Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1155/23.1T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA OLÍVIA LOUREIRO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
Nº do Documento: RP202406031155/23.1T8AVR.P1
Data do Acordão: 06/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil consagra um dos princípios que rege a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses - o princípio da necessidade -, e a sua aplicação depende da alegação e verificação de que o autor tem dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro ou de que o seu direito só pode tornar-se efetivo por meio de ação proposta em território português. Não tendo sido alegado na petição inicial qualquer facto que sustente qualquer uma dessas hipóteses normativas, não pode o Recorrente pretender a aplicação da referida alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil.
II - A qualificação jurídica que o autor faça da sua pretensão é irrelevante para a fixação da competência do tribunal, que não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação do direito aplicável, devendo a decisão a proferir ter por base o pedido e a causa de pedir invocados, entendendo-se esta como o facto ou conjunto de factos que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido.
III - Tendo o Réu residência em Portugal e tendo o Autor alegado, como fundamento da ação, a celebração com aquele de contratos pelos quais o mesmo estava obrigado a entregar-lhe determinadas quantias em dinheiro, é irrelevante se tais negócios foram celebrados e executados noutro país e se a obrigação pecuniária foi fixada em moeda estrangeira, suportando-se a competência internacional dos tribunais portugueses na remissão que o artigo 62º a) do Código de Processo Civil faz para o artigo 71º, número 1 do mesmo Diploma.

(da responsabilidade da relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 1155/23.1T8AVR.P1 Juízo Central Cível de Aveiro, Juiz 1.

Relatora: Ana Olívia Loureiro

Primeira adjunta: Eugénia Cunha

Segundo adjunto: Miguel Fernando Baldaia Correia de Morais

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

1. Em 21-03-2023, AA, residente na Avenida ..., Edifício ..., ..., ..., Venezuela, intentou ação a seguir a forma de processo comum, contra BB, residente na Avenida ...., Aveiro, pedindo a condenação do Réu a indemnizá-lo o por danos patrimoniais e não patrimoniais que alega ter sofrido em consequência de comportamentos do Réu que descreve da seguinte forma:

Na sequência de negócio comum de venda de automóveis exportados de Miami para a Venezuela, para ali serem revendidos e em face do lucro obtido por ambos com tal negócio, aceitou sugestão do Réu no sentido de este investir as quantias assim obtidas tendo o Autor pedido, ainda, empréstimo bancário com vista a aplicar o montante mutuado no referido investimento, através do Réu, para vir a obter quantia superior. Alegou que o Réu não voltou a devolver-lhe na totalidade os valores que lhe entregou para investir (mas apenas parte), devolução a que disse que estava obrigado. Na sequência desses factos, apresentou queixa crime contra o Réu, na Venezuela, imputando-lhe a prática do crime de burla. Já depois da apresentação dessa queixa, contudo, e com vista a tentar recuperar o dinheiro entregue ao Réu, alega o Autor que propôs àquele um outro negócio pelo qual ambos adquiririam, com o montante que o Réu ainda lhe devia, latas de atum, a comprar no Equador e com vista à sua comercialização na Venezuela, dividindo ambos, depois, o lucro da sua revenda. Acordado tal negócio, segundo articulou o Autor, este adquiriu tais latas no Equador, através de sociedade que diz deter, tendo sido o Réu a proceder ao pagamento de parte do respetivo preço (30% devidos no ato de encomenda) não tendo o restante valor sido pago posteriormente, no momento do embarque da mercadoria, como fora acordado com o exportador. Não obstante, diz, a exportadora expediu a mercadoria para a Venezuela onde foi posta à venda, nunca tendo sido pago à vendedora o remanescente do preço por força da alegação pelo Réu, apenas nesse momento, de que não conseguia usar a sua conta bancária.

