Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1030/21.4T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: TESTAMENTO
QUOTA DISPONÍVEL
LEGADO
Nº do Documento: RP202503061030/21.4T8PVZ.P1
Data do Acordão: 03/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - É válida a deixa testamentária em que o testador declara que deixa a sua quota disponível a sua filha…, a qual começará a ser preenchida pelo prédio urbano… .
II - O preenchimento da quota por aquele imóvel deve ser ponderado como sendo um legado.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1030/21.4T8PVZ.P1.

João Venade.

Paulo Dias da Silva.

Ana Vieira.


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1). Relatório.

AA requereu, em no Cartório Notarial ...

Inventário por morte de

BB, seu avô, falecido em ../../2008, sendo que o seu pai, CC, faleceu em ../../1991.

A requerente foi nomeada cabeça-de-casal e indicou como herdeiros:

. uma filha – DD;

. quatro netos, filhos do pré-falecido filho CC:

a). EE;

b). A declarante, AA;

c). FF;

d). GG.

O inventariado deixou testamento, o qual foi junto em 13/09/2019.


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Por despacho de 11/05/2021, os autos foram remetidos para tribunal judicial.

Por decisão de 29/01/2022, foi decidido remover a requerente do cargo de cabeça de casal, declarando anulados todos os atos praticados pela mesma, nomeando-se cabeça-de-casal a filha do inventariado.


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Os autos prosseguiram os seus termos, com atos que não revestem interesse para o presente recurso (por exemplo, decisão sobre reclamação de bens), sendo que em 21/03/2024 proferiu-se despacho a determinar como seria efetuada a partilha, no seguintes termos:

«Por testamento outorgado em 07/05/1991, o inventariado declarou deixar “a sua quota disponível a sua filha DD, a qual começará a ser preenchida pelo prédio urbano que possui no lugar da ..., daquela freguesia ..., inscrito na respectiva matriz sob os artigos ...42 e ...57.”

Não há passivo judicialmente reconhecido.

Em consequência do que fica dito, deve proceder-se à partilha da seguinte forma:

Somam-se os valores dos bens descritos com os valores resultantes das avaliações e eventuais licitações e divide-se a totalidade obtida em três partes, constituindo um terço a quota disponível e os restantes dois terços a quota indisponível do inventariado (art.º 2159.º, n.º 1 do Cód. Civil).

Por força do testamento, a terça parte correspondente à quota disponível do inventariado adjudica-se a DD, que começará a ser preenchida com o prédio identificado no testamento.

Os outros dois terços, correspondentes à quota indisponível, subdividir-se-ão em duas partes iguais, por tantos serem os filhos do inventariado (art.º 2157.º, 2139.º, n.º 2 do Cód. Civil): uma dessas partes será adjudicada a DD; a outra parte, subdivide-se em quatro partes iguais, que se adjudicam a EE, AA, FF e GG (art.º 2139.º, 2042.º, 2044.º, n.º 1, 2136.º do Cód. Civil).

Em suma, são as seguintes as quotas ideais das interessadas na herança:

- DD: 2/3;

- EE: 1/12;

- AA: 1/12;

- FF: 1/12;

- GG: 1/12.

Quanto ao preenchimento dos quinhões, deverá observar-se aquilo que venha a resultar da conferência de interessados.».

Designou-se dia para conferência de interessados, a qual se efetivou em 31/05/2024, com o seguinte resultado:

«Cerca das 12:15 horas, tentou a conciliação das partes, mas tal não se mostrou possível. -.

Neste momento, todos os interessados acordaram que a adjudicação da verba n.º 1, fica adjudicada a todos os interessados na proporção dos seus quinhões.

De seguida, a cabeça de casal, informou o Tribunal que, a partir daquele momento, conferia ao seu cônjuge, HH, os poderes de representação na presente conferência de interessados, nomeadamente, quanto à licitação do prédio misto.

De seguida, tendo os interessados declarado que pretendiam licitar sobre a verba n.º 2, foi acordado que as licitações até ao valor de €120.000,00 (cento e vinte mil euros), seriam lanços de €5.000,00 (cinco mil euros) e depois desse valor seriam lanços de €1.000,00 (mil euros).

