Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOÃO VENADE | ||
Descritores: | ESCRITURA PÚBLICA COMPRA E VENDA NEGÓCIO USURÁRIO NEGÓCIO CONTRA OS BONS COSTUMES NULIDADE DO CONTRATO | ||
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Nº do Documento: | RP202306011571/19.3T8AVR.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/01/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA EM PARTE | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A declaração de recebimento do preço pelos compradores, constante de escritura pública de compra e venda, constitui confissão extrajudicial de recebimento desse valor. I.I - A mesma confissão só pode ser afastada por falsidade do contrato ou por prova de vícios da vontade dos compradores. II - No negócio usurário (artigo 282.º, n.º 1, do C. C.), podendo admitir-se que possa consistir numa atuação sem conhecimento, pelo usurário, da debilidade da vítima, à partida exige-se a exploração consciente de tal situação. II.I. - Não havendo prova de que os compradores conhecessem o estado psíquico e psicológico dos Réus nem a situação económica difícil de um dos vendedores, não se prova a referida exploração da sua debilidade, não se apurando o vício da usura. III - Deve ser declarado nulo, por ofensivo dos bons costumes (artigo 280.º, n.º 2, do C. C), o negócio em que: - os compradores têm perturbações psíquicas ou psicológicas, um deles (Ré) com perturbação ligeira do desenvolvimento intelectual, que pode impedir ou dificultar a compreensão e avaliação do sentido de uma declaração negocial; - há necessidade de se obter dinheiro para pagar dívidas (Réu) sendo a sua pretensão obter dinheiro e não a venda do bem; - há desproporção assinável entre o preço pago – 20.000 EUR – e o valor atribuído ao imóvel pelos serviços fiscais - cerca de 65.000 EUR; - o imóvel vendido ser o local onde os Réus residiam. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc.º 1571/19.3T8AVR.P1 Sumário. ……………………………. ……………………………. ……………………………. * 1). Relatório. AA e mulher, BB, residentes na Rua ..., ..., Paços de Ferreira, propuseram contra CC e DD, residentes na Rua ..., Albergaria-a-Velha Ação declarativa de condenação com processo comum, pedindo que os Réus sejam condenados a: a) Reconhecer que os Autores são os donos e legítimos possuidores do prédio identificado no artigo 1.º da petição; b) Consequentemente condenados a restituir imediatamente aos Autores o aludido prédio livre de pessoas e coisas. c) A pagar aos Autores uma indemnização pela ocupação ilegítima do imóvel no montante de 350,00€ por mês, desde a data da citação até efetiva entrega do imóvel, livre de pessoas e coisas, a liquidar em sede de execução de sentença. Em síntese, alegam que: - são donos de fração autónoma designada pela letra «F», sita na entrada ..., ..., destinada à habitação, com uma garagem na cave designada pela mesma letra, descrita na conservatória do registo predial de Albergaria-A-Velha sob o número ...85... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...0, com valor patrimonial atual de 65.160 EUR; - os Réus estão a ocupar o referido imóvel sem qualquer título legítimo que lhes permita fazê-lo, já tendo solicitado a sua entrega, o que recusam; - tal recusa está-lhes a causar no mínimo um prejuízo mensal equivalente ao valor de renda, a preços normais de mercado, caso os Autores já o tivessem arrendado. * Citados, contestaram os Réus alegando, em resumo, que:- impugnam o alegado em 1 a 12 da petição; - foram enganados pelo Autor marido, desconhecendo quem é a Autora pois o prédio atualmente tem o valor patrimonial, de 65.160 EUR pelo que «quem é que no seu perfeito juízo mental venderia um imóvel pelo preço de 20.000 EUR, sendo esta a sua casa de morada de família desde sempre, tendo ficado para os dois por morte do marido da Ré, pai do Réu; - não era vontade dos réus vender; - o Autor marido aproveitou-se da fragilidade da mãe e deste filho que padecem de anomalias psíquicas gravíssimas; - invocam a anulabilidade do negócio jurídico. Pedem a absolvição da instância e que se declare a anulabilidade do negócio e em consequência restituir-se aos réus o prédio, declarando-os donos e legítimos possuidores deste. * Em 03/10/2019 é proferido despacho onde o tribunal convida os Réus a aperfeiçoarem a sua contestação, não tendo os mesmos respondido.Em sede de audiência prévia, os Autores impugnaram o alegado pelos Réus e estes pediram prazo para aperfeiçoarem a contestação, o que foi deferido. Apresentaram novo articulado onde pedem a improcedência da ação e, em reconvenção, a declaração de anulabilidade do contrato e a indicada restituição do imóvel. * Responderam os Autores mencionando que:- nos termos do artigo 583.º, n.º 1, do C. P. C., a reconvenção deve ser expressamente identificada e deduzida, separadamente, na contestação, o que os Réus não cumpriram; - não podem, em sede de aperfeiçoamento da contestação, deduzir pedido reconvencional, que não formularam no prazo da sua primeira contestação; - nos termos do disposto no artigo 287.º, do C. C., a anulabilidade só pode ser invocada dentro de um ano, a contar do negócio pelo que quando os Réus contestaram (13/06/2019) já há muito que tinha sido ultrapassado o referido prazo de um ano; - todos o conteúdo da escritura foi lido e explicado pelo notário aos intervenientes. Pedem que sejam declarados caducados os direitos de deduzir reconvenção, bem assim como o de requerer a anulabilidade do negócio. Caso assim, se não entenda, sempre devem os pedidos formulados pelos Réus ser julgados totalmente improcedentes. * Por despacho de 01/10/2020, o tribunal decide:- admitir o pedido reconvencional; - remeter para final o conhecimento da invocada caducidade; - identificou o objeto do litígio como sendo a validade do contrato de compra e venda celebrado entre Autores e Réus a 18/12/2017 e como temas de prova: - valor do prédio objeto do contrato de compra e venda; - problemas de saúde, nomeadamente mental, de que sofrem ambos os Réus e/ou sofriam na altura em que foi celebrada a escritura de compra e venda; - toxicodependência do Réu na altura em que foi celebrada a escritura de compra e venda; - circunstâncias em que foi celebrada a escritura de compra e venda; - situação económica dos Réus na altura em que foi celebrada a escritura de compra e venda.». * Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo-se os Réus dos pedidos e julgou procedente a reconvenção, declarando-se nulo o negócio em causa e condenando-se os reconvindos a restituírem aos reconvintes a fração ali descrita e os reconvintes a restituírem aos Autores a quantia de 12 000 EUR.* Inconformados, recorrem os Autores, formulando as seguintes conclusões:«Deveria ter ficado provado: «1º- A fração referida em 1, dos factos provados foi vendida pelos Réus e comprada pelos Autores pelo preço de 20.000,00€, que efetivamente foram entregues aos Réus. Com efeito, 2º- O autor entregou aos Réus, no ato da escritura dois cheques, um de 12.000,00€ e outro de 8.000,00€, sendo que, após a celebração da escritura e já no exterior do Cartório, Ré CC solicitou a troca do cheque de 8.000,00€, por numerário, ao que o Autor marido acedeu. 3º- O Réu na altura da celebração do negócio referido em 1 dos factos provados, era consumidor de estupefacientes, pretendendo, inicialmente um empréstimo para pagar dívidas, nomeadamente junto de um traficante de droga, que o ameaçava. 4º- No dia da escritura, chegados a Paços de Ferreira, almoçaram na companhia da testemunha EE e marido. 5º- A Ré teve consciência e percebeu as explicações dadas pelo notário na altura da escritura. 6º- Impunha-se essa conclusão por todas as provas produzidas, nomeadamente pela análise do relatório pericial com a referência 11883655 de 30/08/2021, conjugado com as declarações das testemunhas FF (notário) e declarações da testemunha EE e pelo documento com a referência 124702453 e demais prova documental. 