A mercadoria, já na Venezuela, foi entregue a uma prima do Réu, por sugestão deste, sendo ela que se encarregaria do seu armazenamento e venda. Tendo sido vendida mercadoria entre janeiro de 2020 e setembro de 2021, mas quando faltava vender ainda parte da mesma o Réu tê-la-á entregue a supostos clientes e não mais prestou contas do negócio ao Autor nem lhe entregou $22 704 relativos ao preço obtido pelas últimas vendas realizadas bem como faltará receber $ 33 756 de mercadoria que terá alegadamente sido entregue a clientes, mas estará, segundo o Réu lhe diz, por pagar. Alegou, ainda, que a fornecedora equatoriana da mercadoria que exportou para a Venezuela para ali ser vendida pelo Réu lhe tem vindo a pedir a parte do preço ainda não pago pela compra da mesma, estando o Autor convicto de que o Réu tem a intenção de não proceder ao seu pagamento, bem como de que pretende apropriar-se de todas as quantias que terá recebido pelas vendas efetuadas, argumentando que não conseguiu cobrar o seu preço aos clientes.

Imputa ao Réu a intenção de o ludibriar e de se apropriar de valores de mercadorias à sua custa pelo que pretende ser indemnizado pelos danos que diz serem decorrentes de responsabilidade civil extracontratual.

Na eventualidade de o pedido seu pedido não proceder com base na responsabilidade civil extracontratual, defende que sempre o Réu deve ser condenado a restituir tudo aquilo que injustamente se locupletou, com base no instituto do enriquecimento sem causa.

2. Citado o Réu o mesmo contestou em 11-09-2023 excecionando, no que aqui releva convocar, a incompetência territorial dos tribunais portugueses em face do disposto no artigo 71º, número 2 do Código de Processo Civil, dado que todos os factos que lhe foram imputados pelo Autor foram praticados, segundo descrito na petição inicial, na Venezuela.

3. A 18-10-2023 foi proferido despacho pelo qual se facultou ao Autor o prazo de 15 dias para se pronunciar sobre a exceção de incompetência territorial.

4. O mesmo veio a fazê-lo, a 20-11-2023, nos seguintes termos: “Não deverá proceder qualquer das exceções arguidas pelo réu, devendo concluir-se como na PI".

5. A 16-01-2024 foi proferida sentença que julgou o Tribunal internacionalmente incompetente e absolveu o Réu da instância.

II - O recurso:

É desta sentença que recorre o Autor pretendendo a sua revogação com a consequente declaração da competência do tribunal recorrido.

Para tanto, alega o que sumaria da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:

“1. O tribunal de primeira instância julgou os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para conhecer do litígio em causa e, em consequência, absolveu o réu da instância.

2. Fundamentou a sua decisão com base na ausência de preenchimento dos fatores de conexão dos artigos 62.º e 63.º do Código de Processo Civil, bem como na ausência de pacto atributivo de competência previsto no artigo 94.º do mesmo diploma.

3. O facto que integra a causa de pedir tem única e exclusivamente ligação à Venezuela, sendo os tribunais deste país competentes.

4. O direito do autor não pode ser exercido naquele território em virtude da conjuntura do sistema judicial.

5. O sistema de justiça venezuelano não oferece as mesmas garantias que as oferecidas pelo sistema de justiça português, não permitindo a tutela efetiva do direito do autor.

6. O réu reside em Portugal, havendo uma forte conexão com a ordem jurídica portuguesa

7. Todos os requisitos para a aplicação do critério da necessidade prevista na alínea c) do art.º 62.º do Código de Processo Civil estão preenchidos.

8. Entender o contrário é dar à lei uma interpretação que não zela, nem pela sua letra, nem pela sua finalidade, implicando, para o autor, um sacrifício que não lhe pode ser exigido, à luz do princípio da boa-fé.

9. Ainda de acordo com o artigo 62º do Código de Processo Civil, que, sob a epígrafe Fatores de atribuição da competência internacional, dispõe o seguinte a alinea b) que “Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram”.

10. Os factos alegados importam a competência material do Tribunal que proferiu a decisão da qual se recorre. Todo o negócio jurídico na sua plenitude foi desenvolvido em

Portugal, sendo que deverão ser em Portugal que se deverão resolver as questões relacionadas com o mesmo, designadamente as questões relacionadas com o seu incumprimento, que é o que retratam os presentes autos.”.


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Não foram apresentadas contra-alegações.

