Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5189/22.5T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: SIMULAÇÃO
HERDEIROS LEGITIMÁRIOS
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
Nº do Documento: RP202309255189/22.5T8VNG.P1
Data do Acordão: 09/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A nulidade do negócio simulado pode também ser invocada pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar.
II - Não tem legitimidade substantiva, não é titular do direito a invocar a nulidade por simulação de doação o herdeiro legitimário do doador que não alega que esse negócio foi feito com a intenção de o prejudicar e, ao invés, afirma que tal negócio foi feito com a intenção de prejudicar os credores do doador, esvaziando-lhes a garantia patrimonial dos seus créditos.
III - A doutrina maioritária e a jurisprudência têm flexibilizado a previsão do nº 1, do artigo 394º, do Código Civil, admitindo a produção de prova testemunhal nos casos aí previstos, pelo menos sempre que exista um começo de prova por escrito.
IV - Tem-se entendido que esta prova adminicular documental corroboradora da prova pessoal livremente apreciada deve ser proveniente da parte contra quem é oposta e deve tornar verosímil o facto alegado.
V - A outorga de transação pelo autor doador e pelo réu donatário em ação de impugnação pauliana instaurada por credor sem que na mesma seja invocada a nulidade do ato impugnado não constitui princípio de prova documental de simulação absoluta da doação impugnada nesses autos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 5189/22.5T8VNG.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 5189/22.5T8VNG.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório[1]
Em 27 de junho de 2022, no Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, Comarca do Porto, AA e BB instauraram a presente ação declarativa sob forma de processo comum contra CC pedindo que seja a doação identificada na petição inicial declarada nula, fazendo-se reverter a fração autónoma designada pela letra “A” – cave, pertencente ao prédio urbano afeto ao regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., freguesia ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...-..., inscrito na matriz sob o artigo ... à propriedade do autor AA.
Para fundamentar as suas pretensões, os autores alegaram, em síntese, que o autor AA doou mediante escritura pública celebrada em 22 de dezembro de 2015, no Cartório Notarial da Notária DD “por conta da sua quota disponível” ao réu, seu filho, a totalidade dos seus bens; o objetivo desta doação, era frustrar os seus credores na obtenção da satisfação dos seus créditos através da penhora e venda desse mesmo património; o autor BB nunca consentiu na doação.
Citado, com o benefício de apoio judiciário nas modalidades de nomeação e pagamento faseado da compensação de patrono e de pagamento faseado da taxa de justiça e demais encargos com o processo, o réu impugnou alguns dos factos alegados na petição inicial e alegou, em síntese, que o prédio em questão lhe foi doado pelo pai, autor nestes autos, o qual lhe quis efetivamente doar aquele bem imóvel, doação que o contestante aceitou; antevendo problemas, transtornos e despesas que lhe pudessem advir da transferência do património de seu pai para a sua esfera patrimonial, o réu só aceitou o pedido do pai porque este lhe assegurou que aquela fração ficaria para ele por conta da legítima; de resto, é o réu quem desde então se comporta como legítimo proprietário da fração, pagando todas as despesas inerentes à mesma, arrendando-a e recebendo as rendas; conclui pugnando pela total improcedência da ação.
Designou-se audiência prévia, frustrando-se a tentativa de conciliação das partes e sendo as mesmas advertidas da intenção do tribunal conhecer imediatamente do mérito da causa em virtude de estar em causa a arguição da nulidade de uma doação com fundamento em simulação pelos próprios simuladores, não tendo sido oferecido qualquer princípio de prova por escrito da invocada simulação negocial.
As partes não prescindiram de prazo para se pronunciarem sobre a questão suscitada pelo tribunal recorrido em sede de audiência prévia, tendo-lhes sido concedido o prazo de dez dias para tal efeito.
O réu pronunciou-se no sentido de dever conhecer-se antecipadamente do mérito da causa, julgando-se a ação totalmente improcedente e os autores nada disseram ou requereram.
Em 10 de fevereiro de 2023 foi proferida sentença[2] que julgou a ação totalmente improcedente absolvendo o réu do pedido.