Assim, de seguida foi declarada a abertura das licitações, que se traduziu no seguinte:

Verba n.º 2 adjudicada à requerente AA, pelo valor de 142.000,00 (cento e quarenta e dois mil euros).».


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Em 20/06/2024, foi proferido despacho decidir que: Volvido o prazo para a apresentação das propostas, inexistem divergências a decidir, razão pela qual se determina a elaboração do mapa da partilha em conformidade com a proposta apresentada em 24/05/2024 (art.º 1120.º, n.º 1 e 2 do CPC).

Em 25/07/2024, a requerente requereu incidente de habilitação dos cessionários II, e mulher, JJ por alegadamente ter cedido o seu quinhão hereditário.

Foi determinado que tal pedido corresse por apenso (apenso A), não tendo sido proferida decisão.


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Em 25/09/2024 foi elaborado o mapa de partilha.

Em 14/10/2024, a requerente veio reclamar do mapa de partilha alegando a nulidade do conteúdo do testamento elaborado por seu avô pois:

. a Beneficiária e testamenteira (filha do inventariado) em momento algum requereu a adjudicação do imóvel que seria aquele que iria começar por preencher a sua quota disponível;

. também não alegou que tinha vontade de cumprir o encargo determinado pelo testador para beneficiar da deixa testamentária;

. tal atitude tem como consequência a perda da deixa testamentária relativa à quota disponível, já que corresponde à expressa declaração do não cumprimento da vontade do testador, sendo que, nos termos dos artigos 2244.º, 2249.º e 2250.º, do C. C. a beneficiária da deixa testamentária não podia deixar de cumprir a condição ou encargo

. assim, ocorre a resolução do beneficio concedido pelo testador, relativo à deixa da quota disponível;

. reclama igualmente do mapa, pois a disposição testamentária relativa à quota disponível não pode assim ser considerada como integrante do direito à herança da indicada filha, pelo que a herança deve ser dividida em duas parte iguais, sendo uma ½ da filha DD e a outra ½ das quatro netas que representam o pré-falecido filho CC, cabendo por isso a cada um quinhão correspondente a 1/8 da Herança do seu avô.


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Após oposição das restantes partes, em 22/11/2024 foi proferida decisão que julgou improcedente o requerido.

Inconformada, veio a requerente AA interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

«A) O recurso visa a anulação da sentença homologatória da partilha que julgou improcedente o incidente de nulidade do testamento deduzido e em consequência não ordenou a rectificação do mapa de partilha;

B) Pelo que o Tribunal a quo fez errada aplicação e interpretação das normas dos arts.º 224.º, 271.º, 2244.º, 2249.º e 2250.º do Cód. Civil, razão porque a fundamentação vertida integra absoluta nulidade, na medida em que não conheceu do incumprimento da condição resolutiva resultante do testamento quanto à deixa da quota disponível à Interessada/Recorrida DD, que incumpriu o encargo imposto pelo Testador Inventariado BB, ao ter optado pelo recebimento de tornas para preenchimento da mesma e do seu direito sucessório;

C) Porquanto o Inventariado BB declarou ser sua vontade que o prédio em causa (Verba n.º 2) ficasse para a sua filha DD, para isso lhe deixou a quota disponível, com a condição/obrigação de esta ser preenchida por tal prédio no seu todo, como resulta expresso do teor do testamento, já que a mesma passou a ser titular de 2/3 da sua herança;

D) A deixa testamentária foi feita à Interessada Beneficiária DD, com vista a procurar realizar o seu desejo de não ver vendido ou dividido, facto nuclear da sua vontade, exarada no testamento;

E) A expressa manifestação dessa vontade resulta, à contrário, do facto de o Inventariado Testador não possuir nem à data da feitura do testamento, nem à sua morte outro prédio, que não apenas aquele, que identificou no testamento, bem sabendo que nada mais havia a partilhar entre os seus herdeiros legitimários;

