 12ªE passou a possuí-la até ao presente, quer habitando-a, quer dando-a em comodato. 13ªE fê-lo com o animus de exercer um direito próprio - o de proprietário – como claramente resulta do contrato de comodato junto aos autos. 14ªOs actos que praticou são por natureza públicos, 15ªE deve considerar-se que são de boa fé, por ignorar o A. lesar a sociedade B..., Lda. 16ªE pela forma como foi produzida a prova, evidenciando-se que a posse não foi conseguida nem mantida com recurso à violência. 17ªAssistindo ao A. o direito de juntar à sua posse a da sociedade B..., Lda. de quem a adquiriu. 18ªDaí que já tenha decorrido há muito o prazo necessário para a aquisição do direito de propriedade sobre a fracção pelo A., por usucapião. Aliás mesmo que se considere apenas o prazo da posse do A. (26 anos), tal é bastante para o mesmo efeito. 19ªEm todo o caso, ainda que não se considere ter ocorrido a usucapião, o A., sendo indiscutivelmente o actual possuidor, goza da presunção da titularidade do direito de propriedade, nos termos do art. 1268º do C. Civil, visto que a contestante não logrou elidir tal presunção. 20ªO argumento constante da sentença de que a posse actual do A. de nada vale, visto que não se provou que o A. adquiriu por contrato de cessão da posição contratual a posse da fracção é absolutamente inócuo, visto que, por um lado, a transmissão da posse é relevante independentemente de haver ou não um contrato (cf. art. 1263º, b), do C. Civil), 21ªE, por outro lado, no caso concreto, o A. não precisa sequer de juntar à sua posse a da sociedade B..., Lda., visto que já possui a fracção desde 1996, ou seja, há mais de vinte anos sendo esse prazo bastante para a usucapião (art. 1296º do C. Civil). Concluiu, pedindo que sejam aditados à matéria de facto fixada pelo tribunal a quo os factos provados apontados nas alegações, e, em consequência, dando-se provimento ao recurso, julgar-se esta acção procedente e provada, considerando-se o A. parte legítima e reconhecendo-o como proprietário da fracção autónoma que nos autos está identificada. 6. Quer a massa insolvente, quer a Presidente da Comissão de Credores ofereceu contra-alegações, pugnando pela confirmação do julgado. 7. Não tendo sido paga a taxa de justiça pela Presidente da Comissão de credores e emitida guia para o efeito, que com a multa totalizava o montante de €612,00, veio esta, por requerimento de 23.11.2022 requerer a dispensa de tal pagamento, sustentando não ser devida qualquer taxa de justiça por serem da responsabilidade da massa insolvente as despesas da comissão de credores, beneficiando aquela de apoio judiciário, estando ambos isentos. 8. Sobre tal requerimento recaiu despacho proferido a 3.01.2023, Ref.ª Citius 443562153, com o seguinte teor (transcrição): “Requerimento refª 43960832 de 23.11.2022: Salvo melhor opinião, atento o disposto nos arts. 4º e 6º do RCP, entendemos que, quer a massa insolvente quer a comissão de credores, não estão isentas do pagamento de taxa de justiça no caso em apreço, pelo que, se indefere ao requerido, devendo proceder em conformidade com o ordenado. Notifique. D.N.” 9. Inconformada, a Presidente da Comissão de Credores interpôs recurso de apelação do despacho referido no ponto que antecede, formulando as seguintes CONCLUSÕES A) O recurso em causa no qual a Presidente da Comissão de Credores, em representação da mesma, apresentou Contra-Alegações e requerimento/reclamação deduzida, diz respeito e enquadra-se nas funções de fiscalização da Comissão de Credores nos termos do art.º 68.º do CIRE;B) São dívidas da Massa Insolvente as custas do próprio processo de insolvência, a remuneração do administrador de insolvência, assim como todas as despesas deste e da Comissão de Credores no âmbito do processo de insolvência; C) Os membros da Comissão de Credores exercem a sua função sem qualquer remuneração ao contrário dos Srs. A.I.’s, apenas tendo direito ao reembolso das despesas estritamente efectuadas por causa do exercício dessas funções, art.º 71.º do CIRE; D) As taxas de justiça e custas processualmente devidas não se incluem no conceito de despesas a que alude o art.º 71.º; E) A al. u) do n.º 1 do art.º 4.º do RCP prevê exacta e precisamente a isenção de taxas de justiça e custas para os processos de insolvência e de recuperação; F) Isenção que tem vindo a ser jurisprudencialmente reconhecida por todos os Tribunais da Relação como resulta dos acórdãos (acórdãos da Relação de Lisboa datados de 11/02/2010 e 16/06/2011, Proc. 1242/09.9TYLSB-L1-2 e Proc. 1640/10.5TYLSB- A.L1-8, respectivamente; acórdão da Relação do Porto datado de 23/03/2015, Proc. 151325/13.TYPRT-P1 e acórdão da Relação de Évora de 13/08/2013, CJ An. 38 T4 pág. 302); G) Além disso, a Massa Insolvente não dispõe de liquidez e beneficia de apoio judiciário; H) O despacho recorrido viola por isso a jurisprudência firmada, bem como o disposto na al. u), n.º 1 do art.º 4.º do RCP e ainda o disposto nos arts.º 71.º, 70.º e 68.º do CIRE. Concluiu, pedindo que o despacho recorrido seja revogado e consequentemente substituído por outro que ordene a admissão das Contra-Alegações apresentadas pela Recorrente Comissão de Credores, sem qualquer pagamento de taxa de justiça, porque não é devida. 10. O Magistrado do Ministério Público pugnou pela confirmação do julgado. 