III – Questões a resolver:
Em face das conclusões do Recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, é apenas uma a questão a resolver: a da competência internacional do Tribunal recorrido para apreciação da pretensão do Autor.

IV – Fundamentação:

Os factos relevantes para a decisão são apenas os que estão sumariados no relatório supra e resultam do processado.


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Na falta de regulação expressa em instrumentos internacionais, ou de fixação da competência por convenção das partes, o artigo 59º do Código de Processo Civil determina a competência internacional dos tribunais portugueses “(…) quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º, ou quando as partes lhe tenham atribuído competência”.
No caso não existe qualquer tratado ou acordo internacional aplicável e as partes não alegaram a celebração de qualquer convenção com vista à fixação da competência internacional.

A decisão recorrida estribou-se na seguinte afirmação: “Nos termos do art. 59.º do CPC, por regra, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando ocorram os fatores de conexão dos arts. 62.º e 63.º do CPC ou quando lhes seja atribuída convencionalmente competência para dirimir o conflito nos termos do art. 94.º do CPC.
Não foi alegada que tenha sido convencionada esta competência. A aplicação do art. 63.º do CPC está excluída, por não estarmos no domínio dos direitos reais. Também não ocorre qualquer dos fatores de competência do art. 62.º do CPC.”
Tal afirmação, contudo, omite a análise dos concretos fatores de atribuição de competência a que alude o artigo 62º do Código de Processo Civil cuja aplicação foi afastada sem apreciação efetiva do seu teor, que ora deve sere feita.
Estipula o preceito em apreço:

“Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;

c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.”

O Recorrente alega em sede de recurso que os factos que servem de causa de pedir foram praticados em diferentes países (Equador, Estados Unidos e Venezuela) e que o “facto que integra a causa de pedir tem única e exclusivamente ligação à Venezuela, nacionalidade de ambas as partes e lugar de residência do autor e do réu à data dos factos. Assim sendo, os tribunais competentes seriam os tribunais Venezuelanos.

Contudo, o direito do autor não pode ser exercido, pelo mesmo, naquele território em virtude da conjuntura do sistema judicial.

Destarte, a Venezuela tem vindo a passar por uma longa e difícil crise política que tem resultado em dificuldades evidentes no acesso a uma justiça efetiva, que permita aos cidadãos daquele país efetivarem os seus direitos.”.

Defende, assim, a aplicação da alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil acima transcrito.

Apenas em sede de recurso, contudo, foram alegados os factos em que o Autor pretende suportar a aplicabilidade da referida alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil.