F) Independentemente do valor do prédio, o valor proporcional da quota disponível, para efeitos do cumprimento da deixa, bem como da legítima, sempre ascenderiam a mais de ½ do valor do prédio, pelo que sempre a Beneficiária ficaria com o prédio em causa;

G) Resulta dos presentes autos que a Interessada filha DD, Testamenteira e Cabeça de Casal nada requereu e nada promoveu ou peticionou para dar cumprimento à vontade do de cujus, e constante do testamento, nomeadamente à condição do seu cumprimento no que respeita ao preenchimento das suas quotas hereditárias;

H) Como resulta provado sob o facto n.º 5 dos “Factos Provados”, e do teor da Acta de Conferência de Interessados, com a Ref.ª 460462493, a Interessada Testamenteira não pediu adjudicação, não pediu avaliação e não se opôs a que a Verba n.º 2 fosse licitada e adjudicada pelo valor de 142.000,00 € à Interessada/Recorrente em Conferência de Interessados ocorrida em 23/05/2024;

I) A Interessada DD, enquanto Beneficiária da deixa testamentária, abdicou expressamente da mesma, que lhe impunha que a deixa fosse preenchida por aquele imóvel da herança, correspondente à Verba n.º 2 da Relação de Bens;

J) Pois a explicação em causa “deixa a sua quota disponível …, a qual começará a ser preenchida pelo prédio urbano que possui … artigos ...42 e ...57”, constitui um encargo, enquanto condição resolutiva, imposta pelo Inventariado, à Beneficiária da deixa testamentária DD, na medida em que essa deixa tinha como finalidade que à mesma pertencesse, mais de metade do valor do prédio, para poder ficar com o mesmo;

K) O Testador e Autor da Herança, ao determinar que o preenchimento da quota disponível fosse feito com o imóvel Verba n.º 2, quis impor à Beneficiária o encargo de ficar com o único imóvel que possuía, independentemente de o mesmo exceder a quota disponível e de a deixa ter de ser reduzida, e de a Beneficiária DD ter de repôr tornas aos restantes Interessados;

L) Porém, a Beneficiária em momento algum requereu a adjudicação do imóvel em causa para preenchimento das suas quotas disponível e legítima, nem sequer alegou que tinha vontade de cumprir o encargo determinado pelo Testador, nem na Conferência de Interessados requereu a adjudicação, avaliação, nem se opôs a que o prédio fosse submetido a licitações e, nessa sequência adjudicado pelo valor de 142.000,00 € à Recorrente AA;

M) A Beneficiária DD actuou consciente e de forma deliberada, de modo a não cumprir a condição ou encargo que lhe foi imposto pelo Testador, com total desprezo pela vontade do mesmo, o que resulta expressamente do pedido de pagamento das tornas para preenchimento do seu quinhão;

N) Este comportamento só pode ter como consequência a perda da deixa testamentária relativa à quota disponível, e a resolução do benefício concedido pelo Testador, já que corresponde à expressa declaração do não cumprimento da vontade do Testador;

O) Ao abrigo do disposto nos artigos 2244.º, 2249.º e 2250.º do Cód. Civil a Beneficiária da deixa testamentária não podia deixar de cumprir a condição ou encargo, dado que o mesmo, não é impossível, nem ilegal ou ofensivo dos bons costumes, nos termos dos art.º 224.º e 271.º Cód. Civil.

P) Pelos motivos que acima se invocam, o Tribunal a quo violou as disposições legais imperativas e de acordo com o disposto nos artigos 224.º, 271.º, 2244.º, 2249.º e 2250.º, todos do Código Civil, seja na sua aplicação, seja na sua interpretação, razão pela qual é nula a sentença recorrida, como é igualmente NULA a deixa da quota disponível a favor da filha DD, tendo, por vias disso, o incidente de nulidade deduzido ser julgado totalmente procedente.».

Pede a revogação da decisão, sendo substituída por outra que julgue procedente o incidente de nulidade do testamento e ordene a retificação do mapa de partilha, com as inerentes consequências legais.