Em 06 de março de 2023, inconformados com a sentença, AA e BB interpuseram recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
i. Os simuladores podem invocar a simulação, desde que disponham de documento que constitua um princípio de prova ou começo de prova, sendo-lhes então lícito complementar a prova já iniciada documentalmente (artº 394 nº 2 CC);
ii. O 1º A alegou que em 2015, fez uma doação ao R, seu filho de todos os seus bens, com acordo simulatório, pretendendo com aquela ficar sem bens disponíveis para penhora; tinha feito em 2012 uma confissão de dívida a um credor, já vencida à data da doação;
iii. Entendeu-se na douta sentença que inexistindo qualquer documento que constituísse um princípio de prova, não seria viável a acção intentada pelo 1º A.
iv. O 1º A. juntou um documento na petição (nº 3, não examinado na douta sentença), segundo o qual em acção de impugnação pauliana, ambos os simuladores aceitaram perante o credor a “validade da impugnação”, ou seja, admitiam a invalidade do acto de doação, e por isso punham à sua disposição parte dos bens doados que entre eles acertaram;
v. Um dos sentidos que daqui é lícito extrair é o de que o acto de doação foi viciado, com o fim de enganar terceiros; ainda o facto de o A. ter escolhido um filho para transmitir todos os seus bens é ainda um indício de que nele depositava confiança para uma futura reversão, o que reforça ainda mais a simulação;
vi. Portanto, deve entender-se que tal documento, assinado pelos simuladores e com todos os requisitos probatórios, dispõe da faculdade de constituir um princípio de prova, a completar com as restantes;
vii. O 2º A. é o outro filho do 1º A., e invocou a falta do seu consentimento, e o seu interesse em que o património (ainda não vendido) volte ao património do pai;
viii. Ainda que não alegue o seu prejuízo, este implicitamente decorre do que alegou e do acto de doação de todos os bens ao outro irmão; além de que o seu pai havia de representar a doação como consequência directa do seu acto;
ix. A simulação, ao contrário da lei substantiva anterior, não exige que haja prejuízo mas apenas o intuito de enganar (artº 240 nº 1 CC);
x. Portanto, estando alegado que o irmão donatário malbaratou o património, na sequência da doação (simulada), deve ser admitido pelo seu interesse directo a intervir na acção;
xi. Decidindo como decidiu, fez o tribunal uma errada interpretação do artº 394, 240 CC e 607 CPC, com o consequente erro de aplicação.
CC respondeu ao recurso pugnando pela sua total improcedência.
Atenta a natureza estritamente jurídica do objeto do recurso, com o acordo dos restantes membros do coletivo dispensam-se os vistos, passando-se a apreciar e decidir seguidamente.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da legitimidade substantiva do autor BB para arguir a simulação da doação celebrada em 22 de dezembro de 2015;
2.2 Da existência de princípio de prova documental da simulação[3].
3.1 Fundamentos de facto exarados na decisão recorrida
3.1.1 Factos provados
3.1.1.1
Por escritura pública denominada “Doação” outorgada no dia 22 de dezembro de 2015, o autor AA, declarou doar ao réu CC, entre outros, a fração autónoma designada pela letra “A” – cave, pertencente ao prédio urbano afeto ao regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., freguesia ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...-..., inscrito na matriz sob o artigo ....
3.1.1.2
O réu está registado como filho do autor AA.
3.1.1.3
O segundo autor está registado como filho do autor AA.
3.1.2 Factos não provados
3.1.2.1
O acordo referido em 1. [3.1.1.1] foi celebrado com o objetivo de frustrar os credores do autor AA da obtenção da satisfação dos seus créditos através da penhora e venda desse mesmo património.
3.1.2.2
Com a celebração do acordo referido em 1. [3.2.1.1] o autor AA nunca quis doar a fração aí identificada e o réu nunca quis aceitar essa doação.
4. Fundamentos de direito
4.1 Da legitimidade substantiva do autor BB para arguir a simulação da doação celebrada em 22 de dezembro de 2015
O recorrente BB sustenta que está suficientemente alegado e demonstrado o prejuízo que para ele decorre da doação celebrada simuladamente em 22 de dezembro de 2015 referindo para tanto nas suas conclusões das alegações o seguinte:
vii. O 2º A. é o outro filho do 1º A., e invocou a falta do seu consentimento, e o seu interesse em que o património (ainda não vendido) volte ao património do pai;
viii. Ainda que não alegue o seu prejuízo, este implicitamente decorre do que alegou e do acto de doação de todos os bens ao outro irmão; além de que o seu pai havia de representar a doação como consequência directa do seu acto;
ix. A simulação, ao contrário da lei substantiva anterior, não exige que haja prejuízo mas apenas o intuito de enganar (artº 240 nº 1 CC);
x. Portanto, estando alegado que o irmão donatário malbaratou o património, na sequência da doação (simulada), deve ser admitido pelo seu interesse directo a intervir na acção”.