Ora, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões e não ao tratamento de questões novas, não submetidas à apreciação do tribunal recorrido. Nas palavras de Abrantes Geraldes, “Na fase de recurso, as partes e o Tribunal superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objeto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, anulação, alteração ou revogação. Por outro lado, a demanda do Tribunal Superior está, em regra, circunscrita às questões que já foram submetidas ao tribunal de categoria inferior, com exceção da possibilidade de serem suscitadas ou apreciadas questões de conhecimento oficioso, v.g. a inconstitucionalidade de normas, a nulidade dos contatos, o abuso de direito ou a caducidade em matéria de direitos indisponíveis, relativamente às quais existam nos autos elementos de facto suficientes”[1]
O argumento ora esgrimido pelo Recorrente suporta-se na alegação de dificuldades de acesso/funcionamento do sistema judicial Venezuelano que não só não estão demonstradas como não foram alegadas no momento próprio: aquando da apresentação da petição inicial.
A alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil consagra um dos princípios que rege a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses - o princípio da necessidade -, tem raiz histórica na alínea d) do artigo 65º Código de Processo Civil de 1939 e depende da verificação de que o Autor tem dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro – neste caso na Venezuela, país de que ambas as partes são naturais -, ou de que o seu direito só pode tornar-se efetivo por meio de ação proposta em território português. Não tendo sido alegado qualquer facto que sustente qualquer uma dessas hipóteses, improcede a pretensão do Recorrente de ver aplicada a referida alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil.
Da descrição factual que o Autor fez em sede de petição inicial fica, por igual, absolutamente afastada a aplicabilidade da alínea b) do mesmo preceito que estipula a competência internacional do tribunal quando o facto ou algum dos factos que serve de causa de pedir tenha sido praticado em Portugal. É que o Autor descreve vários negócios celebrados com o Réu e atos alegadamente ilícitos praticados por este na negociação e execução desses negócios nunca alegando que os mesmos ocorreram em Portugal, antes os situando na Venezuela e tendo conexão, ainda, com os Estados Unidos da América e com o Equador.
Resta aferir da aplicabilidade da alínea a) do referido artigo 62º, uma vez que muito embora a sua aplicação não seja defendida em sede de recurso, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito como decorre do disposto no artigo 5º número 3 do Código de Processo Civil.
Este mesmo preceito deve estar presente quando se apreciem os factos alegados na petição inicial para apurar se os mesmos justificariam a competência do tribunal recorrido em razão do território, critério para que remete a alínea a) do artigo 62º do mesmo Diploma.
É que a competência do tribunal deve aferir-se em função da forma como o Autor configura a ação, isto é, da causa de pedir e do pedido, independentemente da qualificação jurídica da causa que o mesmo faça.
A alínea a) do artigo 62 do Código de Processo Civil consagra um dos critérios de fixação de competência internacional, que é o da coincidência “(…) pelo qual se determina a competência internacional dos tribunais portugueses sempre que a ação possa ser proposta em Portugal segundo as regras específicas de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa”[2]
É irrelevante para a apreciação da competência do Tribunal a qualificação jurídica que o Autor fez na petição inicial quando ali esgrime que a responsabilidade do Réu é extracontratual ou, subsidiariamente, que deve decorrer da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa.

A causa de pedir da ação não se define pela qualificação jurídica que dela faz o autor, mas pelo conjunto de factos que alega com vista à procedência da sua pretensão[3]. Cabe ao Tribunal decidir, em face dos factos que foram alegados e se venham a provar, qual o enquadramento jurídico da questão que lhe é posta.

Para conhecimento da exceção de incompetência em razão da matéria deve partir-se, assim, da relação jurídica que está controvertida.

Neste caso, a Autora alega que em virtude de negócio celebrado com o Réu este se apropriou:

- de $ 27 467, 50 provenientes da parte dos lucros que cabia ao Réu entregar ao Autor pela venda de automóveis na Venezuela, valor que o mesmo aceitou que aquele investisse com o fito de aumentar o seu valor e lho devolver;

- de $ 82 509 que também lhe entregou com vista a que ele investisse tal valor e lho devolvesse;

- de $ 22 704 que o Réu recebeu de clientes pela venda de mercadoria que ambos adquiriram no Equador para exportar e comercializar na Venezuela; e, ainda,

- alega que desconhece se o mesmo já recebeu o valor de $ 33 756 de mercadorias vendidas e não pagas já que, desde outubro de 2021, o Réu deixou de lhe prestar contas do negócio em comum que mantinham.

Pede que o Réu seja condenando a devolver-lhe a soma destas parcelas alegando que o mesmo, entretanto, se mudou para Portugal e que teve e mantém a intenção de se apropriar dessas quantias eximindo-se da responsabilidade de as entregar ao Autor.