7º- Deverão pois as respostas dadas aos pontos 2 segunda parte., 7, 14 e 23 ser alteradas no sentido apontado nas antecedentes conclusões; 8º- Consequentemente, e face à matéria de facto alterada, terá de concluir-se que os Réus receberam efetivamente 20.000,00€ pelo negócio celebrado, e que os Réus tiveram perfeita consciência do negócio que realizaram. 9º- Os AA não se podem conformar também, quanto à matéria de direito, com a sentença proferida, pois, entendem não estarem verificados, quer os pressupostos, quer os requisitos para aplicação de qualquer uma das três causas de invalidade apontadas na sentença de que se recorre. 10º- Os Réus não alegaram sequer, nem na reconvenção nem na contestação factos que pudessem ser subsumidos a qualquer uma dessas apontadas invalidades, o que se lhe impunha nos termos do disposto no artigo 583 n.º1 do CPC Quanto à nulidade da escritura pública por ser ofensiva dos bons costumes 11º- A meritíssima juíza aplicou incorretamente o disposto no artigo 280 n.º2 do Civil, ao considerar que na compra e venda realizada, houve violação dos bons costumes. 12º- Tal preceito visa sancionar com a nulidade situações que sejam contrárias à moral pública, ou seja, negócios que tem por objeto atos imorais. 13º- Não resultou da factualidade provada que os RR. não soubessem exatamente o negócio que estavam a fazer, sendo que o negócio não é imoral só porque uma das partes possa estar mais fragilizada. 14º- O negócio não é imoral porque o preço convencionado é inferior ao valor patrimonial tributário, além de que, nenhuma prova se fez, que o valor real do prédio correspondesse ao seu valor tributário, foi formalizado por escritura pública, conforme exige o disposto no artigo 875º do CC; 15º- Antes, pelo contrário resulta da prova produzida desde logo, que os Réus tinham urgência na venda, e além disso, o apartamento estava em muito mau estado. 16º- Mas mesmo que assim não fosse, situações desta natureza ocorrem no âmbito do comércio imobiliário, ocorrem igualmente, no âmbito das vendas judiciais (sejam elas, executivas, fiscais, ou de processos de insolvência) e são entendidas e aceites como normais, sem constituírem qualquer ofensa do sentido da moral vigente, antes sendo entendidas como “ boas oportunidade de negócio ” para os compradores. 17º- O negócio foi celebrado há mais de 5 anos! 18º- Da prova produzida, não resultou que o A. marido, ao celebrar este negócio, e pela forma legalmente prevista, tivesse praticado qualquer ato imoral ou ofensivo da ética subjacente ao conceito de bons costumes, sendo inaplicável o disposto no artigo 280 n.º 2 do C. Civil. Quanto à anulabilidade da escritura de compra e venda por incapacidade acidental da Ré. 19º- Os RR na sua contestação/reconvenção, não alegaram sequer factos suscetíveis de integrarem a causa de pedir (da reconvenção) que conduziria ao preenchimentos dos pressupostos essenciais à verificação da invalidade da escritura de compra e venda, por incapacidade acidental da Ré. 20º- Com efeito, na contestação apenas alegaram que os Réus sofriam de “…anomalias psíquicas gravíssimas…”, não tendo alegado quaisquer factos concretos na reconvenção, nem na contestação, suscetíveis de conduzirem à verificação dos requisitos exigidos para anulação da declaração negocial com base na incapacidade acidental da Ré. 21º- Para estarem preenchidos os requisitos previstos no artigo 257 n.º 1 do C. Civil a lei exige dois requisitos: do lado do declarante é necessário que este se encontre acidentalmente incapacitado de compreender o sentido da declaração ou que não tenha o livre exercício da sua vontade; do lado do declaratário exige-se que o facto seja notório ou conhecido. 22º- Quanto ao primeiro requisito, a meritíssima juíza, conclui que a Ré não participou nas negociações que antecederam a escritura, que tinha deficiências cognitivas e que estas estavam presentes no dia da escritura, e que por isso esta estava incapacitada. 23º- Ora, salvo o devido respeito, não podia a meritíssima juíza a quo, face à completa falta de alegação e prova, chegar a essa conclusão. 24º- Com efeito, o facto de poder não ter participado nas negociações, não significa que não estivesse perfeitamente inteirada e consciente do ato que ia realizar, pois, até depois dessa escritura, tratou da obtenção de uma certidão para cancelamento de um ónus (penhora). 25º- Quantas vezes, no comércio imobiliário e não só a negociação é feita com apenas uma parte, (às vezes só marido, ou só mulher, um só um filho, ou só dois, e no dia da escritura são muitos mais os intervenientes do que aqueles que estiveram nas negociações). 26º- Daí, que, tal circunstância não é por si só, relevante. 27º- Quanto às deficiências cognitivas da Ré, a meritíssima juíza alicerçou a sua convicção apenas em dois meios de prova, o relatório de exame pericial feito a Ré, e as declarações de parte do co-Réu. 28º- Resulta do ponto 5.conclusões do relatório do exame pericial o seguinte: ” No caso em apreço, o referido diagnóstico de Perturbação Ligeira do desenvolvimento intelectual corresponde, à partida, a patologia que impeça ou dificulte a compreensão e avaliação no sentido de uma declaração negocial, mais concretamente, da escritura de compra e venda. No entanto, os dados do histórico clinico da examinanda não caracterizam , de forma suficiente, a referida limitação da capacidade cognitiva de modo a poder discriminar a magnitude dessa incapacidade.” negrito e sublinhado nosso). 29º- Ora, a Ré não foi declarada incapaz, nem consta do processo que tenha sido já requerida essa declaração, recorde-se que a venda é de 2017, encontrando-nos em 2023! 30º- Por outro lado, mesmo que se aceitasse que a Ré padece de algum tipo de doença mental, esta pode não afetar o discernimento da pessoa em querer e entender o conteúdo da escritura que celebrou. 31º- Pois, a incapacidade acidental não é um efeito automático de qualquer doença mental, e muito menos, quer da perturbação da personalidade ligeira a moderada, ou da perturbação ligeira do desenvolvimento intelectual, diagnósticos apontados à Ré, no relatório com a referência 11883655 de 30/08/2021. 32º- Todavia, a meritíssima juíza na decisão de que agora se recorre, atribuiu-lhe este efeito automático, o que não se pode aceitar, pois reconhecendo que “Embora o relatório pericial seja inconclusivo quanto à incapacidade da Ré para, no momento da escritura perceber o seu alcance, não afasta essa possibilidade” (vide fundamentação da douta sentença, quanto ao ponto. 23 dos factos provados e b) dos factos não provados). 33º- Socorreu-se ainda para fundamentar a incapacidade acidental da Ré nas declarações de parte do co -Réu DD, e quanto a estas, apenas naquelas que lhe favoreciam o raciocínio, sem fazer uma análise critica, quer das próprias declarações do co -Réu, quer destas conjugadas com a restante prova produzida, quer documental, quer testemunhal. 34º- Com efeito, não raras vezes o Réu DD, distraído da narrativa que quis contar ao Tribunal, disse coisas absolutamente contraditórias, com o estado de apatia e inércia que o Réu quis fazer crer. 35º- Foi apenas esta prova, muito frágil, pouco sustentada, que a meritíssima juíza entendeu ser suficiente para declarar que a Ré estava incapacitada acidentalmente, quando interveio na escritura. 36º- Todavia, ainda que se entendesse que estava preenchido o requisito do lado do declarante, o que não se concebe, necessário era, ainda, ver se estava igualmente verificado o do lado do declaratário. 37º- Está assente no ponto 15 dos factos provados que os Réus só conheceram o A. marido na hora da escritura. 38º- Nenhuma prova se fez, quanto a saber se a testemunha EE sabia efetivamente da alegada incapacidade da Ré, e da toxicodependência do Réu, quanto mais, que esta tenha transmitido ao A. marido, de modo a que este conhecesse e tivesse consciência delas. 