Na resposta ao recurso o réu alega, em síntese, que os autores afirmaram na petição inicial que a doação cuja simulação é arguida nestes autos foi celebrada para obstar a que os credores do doador se pudessem fazer pagar coercivamente à custa de tais bens, que não sendo verdade que o autor BB não tenha consentido na doação, certo é que tal consentimento não é legalmente exigido, que a doação não prejudica o autor BB pois que foi feita por conta da quota disponível e, na eventualidade de a doação ofender a sua legítima, poderá requerer a sua redução com fundamento em inoficiosidade, que o autor BB não tem qualquer interesse jurídico na reversão da fração autónoma doada ao património de seu pai pois ainda não existe herança e essa reversão não garante que a aludida fração venha a fazer parte da herança e que é questão nova a alegação de que o donatário malbaratou o património não devendo por isso ser conhecida em via de recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no nº 2 do artigo 242º do Código Civil, a nulidade do negócio simulado pode também ser invocada pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar.
O autor BB, sendo filho do autor AA, doador no negócio cuja simulação vem suscitada nestes autos, é seu herdeiro legitimário (artigo 2157º do Código Civil).
Nessa qualidade, o autor BB não tem qualquer direito aos bens que possam vir a integrar a herança aberta por óbito de seu pai mas quando muito uma expetativa jurídica[4], ao menos sempre que exista uma previsão legal que tutele a sua posição jurídica em vida do autor da sucessão[5].
A nosso ver, é o que se verifica em matéria de simulação negocial, caso em que assiste ao herdeiro legitimário a legitimidade para arguir a simulação desse negócio quando haja sido celebrado pelo autor da sucessão com intenção de prejudicar os herdeiros legitimários.
Neste contexto, o herdeiro legitimário apenas tem legitimidade para reagir contra a simulação fraudulenta e desde que a intenção de prejudicar[6] seja dirigida aos herdeiros legitimários.
Ora, no caso dos autos, os autores alegaram na petição inicial (artigos 2º e 3º) que ao doar a totalidade dos seus bens o doador visou “frustar [sic] os seus credores da obtenção da satisfação dos seus créditos através da penhora e venda desse mesmo património”.
Lendo e relendo a petição inicial não se deteta na mesma qualquer referência a uma qualquer intenção do autor AA de prejudicar com esse negócio o autor BB ou, ao menos, à consciência por parte do doador de que desse ato resultava inexoravelmente prejudicado o autor BB.
Ao contrário do que referem os recorrentes, não consta dos articulados qualquer alegação de que o donatário tenha malbaratado o património, sendo certo, em todo o caso que esta alegação, além de vaga[7], é legalmente inadmissível em sede recursória pois que este instrumento processual não se destina à introdução de factos novos no processo que ainda não tenham até então sido alegados e ainda porque mesmo que assim não fosse, sempre seria matéria inócua pois que para os efeitos do nº 2 do artigo 242º do Código Civil o que releva é a intenção do simulador autor da sucessão e não a conduta do donatário.
Deste modo, conclui-se que face à matéria alegada na petição inicial, o autor BB não tem o direito a invocar a nulidade por simulação da doação realizada em 22 de dezembro de 2015, sendo seu pai o doador e seu irmão e réu nesta ação o donatário, pois que não resulta da matéria de facto vertida nos articulados que ao celebrar esse negócio o autor AA tenha querido prejudicar o autor BB.
Pelo exposto, improcede esta questão recursória, devendo a decisão recorrida ser confirmada neste segmento.
4.2 Da existência de princípio de prova documental da simulação
No que respeita esta questão recursória, os recorrentes referem nas suas conclusões de recurso o seguinte:
ii O 1º A. juntou um documento na petição (nº 3, não examinado na douta sentença), segundo o qual em acção de impugnação pauliana, ambos os simuladores aceitaram perante o credor a “validade da impugnação”, ou seja, admitiam a invalidade do acto de doação, e por isso punham à sua disposição parte dos bens doados que entre eles acertaram;
v. Um dos sentidos que daqui é lícito extrair é o de que o acto de doação foi viciado, com o fim de enganar terceiros; ainda o facto de o A. ter escolhido um filho para transmitir todos os seus bens é ainda um indício de que nele depositava confiança para uma futura reversão, o que reforça ainda mais a simulação;
vi. Portanto, deve entender-se que tal documento, assinado pelos simuladores e com todos os requisitos probatórios, dispõe da faculdade de constituir um princípio de prova, a completar com as restantes”.