11. Recebidos os autos nesta Relação, por despacho da Relatora, proferido em 19.05.2023 com Refª Citius 16943517, antevendo-se a possibilidade de rejeição do aludido recurso interposto pela Presidente da Comissão de Credores por inadmissibilidade, foi cumprido o legal contraditório (art. 655º n.º 1 do CPC). 12. Foram observados os vistos legais. * II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO: O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC. Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes perante o Tribunal de 1ª instância, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no nosso sistema de recursos, não se destina à prolação de novas decisões, mas à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias. [1] * As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:A- Questão prévia- Inadmissibilidade do recurso interposto pela presidente da Comissão de credores. B-Questões suscitadas no recurso do Autor/Apelante: 1ª- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto. 2ª-Aquisição pelo Apelante, da propriedade do imóvel apreendido para a massa insolvente, por usucapião. ** III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:1. O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos: A) No passado dia 6 de Fevereiro do corrente ano de 2019 foi afixada na porta de uma fracção autónoma do A. a seguinte informação: “No âmbito deste processo, foi apreendida a «fracção autónoma designada pela letra J: Habitação no 3º andar, centro, Tipo T1 – 57 m2. Descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº ...04 –Fracção J, da freguesia ... e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...84... e que iremos proceder à tomada de posse efectiva deste imóvel, no próximo dia 18 de Fevereiro de 2019 pelas 11,00 horas…». B) A Ré A..., LDA., foi declarada insolvente por sentença proferida a 14 de Julho de 2011, às 8:37 horas, no âmbito dos presentes autos principais (Ap. ...39 de 28/02/2012). C) Por contrato escrito celebrado em 13 de Março de 1990, a insolvente prometeu vender a fracção identificada em A), à firma B..., Lda., com sede no lugar ..., freguesia ..., concelho de Vila do Conde ( cfr. doc. de fls. 12). D) Do que se tratou não foi propriamente de uma promessa de venda, mas sim de uma dação em pagamento, através da qual, a insolvente deu em pagamento parcial da empreitada que a sociedade B..., Lda., que tinha feito, empreitada de electricidade no edifício em que se integra a fracção supra identificada, bem como nos demais edifícios erigidos no mesmo loteamento (cfr. doc. de fls. 12). E) A fracção foi entregue à sociedade B..., Lda. em 1991, para que a utilizasse como coisa sua quando ficou pronta. F) Não foi feita qualquer escritura de dação em pagamento. G) A sociedade B..., Lda., deu de arrendamento a fracção, arrogando-se a qualidade de senhoria, instaurando a competente acção de despejo (cfr. doc. de fls.8). 2. O Tribunal de 1ª instância julgou não provados os seguintes factos: - A sociedade B..., Lda., tenha negociado com o A., em Dezembro de 1996, contrato de cessão de posição contratual, pelo qual este lhe pagou o valor convencionado de 5.000.000$00, e recebeu a fracção em causa. ** IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.A - Questão prévia - Inadmissibilidade do recurso interposto pela presidente da Comissão de credores. O art. 629º nº 1 do CPC impõe como regra que o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal- sendo de verificação cumulativa tais requisitos. Cremos que, no caso em apreço, apesar de a causa ter valor superior à alçada do tribunal de 1ª Instância, a decisão impugnada, que determina que a Presidente da Comissão de Credores está obrigada a pagar taxa de justiça pela apresentação das contra-alegações, não é desfavorável à recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, porquanto a guia que foi emitida e de cujo pagamento estava dependente a atendibilidade das contra-alegações (taxa de justiça acrescida de multa) resume-se ao valor de €612,00. Esse é verdadeiramente o valor da sucumbência, a expressão monetária do prejuízo que a decisão recorrida acarreta para a Recorrente, a utilidade económica do seu pedido, tendo esta peticionado a revogação do despacho recorrido e que seja substituído por outro que ordene a admissão das suas contra-alegações sem qualquer pagamento de taxa de justiça. O pagamento da referida taxa de justiça e a multa que lhe acresce decorrem directamente da lei (art. 642º do CPC), não de qualquer condenação judicial, não sendo uma situação enquadrável no art. 27º nº 6 do RCP que apenas contende com decisões de condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional, fora dos casos legalmente admissíveis, o que não é o caso sub judice. No nosso sistema judicial não está consagrado, nem sequer pela CRP, o direito ilimitado e irrestrito ao recurso de toda e qualquer decisão, devendo, em primeira linha observar-se a regra do valor da causa e da sucumbência e, só nas situações excepcionais mencionadas taxativamente nos nº 2 e 3 do art. 629º do CPC aquela regra é dispensada. Por conseguinte, à luz do art. 629º nº 1 do CPC, o recurso interposto pela Recorrente não é admissível por a decisão recorrida não lhe ser desfavorável em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido (falta-lhe o valor da sucumbência). Esta questão foi abordada por Abrantes