39º- Essa alegada incapacidade não era notória, tendo inclusive a meritíssima juíza, afastado esse requisito, atentas, desde logo, as declarações da testemunha FF (Notário). 40º- Do lado do declaratário não estava preenchido esse requisito, tendo a meritíssima juíza formado a sua convicção baseada em suposições e não em factos, como se lhe impunha, nos termos do disposto no artigo 583 n.º 1 do CPCivil. 41º- Não podia pois, anular a escritura de compra e venda por incapacidade acidental da Ré, pois não estavam preenchidos todos os requisitos exigidos pelo artigo 257 do C. Civil. Quanto à anulabilidade da escritura por celebração de negócio usurário 42º- Também aqui, quanto a esta causa, não foram alegados quaisquer factos, na reconvenção ou na contestação, de que pudessem resultar factos provados, com base nos quais, a meritíssima juíza alicerça-se a sua convicção e fundamentação. 3º- Aliás, nenhuma prova se fez, conforme supra já se referiu, demostrativa de que o A. conhecesse o estado de fragilidade dos RR. ou a fraqueza do seu carater, conforme alude a meritíssima juíza. 44º- Quanto ao preço nenhuma prova se fez, de que era tão diminuto face ao valor real, pois os RR, não alegaram factos e não demonstraram qual o valor real da fração, sendo que o valor patrimonial é meramente indicativo, para efeitos de cobrança de impostos, estando, as mais das vezes desfasado da realidade por defeito ou por excesso. 45º- Era aos RR. que competia essa prova, o que não foi feita. 46º- Todavia, sem qualquer prova que o sustente, a meritíssima juíza conclui que o A. marido abusou do estado mental e da fraqueza do carater dos RR. 47º- Ora, os AA mantêm-se na propriedade do imóvel, volvidos cerca de 5 anos, sobre a sua aquisição, tendo sido iniciativa dos autores intentar a presente ação. 48º- Os AA. tem tido despesas com o imóvel, nomeadamente condomínio e despesas com o IMI ( ponto 17 dos factos provados). 49º- A fração está muito danificada. 50º- Nenhum facto se provou quanto à consciência de tirar proveito da inferioridade dos RR, nem que os AA., tenham alcançado um benefício manifestamente excessivo ou injustificado, pois o prédio não foi vendido pelos AA. 51º- Não se mostram pois preenchidos os requisitos desta causa de invalidade. 52º- Por tudo isto, outra conclusão não se pode tirar, a não ser a de que, o contrato de compra e venda celebrado entre o A. marido e os RR., foi outorgado sem vícios na formulação da vontade e representa um ato de livre manifestação da autonomia privada. Quanto à exceção de caducidade invocada pelos Autores 53º- Quando os Réus contestaram a ação (13/06/2019) já, há muito, que tinha sido ultrapassado o prazo de um ano, para arguir as anulabilidades previstas nos artigos 257 do C. Civil e 282 do C. Civil, pois tendo sido a escritura celebrada em 18/12/2022, o prazo para arguir a anulabilidade há muito se encontrava esgotado. 54º- Pelo que, deveria ser ter sido declarado caducado o direito de requerer a anulabilidade do negócio celebrado pelos Réus. 55º- Mostram-se violados por erro de interpretação e aplicação nomeadamente o disposto nos artigos nºs 257 do C. Civil, artigo 280 n.º 2, artigo 282 do C. Civil, artigo 287 do C. Civil, artigo 583 nº1 do CPC e 607 nº 4 do CPC; 56º- Ao decidir como decidiu, e por manifesto erro na apreciação da matéria de facto e na aplicação do direito deverá a douta Sentença ser alterada.». Terminam pedindo a revogação da decisão proferida, sendo substituída por outra que: 1) - Reconheça que os Autores são os donos e legítimos possuidores do prédio. 2) Consequentemente, condene os RR, a restituir imediatamente aos Autores o aludido prédio livre de pessoas e coisas, 3) Condene os RR, a pagar aos Autores uma indemnização pela ocupação ilegítima do imóvel no montante de 350,00€ por mês, desde a data da citação até efetiva entrega do imóvel, livre de pessoas e coisas, a liquidar em sede de execução de sentença. * Não houve contra-alegações.* As questões a decidir são:- apreciação da matéria de facto, incidindo principalmente sobre o valor pago e entregue pelos Autores aos Réus e a capacidade da Ré em compreender o conteúdo do contrato; - validade do contrato de compra e venda, com possível anulação por usura ou nulidade do mesmo por violação de bons costumes; * 2). Fundamentação.2.1). De facto. Foram julgados provados os seguintes factos: «1 – Por escritura pública do dia 18/12/2017, lavrado no Cartório Notarial do Dr. FF, sito na Rua - B, na cidade e concelho ... o Autor Marido comprou aos Réus a fracção autónoma designada pela letra “F”, sita na entrada ..., ..., destinada à habitação, com uma garagem na cave designada pela mesma letra, descrita na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha sob o número ...85... e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...0, com valor patrimonial actual de 65.160,00€. 2 - Essa fracção foi vendida pelos Réus e comprada pelos Autores pelo preço de 20.000,00€, sendo que só foram, efectivamente, entregues aos Réus 12.000,00€. 3 – Os Réus continuam a ocupar o referido imóvel. 4 - Os Autores solicitaram aos Réus a sua entrega por cartas registadas, datadas de 11/03/2019, enviadas a cada um dos Réus, entrega que até hoje não aconteceu. 5 - Os Autores arrendariam esse imóvel no mínimo por 350,00€ por mês. 6 – O prédio descrito em 1 sempre foi a casa de morada de família dos aqui Réus, pertencendo antes da morte do marido da Ré ao casal, passando a pertencer aos réus em virtude desse óbito, sendo a ré cabeça de casal da herança. 7 – O Réu, na altura da celebração do negócio referido em 1, era consumidor de estupefacientes, pretendendo, por motivo não concretamente apurado, obter um empréstimo. 8 – Viu um anúncio no jornal, com contacto telefónico, informando que emprestavam dinheiro. 9 – O réu ligou para esse contacto, atendendo uma mulher que se apresentou com o nome de EE. 10 – Nesse contacto combinaram que esta se deslocaria a casa dos aqui réus para conversarem sobre o empréstimo e em que consistiria o mesmo. 11 – A referida EE deslocou-se a casa dos Réus, acompanhada pelo marido, altura em que falaram com o réu sobre os termos do negócio. 12 – A Ré não se encontrava em casa. 13 – Na sequência dessa deslocação, foi marcada a escritura referida em 1, deslocando-se os Réus a Paços de Ferreira, a fim de se efectuar a sua realização. 14 - Essa deslocação foi feita de comboio até Campanhã, onde o marido da referida EE os foi buscar, levando-os na sua viatura automóvel até Paços de Ferreira onde almoçaram na companhia da referida EE e marido. 15 - Apenas na hora da escritura os réus conheceram o aqui Autor, nunca o tendo visto, nem falado com ele antes desse momento. 16 - No momento da celebração da escrituram os RR e o Autor foram identificados, tendo o seu conteúdo sido lido e explicado pelo notário aos intervenientes. 17 – São os Autores que têm pago as quotas do condomínio bem como o IMI relativos à fracção. 18 – A Ré, tem tido acompanhamento psiquiátrico no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar do Baixo Vouga desde 1999, com acompanhamento em consulta externa e internamento psiquiátrico em 2006, 2008, 2013, e 2014. 19 – Apresenta um quadro clínico mais consistentemente definido por atraso ligeiro do desenvolvimento cognitivo e episódios de sintomatologia depressiva e ansiosa condicionados por traços de personalidade desadaptativos. 20 - Em Outubro de 2019 a ré foi internada em Neurologia no CHBV, por crise epiléptica e, posteriormente, orientada para uma unidade de cuidados continuados. Em Fevereiro de 2021 foi novamente internada, em medicina interna no CHBV, com quadro clínico médico complexo. 