Na resposta ao recurso o recorrido sustenta que o documento nº 3 oferecido pelos autores com a petição inicial não envolve qualquer confissão de que a doação celebrada em 22 de dezembro de 2015 foi simulada.
Cumpre apreciar e decidir.
A decisão recorrida foi proferida logo após o termo dos articulados e de acordo com o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 595º do Código de Processo Civil, ou seja, porque a Exma. Colega autora da decisão recorrida entendeu que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação total dos pedidos deduzidos[8].
Entendeu-se que relativamente ao autor AA não tinha sido oferecido qualquer documento que constitua princípio de prova e que permita que a simulação negocial arguida possa ser provada sem as peias decorrentes do nº 2 do artigo 394º do Código Civil.
Vejamos.
De acordo com o disposto no nº 1, do artigo 394º do Código Civil, “[é] inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas deles, quer sejam posteriores.”
Sublinhe-se que a proibição de prova por testemunhas de convenções anteriores, contemporâneas ou posteriores à formação do documento com força probatória plena, que sejam contrárias ou adicionais ao conteúdo desse documento, pressupõe a validade das cláusulas em apreço[9].
As limitações probatórias à produção da prova testemunhal são extensivas à prova por presunções (artigo 351º do Código Civil) e, por identidade de razão, à prova por declarações de parte, sempre que sujeitas à livre apreciação do tribunal, ou seja, quando não tenham caráter confessório (artigo 466º, nº 3, do Código de Processo Civil) e ainda à prova por confissão quando seja livremente apreciada (vejam-se os artigos 358º, nºs 3 e 4 e 361º, ambos do Código Civil).
Esta proibição de produção de prova testemunhal e, reflexamente, da prova por presunção (artigo 351º do Código Civil), bem como da prova por declarações de parte e por confissão, nos termos antes enunciados, aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocado pelos simuladores, não sendo aplicável a terceiros (nºs 2 e 3, do artigo 394º do Código Civil).
A doutrina maioritária[10] e a jurisprudência[11] têm flexibilizado a previsão do nº 1, do artigo 394º, do Código Civil[12], admitindo a produção de prova testemunhal nos casos aí previstos, pelo menos sempre que exista um começo de prova por escrito[13].
Tem-se entendido que esta prova adminicular documental corroboradora da prova pessoal livremente apreciada deve ser proveniente da parte contra quem é oposta e deve tornar verosímil o facto alegado.
O documento nº 3 oferecido pelos autores com a petição inicial é cópia de uma ata de audiência final no processo nº 17997/20.7T8PRT do Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 1, Comarca do Porto, realizada no dia 13 de setembro de 2021, pelas 14 horas, em que foi autor EE e réus AA e CC, achando-se presentes os réus, a Sra. Advogada do autor munida de poderes especiais e o Sr. Patrono dos réus, tendo os Senhores Advogados e os réus declarado que transigiam nos seguintes termos:
“1. O primeiro Réu confessa-se devedor ao Autor da quantia de 150.000,00 euros (cento e cinquenta mil euros) acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde 22/07/2019 até integral pagamento.
2. Os réus confessam o pedido e em consequência reconhecem a válida impugnação da doação identificada nas alíneas 5, 6 e 7 da petição inicial e em consequência reconhecem ao Autor o direito de executar no património do 2º. Réu os bens imóveis identificados nas referidas alíneas, a saber:
5) Prédio urbano (terreno para construção) sito na Rua ..., freguesia ..., Vila Nova de Gaia, descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº. ..., ..., e inscrito na matriz sob o artigo ...;
6) Prédio urbano (terreno para construção) sito na Rua ..., Lugar ..., freguesia ..., Vila Nova de Gaia, descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº. ..., ..., e inscrito na matriz sob o artigo ...;
7) Prédio rústico “...”, freguesia ..., Vila Nova de Gaia, descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº ..., ..., e inscrito na matriz sob o artigo ....
3. As custas serão a cargo dos Réus.”
Seguidamente, a Sra. Juíza que presidia à audiência final proferiu a seguinte sentença:
“Na presente acção em que é Autor EE e Réus AA e CC, atenta a qualidade e poderes dos interveniente e a disponibilidade do objecto da lide, considero válida a transacção que antecede, por versar sobre matéria de direitos disponíveis e provir dos sujeitos da relação material controvertida, pelo que, nos termos dos artigos 283.º, n.º 2, 284.º e 290.º, n.º 4, todos do Código de Processo Civil homologo pela presente sentença o antecedente acordo, condenado as partes a cumprir o clausulado nos seus precisos termos.