Geraldes, no sentido que sufragamos, nos seguintes termos: “Em processo cujo valor exceda a alçada do tribunal, será recorrível a decisão que obrigue ao pagamento de multa ou taxa de justiça cujo valor seja inferior a metade da alçada do tribunal? A resposta que se extrai do preceituado no art. 629º, nº 1, parece clara no sentido negativo, já que não se distingue essa situação das demais em que a admissibilidade do recurso fica dependente da conjugação entre o valor da alçada e o valor da sucumbência. Contra uma resposta formal invoca-se, por vezes, que o que está em causa não é tanto o valor puramente económico da condenação, antes interesses de ordem imaterial ou interesses paralelos aos que no processo respectivo estão em discussão. Outras vezes, relativamente ao pagamento de taxa de justiça, pretende-se obter apoio para a recorribilidade não propriamente nos efeitos económicos que a decisão implica, mas nos efeitos processuais decorrentes do seu não acatamento. É uma tentativa a que subjaz, com frequência, a recusa em aceitar uma solução com a qual o legislador pretendeu libertar os Tribunais Superiores de questões sem suficiente relevo jurídico, revelando-se insuficientes os argumentos em sentido inverso. A não ser quando a lei estabelece ressalvas, como a prevista para a condenação como litigante de má-fé, o simples facto de alguém ser condenado em multa ou responsabilizado pelo pagamento de uma determinada quantia não obsta á aplicação da regra geral. A questão já foi submetida ao Trib. Constitucional que no Ac nº 496/96 deixou expresso o entendimento de que a restrição ao recurso de decisão que aplicou multa processual em função do valor da alçada não padece de inconstitucionalidade. Por isso, em qualquer dos referidos casos, a recorribilidade da decisão está dependente da verificação do condicionalismo imposto pelo valor do processo ou da sua sucumbência.”[2] Sendo inadmissível recurso ordinário da decisão recorrida, por falta de valor da sucumbência, vai o mesmo rejeitado, ao abrigo do art. 641º nº 1 al. a) e nº 5 do CPC. ** B - Questões suscitadas no recurso do Autor/Apelante:1ª Questão- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Perante as exigências estabelecidas no art. 640º do CPC, constituem ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, a seguinte especificação: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. “Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus: Primeiro: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento; Segundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa; Terceiro: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas. Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.”[3] São as conclusões das alegações de recurso que estabelecem os limites do objecto da apelação e, consequentemente, do poder de cognição do Tribunal de 2ª instância, de modo que, na impugnação da matéria de facto devem constar das conclusões de recurso necessariamente os concretos pontos de facto impugnados e a decisão alternativa que o recorrente propõe para cada um dos factos impugnados, admitindo-se, tal como alguma jurisprudência e doutrina, que a análise pormenorizada dos concretos meios probatórios possam constar apenas do corpo das alegações ou motivação propriamente dita, tal como as passagens das gravações ou transcrições dos depoimentos de que o recorrente se socorre. Analisadas as conclusões deste recurso concluímos que, contrariamente ao sustentado pela Apelada, tais ónus de impugnação da matéria de facto foram minimamente cumpridos pelo Apelante, pois fez constar os factos impugnados, a decisão alternativa e, quanto aos concretos meios de prova embora não constem das conclusões, constam do corpo das alegações, é certo que misturados com considerações de direito, mas apesar de tudo é feita referência aos segmentos da gravação dos depoimentos das testemunhas CC e DD e ao contrato de comodato junto aos autos. Segundo o disposto no art. 662º nº 1 do CPC, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. No âmbito do recurso de impugnação da decisão de facto, o Tribunal da Relação pode e deve realizar uma efectiva reapreciação da prova produzida, levando em consideração, não só os meios de prova indicados no recurso, como outros que relevem para a decisão relativa aos pontos da matéria de facto impugnada, com vista a formar a sua própria convicção, mas só o deve efectuar se da fundamentação vertida na sentença recorrida for evidente algum erro de apreciação dos factos controvertidos à luz das regras de experiência ou de prova vinculada. Também se deverá ter presente que a alteração pretendida pelo Apelante terá de ter algum efeito últil na sentença final, no sentido de permitir reverter a sentença recorrida, à luz das várias soluções plausíveis de direito, porquanto a impugnação da decisão de facto não constitui um fim em si mesmo, antes se mostra admitida enquanto meio ou instrumento que visa permitir à parte que impugna a decisão de facto a revogação/alteração da decisão final, ou seja, como meio que visa a demonstração de um determinado direito que a sentença não concedeu. Assim sendo, a impugnação da decisão de facto é de rejeitar quando, em razão das circunstâncias específicas do caso submetido a julgamento, em razão das regras do ónus da prova ou do regime jurídico aplicável, a eventual alteração da decisão de facto não assume relevo para a decisão a proferir, pois que, em tal circunstancialismo, a respectiva actividade jurisdicional revelar-se-ia como inconsequente ou inútil.