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Contra-alegou a interessada GG, pugnando pela manutenção do decidido.

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As questões a decidir são:

. nulidade de decisão;

. validade do testamento;

. alcance da deixa testamentária de indicar o bem que deve iniciar o preenchimento da quota disponível da filha do de cuius;

. validade da mesma;

. tramitação processual e consequência na (in)alteração do mapa de partilha.


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2). Fundamentação.

2.1). De facto.

Na decisão recorrida foram considerados assentes os seguintes factos:

«1. Por testamento outorgado em 07/05/1991, o inventariado, no estado de divorciado, declarou:

Que deixa a sua quota disponível a sua filha Dra. DD, a qual começará a ser preenchida pelo prédio urbano que possui no lugar da ..., daquela freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob os artigos ...42 e ...57;

Que nomeia como testamenteira sua identificada filha, Dra. DD.”

2. Sob o n.º 2 e a epígrafe “bens imóveis”, foi relacionado o seguinte bem:

“Prédio misto situado no Lugar .... (…) descrição predial sob o n.º ...19/20120919 da freguesia ..., correspondendo aos seguintes a[rtigos] matriciais atuais: ...90 urbano (…) (antigo artigo matricial ...84) ...55 C e H urbanos (…) (antigo artigo matricial ...95) ...95 rústico (…) (antigo artigo matricial ...31)

3. O activo da herança a partilhar é composto por duas verbas, a identificada em 2. e um crédito no valor de €2.000, relacionado sob a verba n.º 1.

4. Por todos os interessados (presentes ou representados) foi declarado na conferência de interessados que pretendiam ajudicar a verba n.º 1, na proporção dos respectivos quinhões, e licitar sobre a verba n.º 2.

5. A verba n.º 2 foi licitada e adjudicada à requerente por €142.000.».


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2.2). Do mérito do recurso.

A). Da nulidade da decisão.

Ao contrário do sumariamente alegado, inexiste qualquer nulidade da decisão, a qual teria de preencher alguma das situações previstas no artigo 615.º, ex vi 613.º, n.º 3, ambos do C. P. C.. Ora, o que a recorrente alega é a discordância com o decidido e não que o tribunal tenha incorrido nalguma das situações previstas naquele citado artigo 615.º.

Improcede esta argumentação.


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B). Da validade da deixa testamentária.

O inventariado BB redigiu testamento onde dispôs que:

. deixa a sua quota disponível a sua filha Dra. DD, a qual começará a ser preenchida pelo prédio urbano que possui no lugar da ..., daquela freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob os artigos ...42 e ...57;

Elaborou assim o inventariado uma deixa testamentária determinando que a quota disponível da sua herança fosse atribuída na totalidade a favor de sua filha, ora interessada DD.

Como refere Oliveira Ascensão, in O preenchimento pelo autor da sucessão da quota do herdeiro, página 15, Conferencia proferida nas Jornadas de Direito Civil e Comercial: o Código Civil e o Código Comercial de Macau, em Macau, Setembro de 1999: «O autor da sucessão pode fazer uso da quota disponível como quiser, evitando nesse domínio uma situação de indivisão. Pode, na medida desta, fazer as disposições que entender; e pode fazê-lo, sem prejuízo da qualidade de herdeiro das pessoas beneficiárias. Pode nomeadamente designar naquela quota herdeiros testamentários diferentes dos herdeiros legitimários. (…). O autor da sucessão conserva, enquanto não prejudicar quantitativamente a legítima, total faculdade de disposição.».

Não há dúvida que assim, sendo a própria definição desta quota a sua disponibilidade (ao contrário da quota legítima/indisponível – artigos 2156.º e seguintes, do C. C.) que o inventariado tem aquela liberdade sobre a decisão a proferir sobre a designação dessa quota parte da herança.

A deixa testamentária em causa, não é mais do que a disposição do de cuius da quota disponível a favor de uma herdeira; o que sucede é que o mesmo testador decidiu exarar como se deveria preencher essa quota, iniciando-se por aquele imóvel.

