Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
17795/24.9T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ MANUEL CORREIA
Descritores: DELIBERAÇÃO DE CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
ANULABILIDADE
PEDIDO
INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: RP2025091117795/24.9T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A deliberação do conselho de administração da ré empresa municipal, no sentido da resolução do contrato de arrendamento que esta celebrara com a autora, consubstancia, não um ato administrativo, mas uma declaração de vontade unilateral de resolução desse contrato.
II - Pedindo a autora a nulidade ou a anulabilidade daquele ato no pressuposto de se tratar de ato administrativo, nada obsta ao conhecimento desse pedido enquanto declaração de resolução, porque se trata de mera qualificação jurídica da parte à qual o juiz não está vinculado (art.º 5.º, n.º 3 o CPC) e, com ele, aquilo que aquela verdadeiramente pretende é a declaração de invalidade do ato jurídico, independentemente da sua qualificação jurídica.
III - O interesse em agir enquanto pressuposto processual consiste no interesse da parte em recorrer a juízo para fazer valer uma determinada pretensão de tutela jurisdicional, exprimindo-se, assim, pela “objetiva necessidade do processo” e pela “essencialidade da tutela judicial” pretendida.
IV - Tem interesse em agir a autora relativamente a pedidos cuja procedência mereceu frontal oposição da parte contrária e relativamente aos quais o recurso a juízo era o único meio ao seu dispor para obter o respetivo reconhecimento, havendo, assim, “objetiva necessidade do processo” e “essencialidade de tutela jurisdicional”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 17795/24.9T8PRT.P1 - Recurso de apelação
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível, Juiz 6

.- Sumário
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.- Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto,

I.- Relatório
1.- A..., Lda. instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto ação para impugnação de ato administrativo contra B..., E.M. e Município ..., pedindo que, pela sua procedência, fosse determinada:
i.- a declaração de nulidade do ato administrativo praticado pelo Conselho de Administração da 1.ª Ré em 15-02-2024, que lhe foi comunicada em 27-02-2024 e que procedeu à resolução do contrato de arrendamento referido na petição inicial ou a sua anulabilidade;
ii.- a intimação das Rés para se absterem de praticar qualquer ato que de algum modo possa limitar, afetar ou pôr em causa os direitos da Autora invocados na petição inicial;
iii.- a condenação das Rés no pagamento à Autora da quantia mensal de € 30.000,00 por cada mês que mediar entre outubro de 2022 e a data da efetiva abertura do locado, acrescida da compensação por danos não patrimoniais, meramente simbólica, de € 50.000,00 e do reembolso das despesas em que teve de incorrer de € 7.810,50, com juros de mora à taxa legal, desde outubro de 2022, data de vencimento da obrigação incumprida pelos Réus de disponibilização do locado em perfeitas condições de utilização.

2.- Alegou, em síntese, e valendo-nos, por economia processual, do que, a esse respeito, consta do despacho de 12-07-2024, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, o seguinte:
.- Em 23/02/2022 celebrou contrato de arrendamento não habitacional com a 1.ª ré, por via do qual lhe é atribuída a posse, o gozo e o direito exclusivo de utilização do espaço destinado a loja, identificado pelas letra e número ... do Mercado ..., sendo a renda acordada, no valor mensal de € 3.620,00, devida a partir da abertura oficial do Mercado ...;
.- Que tal Loja apresentava graves deficiências estruturais que só vieram a ser corrigidas em Julho de 2023, incumprindo a 1.ª Ré as suas obrigações contratuais, designadamente, de proporcionar à arrendatária a utilização do locado, pelo que não é devido o pagamento da renda;
.- Invoca a excepção de não cumprimento do contrato, por entender que: “o pagamento que a A. ainda tem de fazer só ocorreria (ocorrerá) após a conclusão com perfeição e competências das obrigações a que a 1.ª Ré está obrigada, nas quais se inclui a resolução dos problemas/defeitos supra-descritos e que, como já se disse, ainda não foi concluída com perfeição e integralidade;
.- Com a sua conduta, os réus causaram à autora danos patrimoniais que computa no montante mensal de 30.000,00 €, bem como danos não patrimoniais no valor de 50.000,00 €, a que acrescem despesas com o locado no montante de 7.810,50 €”.