[4] Vejamos. Sob as Conclusões 1ª a 7ª o Apelante pretende que o único ponto de facto dado como não provado seja eliminado e que, em substituição seja aditada parte daquela matéria aos factos provados, assim como pretende que sejam aditados aos factos provados mais quatro factos, factos esses que não constam nem dos factos provados, nem dos não provados, mas que em seu entender têm interesse para a decisão da causa. Quanto aos meios de prova que em seu entender sustentam a referida impugnação, o Apelante fez uma análise, ainda que superficial da prova, incluindo alguns enxertos de depoimentos testemunhais no texto da argumentação, à mistura com considerações jurídicas, revelando basicamente inconformismo com a valoração da prova efectuada pelo tribunal a quo, e não invocando propriamente meios de prova que não tenham sido tomados em consideração e o devessem ter sido por imporem decisão diversa da proferida, dirigindo a sua crítica à forma como o tribunal alcançou a sua convicção, retirando da prova conclusões distintas daquelas a que chegou o juiz a quo. Relativamente ao facto dado como não provado, tem o mesmo a seguinte redação: “A sociedade B..., Lda., tenha negociado com o A., em Dezembro de 1996, contrato de cessão de posição contratual, pelo qual este lhe pagou o valor convencionado de 5.000.000$00, e recebeu a fracção em causa.” Pretende o Apelante que seja eliminado dos factos não provados e que parte dessa matéria de facto passe para os factos provados com a seguinte redação “Em 1996, a sociedade B..., Lda, por contrato oneroso, cujo preço e exacta natureza se desconhecem, transferiu para o A. a posse e a propriedade da fração que aqui se discute, sendo este quem passou a possuí-la até ao presente, quer habitando-a, quer disponibilizando-a por contrato de comodato, com absoluto conhecimento pela dita sociedade.” Parte substancial da redação proposta pelo Apelante extravasa completamente o que consta do referido facto não provado, para além de que a expressão “contrato oneroso cujo preço e natureza se desconhecem” salvo o devido respeito nada é, consubstanciando mesmo uma admissão de que não logrou provar ter sido celebrado qualquer contrato, que a ter sido celebrado tenha tido natureza translativa da propriedade e sequer que tenha sido oneroso. E muito menos se poderia admitir um ponto de facto com a expressão “ transferiu para o A. a posse e a propriedade da fração que aqui se discute, sendo este quem passou a possuí-la até ao presente” que não contém factos mas apenas conceitos conclusivos e de direito. O mesmo se passa quanto aos outros pontos que o Apelante pretende sejam aditados aos factos provados: -“todo o conteúdo do contrato de comodato” não constitui matéria de facto, sendo tal contrato um meio de prova de factos que o Apelante não concretizou, de todo o modo, como veremos adiante, a mera existência de tal contrato em nada alterará a decisão final; - “o A. depois de lhe ser transferida a posse, habitou na fração que se discute antes de celebrar o contrato de comodato”, constitui matéria de direito a aludida “transferência da posse” e o ter habitado a fração, desconhecendo-se a que título é irrelevante para alterar a decisão final; -“os actos de habitação própria, bem como de habitação pelo comodatário são por sua natureza actos públicos, com mais que evidente publicidade” é pura afirmação conclusiva e contém conceitos jurídicos; -- “ o A. é sócio-gerente da sociedade B..., Lda só admite prova documental, não bastando o depoimento da testemunha que a isso se referiu. Restam, pois, as menções ao facto de o Apelante ter habitado a fração em apreço e, de a ter dado em comodato a outrem. Acontece que, ainda que fossem dados como provados tais factos, certo é que nenhuma prova foi produzida de que a fração tenha sido entregue ao Apelante em 1996 e, o facto de a ter habitado em determinada altura, desconhecendo-se quando e a que título, dissociado de outros elementos que revelassem o corpus e o animus de proprietário só demonstraria detenção e uso precário, insuficiente para determinar a pretendida alteração da decisão recorrida, como veremos melhor em sede de apreciação de direito. E, relativamente ao contrato de comodato ainda que se desse como provado, resulta do próprio documento que a ele se refere, conjugado com a testemunha DD que o mesmo data de 2017, também insuficiente para a pretendida aquisição da fração por usucapião, mesmo que se colocasse a questão da acessão da posse, como também veremos mais à frente. Tudo para concluir que, os factos desgarrados de o Apelante ter habitado aquela fração e, em 2017 tê-la emprestado a outrem, não têm qualquer virtualidade útil de modificar a decisão e, o demais que o Apelante pretende ver nos factos provados deles não podem constar por consubstanciarem alegações conclusivas e matéria de direito. Não obstante, analisada a prova gravada resulta evidente que o facto dado como não provado assim terá de permanecer, por nenhuma prova segura e consistente sobre tais factos ter sido produzida. E, nem sequer o depoimento da testemunha CC, invocado pelo Apelante, impõe decisão diversa, uma vez que tal