Não está em causa qualquer encargo que tenha sido imposto ao herdeiro pois não se sujeito o mesmo a qualquer atuação para que possa ser válida aquela deixa testamentária, conforme artigos 2229.º e seguintes (condição) e 2244.º e seguintes (encargos), do C. C. e, como se refere na decisão recorrida, a sujeição a condição ou encargos não implica a nulidade do testamento (prevista por exemplo no artigo 2180.º, do C. C.) ou da disposição; implica antes ou a não constituição de herdeiro ou legatário se a condição não se preencher ou a resolução da disposição testamentária (esta nos termos do artigo 2248.º, do C. C.).

O que sucedeu é que o testador determinou como se deveria preencher a quota disponível, referindo um bem em concreto – um imóvel -.

Ora, esta situação não merece um tratamento inequívoco na doutrina seja no sentido de a classificar como instituindo um herdeiro ex re certa (como o fez o tribunal recorrido) seja classificando a situação como um legado particional[1], querendo o testador realizar a partilha em relação a tal bem.

O que sugere alguma dificuldade na análise desta figura é que alguém é instituído como herdeiro de uma quota e, ao mesmo tempo, é destinatário da atribuição de um bem em concreto, o que encaixa na classificação de legatário, assim assumindo as duas qualidades prevista no artigo 2023.º, n.º 1, do C. C..

Uma vez que, no caso, à filha do inventariado é determinado que a sua quota hereditária será preenchida por um bem determinado, pensamos que a solução que melhor defende os interesses da herança e do herdeiro, passará por considerar que o que está em causa é um legado, ainda que com características um pouco diferentes da atribuição de um legado. Neste, pode dar-se vantagem ao legatário nessa atribuição (se, por exemplo, o valor do legado exceder a quota e se detetar na interpretação do testamento que foi vontade do testador beneficiar o legatário); ao contrário, naquele legado particional, apenas se integra o bem numa quota legalmente determinada, ou seja, é um legado que visa determinar a partilha de bens.

Mas, seja considerando que se trata de um verdadeiro legado, seja considerando uma deixa que unicamente visa determinar a partilha de bens, sendo admissível face à legislação portuguesa, apesar de não expressamente prevista, tem então de se retirar algum tipo de consequências com a sua estipulação.

Daí que, querendo o herdeiro e legatário aceitar essa deixa/modo de determinação de partilha do bem, deve então seguir-se um determinado rito processual quanto a tal bem.

Na verdade, se é atribuído um bem a integrar na quota disponível e o herdeiro aceita essa indicação, passa também a ser legatário do mesmo bem.

No caso dos autos, a herdeira, filha do inventariado aceitou essa indicação (para nós, um efetivo legado[2]) já que não o repudiou, o qual, sempre teria de ser efetuado por modo expresso, com a mesma forma exigida para a celebração da alienação de um imóvel – artigos 2063.º, 2126.º, n.º 1, ex vi artigo 2249.º, todos do C. C.). Não pode haver repúdio tácito do legado (o que, salvo erro da nossa parte, é o que a recorrente entende que teria ocorrido quando menciona que filha do inventaria aceitou que o bem fosse licitado; se fosse possível haver o repúdio tácito, porventura estaria correto esse entendimento) pelo que, nada sendo dito em contrário, por aquela forma, o legado foi aceite pela dita interessada, filha do testador.

E, continuando a entender-se aquela deixa como um verdadeiro legado, então a consequência é que o bem não entrava na massa de bens a partilhar pois já estava destinado, no caso, a um herdeiro e legatário (aqui em relação a este bem), não podendo o bem ser licitado (artigos 1113.º, n.º 4 e 1120.º, n.º 4, a), do C. P. C.).[3]

Caso o valor do bem excedesse o valor quota, uma possibilidade seria aferir da inoficiosidade do legado, nos termos do artigo 1118.º, n.º 1, do C. P. C. e 2168.º e 2171.º, do C. C., o que não foi efetuado.