2.- Citados, contestaram os Réus, defendendo-se por exceção – invocando a exceção dilatória de ilegitimidade passiva do Réu Município ... – e por impugnação.

3.- Por despacho proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto em 12-07-2024, transitado em julgado, foi julgada verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta e, consequentemente: (i) declarada a sua incompetência em razão da matéria para conhecer do litígio; (ii) absolvidos os Réus da instância.

4.- Notificada de tal decisão, requereu a Autora no tribunal que a proferiu, ao abrigo do disposto nos art.ºs 14.º e 89.º do CPTA, a remessa dos autos ao Juízo Central Cível do Porto, a fim de nele passarem a ser tramitados e, a final, apreciados e decididos.

5.- Remetidos os autos como requerido pela Autora e distribuídos ao Juízo Central Cível do Porto, Juiz 6, foi proferido despacho ordenando a notificação da Autora para aperfeiçoar a sua petição inicial, de modo a adaptar-se à tramitação do processo comum.

6.- A Autora, na sequência de tal convite do tribunal, apresentou novo articulado inicial, expondo, no essencial, os mesmos factos anteriormente apresentados e concluindo com a dedução do mesmo pedido.

7.- Notificados, responderam os Réus ao articulado inicial aperfeiçoado da Autora, apresentando, também, no essencial, a mesma defesa anteriormente apresentada em sede de contestação.

8.- Realizada audiência prévia, nesta, depois de pronúncia das partes, foi proferida sentença, julgando:
i.- o Município ... parte ilegítima e, consequentemente, absolvendo-o da instância;
ii.- improcedente o primeiro pedido formulado contra a 1.ª Ré e, consequentemente, absolvendo-a do pedido;
iii.- verificada a exceção dilatória da falta de interesse em agir da Autora quanto aos demais pedidos formulados contra a 1.ª Ré e, consequentemente, absolvendo-a da instância quanto a eles.

9.- Inconformada com tal decisão, dela interpôs a Autora o presente recurso, pugnando pela sua revogação e pela prossecução dos autos até final, declarando-se ilegal a resolução/cessação do contrato de arrendamento comercial que as partes celebraram.
Para tanto, formulou as seguintes conclusões:

a.- a qualificação como ato administrativo do ato que determinou a resolução do contrato de arrendamento ou a sua anulabilidade foi feita no pressuposto errado de ser a jurisdição administrativa a competente para conhecer de tal pedido;
b.- decidida no Tribunal Administrativo a incompetência para conhecer da (i)legalidade de atos administrativos, e consequente reenvio para a jurisdição comum, logo curou a recorrente de adaptar a ação aos termos do processo comum para poder prosseguir até que o tribunal dissesse o direito;
c.- como se conclui na nova petição inicial, a recorrente corrigiu nos seus pontos iniciais 2 e 3 que a deliberação/despacho era uma declaração negocial no contexto do cumprimento de um contrato de arrendamento não habitacional e não um ato administrativo;
d.- em todo o caso nunca o Juiz está vinculado ao nomen iuris que lhe foi dado pelas partes;
e.- devendo a ação prosseguir os seus termos até final, declarando-se ilegal a resolução/cessação do contrato de arrendamento comercial que as partes celebraram.