depoimento não é suficiente para se dar como provada uma qualquer cessão da posição contratual da sociedade B..., Lda para o Apelante, mediante o pagamento de qualquer valor, desde logo porque essa testemunha não referenciou qualquer concreta cessão de posição contratual, depois porque se efectivamente a sociedade recebeu aquela fração em dação em pagamento (como ficou provado no ponto D dos factos provados, que não foi impugnado) não tinha qualquer posição contratual a ceder e, mesmo que se cogitasse a eventual venda da fração pela sociedade ao Apelante, como a testemunha aventou, o depoimento de uma só testemunha, que não assistiu à celebração de algum contrato ou viu a entrega de qualquer valor pelo Apelante à referida sociedade a título de preço, depoimento testemunhal que não pode ter a virtualidade de suprir a total ausência de prova documental dessa eventual transação, porquanto decorre das regras da experiência que nenhum negócio dessa natureza é feito por uma sociedade comercial sem que esta se muna de prova documental da transação comercial de um bem do seu activo patrimonial e da correspondente entrada na contabilidade do preço recebido, prova documental essa que no caso em apreço não se mostra junta, inferindo-se que se existisse não deixaria de ser junta pelo Apelante. Tudo para concluir que o facto não provado terá de se manter como tal e quanto à matéria cujo aditamento aos factos provados pretendia o Apelante, tem de soçobrar, quer porque na sua maioria se traduz em meras asserções conclusivas e de direito, quer porque nenhuma relevância útil assumem para a pretendida alteração da decisão recorrida, como veremos seguidamente. 2ª Questão- Aquisição pelo Apelante, da propriedade do imóvel apreendido para a massa insolvente, por usucapião. O Apelante sustenta que adquiriu a fração apreendida para a massa insolvente por usucapião, visto que já a possui desde 1996, como se dela fosse proprietário. Conclui que deve ser considerado parte legítima e reconhecido como proprietário da fração autónoma identificada nos autos. Afigura-se-nos que na sentença recorrida, salvo o devido respeito, confundem-se os conceitos de legitimidade do Apelante, com a qualidade de proprietário, o que conduz, irremediavelmente, ao equívoco em que incorre o Apelante no pedido recursivo apresentado. Depois de discorrer sobre a natureza da acção de restituição e separação de bens apreendidos no âmbito de um processo de insolvência, intentada à luz do art. 146º do CIRE, escreveu-se o seguinte: “a acção para restituição de bens (como é o caso) é o meio próprio de o titular de um direito real de gozo – direito de propriedade ou direito real limitado ou menor – fazer valer o seu direito e reagir contra uma apreensão de que, com ofensa do direito do reivindicante, resultou uma “posse” indevida pela massa insolvente do bem que estava em seu poder aquando da declaração de insolvência. Ora, teria de haver um direito real de gozo por parte do A., direito que atribui ao seu titular da coisa um conjunto de poderes ou faculdades (uso/fruição/disposição de uma coisa corpórea), para que ele pudesse instaurar a presente acção, o que, in casu, nos parece, s.m.o., não ter resultado provado da prova que consta dos autos nem da que foi feita em audiência de julgamento. O A. não fez prova da propriedade da fracção “J”. Deste modo e pelo exposto, entendemos que o A. carece de legitimidade para instaurar a presente acção. Em consequência do exposto e atento o direito indicado, julga-se a presente acção improcedente por ilegitimidade do A. para propor a presente acção.” Ora, nem a legitimidade processual (excepção suscitada na contestação e cujo conhecimento foi relegado para sentença final) se confunde com a prova da titularidade do direito- neste caso, com a prova da propriedade-, nem a ilegitimidade, caso existisse, conduziria à improcedência da acção, mas à absolvição da instância. De toda a maneira não é esse o foco deste recurso e, atendendo às conclusões de recurso, o que importaria que o Apelante tivesse demonstrado era que adquiriu a propriedade da fração apreendida para a massa insolvente, de forma originária- estando invocada a usucapião-, ou derivada- estando invocada a compra -, não para lhe podermos conferir legitimidade para instaurar esta acção, pois que legitimidade sempre teria face à relação material controvertida tal qual a alegou na petição inicial e decorre do art. 30º nº 1 a 3 do CPC, mas para podermos concluir, como pretende, que é proprietário ou titular de outro direito real que lhe permite pedir a separação daquele bem da massa insolvente e que o mesmo lhe seja restituído. A propositura da acção para exercício do direito à separação ou restituição de bens de terceiro indevidamente apreendidos para a massa insolvente, nos termos dos arts. 141º nº 1 e 146º do CIRE, tem como fundamento a existência de um direito real ou pessoal de gozo por parte de terceiro sobre o bem apreendido, que lhe atribua a posse em nome próprio, sendo o caso mais comum o de o bem ser da propriedade desse terceiro, tendo sido esse o fundamento invocado pelo ora Apelante. Resulta da matéria de facto elencada na sentença recorrida que tal fração foi entregue pela insolvente em 1991 à sociedade B..., Lda, como dação em pagamento parcial da empreitada que esta tinha feito no edifício construído pela