Outra possibilidade seria a de considerar, caso o valor do legado excedesse o valor da quota, o legatário como devedor de tornas, assumindo-se aqui o legado não como um legado na sua plenitude pois não representava uma vantagem para o legatário, mas antes um legado particional, que definia a partilha e, por isso, não sendo uma efetiva liberalidade, não haveria lugar a inoficiosidade mas a acerto de quinhões.

Sucede que, no presente recurso, a recorrente não questiona nem que o bem legado tenha integrado o elenco de bens a serem partilhados e licitados, como não questiona a validade da licitação nem pugna pela invalidade da adjudicação do bem legado a si, requerente, interessada e recorrente, AA.

O que a recorrente pretende é que o testamento seja declarado nulo, o que já vimos que não sucede (como bem mencionou o tribunal recorrido) ou que a filha do inventariado deixasse de ser a beneficiária da quota disponível, o que não tem sustento legal, como também já se referiu – seja por não estar em causa qualquer encargo ou condição seja por não ter havido repúdio do legado -).

Improcedente essa argumentação, face ao teor das respetivas alegações, a recorrente continua a pretender ser a adjudicatária do imóvel legado a outra interessada, assentando desse modo na validade das licitações.

Daí que, mesmo que, na nossa visão, o bem legado (verba n.º 2) não pudesse ser licitado e que, não tendo havido repúdio do mesmo legado, tal verba teria de ser adjudicada à filha do de cuius, não podemos apreciar essas questões não só porque não são objeto do recurso como, a serem apreciadas e decididas no sentido de anular a licitação e a adjudicação à recorrente, esta sofreria um prejuízo com a procedência do recurso[4]: sendo o bem adjudicado à legatária/requerente do inventário, filha do inventariado, a recorrente perderia a propriedade desse bem, algo que pensamos que não pretende já que licitou no sentido dessa mesma adjudicação e aceita quer a licitação quer esta mesma adjudicação.

A falta de conformidade entre a vontade do testador e o que efetivamente acaba por suceder em partilha – adjudicação do bem legado a outra pessoa que não a legatária – não pode ser alterada face ao objeto do recurso -.

O mapa de partilha, a ser efetuado de acordo com o que consta do testamento - com a verba n.º 2 a preencher a quota disponível da filha do inventariado – e como o valor da mesma verba (e da outra parte do direito adjudicado em comum, como verba n.º 1) excederia o seu quinhão -, refletiria a mesma interessada como sendo devedora de tornas aos outros herdeiros.

Sucede que, como o bem não lhe foi adjudicado, então preenche-se a quota da filha do inventariado, com tornas a prestar pelas interessadas que receberam a mais em relação ao seu quinhão, onde se inclui a aqui recorrente, o que está refletido no competente mapa de partilha.

Deste modo, não havendo qualquer vício no testamento nem se podendo concluir, neste recurso, pelo afastamento da adjudicação da quota disponível à filha do inventariado, o mapa de partilha encontra-se corretamente efetuado, concluindo-se assim pela improcedência do recurso.


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3). Decisão.

Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas do recurso pela recorrente.

Registe e notifique.

Porto, 2025/03/06.

João Venade.

Paulo Dias da Silva.

Ana Vieira.


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[1] Socorremo-nos do que entendemos ser um estudo profundo e de elevada qualidade do Professor Daniel Morais, «Do concurso de regimes aplicáveis às liberalidades com relevância sucessória — a herança ex re certa: o legado por conta da quota», páginas 103 a 133, Lex Familiae Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 17, 34, 2020, acessível em https://www.centrodedireitodafamilia.org/sites/cdb-dru7-ph5.dd/files/Rev_34%20-%20Livro.pdf
[2] Naquela mesma obra faz-se referência a um Ac. da R. P. de 07/03/1945 numa situação em tudo semelhante à dos autos em que se concluiu que se estava perante um verdadeiro legado.
[3] Veja-se Miguel Teixeira de Sousa e outros, O novo regime de Processo de inventário…, 2020, página 113.
[4] O que o artigo 635.º, n.º 5, do C. P. C. impede: Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo.