Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1318/15.3T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
ALTERAÇÃO
RECTIFICAÇÃO
TÍTULO CONSTITUTIVO
Nº do Documento: RP201704061318/15.3T8PVZ.P1
Data do Acordão: 04/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 762, FLS.222-229)
Área Temática: .
Sumário: I - A modificação do valor relativo de várias frações em relação ao valor total do prédio, expresso em permilagem, por consubstanciar alteração do título constitutivo da propriedade horizontal só se pode efetuar com o acordo de todos os condóminos através de escritura pública ou documento particular autenticado.
II - Por conseguinte, não é legalmente admissível que essa modificação se concretize através de decisão judicial, nem sequer mediante o recurso a uma ação de suprimento do consentimento.
III - Havendo uma situação de erro manifesto no título constitutivo da propriedade horizontal este pode ser retificado a requerimento do interessado nos termos do art. 132º do Cód. do Notariado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1318/15.3 T8PVZ.P1

Comarca do Porto – Póvoa de Varzim – Instância Central – 2ª Secção Cível – J3
Apelação
Recorrentes: B… e outros
Recorridos: H… e outros
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Maria de Jesus Pereira
Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
B… e C…, residentes na Rua …, n.º …., …; D… e E… residente na Rua …, …., …, e F… e G…, residentes na Rua …, n.º …., …, em …, instauraram contra:
1. H… e I…, residentes na Rua …, n.º …, …, …;
2. J…, residente na Rua …, n.º .., …;
3. K… e L…, residentes na Rua …, n.º …, …, …;
4. M… e N…, residentes na Rua …, n.º …, …;
5. O… e P…, residente na Rua …, n.º …, …;
6. Q… e S…, residentes na Rua …, n.º …, …, …;
7. T… e U…, residentes na Rua …, n.º …, …, …;
8. V…, residente na Rua …, n.º …, … – Suiça;
9. X… e Y…, residentes na Rua …, n.º … …;
10. Z… e AB…, residentes na Rua …, n.º …, …, …;
11. AC… e AD…, residente na Rua …, n.º …, …, …;
12. AE…, residente na Rua …, n.º …, …, …;
13. AF… e AG…, residente na Rua …, n.º …, …, …
14. AH… e AI…, residentes no …, …, …;
15. AJ…, residente na Rua …, n.º ..., …, …;
16. AK… e AL…, residente na Rua …, n.º …, …, …;
17. AM…, residente na Rua …, n.º …, …, …;
18. AN…, residente na Rua …, n.º …, …, …;
19. AO… e AP…, residente na Rua …, n.º …, …, …;
20. AQ…, residente na Rua …, n.º …, …, …, a presente ação de processo comum - iniciada no Julgado de Paz da Trofa e que foi, por declaração de incompetência em razão do valor, remetida a Tribunal - pedindo que seja ordenada a correção das permilagens constantes do título constitutivo no que respeita às Frações AC, AA, Y, AR, AP e AN e que, em consequência, a administração do condomínio, proceda à sua modificação junto da entidade competente.
Para o efeito alegaram, em suma, que existe um lapso nas permilagens que constam na propriedade horizontal em que se inserem as frações supra referidas porquanto as três primeiras (AC, AA e Y), de tipologia T2, embora às mesmas correspondam uma permilagem de 34,9, constam do título constitutivo da propriedade horizontal com uma permilagem de 43,5, ao passo que as três últimas (AR, AP e AN), de tipologia T3, embora às mesmas correspondam a uma permilagem de 43,5, constam do título constitutivo com uma permilagem de 34,9, opondo-se alguns condóminos à alteração do título.
Citados os réus, o réu AF… veio manifestar-se no sentido de nada ter a opor à pretensão do autor.
Realizou-se audiência prévia.
Foi dada às partes possibilidade de se pronunciarem sobre a viabilidade da presente ação.
Seguidamente, foi proferida decisão em que julgando-se verificada exceção dilatória inominada se absolveram os réus da instância.
Os autores, inconformados, interpuseram recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1 - Os Recorrentes peticionam a correcção de um erro que existe no título constitutivo da propriedade horizontal.
2 - Na versão destes, e diga-se fundamentada com os vários documentos constantes nos autos, as permilagens das fracções em discussão deveriam ser as seguintes: Fracção AC - Permilagem: 34,9; Fracção AA - Permilagem: 34,9; Fracção Y - Permilagem: 34,9; Fracção AR - Permilagem: 43,5; Fracção AP - Permilagem: 43,5; Fracção AN - Permilagem: 43,5.