21 - Actualmente, mantém-se internada na unidade de cuidados continuados de longa duração de ..., desde Março de 2021 22 - A Ré reúne critérios para os diagnósticos de perturbação da personalidade ligeira a moderada e de perturbação ligeira do desenvolvimento intelectual, correspondendo este último diagnóstico a um quadro clínico que pode impedir ou dificultar a compreensão e avaliação do sentido de uma declaração negocial. 23 – A Ré não teve consciência que, através da escritura referida em 1, estava a vender a fracção aí descrita, só disso tomando consciência quando recebeu a carta que constitui o documento 5 junto com a petição inicial, datada de 11 de março de 2019. 24 – O Réu é consumidor de substâncias psicoativas desde os 19 anos sendo acompanhado em consulta externa de psiquiatria desde 2009, (2009-2010, 2013, 2014, 2015, 2017, 2021 25 – Na data de 18 de Setembro de 2017 preenchia critérios para o diagnóstico da seguinte perturbação aditiva – Perturbação do uso de múltiplas substâncias psicoativas – cocaína, heroína, canabinoides. 26 - Os dados anamnésicos e o padrão de comportamento interpessoal ao longo do desenvolvimento permitem ainda considerar a presença de traços desadaptativos de personalidade, com padrão dissocial e de desinibição. 27 – Apesar do impacto significativo das perturbações aditiva e da personalidade no funcionamento interpessoal e social do examinado, as alterações psicopatológicas e comportamentais não eram de natureza ou grau que determinassem uma incapacidade do examinado em compreender ou avaliar o sentido de uma declaração negocial (nomeadamente a compreensão dos termos da escritura de compra e venda).». E resultaram não provados: «a) Na altura da celebração do negócio referido em 1, o Réu estivesse sob ameaça de morte da sua mãe, em virtude de uma dívida que contraiu junto de um traficante de droga. b) A Ré tenha percebido as explicações dadas pelo notário na altura da escritura.». * 2.2). Do mérito do recurso.A). Impugnação da matéria de facto. Facto provado 2. A fração foi vendida pelos Réus e comprada pelos Autores pelo preço de 20.000 EUR, sendo que só foram, efetivamente, entregues aos Réus 12.000 EUR. O tribunal fundamenta este facto referindo que o faz com base no documento n.º 1 junto com a petição inicial e no documento de fls. 49 (extrato bancário). Embora na escritura pública se mencione que foram entregues aos vendedores dois cheques (de 12.000,00€ e de 8.000,00€) do extrato bancário resulta que apenas foi depositado o cheque de 12.000,00€ e não já o cheque de 8.000,00€. O Réu afirmou que este valor nunca lhe foi entregue, contra as suas expectativas. O Autor, confirmou que (contrariamente ao referido na escritura) parte da quantia, mais concretamente 8.000,00€ não foram pagos em cheque mas em dinheiro por, no dia da escritura, tal lhe ter sido pedido pela Ré. Ora, face a estas declarações do Autor, terá de concluir-se que as declarações prestadas perante o notário “que o preço estipulado, foi pago nesta data pela entrega de dois cheques no montante de 12.000,00€ e 8.000,00€”, não correspondem à verdade. Quanto à afirmação feita pelo Autor de que entregou 8.000,00€ em dinheiro a pedido da Ré, tal afirmação não mereceu credibilidade pois conforme abaixo melhor se desenvolverá, o estado mental da Ré não lhe permitiria fazer tal pedido. Assim, da prova produzida resulta que, efetivamente, apenas foi feito o pagamento dos 12.000,00€ comprovado através de extrato bancário. Os recorrentes pretendem que se dê como provado que foram entregues efetivamente 20.000 EUR. Vejamos. Na escritura que sustenta a comora e venda do imóvel, ocorrida em 18/12/2017, consta que o preço de 20.000 EUR já tinha sido recebido, pela entrega de dois cheques, com os nºs. ...09, no valor de 12.000 EUR e ...95, no valor de 8.000 EUR, que os vendedores declaram ter recebido. Assim, nos termos do artigo 371.º, n.º 1, do C. C.[1], tal documento faz prova plena que os recorridos/Réus declararam que já tinham recebido o preço da venda, através de dois cheques naqueles valores. Como tal, por força do disposto nos artigos 352.º[2] e 355.º, n.º 4[3], do C. C., essa declaração constitui-se como sendo uma confissão extrajudicial, tendo força probatória plena, conforme artigo 358.º, n.º 2[4], do C. C.. Pode essa confissão ser destruída mediante a prova de que o documento é falso (artigo 372.º, n.º 1, do C. C.), algo que não foi alegado – os Réus não alegam que não foi produzida aquela declaração de recebimento e muito menos que o documento está materialmente alterado). Pode ainda ser afastada a confissão nos termos do artigo 359.º, do C. C.[5], ou seja, pode ser declarada nula ou anulada, por falta ou vícios de vontade. Os Réus efetivamente alegaram que foram enganados pelo Autor, que não era sua vontade vender, julgando que iam celebrar um empréstimo, só tendo sido elucidados no dia da realização da escritura que se trataria de uma venda por 12.000 EUR; mais alegam que, por motivo de doença psíquica gravíssima os Réus eram incapazes, tendo o Autor marido aproveitado-se dessa fragilidade. Em resumo, alegam que foram enganados por um esquema de fraude encetado pelo Autor com ajuda de EE, e que assinaram a escritura, a Ré não sabendo de todo o que assinou, não sendo essa a sua vontade, e o Réu incapacitado para discernir o que estava a fazer no momento em que julgava apenas que iria assinar documentos de empréstimo (artigos 26.º e 27.º da contestação aperfeiçoada). Assim, para se aferir se pode aquela confissão extrajudicial pode deixar de produzir efeito face à alegação destes vícios, vejamos se os mesmos estão provados e se são impugnados pelos recorrentes e qual a sorte dessa impugnação. Os factos a atender são: 7). O Réu, na altura da celebração do negócio referido em 1, era consumidor de estupefacientes, querendo obter um empréstimo. 8). Viu um anúncio no jornal, com contacto telefónico, informando que emprestavam dinheiro e ligou para o mesmo (9). 11). EE, com o marido, deslocou-se a casa dos Réus conversarem sobre o empréstimo e em que consistiria o mesmo, tendo falado com o Réu (12). 15). Apenas na hora da escritura os Réus conheceram o aqui Autor, nunca o tendo visto, nem falado com ele antes desse momento. 16). No momento da celebração da escritura o seu conteúdo foi lido e explicado pelo notário aos intervenientes. 18). A Ré, tem tido acompanhamento psiquiátrico no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar do Baixo Vouga desde 1999, com acompanhamento em consulta externa e internamento psiquiátrico em 2006, 2008, 2013, e 2014. 19) Apresenta um quadro clínico mais consistentemente definido por atraso ligeiro do desenvolvimento cognitivo e episódios de sintomatologia depressiva e ansiosa condicionados por traços de personalidade desadaptativos. 20). Em outubro de 2019 a Ré foi internada em Neurologia no CHBV, por crise epiléptica e, posteriormente, orientada para uma unidade de cuidados continuados. Em Fevereiro de 2021 foi novamente internada, em medicina interna no CHBV, com quadro clínico médico complexo. 21). Atualmente, mantém-se internada na unidade de cuidados continuados de longa duração de ..., desde Março de 2021. 22). - A Ré reúne critérios para os diagnósticos de perturbação da personalidade ligeira a moderada e de perturbação ligeira do desenvolvimento intelectual, correspondendo este último diagnóstico a um quadro clínico que pode impedir ou dificultar a compreensão e avaliação do sentido de uma declaração negocial. 23). A Ré não teve consciência que, através da escritura referida em 1, estava a vender a fracção aí descrita, só disso tomando consciência quando recebeu a carta que constitui o documento 5 junto com a petição inicial, datada de 11 de março de 2019. 24). O Réu é consumidor de substâncias psicoativas desde os 19 anos sendo acompanhado em consulta externa de psiquiatria desde 2009, (2009-2010, 2013, 2014, 2015, 2017, 2021). 25). Na data de 18/09/2017 preenchia critérios para o diagnóstico da seguinte perturbação aditiva – Perturbação do uso de múltiplas substâncias psicoativas – cocaína, heroína, canabinoides. 