10.- Respondeu a Ré B..., E.M., batendo-se pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.
Para tanto, formulou a seguintes conclusões:

A.- O recurso ao qual se responde vem interposto do douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, a qual:
a.- Julgou o Município ... parte ilegítima e, em consequência, absolvo-o da instância;
b.- Julgou improcedente o primeiro pedido formulado contra a Recorrida B... e, em consequência, absolvo-a do pedido;
c.- Julgou, em consequência, verificada a exceção dilatória da falta de interesse em agir, por parte da autora, quanto aos demais pedidos e, em consequência, absolvo a Recorrida da instância quanto aos mesmos.
B.- No entendimento da Recorrente, a aludida decisão padece de erro de julgamento de Direito, no que concerne ao segmento decisório constantes nas alíneas b) e c) do dispositivo, porquanto, alegadamente, “como se conclui da nova petição inicial, a recorrente corrigiu nos seus itens iniciais, 2 e 3, que a deliberação / despacho eram uma declaração negocial no contexto do cumprimento de um contrato de arrendamento não habitacional - å não um acto administrativo”. Contudo, pelas razões que infra se densificam, numa razão assiste à Recorrente.
C.- Note-se que, na sequência da remessa dos presentes autos à jurisdição comum, em virtude de o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto ter-se declarado materialmente incompetente para conhecer do objeto em litígio, por despacho datado de 04.11.2024, foi a Recorrente notificada do seguinte despacho:
“(…) nos termos do artigo 6º, n.º 1 do CPC, uma vez que a petição inicial foi apresentada junto dos Tribunais Administrativos, importa determinar o seu aperfeiçoamento, por forma a adaptar-se à tramitação dos processos comuns. Assim, e nos termos dos artigos 6º, n.º 1 e 590º, n.º 2, b) e 4 do CPC, notifique a autora para, em 20 dias, juntar nova petição inicial”.
D.- Ora, compulsada a causa de pedir e o pedido da Petição Inicial aperfeiçoada, verifica-se que a mesma tem, ipsis verbis, igual teor à ação administrativa apresentada no âmbito do processo n.º 1201/24.1BEPRT, o qual correu os seus termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
E.- Com efeito, na causa de pedir constante na Petição Inicial aperfeiçoada, a Recorrente invoca e imputa à Deliberação do Conselho de Administração da B..., a qual determinou a resolução do contrato de arrendamento em crise nos presentes autos, vários vícios que, na sua opinião, determinarão a invalidade daquele ato.
F.- Veja-se, por exemplo, que a Recorrente invoca, tendo em vista a “declaração de nulidade do ato administrativo praticado pelo Conselho de Administração da 1ª R. em 15/2/2024” a preterição do disposto no artigo 121.º e 122.º do Código do Procedimento Administrativo, e, bem assim, a violação do disposto no artigo 153.º do mesmo diploma.
G.- Como é consabido, a alínea d) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF atribui competência material à jurisdição administrativa para conhecer fiscalizar a legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos.
H.- Alega a Recorrente que, “como se conclui da nova petição inicial, a recorrente corrigiu nos seus itens iniciais, 2 e 3, que a deliberação / despacho eram uma declaração negocial no contexto do cumprimento de um contrato de arrendamento não habitacional - å não um ato administrativo”.
I.- Contudo, pelas razões supra aduzidas, não logrou a Recorrente alterar/adaptar o pedido e a sua causa de pedir, não bastando a menção a “declaração negocial”, em detrimento de ato administrativo, para que se considere que o pedido pode ser conhecido pelo Tribunal a quo.
J.- Como é bom de ver, “ao propor uma ação, o demandante formula uma pretensão fundada, por imposição de uma substanciação, numa causa de pedir que exerce a função individualizadora do pedido formulado, assim conformando o objeto do processo (…) Não o tendo sido e não se encontrando o tribunal perante situações que permitem o conhecimento oficioso de determinadas questões, o tribunal só pode ocupar-se das questões suscitadas pelas partes, ou seja só pode decidir sobre o mérito do pedido formulado, apreciando a causa de pedir que o individualiza, estando-lhe vedada a apreciação de qualquer outra causa de pedir que não tenha resultado das regras que permitem a modificação ou ampliação da causa de pedir original.
K.- Pelo exposto, e pelos fundamentos constantes da decisão judicial recorrida proferida pelo Tribunal a quo, é entendimento da Recorrida que a mesma não merece qualquer reparo, devendo ser confirmada por V. Exas., com todas as devidas e legais consequências daí decorrentes.