3 - E não as que ali constam, a saber: Fracção AC - Permilagem: 43,5; Fracção AA - Permilagem: 43,5; Fracção Y - Permilagem: 43,5; Fracção AR - Permilagem: 34,9; Fracção AP - Permilagem: 34,9; Fracção AN - Permilagem: 34,9.
4 - As fracções de tipologia T2 possuem as permilagens das fracções de tipologia T3 e vice-versa.
5 - É mais do que evidente que os Recorrentes estão a ser penalizados com este erro e querem ver tudo isto rectificado.
6 - Num universo de 23 condóminos, apenas 2, os que beneficiam deste erro, se opõem e contestam o presente pleito, pois todos os outros estão perfeitamente conscientes de que tal vicissitude tem de ser sanada, inclusive por escrito, alguns deles, nos autos, admitem que existe um erro que deverá ser corrigido.
7 - Dado que nunca foi possível chegar à acordo quanto a esta matéria nas inúmeras Assembleias de Condóminos, não restou outra alternativa aos Recorrentes, se não lançar mão do presente pleito, tudo na tentativa de repor as permilagens correctas nas suas fracções.
8 - Os Tribunais são o garante da Justiça, e devem, caso se faça prova desse erro, ordenar a sua correcção, até por uma questão de paz social.
9 - Os Recorrentes são penalizados mensalmente na quota do condomínio, já para não falar nas obras das partes comuns, cuja sua penalização ascende a centenas de euros.
10 - O prédio em apreço é constituído por três blocos, exactamente iguais, com a mesma construção, acabamentos, nº de divisões, disposição, com a frente virada a sul, as traseiras a norte, e as laterais viradas a nascente e a poente, sendo que os T2 possuem 108m2 e os T3 possuem 128m2, sem elevador, com garagens exteriores todas iguais e com a mesma área.
11 - Perante todas estas evidências existiu um erro na indicação das permilagens que originaram o título constitutivo.
12 - Retira-se tal conclusão pela análise do modelo 129 (declaração para inscrição ou alteração de inscrição de prédios urbanos na matriz), da certidão Camarária e da memória descritiva, que constam nos autos.
13 - Os Recorrentes não tiveram a oportunidade de fazer prova de tudo isto, já que o Tribunal “a quo”, sentenciou o pleito sem realizar a Audiência de Julgamento, defendendo que a via judicial não é a própria e adequada ao objectivo dos Apelantes, e por via disso considerou verificada a excepção dilatória inominada correspondente, e, em consequência absolveu os Recorridos da Instância.
14 – O Tribunal “a quo”, faz uma interpretação errada do artigo 2º, nº 2, artigo 577º, artigo 278º, nº 1 alínea e), e artigo 1419º todos do C.P.C..
15 - A forma de processo adequada à pretensão do autor depende do pedido concretamente formulado por este, independentemente da defesa oferecida pelo réu, não cabendo na análise dessa adequação qualquer juízo sobre a viabilidade do pedido, quanto a dever ser outra a forma de obter a sua tutela jurisdicional, quanto a deverem ser outras as partes demandadas.
16 - O regime regra das excepções dilatórias é o da sua sanação ou suprimento, tal como prevêem os nº 2 e 3 do art. 278º do Código de Processo Civil.
17 - “As excepções dilatórias só subsistem enquanto a respectiva falta ou irregularidade não for sanada” (nº 3) e “quando a falta ou irregularidade tenha sido sanada”, o juiz deve abster-se de declarar a excepção dilatória e de absolver o réu da instância (nº 2).
18 - Foi, aliás, com essa finalidade que o nº 2 do art. 6º do Código de Processo Civil, veio impor ao juiz o dever de “providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação” e “a realização dos actos necessários à regularização da instância”.
19 - Com a mesma finalidade, o nº 1 do art. 590° do Código de Processo Civil impõe-lhe que, findos os articulados, profira despacho destinado a: “a) Providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, nos termos do n° 2 do artigo 6º do C.P.C.”.
20 - Em regra, as excepções dilatórias só podem subsistir e serem declaradas pelo Tribunal se não forem supridas oportunamente.
21 - Os Recorrentes pretendem a correcção de um erro notório, em suma trocaram as permilagens das suas fracções, e não a modificação do título constitutivo, esta sim, relacionada por exemplo com o destino a dar às fracções.
22 - O artigo 334º do Código Civil plasma que “é legítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
23 - É abusivo todo o comportamento que, embora tenha a aparência de licitude, viola o sentido e a intenção normativa do direito.