26). Os dados anamnésicos e o padrão de comportamento interpessoal ao longo do desenvolvimento permitem ainda considerar a presença de traços desadaptativos de personalidade, com padrão dissocial e de desinibição sendo que, apesar do impacto significativo das perturbações aditiva e da personalidade no funcionamento interpessoal e social do examinado, as alterações psicopatológicas e comportamentais não eram de natureza ou grau que determinassem uma incapacidade do examinado em compreender ou avaliar o sentido de uma declaração negocial (nomeadamente a compreensão dos termos da escritura de compra e venda). Destes factos, os recorrentes só questionam o facto 23 que é aquele onde se exara que a Ré não tinha consciência que estava a celebrar um contrato de compra e venda. O tribunal recorrido afirma, sobre este facto, que se ponderou o depoimento do Réu DD e que, embora o relatório pericial seja inconclusivo quanto à incapacidade da Ré para, no momento da escritura perceber o seu alcance, não afasta essa possibilidade, referindo apenas que não estão disponíveis dados, nomeadamente resultantes do exame direto, que permitam confirmar ou qualificar esse eventual impedimento ou dificuldade. Ora, face ao depoimento do Réu e à incongruência do depoimento da testemunha EE, entende-se que se pode concluir com segurança da falta de consciência da Ré. Os recorrentes insurgem-se contra esta visão e, na nossa opinião, pensamos que efetivamente não é possível concluir que, na altura da celebração da escritura de compra e venda, a Ré não tinha consciência que estava a vender a fração. Em termos científicos, face à falta de conclusão do relatório pericial, não é possível afirmar essa falta de consciência. Mesmo que através da definição de perturbação ligeira de desenvolvimento intelectual[6] se possa perspetivar que a Ré poderia ter dificuldade em compreender a celebração de um contrato de compra e venda, tal como referido no relatório pericial, além de não se ter elementos sobre que tipo de dificuldade tinha a mesma naquela data, também é certo que não se pode ter a certeza que é essa a doença de que sofre a mesma Ré. O relatório menciona que, ao longo da análise a que tem sido medicamente sujeita, têm sido proferidas várias referências diagnósticas (além daquela, também perturbação da personalidade e perturbação obsessiva-compulsiva, como consta no relatório efetuado ao co-Réu, junto em 23/02/2022) pelo que existe a perceção de que pode existir aquela perturbação ligeira de desenvolvimento intelectual, mas não há a conclusão segura que seja efetivamente essa a sua situação. E para se poder concluir que existia aquela falta de consciência, teria que se recorrer a outros elementos para aferir se, aquela perturbação ligeira de desenvolvimento intelectual de que eventualmente padecerá, tinha dificultado à Ré a compreensão da celebração daquele contrato e em que medida. Tais elementos seriam, entre outros certamente possíveis, a sua postura na data da realização da escritura (apática, interveniente, alheada, infantilizada), teor de conversas que teriam existido consigo de onde se poderia retirar se tinha ou não perceção do que se iria passar ou do que se tinha passado, alguma atitude que demonstrasse que não tinha tido a perceção de venda do imóvel – realização de obras, colocação de anúncio para venda do imóvel, escrito ou conversa co alguém de onde decorresse a falta de consciência -. Ou, procurando ainda uma mais profunda manifestação da incapacidade, ainda que nos contornos de ligeira perturbação, poderia descortinar-se a existência de situações do dia-a-dia que demonstrassem a sua capacidade de desenvolver atividades mais simples ou rotineiras, mas, em contraponto, a necessidade de auxílio para a realização de tarefas em que, ainda que relativamente simples, para a Ré fosse necessária a ajuda de terceiro. O tribunal recorrido encontrou esses elementos no depoimento do seu filho, o co-Réu DD; ora, na nossa visão, o depoimento que o mesmo prestou não pode merecer relevância positiva, pelo menos ao nível que lhe foi atribuído. Descreveu inicialmente, de modo mais ponderado, o necessitar de dinheiro e ter encontrado um anúncio num jornal, tendo telefonado para o contacto que aí estava mencionado. Teria falado com uma mulher (a testemunha EE) sendo que depois já é mais confusa a sua explicação para o que foi acordado – pagamento de 65.000 EUR, entregando logo 20.000 EUR, mas só recebendo 12.000 EUR e que teria de devolver o dinheiro ao fim de cinco anos -. Pouco fiável também a sua alegada e concreta dívida que colocaria em risco a sua vida e a de sua mãe, corretamente dada como não provada pelo tribunal recorrido. Depois mencionou que a sua mãe acharia que se ia buscar o dinheiro da lotaria pois foi essa explicação que ele, Réu, deu a sua mãe. Por fim, no dia da escritura, foi alcoolizado por EE e o marido, estando alheado no momento da realização da mesma, sendo que no decurso do depoimento em julgamento sentiu necessidade de tomar medicação para a ansiedade, o que fez. No relatório pericial efetuado à pessoa deste Réu, já referido, consta que o mesmo em 2021 teria perturbação da personalidade, sendo que teve alta em agosto de 2021 com o diagnóstico de perturbação de personalidade, abuso de álcool, em remissão, deficiência intelectual ligeira. Esta última não é confirmada no relatório pericial junto aos presentes autos, mas, na nossa opinião, o que o Réu afirma não pode ser atendido como certo e correto, tendo de permanecer alguma dúvida ao que afirma face aos contornos da sua personalidade. E acresce que é a parte que depõe em seu favor pois quem teria realizado todo o negócio teria sido ele, Réu, pelo que que também tem de se colocar alguma barreira ao que afirma, pois, o Réu quer evitar que os seus atos possam prejudicar a mãe; ou seja, o Réu tem todo o interesse em mencionar que a sua mãe não percebeu o que estava a suceder pois daí poderá resultar o impedimento à perda da sua habitação. Esse interesse, como em qualquer depoimento de parte, tem de ser ponderado com maior cautela pois ele pode determinar o conteúdo do depoimento no sentido de ser classificado como interessado. Por isso, teriam que existir outros meios de prova que mostrassem com segurança que a mãe do Réu não tinha capacidade para compreender o que estava a assinar no cartório notarial; ora, o notário – FF – referiu que não detetou qualquer problema na Ré, mencionando que explicou o conteúdo aos presentes. O depoimento de EE, que o tribunal recorrido entendeu ser sem credibilidade e inverosímil, mais no sentido de não ser possível não ter percebido que o Réu era toxicodependente; mas a questão em análise não se relaciona com essa situação, mas antes com a falta de compreensão da mãe do Réu e sobre esta não detetamos que a testemunha tenha mencionado qualquer argumentação que pudesse levar a concluir por aquele tipo de testemunho. Não conhecendo a Ré e não se sabendo se esta manifestava exteriormente ou através da sua expressão algum tipo défice, mesmo que tivesse falado com a mesma por telefone ou pessoalmente, podia não se ter apercebido de algum problema (como o notário não se apercebeu, por exemplo). Não temos qualquer elemento de prova fiável e/ou seguro que permita concluir que a Ré não podia ter compreendido que tinha vendido o imóvel. Deste modo, entendemos que não é possível dar como provado que a Ré não sabia o que estava a assinar (como alegado) ou, como consta no facto 23, que não teve consciência que, através da escritura referida em 1, estava a vender a fração aí descrita, motivo pelo qual este facto 23) passa a ser julgado não provado. E não há que dar como provado o contrário (como pedido pelos recorrentes), ou seja, que a Ré compreendeu que estava a celebrar o contrato pois desde logo tal não foi alegado; o que se alegou foi que os Réus não perceberam o conteúdo, matéria de exceção que lhes competia provar – artigo 342.º, n.º 2, do C. C. – e é essa a que tem de resultar provada ou não. Não se provando o conhecimento, tal não significa que se prove o contrário, ou seja, que a Ré conhecia o teor do negócio que estava a celebrar, apenas não se apura se sabia ou não. * Não se apurando assim que tenha havido essa falta de conhecimento, não constando dos factos qualquer outra situação que possa demonstrar que havia um vício de vontade dos Réus na celebração do contrato de compra e venda, e não tendo sido arguida a falsidade da escritura, temos que não foi abalada a confissão extrajudicial de que os Réus receberam 20.000 EUR.Em reforço da prova deste facto, temos que está junto aos autos (junção ocorrida na audiência de julgamento de 28/11/2022), cópia do cheque n.º ...95,, no valor de 8.000 EUR, datado de 18/12/2017, sacado pelo Autor, assinado no verso com o nome da Ré, o que mostra que estava na posse desta (assim o endossando, provavelmente, a instituição bancária para levantar o dinheiro). Ou seja, a junção deste cheque demonstra que a Ré também o recebeu como meio de pagamento, confirmando assim o que consta da escritura. Por isso, também o facto provado 2) é alterado, eliminando-se a menção a «sendo que só foram, efetivamente, entregues aos Réus 12.000 EUR», que passa a ser o facto não provado c). * Os Autores questionam igualmente o facto provado 7:O Réu, na altura da celebração do negócio referido em 1, era consumidor de estupefacientes, pretendendo, por motivo não concretamente apurado, obter um empréstimo. Os recorrentes entendem que deve ser concretizado que o motivo eram dívidas dos Réus. Pensamos que, por um lado, efetivamente não há dúvidas que o motivo para se pedir o empréstimo era a existência de dívidas pois assim o referiu o co-Réu e EE que referiu que foi isso que lhe foi transmitido pelo mesmo, mas, por outro lado, do que se pode duvidar é sobre que dívidas estavam em causa atenta a falta de precisão ou credibilidade do referido pelo mesmo Réu. O tribunal recorrido atribuiu quase plena credibilidade ao que o Réu descreveu sobre a sua mãe, mas na questão das dívidas já imputa a EE a falta de credibilidade por não se demonstrar a existência de dívidas (que não são suas); se o Réu menciona que tinha dívidas, sabendo-se ainda que pretendia um empréstimo, não vemos óbice a que se acrescente que os Réus queriam pagar dívidas com a obtenção de empréstimo, mas não em concreto qual o credor, pelos motivos que já referimos. Assim, o facto 7 passa a ter a seguinte redação: O Réu, na altura da celebração do negócio referido em 1, era consumidor de estupefacientes, pretendendo obter um empréstimo para pagamento de valores em dívida. * Quanto ao facto 14), o mesmo é um facto instrumental do possível vício da vontade dos Réus a celebrarem o contrato - quem levou os Réus para a escritura - que poderia indiciar uma tentativa de engano, criando-se um ambiente favorável a não se questionar o que se ia celebrar -.Nem o facto, por si, é relevante a esse nível (o dar boleia não significa que se esteja a querer criar um ambiente propício a um engano) nem se apura que esse engano tenha existido. Assim, por irrelevante, elimina-se este facto 14. * B). Da análise jurídica.Os Autores intentam a presente ação alegando factualidade muito simples: em 18/12/2017 adquiriram aos Réus a fração em questão; estes não saíram do imóvel que já não lhes pertence pelo que pedem, em primeira linha, a sua entrega. Trata-se de uma ação de reivindicação, como previsto no artigo 1311.º, n.º 1, do C. C. - «O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.» Os Autores, presumidamente proprietários do imóvel, por força da presunção de registo, conforme artigo 7.º, do C. R. P. - AP. ...83 de 2017/12/18 (documento n.º 3, junto com a petição inicial -), provam assim o seu direito de propriedade. Os Réus, como meio de procurarem evitar a entrega do imóvel aos Autores, como já vimos, alegaram que: - foram enganados, através de uma fraude encetada pelo Autor; - a Ré não sabia o que estava a assinar, não sendo essa a sua vontade; - o Réu estava incapacitado para discernir o que estava a fazer no momento, julgando apenas que iria assinar documentos de empréstimo. Nenhuma destas alegações se prova, duas delas conforme decidido pelo tribunal recorrido (fraude, no que seria uma atuação dolosa dos Autores no sentido de ludibriarem os Réus – artigo 253.º, n.º 1, do C. C.: «Entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante.») e incapacidade do Réu para compreender o que estava a assinar. E a outra alegação (incapacidade de compreensão da Ré, mãe do co-Réu, para alcançar o conteúdo do que estava a realizar) conforme a nossa decisão acima constante, também não se apurou. Importa então aferir se, com os factos provados, existe matéria para se concluir que o negócio não se pode manter válido, sendo que o tribunal recorrido entendeu que existia, mesmo que se atente na atual falta de prova da incompreensão do celebrado pela co-Ré. Na verdade, na sentença recorrida entendeu-se que havia: - nulidade do negócio por o mesmo ser ofensivo dos bons costumes – artigo 280.º, do C. C. -; - anulabilidade do negócio por ser usurário – artigo 282.º, n.º 1, do C. C. -. Os recorrentes, nas alegações, questionam tais conclusões. Vejamos então. O artigo 280.º, n.º 2, do C. C., dispõe que é nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes. O artigo 282.º, n.º 1, do C. C. estatui que é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados. Uma vez que, na nossa opinião, a nulidade do negócio por força da violação das regras dos bons costumes só deve intervir se especificamente não for possível conformar a relação contratual com o direito, com base em norma que, em concreto, protege o lesado, ir-se-á aferir se ocorre no caso a dita exploração dos Réus pelos Autores (apesar de uma situação de exploração de uma situação de fraqueza poder também ferir os bons costumes, se a situação for solucionada pela usura, onde há procura mais detalhada da equivalência das prestações, a solução da nulidade do artigo 280.º, do C: C. deve ser apreciada em segundo plano, se se concluir que não há usura). O tribunal recorrido menciona que ocorre a apontada usura «visto que abusando do estado mental dos Réus e da fraqueza do seu carácter, o Autor comprou a fração (que constitui o seu lar) por um preço manifestamente diminuto, face ao seu valor real.». Um pequeno reparo: desconhece-se qual seja o valor real do imóvel, supondo-se que esta expressão se reporta ao valor de mercado, ou seja, àquele que, de acordo com as regras de oferta e procura, será o valor porque pode ser justamente vendido. O que se sabe é o valor atribuído pelos serviços tributários – 65.160 EUR (facto 1) e o valor da sua aquisição – 20.000 EUR -. O que está em causa neste vício é a exploração por uma pessoa (usurário) de uma outra (vítima). A menção a exploração, à partida indica que o usurário tem que conhecer a fraqueza da contraparte (por isso é que, conhecendo-a, a explora); mas não se deve afastar a possibilidade de existir a exploração da vítima mesmo sem que o usurário conheça essa fraqueza. Se esta existe e por causa dela a outra parte acaba por receber um benefício excessivo ou injustificado, a lei permite que o negócio possa ser anulado (veja-se Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, parte geral, 4.ª, páginas 498 e 499, onde se refere a eliminação, na reforma de 1983 do Código Civil, da expressão «aproveitando conscientemente»). Mas, por regra, conforme se vem decidindo nos tribunais, a exploração deverá ser consciente – por exemplo, no Ac. S. T. J. de 22/11/2012, rel. Távora Victor, www.dgsi., em que se denomina essa consciência por exploração reprovável pelo usurário (tem voto de vendido do Cons. Sérgio Poças, não por se discordar que tem de ser consciente mas por se entender, no caso, que não havia essa consciência). O usurário explora assim a vulnerabilidade da vítima que se pode traduzir naquelas circunstâncias expressas no artigo 282.º, n.º 1, do C. C.: necessidade, dependência, inexperiência, ligeireza, estado mental ou fraqueza de caráter. No caso concreto, pensamos que é correta a conclusão de que o negócio foi celebrado com aproveitamento da debilidade dos vendedores. Estes são caracterizados como sendo: - a Ré, com acompanhamento psiquiátrico desde 1999, com acompanhamento em consulta externa e internamento psiquiátrico em 2006, 2008, 2013, e 2014; - sofrendo de episódios de sintomatologia depressiva e ansiosa condicionados por traços de personalidade desadaptativos, com quadro perturbação da personalidade ligeira a moderada e de perturbação ligeira do desenvolvimento intelectual, o que pode impedir ou dificultar a compreensão e avaliação do sentido de uma declaração negocial; - o Réu, consumidor de substâncias psicoativas desde os 19 anos sendo acompanhado em consulta externa de psiquiatria desde 2009, (2009-2010, 2013, 2014, 2015, 2017, 2021), sendo que na data da celebração do contrato, preenchia critérios para o diagnóstico de perturbação do uso de múltiplas substâncias psicoativas – cocaína, heroína, canabinoides -; - no seu desenvolvimento permite ainda considerar-se a presença de traços desadaptativos de personalidade, com padrão dissocial e de desinibição. Ou seja, estamos perante duas pessoas em que: - ou pelo estado mental muito frágil, em que, ainda que não se tenha logrado provar que fosse impeditivo de perceber o conteúdo do contrato, claramente (para nós) é um estado mental débil, potencialmente impeditivo de tal compreensão: - ou pela sua debilidade de caráter face à sua dependência de três tipos de substâncias estupefacientes e que tem perturbações na sua personalidade, fazem com que se possa classificar como sendo pessoas vulneráveis. Mas, sendo-o, tal não significa que tenha desde logo ocorrido a sua exploração; esta terá de revelar-se pelo conteúdo do quadro negocial. E neste revela-se a necessidade, pelo menos do co-Réu, em obter dinheiro para pagar dívidas (o que também preenche o requisito de ser um contraente em situação de necessidade de obter dinheiro, nomeadamente através da venda do imóvel). Depois temos a diferença de valor entre o pago – 20.000 EUR – e o valor atribuído ao imóvel pelos serviços fiscais, em 2018 – cerca de 65.000 EUR (documento n.º 1, junto com a petição inicial) -. É uma diferença assinalável (preço é três vezes inferior ao preço avaliado) e, por isso, está provada a desproporção de valores que se revela num benefício excessivo para os compradores. Note-se que é certo que se desconhece, como já dissemos, qual o valor de mercado da fração, o qual não foi alegado, nem qual o estado do imóvel (se necessita de obras de reparação e o seu valor, algo que também não se encontra alegado). Mas estes elementos já extravasam a necessária alegação factual pelos Réus pois seriam factos que poderiam impedir a procedência da exceção em causa. Na verdade, os Réus apenas teriam que alegar factos que pudessem levar a concluir que se encontravam numa situação débil e que havia desproporção de valores, o que conseguiram; os compradores é que, para anular aquela desproporção ente valores, é que teriam de demonstrar que, apesar do valor pago ser baixo, por outros fatores afinal não seria de considerar o valor como baixo e/ou irrisório. Mesmo a penhora que pendia sobre o imóvel, que garantia um crédito no valor de cerca de 7.500 EUR, conforme consta da escritura e documento n.º 3 junto com a petição inicial, não é suficiente para contrabalançar aquela diferença de valores – mesmo que o valor do crédito atingisse, na data do contrato, por exemplo, 10.000 EUR e os compradores soubessem que o teriam de pagar para não perderem a propriedade do imóvel, sempre a diferença seria de cerca do dobro -. Se esse crédito atingia um valor elevado e se os Autores iriam amortizá-lo, mais uma vez, era matéria que tinham de alegar para abater à desproporção de valores já demonstrada pelos Réus. Sendo de considerar, à partida, que a exploração se revela num aproveitamento consciente da debilidade dos vendedores pois haverá elementos subjetivos a atender para se concluir que alguém é explorado por outrem, como é o caso, o certo é que dos factos não consta qualquer menção a que os Autores (ou alguém por eles) conhecesse a debilidade psíquica ou psicológica ou de vontade dos vendedores. Não se está perante uma debilidade grave e notória nem se alegou que o consumo de substâncias estupefacientes do Réu era manifesto e patente perante o cidadão comum (o que, a ser, muito provavelmente não passaria despercebido ao notário, tal como a situação de debilidade mental mais profunda). Mesmo quanto à necessidade de obter dinheiro pelo Réu, não está provado que os Autores a conhecessem, sendo certo que se desconhece qual o valor de que necessitava. Daí que, na ausência de prova do conhecimento da situação de debilidade dos Réus pelos Autores, não estão preenchidos os requisitos para que o negócio se considere usurário. Não é assim necessário apreciar da caducidade do direito em causa. * Na sentença também se concluiu que o negócio ofendia os bons costumes e, por isso, era nulo, conforme artigo 280.º, n.º 2, do C. C..Os bons costumes, que Menezes Cordeiro, na obra acima citada, página 598, se reporta dizendo que «…nos deparamos com dois grandes grupos: hipóteses que se prendem com princípios cogentes da ordem jurídica e hipóteses que já se ligarão à moral social. Os primeiros encontram solução no sistema: têm a ver com a ordem pública.». Como doutamente se resume no Ac. da R. L. de 21/11/2019, rel. Arlindo Crua, www.dgsi.pt, citando-se Mota Pinto, Teoria Geral de Direito Civil 3.ª, páginas 547, 548 e 551 a 553, «relativamente ao conceito de ordem pública, deve este ser entendido como o conjunto dos princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas. Por sua vez, o conceito de ofensa aos bons costumes não traduz a remessa do juiz “para uma averiguação empírica dos usos, pois remete-se para os bons usos, mas também não se faz apelo a uma ética ideal, de carácter eterno. Os «bons costumes» são uma noção variável, com os tempos e os lugares, abrangendo o conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas honestas, corretas, de boa fé, num dado ambiente e num certo momento.». Todo o quadro fáctico acima explanado que subjaz aos vendedores/Réus, a que acresce o quadro objetivo da desproporção de valor pago pela aquisição de um bem em contraposição ao seu valor fixado pelo Estado, e ainda: - o imóvel em causa ser o local onde os Réus residiam (e ainda residem, apesar do internamento da Ré), pensamos que se traçam as linhas possíveis para se concluir que a manutenção do negócio atenta contra os bons costumes. A desproporção entre benefício e sacrifício, no binómio comprador-vendedor, e o aproveitamento objetivo tido pelos compradores, afasta a regra que todos nós sentimos de que não devem ser impostas obrigações excessivas a um vendedor em dificuldades, com saúde psicológica e/ou psíquica débil, em relação ao bem que serve de habitação, sem o pagamento da equivalente compensação económica. Um contrato deve resultar num encontro de vontades de onde resulta um equilíbrio entre as prestações, naturalmente moldadas pelos interesses das partes e pela conjuntura que envolve o negócio; mas a venda de um imóvel, por cerca de 1/3 do valor fiscalmente atribuído, num valor objetivamente baixo (20.000 EUR) e que faz com que, aquelas duas pessoas, com perturbações a nível de saúde psíquica e psicológica, fiquem sem a sua habitação, sem existir qualquer facto que possa permitir concluir que há uma razão sensata, ponderada para que os compradores atinjam esse benefício, atenta contra os bons costumes. No fundo, permitir-se-ia que, pelo menos, uma pessoa com dívidas, se despojasse do bem mais valioso e necessário, para que outrem adquirisse o mesmo bem a um preço quase irrisório, sem se vislumbrar qualquer atitude por parte dos compradores que justificasse a necessidade dessa compra. E essa afronta aos bons costumes radica também na finalidade subjacente à celebração do contrato. O Réu pretendia um empréstimo (facto 7) pelo que o que queria obter era dinheiro e não a perda do património mediante a entrega de dinheiro. Ora, não tendo sido celebrado o referido mútuo, mas antes uma compra e venda, nas condições acima referidas, acaba por se entregar dinheiro aos vendedores à custa de um sacrifício desproporcional quanto à perda de património atento o baixo valor do negócio. Haveria que, se porventura se pretendia conferir liquidez aos vendedores, emprestar-lhes a quantia, com eventual garantia real dada pelo imóvel ou até enveredar por um negócio com contornos iguais ou semelhantes ao de uma alienação fiduciária. Mas querendo comprar-se um bem, deve existir a possibilidade de se encontrar um preço justo e, face à debilidade dos Réus, pensamos que tal não sucedeu. No fundo, de um lado tem-se alguém que confortavelmente adquire um bem por um preço muito diminuto, sem se perceber a motivação para tal, e do outro lado, temos duas pessoas com fortes debilidades, pessoais e, pelo menos uma delas, económicas, que visa uma finalidade (empréstimo) e acaba por se despojar do imóvel onde residia com a sua mãe, demonstrando que estavam dependentes da atuação dos Autores para poderem ter dinheiro. Como refere Hugo Ramos Alves, Vulnerabilidade e assimetria contratual, página 326 e seguintes, Revista de Direito da Universidade de Lisboa, 2021, 1, I, in https://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2021/10/Hugo-Ramos-Alves.pdf «a obrigação, enquanto produto da autorregulação de interesses de credor e devedor, é, necessariamente, a tradução de um concreto equilíbrio contratual. Temos por assente que a obrigação apenas se concebe como a realização do resultado através da mediação da conduta do devedor. Neste particular, «resultado» será sinónimo de satisfação do interesse creditório, facto que, aliás, é consentâneo com o destino genético da obrigação. No entanto, em vários passos, o legislador cura de fornecer pistas para corrigir eventuais distorções do equilíbrio contratual, através do recurso a cláusulas gerais ou, até, à própria noção de equidade.». Cita depois vários exemplos de fatores corretivos, como sendo a usura e os bons costumes e a ordem pública. Quanto aos bons costumes menciona, citando Carneiro da Frada, Autonomia Provada e Justiça Contratual, página 26, que um contrato iniquamente desproporcionado atenta, afinal, contra os bons costumes sendo, por isso, enquanto tal, proscrito e ineficaz. No caso, o negócio só não é anulado por usura por falta de prova do conhecimento dos Autores dessa situação mas, ainda assim, pelos seus contornos, pensamos que a sua execução choca o sentimento de justiça de qualquer pessoa honesta. Por isso, entendemos que o negócio atenta contra os bons costumes e, assim, é nulo. A nulidade, como referido na decisão recorrida, é invocável a todo o tempo (artigo 286.º, n.º 1, do C. C.) pelo que não existe caducidade desse direito. * Nulo o negócio, os Autores têm de restituir o imóvel aos Réus, como pedido na reconvenção, por força do disposto no artigo 289.º, n.º 1, do C. C..E os Réus terão de restituir aos Autores a quantia que receberam a título de preço, no caso, 20.000 EUR. Sucede que, na nossa opinião, o tribunal recorrido não podia ter ordenado a restituição da quantia recebida pelos Réus, a título de preço, aos Autores, por não ter sido formulado pedido nesse sentido (e não importa agora aferir se podia ou não ser formulado nos autos, atento o disposto no artigo 265.º, do C. P. C. e a função do articulado réplica). Não havendo pedido de restituição da quantia, o tribunal não pode condenar os Réus a realizar uma atividade que não está pedida e, fazendo-o, incorre na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, e), em conjugação com o disposto no artigo 609.º, n. 1, ambos do C. P. C. (não se pode condenar em objeto diverso do pedido e a sentença, por isso, é nula naqueles termos). Sobre especificamente a necessidade de se formular pedido, temos o voto de vencida da Des. Catarina Gonçalves, proferido no Ac. da R. C. de 10/05/2017, rel. Arlindo Oliveira, www.dgsi.pt e a anotação, em sentido concordante com esse voto, de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2.º, 3.ª, páginas 718 e 719, citando-se ainda o Ac. do S. T. J. de 05/11/2009, rel. Lopes do Rego, no mesmo sítio[7]. Tal nulidade não foi suscitada nos autos pelo que não há que a declarar; mas também temos que se alterou o valor que os Réus receberam dos Autores/recorrentes – de 12.000 EUR para 20.000 EUR –o que leva a concluir que, agora, existe uma incongruência entre o que se prova que se teria de restituir (20.000 EUR) e o que foi declarado (12.000 EUR). Por outro lado, não podemos, nesta sede de recurso, condenar os Réus/recorridos a restituírem 20.000 EUR por, se o fizéssemos, sermos nós a cometer a referida nulidade de decisão em sentido diverso não só do pedido como do objeto do recurso. Assim, aquela parte da decisão de restituição de 12 000 EUR não se pode manter por não ter suporte factual para a mesma e por não podermos condenar a restituir qualquer valor por tal não ter sido pedido. Será assim revogada essa parte da sentença. * Nulo o negócio, não há, como mencionado na decisão recorrida, possibilidade de se indemnizarem os Autores pois este pedido tinha como suporte o incumprimento de uma obrigação de entrega pelos compradores (artigo 879.º, b), do C. C.) de um contrato de compra e venda válido, sendo que se concluiu que o contrato é nulo.Assim, a eventual compensação dos Autores radica na restituição da quantia que entregaram a título de preço, acrescida de frutos civis (juros) conforme artigo 1271.º, ex vi artigo 289.º, n.º 3, do C. C.. Confirma-se assim a parte restante da decisão recorrida. * 3). Decisão.Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o presente recurso e, em consequência, revoga-se a parte da decisão recorrida onde se ordena a restituição de 12 000 EUR pelos Réus aos Autores, confirmando-se o restante decidido. Custas do recurso a cargo dos recorrentes, na proporção de 2/3, sendo que os recorridos beneficiam de apoio judiciário, estando isentos do pagamento de 1/3. Registe e notifique. Porto, 2023/06/01. João Venade. Paulo Duarte Teixeira. Ana Vieira. _______ [1] Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador. [2] Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária. [3] Confissão extrajudicial é a feita por algum modo diferente da confissão judicial. [4] A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena. [5] 1. A confissão, judicial ou extrajudicial, pode ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão, se ainda não tiver caducado o direito de pedir a sua anulação. 2. O erro, desde que seja essencial, não tem de satisfazer aos requisitos exigidos para a anulação dos negócios jurídicos. [6] CDI-11 disponível, em língua inglesa como Disorder of intellectual development, mild em https://icd.who.int/browse11/l-m/en#/http%3a%2f%2fid.who.int%2ficd%2fentity%2f1207960454 [7] 3.Limitando-se o autor a formular um pedido constitutivo de anulação de um negócio jurídico, não é lícito ao tribunal proferir sentença em que, para além do decretamento da anulação, se condene oficiosamente a parte a restituir o que obteve em consequência do contrato anulado, por tal traduzir condenação em objeto diverso do pedido, vedada pelo nº 1 do art. 661º do CPC. |