Em face do acordado quanto a custas, dado que os réus beneficiam de apoio judiciário, abra vista ao Ministério Público (art.º 537º, nº2 do Código de Processo Civil).
Registe notifique.”
O documento nº 3 foi oferecido expressamente[14] para prova do alegado pelos autores no artigo 9 da petição inicial que tem o seguinte conteúdo:
E foi no contexto desta ação pauliana que, o património que ainda não havia sido evndido a terceiros, revertou para a esfera juridica do Autor AA, com execpção da fração autónoma designada pela letra “A” – cave, pertencente ao prédio urbano afeto ao regime de propriedade horizontal sito nna Rua ..., freguesia ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...- ..., inscrito na matriz sob o art.º ....
A questão que neste momento importa colocar é a seguinte: com a transação que se acaba de reproduzir é lícito afirmar que os réus nessa ação (o autor AA e o réu nestes autos) confessam que a doação impugnada por via de impugnação pauliana foi simulada?
A nosso ver, a resposta a esta interrogação implica a análise da petição inicial do processo em que se verificou a referida transação já que a impugnação pauliana não implica necessariamente a nulidade do ato impugnado, embora a nulidade do ato não seja obstáculo à impugnação pauliana (veja-se o nº 1 do artigo 615º do Código Civil).
Ora, o réu ofereceu cópia da petição inicial oferecida na referida ação, cópia que não foi impugnada pelos ora recorrentes e da sua leitura resulta inequívoco que não foi nessa ação suscitada a nulidade por simulação da doação impugnada.
Ao contrário do que pressupõem os recorrentes, o reconhecimento da “válida impugnação” pauliana relativamente a alguns dos bens doados não significa que o negócio mediante o qual operou a transmissão para a esfera jurídica do donatário desses bens padeça de uma qualquer invalidade, nomeadamente de nulidade por simulação absoluta.
Pelo contrário, em regra, a impugnação pauliana implica a validade do ato transmissivo e visa apenas desconsiderar essa transmissão relativamente ao credor afetado na sua garantia patrimonial (veja-se o nº 4 do artigo 616º do Código Civil), facultando-lhe a execução dos bens transmitidos na esfera jurídica do transmissário (veja-se o nº 1 do artigo 616º do Código Civil).
Por isso, neste circunstancialismo é evidente que o aludido documento nº 3 oferecido pelos autores não constitui qualquer começo de prova da simulação negocial absoluta invocada pelos autores nestes autos e, por isso, não tinha de ser relevado, como não foi, pelo tribunal recorrido.
Pelo exposto, improcede também esta questão recursória, devendo confirmar-se a decisão recorrida, nos segmentos impugnados, respondendo os recorrentes pelas custas do recurso porque este improcedeu totalmente (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por AA e BB e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida proferida em 10 de fevereiro de 2023, nos segmentos impugnados.
Custas do recurso a cargo dos recorrentes, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
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O presente acórdão compõe-se de treze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 25 de setembro de 2023
Carlos Gil
António Coelho
Joaquim Moura
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[1] Segue-se, com alterações, o relatório da decisão recorrida.
[2] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 13 de fevereiro de 2023.
[3] Esta questão recursória, a proceder, infirma a motivação da sentença recorrida no que respeita aos factos não provados e determinará, em consequência, não só o prosseguimento dos autos para a fase de instrução mas também que essa factualidade não possa desde já julgar-se não provada.
[4] Sobre esta problemática veja-se Da Simulação no Direito Civil, A. Barreto Menezes Cordeiro, Almedina 2014, desde o último parágrafo da página 91 até ao ponto II da página 92.
[5] Depois da morte do de cujus e da consequente abertura da sucessão, o herdeiro legitímário tem o instituto da redução por inoficiosidade para tutela da sua legítima (vejam-se os artigos 2168º a 2178º do Código Civil).
[6] Pode discutir se também neste domínio relevarão as outras modalidades de dolo, nomeadamente, o dolo necessário e o dolo eventual.
[7] A que património se refere, ao próprio, ao que lhe foi doado ou a ambos? E que se pretende exatamente dizer com malbaratar? Vendas a preço vil? Doações? Descuidada ou ruinosa administração do património? Oneração?