24 - Como se salienta no Ac. do STJ, de 22/11/1994, aquele preceito legal contem princípios gerais válidos para todo o ordenamento jurídico que visam a protecção dos direitos subjectivos contra o exercício de um direito fora dos limites da equidade, ou contra os princípios da boa-fé.
25 - Para que haja abuso do direito é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.
26 - Como destaca o Prof. A. Varela, a fórmula manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé abrange, por seu turno, de modo especial, os casos em que a doutrina e a jurisprudência condenam sob a rubrica do “venire contra factum proprium”.
27 - Similarmente J. M. Coutinho de Abreu, na sequência daquilo a que chama proposta de um critério, define deste modo a figura em análise: “há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”.
28 - Salvo o devido respeito por opinião contrária, de uma convicção de cariz marcadamente objectivo, na medida em que, perante tal cenário de erro, todos os condóminos teriam a sensatez de o corrigir.
29 - Nestes termos, concluímos no sentido de ser abusivo o exercício do direito, pelo facto de exceder manifestamente os limites da boa-fé, dos bons costumes e do fim económico e social do direito.
30 - Porém, a doutrina tem indicado várias soluções, entre as quais se salientam a de se constituir a favor do lesado uma pretensão de omissão do exercício do direito e a paralisação de certos efeitos jurídicos (cfr. Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 2ª ed., pag. 490 e segs., Pires de Lima e A. Varela, Código Civil anotado, vol. I; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed., pag. 70), deixando para o julgador a tarefa de definir em cada caso a sanção tida por mais adequada.
31 - Afigura-se-nos que a consequência para este acto abusivo dos Recorridos será o do prosseguimento dos autos, levando-os a Julgamento, para que todas as partes façam a sua prova e em consequência disso o Tribunal decidir se existe ou não erro nas permilagens.
32 - O Tribunal perante as evidências tem de julgar, pois é o garante da reposição da justiça.
33 - Os Recorridos estão [a] Enriquecer Sem Causa, e por tal facto os Tribunais têm de repor a Justiça nestes casos, pondo cobro a estas situações.
34 - A jurisprudência entendia que para se verificar o instituto do enriquecimento sem causa deverá provar-se o efectivo empobrecimento (prejuízo) de quem o invoca.
35 - Contudo, a mais recente jurisprudência tem entendido não ser necessariamente necessária a prova do empobrecimento.
36 - Conforme decidiu a Relação de Lisboa (Ac. 05.12.1996, BMJ, 462, p. 478), "O direito contra o enriquecimento sem causa visa directamente remover o enriquecimento, sendo indirecto e eventual o objectivo da remoção do dano daí resultante.
37 - O que provoca a reacção da lei é a vantagem ou aumento injustificado do património do enriquecido e não a possível perda ou diminuição verificada no património do empobrecido pelo facto de o direito perdido não ter chegado a entrar no património do enriquecido.
38 - O princípio geral do artigo 473.º do Código Civil teoriza - "enriquecer à custa de outrem" e não "enriquecer à custa" do empobrecimento "de outrem"; o que conta, não é assim o empobrecimento da vítima por causa da lesão patrimonial, como acontece na responsabilidade civil, mas sim o enriquecimento injusto à custa de outrem.
39 - Sob esse prisma, o empobrecimento aqui será de presumir em resultado de interesses que inspiram a vida comum, ponderadas as máximas de experiência comum".
40 - Ora no caso “sub judice”, mensalmente os Recorridos beneficiam com este erro, pagando menos valor na quota do condomínio e isto já para não falar nas obras comuns do prédio, que como se sabe são suportadas em função da permilagem e que podem atingir milhares de euros.
41 - Se as suas fracções possuem uma permilagem inferior à que deveria ter, estão os mesmos a enriquecer injustamente à custa dos Recorrentes.
42 - E agora questiona-se será que não é legítimo aos Tribunais colocar termo a estas situações? É claro que sim! Os Tribunais estão ao serviço da sociedade para isso mesmo, repondo a justiça e para conservar a paz social.
43 - Não podem os Tribunais, com o devido respeito, fechar os olhos a estes problemas da sociedade, que cada vez mais são vulgares no regime da propriedade horizontal.
44 - Os tribunais, como estabelece a nossa Constituição, são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo.
45 - Nos termos do artigo 202º da Constituição da Republica Portuguesa os Tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça, incumbindo-lhes assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
46 - Nisto consiste a jurisdição, isto é a função jurisdicional.
47 - E é o exercício desta função que distingue os Tribunais dos outros órgãos do estado.
48 - A competência é a repartição desse poder jurisdicional entre os diversos Tribunais, dizendo, pois, respeito à delimitação interna da actividade deles, quando confrontados entre si.
49 - “A ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito…”.
50 - Será necessário fornecer ao titular do direito meios que se mostrem adequados à reintegração desse seu direito. Tais meios passam pelo recurso aos Tribunais, e foi o que os Recorrentes fizeram.
51 - Com o devido respeito e vénia, está na altura dos Tribunais colocarem cobro a este tipo de situações, iniciando-se assim uma nova corrente jurisprudencial para esta temática.
Pretendem assim que a sentença recorrida seja revogada e substituída por outra que determine a remessa dos autos à 1ª instância, com vista a que o processo prossiga os seus ulteriores termos, nomeadamente com a realização da audiência de julgamento.
Os recorridos H… Rua …, I…, T… e U… apresentaram contra-alegações, nas quais se pronunciaram pela confirmação do decidido.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I – Apurar se o título constitutivo da propriedade horizontal, não havendo acordo de todos os condóminos, pode se ser modificado por sentença judicial;
IIApurar se “in casu” ocorre abuso de direito ou enriquecimento sem causa.
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Os elementos factuais e processuais relevantes para o conhecimento do presente recurso constam do antecedente relatório.
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Passemos à apreciação jurídica.
I – Os autores, através da presente ação inicialmente proposta no Julgado de Paz de Trofa, pretendem a correção das permilagens constantes do título constitutivo da propriedade horizontal no que concerne às frações AC, AA, Y, AR, AP e NA, devendo, em consequência, a administração do condomínio proceder à sua modificação junto da entidade competente.
Invocam existir lapso nas permilagens relativas a essas frações.
Ou seja, os autores visam com a ação que instauraram a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, o que convoca a questão de saber se essa alteração se pode concretizar através de ação judicial.
Dispõe o art. 1419º, nº 1 do Cód. Civil que «sem prejuízo do disposto no nº 3 do artigo 1422º-A[1], o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, havendo acordo de todos os condóminos
Conforme escreve Henrique Mesquita (in “A propriedade horizontal”, pág. 94) “o título constitutivo é um acto modelador do estatuto da propriedade horizontal e as suas determinações têm natureza real e, portanto, eficácia erga omnes. Trata-se de um dos poucos casos em que a autonomia da vontade pode intervir na fixação do conteúdo dos direitos reais, o qual, nesta medida, deixa de ser um conteúdo típico. Estas regras embora resultantes de uma declaração negocial, adquirem força normativa ou reguladora vinculando, desde que registadas, os futuros adquirentes das fracções, independentemente do seu assentimento”.[2]
Porém, a liberdade de modelação do regime da propriedade horizontal está fortemente condicionada não apenas pelo facto de se tratar de um direito real, subordinado ao princípio da tipicidade, mas também por razões de interesse público, designadamente decorrentes dos direitos de edificação e do ambiente, sem esquecer a necessária salvaguarda da solidariedade exigida a todos os que integram a micro comunidade interdependente, resultante da habitação plúrima num mesmo edifício ou conjunto de edifícios.[3]
Como no âmbito do condomínio, pela sua natureza e função, o valor privilegiado é o da estabilidade, compreende-se que a lei, no já citado art. 1419º, nº 1, confira ao título constitutivo da propriedade horizontal um carácter de imutabilidade, permitindo a sua alteração apenas quando ocorra acordo expresso de todos os condóminos, devidamente corporizado em escritura pública ou documento particular autenticado.
Pretende-se assim evitar que a posição relativa de cada condómino seja alterada por via negocial sem o seu consentimento.[4]
Com efeito, para que o título constitutivo seja alterado é necessário que o mesmo o permita ou a assembleia de condóminos se pronuncie e aprove as alterações sem qualquer oposição.
A regra do art. 1419º, nº 1 tem, pois, carácter imperativo, por ser de interesse e ordem pública.[5]
Aliás, a constituição da propriedade horizontal e as suas posteriores alterações, caso ocorram, por forma a garantir a sua conformidade às leis e regulamentos em vigor, são objeto de fiscalização e licenciamento pela autoridade camarária.
Assim, a lei prescreve que a escritura de alteração do título constitutivo de propriedade horizontal não pode ser feita sem a junção de documento camarário comprovativo de que a alteração ao título constitutivo está de acordo com os correspondentes requisitos legais – cfr. art. 60º, nº 1 do Cód. do Notariado.