11.- O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.

12.- Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- Das questões a decidir
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, as questões que, neste recurso, importa apreciar e decidir são as seguintes:
.- da (in)viabilidade à luz do direito aplicável e da (im)possibilidade do seu conhecimento nestes autos, do primeiro pedido formulado pela Autora contra a 1.ª Ré;
.- da existência ou falta de interesse em agir da Autora relativamente aos restantes pedidos que formulou contra a 1.ª Ré.
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III.- Da Fundamentação
III.I.- Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1.- A Ré B... é uma entidade empresarial local, de natureza municipal, que goza, enquanto pessoa coletiva de direito público, de personalidade jurídica e é dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial.
2.- A ré e o Município ... celebraram um contrato-programa, no qual o Município ... colocou sob a responsabilidade da B... a gestão, exploração e rentabilização dos equipamentos do Antigo Matadouro ..., do Mercado Temporário ... e do Mercado ....
3.- A Ré B... procedeu à abertura de concursos públicos, através de hastas públicas, para a celebração de contratos de arrendamento de lojas no Mercado ....
4.- Nessa sequência, em 23-02-2022, a Ré B... celebrou com a Autora, à data designada C..., Unipessoal Lda., um contrato de arrendamento da Loja integrada no edifício do Mercado ..., com entrada pela Rua ..., identificado pelas letra e número “...“, com a área mínima de 94,50 m2 (noventa e quatro vírgula cinquenta metros quadrados).
5.- O referido contrato foi celebrado pelo prazo de 6 (seis) anos, com início na data da transmissão da posse do espaço supra identificado, a qual seria formalizada mediante a assinatura, por ambas as partes, de um auto de entrega das respetivas “chaves”.
6. Findo tal período, o contrato de arrendamento seria renovável por períodos iguais e sucessivos de 4 (quatro) anos, podendo haver, nesse caso, lugar à revisão da renda e demais condições contratuais mediante proposta apresentada pela Entidade Gestora com uma antecedência de 75 (setenta e cinco) dias, relativamente ao termo do prazo de duração do contrato.
7. Como contrapartida da posse e fruição da fração em causa a Autora pagaria à Ré B... a renda anual no montante de € 43.440,00 (quarenta e três mil, quatrocentos e quarenta euros).
8.- Sendo que o pagamento de tal montante seria efetuado em duodécimos, no valor de € 3.620,00 (três mil seiscentos e vinte euros), através de transferência bancária para o IBAN ... ou através de débito direto.
9.- O pagamento da renda devida nos termos do supra aludido contrato, seria exigível na data da abertura do Mercado ..., independentemente de o arrendatário se encontrar, ou não, em condições de proceder à abertura do seu espaço comercial ao público.
10.- Ainda nos termos do n.º 10 da Cláusula Quarta do Contrato de Arrendamento celebrado foi previsto que “o incumprimento do pagamento da renda por três meses seguidos constitui fundamento para a rescisão do contrato, sem prejuízo do recurso a procedimento coercivo para cobrança dos montantes devidos”.
11.- Acrescentando a Cláusula Décima, n.º 2, alínea b), subalínea I, que o Contrato de arrendamento podia cessar por resolução unilateral da B..., EM. quando se verifique a “falta de pagamento pontual da renda fixada no presente contrato, nos termos do disposto na Cláusula Quarta”.
12.- O Conselho de Administração da Ré B... deliberou conceder a todos os arrendatários um período de seis meses de carência para início do pagamento, contabilizado a partir da referida data de abertura do Mercado ..., ou seja, 15 de setembro de 2022.
13.- Tal período de carência foi formalizado através de uma Adenda ao Contrato de Arrendamento que a Autora não assinou.
14.- Com o fundamento de falta de pagamento das rendas vencidas e não pagas, acrescida da indemnização prevista no n.º 8 da Cláusula Quarta, o Conselho da Administração da Ré B... deliberou, em 15/04/2024, a resolução do contrato de arrendamento celebrado em 23.02.2022.
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III.II.- Do objeto do recurso
.- Da (in)viabilidade à luz do direito aplicável e da (im)possibilidade do seu conhecimento nestes autos, do primeiro pedido formulado pela Autora contra a 1.ª Ré
Está em causa neste recurso, no essencial, a decisão da 1.ª instância que julgou improcedente o primeiro pedido formulado pela Autora contra a Ré.
Tal pedido é do seguinte teor:
.- declaração de nulidade ou, subsidiariamente, anulabilidade do ato administrativo praticado pelo Conselho de Administração da 1.ª Ré em 15-02-2024, que lhe foi comunicado em 27-02-2024 e que procedeu à resolução do contrato de arrendamento referido na petição inicial.
Na sentença recorrida, julgou-se improcedente tal pedido por se ter entendido, com base no art.º 162.º, n.º 2 do CPA e em jurisprudência e doutrina convocadas para o efeito, que aos tribunais comuns estava vedada a apreciação da validade de atos administrativos.
Independentemente da valia das considerações jurídicas nela expendidas a propósito de tal questão, o certo é que a posição da 1.ª instância não tem cabimento no quadro da presente ação, por assentar num pressuposto que aqui não se verifica.
Isto é, parte do princípio de que o tribunal comum não pode conhecer de vícios de um ato administrativo, quando a ação não tem por fundamento, nem nela está em discussão, um ato com essa natureza.

Ato administrativo é, com efeito, de acordo com o disposto no art.º 148.º do CPA, a decisão que, proferida no exercício de poderes jurídico-administrativos, visa produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta.
Consiste, assim, e como decorre da leitura do preceito: (i) numa decisão proferida pelo órgão da administração pública no exercício de um poder de autoridade, regulado por normas de direito público; (ii) numa decisão que, por força daquela autoridade, se impõe com efeitos reguladores externos numa situação concreta e individual.
Ora, o ato que aqui está em causa, isto é, o ato que a Autora pretende ver declarado nulo ou anulado, é a deliberação do Conselho de Administração da Apelada de 15-04-2024, no sentido da resolução do contrato de arrendamento que esta celebrara com aquela em 23-02-2022 (v. facto provado n.º 14).
Tal ato, contudo, tendo presente o que acaba de ser dito, não constitui qualquer ato administrativo.
Trata-se, na verdade, de um ato jurídico pelo qual a Ré, no quadro de uma relação contratual de natureza locatícia que estabelecera com a Autora, exprimiu (declarou) a sua vontade em pôr termo a essa relação contratual, fundada no incumprimento desta.
Ao emitir tal ato jurídico, não atuou a Ré, por conseguinte, no exercício de um poder jurídico-administrativo, mas como mera parte contratante num negócio jurídico de natureza privatística que celebrara com a Autora.
Outrossim, com o ato não pretendeu a Ré, no exercício da sua esfera própria de competências, proferir uma decisão com o intuito de regulação externa de uma concreta situação jurídica, mas, como se referiu no despacho do TAF do Porto acima referido em 3, emitir uma declaração unilateral de resolução do contrato que com esta celebrara.
Finalmente, o ato não foi praticado pela Ré a coberto de qualquer norma de direito público, mas fundado no programa negocial constante do contrato que celebrara com a Autora e no regime legal que lhe é aplicável decorrente do NRAU, bem como das normas gerais do direito civil que regulam os contratos e o seu cumprimento.
O ato jurídico cuja declaração de invalidade pretende a Autora não reúne, assim, as características que, à luz do referido preceito do CPA, permitem qualificá-lo como ato administrativo.
Pelo contrário, como se viu, mais não constitui do que uma declaração emitida pela Ré nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 436.º do Código Civil, com a particularidade de ter sido exprimida por via de uma “deliberação” do seu Conselho de Administração, atenta a natureza colegial deste.
Foi, de resto, exatamente neste pressuposto que o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, no qual a presente ação fora originariamente instaurada, se declarou materialmente incompetente para conhecer da presente ação.

Ora, não tendo a ação por base um ato administrativo, não faz sentido aferir, como aferiu a 1.ª instância, da sua procedência ou improcedência pelo facto de estar vedado aos tribunais comuns a apreciação da validade de tal tipo de atos.
A questão que aqui verdadeiramente está em causa é, antes, a de saber se, fundando a Autora a sua pretensão na invalidade da declaração unilateral de resolução do contrato pela Ré, pode o tribunal tomar conhecimento do pedido que aquela efetivamente formulou, que foi o da declaração de nulidade ou da anulação de um suposto ato administrativo.
E o certo é que parece claro que sim.

Na verdade, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5.º, n.º 3 do CPC), pelo que, no caso, o tribunal sempre pode conferir à questão a decidir um enquadramento diverso do que foi feito pela Autora.
Outrossim, aquilo que a Autora pretende na ação não é ver declarada a existência de um ato administrativo e extrair dessa declaração consequências jurídicas que dependam única e exclusivamente da natureza administrativa do ato.
Pelo contrário, aquilo que pretende é tão somente ver declarada a invalidade, seja por via da nulidade, seja pela da anulabilidade, de um ato jurídico que qualificou, é certo, como ato administrativo, mas em que tal qualificação surge, para efeitos daquela pretensão, como mera roupagem da mesma.
O que a Autora quer verdadeiramente, o núcleo essencial da sua pretensão, é a invalidade e/ou a cessação dos efeitos de um concreto ato jurídico praticado pela 1.ª Ré, independentemente da veste jurídica que este possa assumir.
Ora, relativamente a tal pretensão, é apodítico que ao tribunal comum não está vedada a possibilidade do seu conhecimento.
Por conseguinte, vindo, a final, o tribunal a declarar a invalidade do ato jurídico que realmente está em causa nos autos, ou, mesmo, vindo a declarar a sua mera ineficácia, o pedido que estará a conhecer será exatamente o mesmo que a Autora formulou na petição inicial, ainda que com um diferente enquadramento jurídico daquele que foi feito pela Autora.
O mesmo é dizer que, ao declarar a invalidade ou a ineficácia do ato, qualquer que seja o fundamento dessa invalidade ou ineficácia, sempre o tribunal estará a conhecer do pedido formulado, ainda que enquadrado no instituto jurídico que, de acordo com a sua interpretação do direito, reputa adequado.
Não havia, pois, e em suma, fundamento para que a 1.ª instância julgasse improcedente o pedido em apreço, com o fundamento que invocou para o efeito.
Impõe-se, consequentemente, a revogação da sentença na parte em que assim o concluiu e que os autos prossigam a sua tramitação normal, com apreciação de todas as questões que, no quadro dessa tramitação, haja de levar a cabo.
Procederá, pois, nesta parte, a apelação.