insolvente, onde essa fração se integra e, apesar de não ter sido celebrada a competente escritura pública de dação em pagamento, aquela fração foi entregue àquela sociedade em 1991 para que a utilizasse como coisa sua quando ficou pronta, a qual entretanto a deu em arrendamento, arrogando-se a qualidade de senhoria, vindo a instaurar a competente acção de despejo. Como facto constitutivo do seu direito à separação e restituição desse bem imóvel, o Apelante alegou que tal fração lhe foi entregue pela referida sociedade B..., Lda, em 1996, ora alegando que lhe foi cedida a posição contratual daquela sociedade, ora alegando uma compra e venda também não titulada, o que manifestamente não logrou demonstrar. De todo o modo, independentemente da existência ou não de negócio subjacente, o Apelante centra a sua fundamentação relativa á titularidade do direito que nesta acção pretende exercer, na aquisição da referida fração por usucapião, por alegadamente lhe ter sido transferida a posse sobre a mesma em 1996, que perdurou até à apreensão da fração para a massa insolvente. Para esse modo de aquisição bastará a demonstração da posse, com determinadas características, não assumindo relevância se na sua génese está subjacente um qualquer negócio, translativo ou não da propriedade, titulado ou não titulado. Neste sentido, Fernando Pereira Rodrigues, “(…) a aquisição por usucapião é uma constituição originária, que tem como sua fonte ou génese a posse, geradora do direito, com título, sem título, contra um título de terceiro ou mesmo com um título afectado de nulidade substantiva.”[5] Como diz Durval Ferreira, “ a posse é agnóstica e a aquisição do direito, com base nela, é originária, tendo tão só a posse por causa genética ou geradora. E a posse, é posse boa para usucapião mesmo sem título, ou com título substancialmente nulo (artigos 1259º e 1296º). Isto é, a nulidade (substancial ou formal) do título, ou até a falta de título, não mancham a posse, como posse boa para usucapião: apenas podem interferir com o tempo exigível para a posse prescricional.”[6] De acordo com o disposto no art. 1287º do CC, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião. Segundo o disposto no art. 1251º do CCivil, posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real. A posição maioritária da nossa Doutrina e Jurisprudência é de que, o referido preceito legal, assim como o art. 1253º, al. a) do CC, consagra a concepção subjectiva da posse, segundo a qual, para a existência de uma situação possessória juridicamente relevante são necessários dois elementos essenciais: o corpus – elemento objectivo, correspondente à situação de facto (actos materiais) ilustrativa do exercício do direito por parte do possuidor; e o animus – elemento subjectivo, correspondente à intenção do detentor de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa. Sem corpus não haverá posse porquanto falta a actuação de facto correspondente ao exercício do direito e sem animus não haverá posse porque falta a intenção de titularidade do direito.[7] A posse adquire-se, entre outros, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito ou por inversão do título da posse (art. 1263º, als. a) e d) do CC). Não obstante, “para que haja posse, é preciso alguma coisa mais do que o simples poder de facto; é preciso que haja por parte do detentor a intenção (animus) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela.”. [8] De acordo com o art. 1287º do CC, só o possuidor pode invocar a usucapião. A posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem ( art. 1252º nº 1 do CC), mas são havidos apenas como detentores ou possuidores precários os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito ou os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral todos os que possuem em nome de outrem, referidos nas al. a) a c) do art. 1253º do CC, não sendo em qualquer um desses casos verdadeiros possuidores. “A figura do detentor ou possuidor precário corresponde á situação daquele que, tendo embora o corpus da posse, a detenção da coisa, não exerce o poder de facto com o animus de exercer o direito real correspondente (com animus possidendi). Em todos os casos de posse em nome alheio há uma situação que tem por base um título do qual não resulta o direito real aparente, mas apenas o direito (ou obrigação) de reter a coisa ou de a utilizar. São os casos do locatário, comodatário(...)”[9] Nas situações de detenção previstas na al. c) do art. 1253º do CC existe a atribuição, a certa pessoa, da faculdade jurídica de usar ou fruir determinada coisa. Mas a posse em nome alheio não pode levar à aquisição por usucapião[10], tal como nos ensina Oliveira Ascenção, o mesmo acontecendo se o poder de facto foi exercido sem existir intenção de quem o exerce de agir como proprietário, uma vez que nessas circunstâncias, assumem apenas a qualidade de meros detentores ou possuidores precários. Neste sentido, a jurisprudência vem referindo de forma sustentada que “a aquisição do direito de propriedade por usucapião exige que se mantenha durante um certo tempo uma posse correspondente ao direito de propriedade, boa para usucapião (art. 1287.º do CC). Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir o direito para si, por usucapião (art. 1290.