[8] Importa sublinhar que este juízo sobre a suficiência dos elementos existentes no processo logo após o termo dos articulados para proferir decisão antecipada de mérito deve ter em linha de mira as diversas soluções plausíveis da ou das questões decidendas. Na realidade, assim não procedendo, o tribunal a quo expõe-se a que em via de recurso ocorra uma revogação da decisão de conhecimento antecipado do mérito e a determinação do prosseguimento dos autos a fim de se conhecer de matéria relevante ainda não apurada e relevante para soluções plausíveis das questões de direito diversas da ou das que foram tidas em vista na decisão recorrida.
[9] Esta limitação probatória incide sobre as estipulações verbais acessórias que se possam considerar válidas (vejam-se os artigos 221º e 222º, ambos do Código Civil e o Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa 2014, página 891, anotação IV; em sede de trabalhos preparatórios, já o Sr. Professor Vaz Serra fazia esta distinção, como se vê da leitura do que escreveu in Provas (Direito Probatório Material), separata do Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa 1962, páginas 534 e 535, nº 133).
[10] Vejam-se: Provas (Direito Probatório Material) separata do Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa 1962, Adriano Paes da Silva Vaz Serra, páginas 574 a 588, escrito produzido em sede de trabalhos preparatórios do atual Código Civil; Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa 2014, páginas 891 e 892, anotações VII e VIII. Em sentido aparentemente oposto, não admitindo qualquer flexibilização desta regra legal, pronunciam-se Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4ª Edição Revista e Actualizada, Reimpressão, Coimbra Editora, Fevereiro 2011, página 344, anotações 4, 5 e 6.
[11] Vejam-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: de 22 de maio de 2012, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Fonseca Ramos no processo nº 82/04-6TCFUN-A.L1.S2; de 09 de julho de 2014, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Paulo Sá, no processo nº 28252/10.0T2SNT.L1.S1; de 15 de abril de 2015, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Pires da Rosa, no processo nº 28247/10.4T2SNT-A-L1.S1, todos acessíveis na base de dados da DGSI.
[12] Sublinhe-se que à luz do argumento histórico esta flexibilização é discutível. Na verdade, em consonância com o estudo já citado, o Sr. Professor Vaz Serra propunha um artigo 49º em que se admitia a prova por testemunhas para prova de convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de um documento autêntico ou de um documento particular tido como verdadeiro, fossem tais convenções anteriores, contemporâneas ou posteriores à formação dos citados documentos nos seguintes termos: “1.º - Quando, em consequência de haver um começo de prova por escrito, proveniente daquele contra quem a acção é dirigida ou do seu representante, ou da qualidade das partes, da natureza do contrato ou de outra circunstância, seja verosímil que tenham sido feitas as ditas convenções; 2.º - Quando o contraente esteve moral ou materialmente impedido de se munir de uma prova escrita das mesmas convenções.” Porém, esta normação não foi recebida no Projeto de Código Civil que viria a dar origem ao atual Código Civil (veja-se Projecto de Código Civil, Lisboa 1966, artigo 394º, páginas 115 e 116).
[13] A propósito, na doutrina, vejam-se: Da Simulação no Direito Civil, Almedina 2014, A. Barreto Menezes Cordeiro, páginas 131 a 137; Código Civil Anotado, 2ª Edição Revista e Aumentada, Almedina 2019, coordenação de Ana Prata, anotação 2 ao artigo 394º do Código Civil, da autoria de José Lebre de Freitas, página 514 e Direito Probatório Material Comentado, Almedina 2020, Luís Filipe Pires de Sousa, páginas 217 a 222; na jurisprudência vejam-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, todos acessíveis na base de dados da DGSI: acórdão de 17 de junho de 2003, processo nº 03A1565; acórdão de 22 de maio de 2012, processo nº 82/04-6TCFUN-A.L1.S2; acórdão de 09 de julho de 2014, processo nº 5944/07.6TBVNG.P1.S1.
[14] No entanto, afigura-se-nos que este documento também releva para prova do artigo 8 da petição inicial que tem o seguinte teor: “Na altura, o objetivo era de facto a frustação da garantia dos créditos dos credores sobre o Autor AA, no entanto, na sequência do processo executivo n.º 14728/19.8T8PRT que corre os seus termos pelo Juízo de Execução do Porto- Juiz 5, em que o Autor AA é Executado, e tendo o seu credor detetado a simulação, foi a doação objeto de impugnação pauliana cujo processo teve o n.º 17997/20.7T8PRT e que correu termos no Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 1.