2.- Da existência ou falta de interesse em agir da Autora relativamente aos restantes pedidos que formulou contra a 1.ª Ré
Na sentença recorrida, no pressuposto de os restantes pedidos formulados na petição inicial serem dependentes do pedido acima apreciado, concluiu-se que a Autora não teria interesse na sua apreciação.
Consequentemente, nela se julgou verificada a exceção dilatória de falta de interesse em agir da Autora e se absolveu a Ré da instância quanto a eles.
Ora, liminarmente, a respeito desta questão, importa dizer que, independentemente de saber se o mesmo constitui um verdadeiro e autónomo pressuposto processual cuja falta, constituindo uma exceção dilatória, conduz à absolvição do réu da instância, nunca aqui estaria em causa uma questão relacionada com o interesse em agir da Autora.
Com efeito, o interesse em agir enquanto pressuposto processual consiste no interesse da parte em recorrer ao tribunal para fazer valer uma determinada pretensão de tutela jurisdicional.
Ou seja, e recorrendo às palavras de Miguel Teixeira de Sousa (in As Partes, o Objecto e a Prova na Acção declarativa, Lex, 1995, p. 97), traduz-se “no interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela”.
Exprime-se, assim, como se refere no Acórdão desta Relação do Porto de 05-06-2022 (proferido no processo n.º 5005/21.5T8PRT.P1, relatado por Eugénia Cunha, disponível no local acima referenciado e citado na sentença recorrida) pela “objectiva necessidade do processo (a concreta situação realmente carecida de tutela)” e pela “essencialidade da tutela judicial, a adequação entre o direito que se pretende exercer e o caminho (via judicial) escolhido pelo Autor”.
No caso, os pedidos em apreço são no sentido:
i.- da intimação da Ré para se abster de praticar qualquer ato que de algum modo possa limitar, afetar ou pôr em causa os direitos da Autora invocados na petição inicial;
ii.- da condenação da Ré no pagamento à Autora da quantia mensal de € 30.000,00 por cada mês que mediar entre outubro de 2022 e a data da efetiva abertura do locado, acrescida da compensação por danos não patrimoniais, meramente simbólica, de € 50.000,00 e do reembolso das despesas em que teve de incorrer de € 7.810,50, com juros de mora à taxa legal, desde outubro de 2022, data de vencimento da obrigação incumprida pelos Réus de disponibilização do locado em perfeitas condições de utilização.
Ora, tais pedidos estão em linha com aquilo que, a suportá-los, foi expendido pela Autora na petição inicial e que mereceu frontal oposição da Ré na contestação por esta apresentada.
O recurso a juízo era, pois, o único meio ao dispor da Autora para fazer valê-los, o que, em último termo, não permite outra conclusão que não a de que a Autora se encontrava, relativamente a eles, numa situação de carência objetiva de tutela judicial.
O mesmo é dizer que, relativamente a tais pretensões, a Autora estava, não só numa situação de “objectiva necessidade do processo”, como que tal processo primava pela “essencialidade [enquanto meio de] tutela judicial” e que entre uma e outro intercedia um nexo de “adequação”.
A Autora tinha, por conseguinte, mesmo depois de julgado improcedente o primeiro pedido que formulara contra a Ré, interesse em agir relativamente aos restantes pedidos.
De resto, a verificação de um pressuposto processual afere-se em face dos termos com que a Autora introduziu a causa em juízo, à luz, portanto, da forma como essa causa foi estruturada na petição inicial.
Ora, neste articulado, os dois pedidos formulados pela Autora aqui em apreço e o primeiro pedido acima apreciado estavam numa relação de interdependência, pelo que, tendo interesse em agir relativamente a um, também tinha interesse em agir relativamente aos restantes.
O facto de, entretanto, um deles ter sido julgado improcedente, em nada colidiria, como tal, com a manutenção do interesse em agir relativamente aos outros.
Falta de interesse em agir não era, pois, e em suma, fundamento para, tal como considerado pela 1.ª instância, o não conhecimento de tais pedidos.

Ora, tal fundamento, a existir, consistiria apenas no facto de o seu conhecimento estar dependente da subsistência do primeiro pedido formulado e de a improcedência deste acarretar a inviabilidade da apreciação dos demais.
Como quer que seja, reconhecida que foi na apreciação do ponto 1 que se impõe a prossecução dos autos para conhecimento daquele primeiro pedido, forçoso é, também, concluir que se impõe a prossecução dos autos para conhecimento destes.
Não há, em suma, fundamento válido para o não o conhecimento dos restantes pedidos formulados pela Autora.
Procede, assim, também aqui, a apelação, com a consequente revogação da sentença recorrida inclusive nesta parte.
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Porque vencida no recurso, suportará a Apelante as custas da apelação (art.ºs 527.º e 529.º do CPC).
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IV.- Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogando-se a sentença recorrida, determinar que os autos prossigam a sua tramitação normal, com apreciação de todas as questões que, no quadro dessa tramitação, haja de levar a cabo.
Custas da apelação pela Apelante.
Notifique.
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Porto, 11 de setembro de 2025
(assinado eletronicamente)
José Manuel Correia
João Venade
Carlos Cunha Rodrigues Carvalho