º do CC).” (Ac STJ de 21/9/2017, Proc nº 526/14.9TBCNT.C1.S1;Ac STJ de 7/3/2017, Proc. nº 3585/14.0TBMAI.P1.S1, www.dgsi.pt). Deste modo, a alegação por parte do Apelante de que durante algum tempo habitou aquela fração por si só sempre seria inconsequente, por não revelar posse, mas mera detenção. É certo que o nº 2 do art.º 1252.º do CC estabelece uma presunção no sentido de que se presume a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do nº 2 do art.º 1257.º do CC. No seguimento do AUJ de 14.05.96, publicado no DR II série, de 24.06.96, “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”. Não obstante, a posse precária não é considerada verdadeira posse, senão a partir da inversão do título. Assim nos diz o art. 1290º do CC que, os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título. A inversão do título da posse supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio. Para que se faça a inversão do título de posse, o detentor haverá de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possui a sua intenção de actuar como titular do direito.[11] Isto é, o detentor terá de mostrar inequivocamente ao titular do direito que, a partir daquele momento, é sua intenção possuir a coisa no exercício dum direito próprio. A inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse (art. 1265º do CC). A oposição, como ensina Henrique Mesquita, “tem de traduzir-se em actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos (reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem.” (no mesmo sentido, L. Menezes Leitão, Direitos Reais, 2009, pág. 142-143).[12] E, como resulta evidente dos autos, não há um único facto que seja sobre esta matéria, não há sequer a invocação de qualquer inversão do título da posse e, mesmo a admitir-se que o Apelante beneficia de uma presunção de posse, ao exercer poder de facto sobre a referida fração, esse poder de facto só se revelou quando deu em comodato tal fração intitulando-se dela proprietário, porquanto o facto de a ter habitado algum tempo antes não revela posse mas mera detenção ou posse precária. Porém, mesmo essa alegação de ter dado a fração em comodato, por si só também não se nos afigura bastante para se considerar invertido o título da posse, desconhecendo-se se o Apelante mostrou inequivocamente à sociedade B..., Lda que, a partir daquele momento, era sua intenção possuir a coisa no exercício dum direito próprio, alegação e prova que lhe incumbia e que não logrou fazer. De todo o modo, o tempo necessário à aquisição por usucapião só começaria a correr desde a inversão do título e, neste caso, a admitir-se posse boa para usucapião por parte do Apelante só se poderia presumir partir de 2016. O lapso de tempo necessário à usucapião é variável conforme a natureza dos bens sobre que a posse incida (bens móveis ou imóveis) e conforme os caracteres que esta revista (ser de boa ou má fé, titulada ou não titulada e estar ou não inscrita no registo). Para bens de natureza imóvel, o prazo será de 10 anos quando haja título registado e a posse seja de boa fé (art. 1294º al. a) CC); de 15 anos quando haja título registado e a posse seja de má fé ( art. 1294º al. b) CC); de 5 anos quando haja registo da mera posse e esta seja de boa fé ( art. 1295º nº 1 al. a) CC); de 10 anos quando haja registo da mera posse e esta seja de má fé ( art. 1295º nº 1 al. b) CC); de 15 anos quando não haja registo de título nem de posse e esta seja de boa fé (art. 1296º CC); de 20 anos quando não haja registo de título nem de posse e esta seja de má fé ( art. 1296º CC). Segundo Fernando Pereira Rodrigues, “ O Código não se refere à hipótese de faltar de todo o título. Para esta hipótese, salienta A. Menezes Cordeiro que lhe parecem ser de aplicar estes dois últimos prazos, consoante haja ou não boa fé, não só por ser uma solução que se enquadra na letra da lei- quando não há título, não há, evidentemente, registo de título-, mas também por analogia com o artigo 1298º alínea b), que equipara, em matéria de móveis sujeitos a registo, a falta de registo do título à falta do próprio título.”[13] O conceito de posse titulada consta do art. 1259º nº 1 do CCivil, segundo o qual “diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico.” Se o negócio subjacente à posse for nulo por vício de forma a posse é não titulada, como seria o caso dos autos em que o que está invocado é uma venda verbal de um imóvel (art. 875º e 939º do CC). Neste sentido, Ac STJ de 7/4/2011: “Se o acto translativo da coisa imóvel é nulo por vício de forma, a posse que daí deriva não é titulada.”[14] Independentemente da qualificação da posse do Apelante, mesmo a admitir-se que estivesse verificada a situação do art. 1296º CC, nunca se mostrariam decorridos os 15 anos de posse necessários para a aquisição por usucapião. É certo que, o Apelante invocou a seu favor a acessão, sustentando que pode juntar à sua posse a da anterior possuidora. A esse propósito, embora seja questão controvertida, a jurisprudência maioritária é no sentido de que “ para que se verifique acessão da posse nos termos do art. 1256º do CCivil e o novo possuidor junte à sua posse a posse do anterior possuidor é imprescindível que haja uma relação jurídica entre ambos e que o negócio entre ambos se trate de um negócio válido formal e substancialmente.”