Pede ainda o ressarcimento dos danos não patrimoniais que diz ter sofrido com estas condutas, liquidando tal indemnização em 10 000 €
Do que vai dito resulta manifesto que a obrigação que o Autor imputa ao Réu, de pagamento da quantia total de $ 166 472, 50 que corresponde ao valor de 154 221, 79 €, decorre do incumprimento, por banda deste, do que ambos acordaram em diferentes e sucessivos negócios entre eles celebrados. Estão descritos na petição inicial os acordos pelos quais o Réu estaria obrigado a devolver/entregar tais quantias ao Autor.
Ora, nos termos do artigo 71º, número 1 do Código de Processo Civil, a ação destinada ao cumprimento de obrigação deve ser proposta no domicílio do Réu. Tal norma serve também para a definição da competência internacional dos tribunais portugueses por força da remissão contida no artigo 62º a) do mesmo Diploma [4].
Independentemente de o Autor entender que o não cumprimento dessas obrigações contratuais decorreu de intenção premeditada e de posterior conduta do Réu que qualifica como criminal por consubstanciar crime de burla, a eventual fonte do direito do Autor à devolução das referidas quantias encontra-se nos contratos que celebrou com o Réu e pelos quais, segundo diz, este estaria obrigado a devolver-lhe/entregar-lhe tais montantes – cfr. artigos 397º e 405º do Código Civil. É, para o caso, irrelevante a qualificação jurídica feita pelo Autor.
Como tal, o Tribunal da área da residência do Réu é internacionalmente competente para a ação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 62 a) e 701º, número 1 do Código de Processo Civil sendo indiferente para o apuramento dessa competência se os negócios de que decorreu a obrigação de entrega dessas quantias foram celebrados e executados noutro país e se as obrigações pecuniárias deles decorrentes foram fixadas em moeda estrangeira como foi ponderado na decisão recorrida, mas que para o caso não releva.

V – Decisão:

Nestes termos revoga-se a sentença recorrida, julgando-se o Tribunal Recorrido internacionalmente competente para a causa.

Custas pelo Recorrido, nos termos do previsto no artigo 527º, número 1 do Código de Processo Civil.


Porto, 2024/6/3.
Ana Olívia Loureiro
Eugénia Cunha
Miguel Baldaia de Morais

______________________
[1] Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª edição atualizada, página 30.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 4ª edição, página 154.
[3] O legislador estatui no artigo 552º, d) do Código de Processo Civil como se formula, na petição inicial, a indicação da causa de pedir: expondo “os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação”.Para Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Páginas 71 e 72), a causa de pedir será o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido.
[4] Neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-07-2017, Processo 531/15.8T8LRA.C1.S2 disponível em:
http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/680e2fbcd9691fe58025815d00391568?OpenDocument
No caso ali apreciado a causa de pedir era “um contrato e o seu incumprimento” e no seu sumário pode ler-se:
“I - Verificada qualquer uma das circunstâncias atributivas da competência internacional dos tribunais portugueses, enumeradas pelas als. a) a c), do art. 62.º, do CPC, tem-se logo como reconhecida a competência internacional dos tribunais portugueses, que se afere em função da relação material controvertida, ou seja, do pedido e da causa de pedir, tal como os mesmos se apresentam invocados pelo autor.
II - O princípio da coincidência da competência internacional com a competência territorial, segundo o qual os factos que, na órbita da competência interna, determinam a competência territorial do tribunal português, determinam, também, na esfera internacional, a competência da jurisdição portuguesa, em confronto com as jurisdições estrangeiras, estabelecido pela al. a) do art. 62.º, deve ser entendido como pressupondo a remissão para os arts. 70.º a 84.º, todos do CPC.

III - O princípio da coincidência da competência interna e da competência internacional é dominado pelo domicílio do réu, pese embora o litígio possua elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras, pelo que o tribunal com competência territorial interna é, também, internacionalmente, competente, face à jurisdição atribuída por leis estrangeiras aos tribunais estrangeiros, de acordo com o princípio da dupla funcionalidade.
IV - Quando a causa de pedir é um contrato e o seu incumprimento, ou seja, quando a causa de pedir é complexa, é suficiente que a celebração do contrato tenha ocorrido em Portugal, pois que o ónus da prova do incumprimento impende sobre o réu.

V - O fator de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses que tem subjacente o princípio da necessidade deixou de assumir natureza excecional e subsidiária, face aos demais, por não se exigir, apenas, o requisito da impossibilidade efetiva de o direito invocado não se tornar efetivo senão por meio da ação proposta em território português ou não ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro, para se bastar com a dificuldade apreciável para o autor na propositura da ação no estrangeiro, desde que subsista a presença de um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real, entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa.
VI - A negação da competência internacional para a presente ação, por eventual não verificação dos fatores de conexão consagrados pelo art. 62.º, do CPC, não encontraria razão justificativa no princípio do «forum non conveniens», em contraponto com a existência de tribunal estrangeiro mais bem colocado para julgar o litígio e que não decline a sua jurisdição.