( Ac RP de 20/11/2012, Proc. nº 2229/11.7TBVNG.P1; no mesmo sentido Ac RP de 16/1/2012, Proc. nº 158/03.7TBBTC.P1; Ac RP de 6/5/2010, Proc. nº 829/06.6TBCHV.P1 e Ac RP de 5/5/2005, Proc. nº 0531757, www.dgsi.pt). Pode ler-se do Ac RP de 26/1/2012, que “Para fazer funcionar a acessão é necessário que exista um título abstractamente idóneo para, pelo menos formalmente, transferir o direito.” [15] No mesmo sentido, Ac STJ de 7/4/2011 ( já acima citado), segundo o qual “a acessão na posse pressupõe, além de uma posse homogénea e sucessiva, um acto translativo que seja formalmente válido.” Pode, ainda, ler-se no sumário do AC RP de 7/10/2008 que: “I - A acessão da posse, a que se reporta o art. 1256°, exige que a transmissão do anterior para o actual possuidor seja titulada. II - O “título” exigido é o que a lei exige para que o negócio de transmissão seja formal e substancialmente válido, não relevando, para o efeito, como titulo legítimo de aquisição, um acto nulo. III - No caso de posse que tem na origem num acto de transmissão nulo o possuidor actual só pode invocar a sua própria posse, não podendo fazer acrescer à sua a dos antepossuidores. IV - De acordo com o disposto no artº 1287º do Código Civil, só o possuidor pode invocar a usucapião.”[16] Em abono desta posição, pode ler-se, também na Doutrina, Pires de Lima e Antunes Varela ( CC Anotado, Vol. III, p.14), Manuel Rodrigues ( A Posse, p. 252, 292) Dias Marques ( Prescrição Aquisitiva, 96/97), Santos Justo ( Direitos Reais, p. 198), Durval Ferreira, Posse e Usucapião, p. 245 e 459). Ora, como o Apelante bem sabe não logrou demonstrar que tenha adquirido a posse por título válido, logo nunca poderia aceder na eventual posse que a transmitente B..., Lda tenha tido sobre o imóvel em apreço, não podendo beneficiar do instituto da acessão na posse. Deste modo, não se pode reconhecer que o Apelante seja proprietário da fração apreendida para a massa insolvente, por não ter demonstrado ter posse pelo tempo necessário para a aquisição por usucapião, nem poder aceder à posse da antepossuidora para o efeito. Por último, invocou o Apelante a seu favor o art. 1268º do CC, alegando que como possuidor goza da presunção da titularidade do direito, no entanto, o referido preceito legal diz claramente que assim será se não existir a favor de outrem presunção fundada em registo anterior ao início da posse. Beneficiando a insolvente da presunção da titularidade do direito de propriedade sobre tal fração, por força do registo, tendo sido por tal motivo esse bem apreendido para a massa insolvente (apenso de apreensão de bens) e, não tendo o Apelante logrado provar que a posse a que se arroga é anterior, prevalecerá a presunção registral, tal como prevê o referido preceito legal. Concluindo, na ausência de prova de que o Apelante seja titular de um direito real de gozo sobre a fração apreendida para a massa insolvente- mormente do direito de propriedade por si invocado-, a acção terá de improceder. Apesar de não se tratar de um caso de ilegitimidade, mas de ausência de prova do direito de propriedade de que se arrogava titular o Apelante, mantém-se a decisão de improcedência da acção, embora por fundamento diverso do vertido na sentença recorrida. ** V. DECISÃO:Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto: - julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Apelante/Autor, mantendo-se a sentença recorrida de improcedência da acção; - Rejeitar o recurso de apelação interposto pela Presidente da Comissão de Credores por inadmissibilidade legal. Custas a cargo dos Apelantes, que ficaram vencidos-artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC. Notifique. Porto, 13/6/2023 Maria da Luz Teles Meneses de Seabra Artur Dionísio Oliveira João Proença (O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico) _______________ [1] F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 147 e A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, pág. 92-93. [2] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, pág. 55/56 [3] Cadernos Temáticos De Jurisprudência Cível Da Relação, Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consultável no site do Tribunal da Relação do Porto, Jurisprudência [4] Vide, neste sentido, por todos, A. ABRANTES GERALDES, “ Recursos em Processo Civil – Novo Regime ”, 2ª edição, 2008, pág. 297-298, AC STJ de 29.09.2020, relator Sr. Juiz Conselheiro JORGE DIAS, AC STJ de 17.05.2017, relator Sr.ª Juíza Conselheira FERNANDA ISABEL PEREIRA, AC RC de 27.05.2014, relator Sr. Juiz Desembargador MOREIRA do CARMO e AC RP de 19.05.2014, relator Sr. Juiz Desembargador CARLOS GIL, todos disponíveis in dgsi.pt. [5] Usucapião, Constituição Originária de Direitos Através da Posse, fls. 13, 19 e 21 [6] Posse e Usucapião, fl. 447 [7] Entre outros, A. Varela e Pires de Lima, Ob. cit., pág. 5; CC Anotado, Vol. II, Ana Prata (Coord), pág. 18 a 25; AC STJ de 6.02.2007, Proc.n.º 06A4036; Ac STJ de 21.06.2016, Proc. Nº 7487/11.4TBVNG.P2.S1, Ac TRP de 13.09.2016, Proc nº 2134/10.4TBVNG.P1, www.dgsi.pt [8] Pires de Lima e A. Varela, Ob. Cit., p. 5 [9] A Varela e P.Lima no CC anotado, vol. III, p.10 [10] Direito Civil, Reais, 5ª edição, p. 90 [11] Pires de Lima e A. Varela, Ob. Cit., Vol. III, 2ª edição, p. 30 [12] Direitos Reais, 1967, pág. 99 [13] Ob. Cit., p. 40 [14] Proc. nº 956/07.2TBVCT.G1.S1, www.dgsi.pt [15] Proc. nº 5978/08.3TBMTS.P1, www.dgsi.pt [16] Proc. nº 0823855, www.dgsi.pt |