Sucede que a entidade competente para definir a composição de um edifício, o destino de cada fração ou parte comum do mesmo é a Câmara Municipal e tal tem de ser fixado no projeto de construção aprovado e depois vistoriado.
Por conseguinte, a alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal tem de ser feita por escritura pública ou documento particular autenticado, que se recortam como formalidade “ad substantiam”, indispensável para a validade daquela alteração, conforme resulta do disposto nos arts. 220º, 371º e 1419º do Cód. Civil, estando essa alteração ainda sujeita a registo - cfr. arts. 62º, nº 1 do Cód. do Notariado e 2º, nº 1, al. b) do Cód. do Registo Predial.
Neste contexto, é de concluir que a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal através de decisão judicial, conforme é pretendido pelos autores/recorrentes, não é legalmente admissível.[6]
Nem sequer é possível, com esta finalidade, o recurso a uma ação de suprimento do consentimento nos termos dos arts. 1000º e segs. do Cód. do Proc. Civil, uma vez que, face à imperatividade da regra contida no nº 1 do art. 1419º do Cód. Civil, inexiste norma legal que permita impor a vontade de alguns dos condóminos à de outros.[7] [8]
Acontece que no caso “sub judice”, os autores pretendem a correção das permilagens relativamente a seis frações do prédio dos autos.
O valor relativo de cada fração é expresso em percentagem ou permilagem do valor total do prédio, sendo estabelecido no título constitutivo da propriedade horizontal, conforme decorre do art. 1418º, nº 1 do Cód. Civil.
Tal como se assinala no Acórdão da Relação de Lisboa de 28.5.2009 (proc. 9759/08-8, disponível in www.dgsi.pt), citado na sentença recorrida e proferido em caso similar, “da fixação desse valor relativo da fracção face ao valor total do edifício resultam direitos e obrigações para os titulares das respectivas fracções pelo que a alteração do valor da fracção relativamente ao total do prédio, por afectar direitos dos titulares das fracções só pode ser alterado por unanimidade da assembleia de todos os condóminos do edifício.
Nos termos do art. 1424º do Código Civil, salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas fracções (nº 1). Porém, as despesas relativas ao pagamento de serviços de interesse comum podem, mediante disposição do regulamento do condomínio, aprovado sem oposição por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio, ficar a cargo dos condóminos em partes iguais ou em proporção à respectiva fruição, desde que especificadas e justificados os critérios que determinam a sua imputação (nº 2).”
Os autores, porém, apontam no sentido da ocorrência de uma situação de erro notório na fixação das permilagens correspondentes às seis frações atrás referidas suscetível de retificação através do recurso à via judicial.
Ora, se o caso fosse tão evidente, bastaria para saná-lo seguir o caminho indicado no art. 132º, nº 1 do Cód. do Notariado, onde se estatui que «as omissões e inexatidões verificadas em atos lavrados em livros de notas, devidas a erro comprovado documentalmente, podem ser supridas ou retificadas, a todo o tempo, por meio de averbamento, desde que da retificação não resultem dúvidas sobre o objeto a que o ato se reporta ou sobre a identidade dos intervenientes
O averbamento, contudo, só pode ser lavrado quando as omissões e inexatidões respeitem à menção de documentos anteriores ou a simples erros de cálculo ou de escrita revelados pelo contexto do ato (art. 132º, nº 2, als. a) e f) do Cód. do Notariado).
Disciplina legal que inteiramente se compagina com o disposto no art. 249º do Cód. Civil, onde se consagra a possibilidade de retificação para os casos de simples erro de cálculo ou de escrita, que é revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita.[9] [10]
Deste modo, tal como se afirma na sentença recorrida, a ação judicial não é o meio próprio e adequado à pretensão dos autores/recorrentes com vista à alteração da permilagem de seis das frações autónomas. Esta só poderá ser alcançada, havendo acordo de todos os condóminos, através de escritura pública ou documento particular autenticado, ou por via da retificação de inexatidões nos termos apertados previstos no art. 132º do Cód. do Notariado, o que pressupõe sempre a evidência e ostensividade do erro cometido.
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II – Prosseguindo, os autores/recorrentes nas suas alegações sustentam que a conduta dos recorridos envolve abuso de direito, para além de haver da parte destes enriquecimento sem causa (conclusões 22 a 32 e 33 a 41, respetivamente).
Tratam-se de questões novas que não foram colocadas à apreciação da 1ª instância.
Escreve Abrantes Geraldes (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2016, 3ª ed., págs. 97/99):
“A natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina (…) importante limitação ao seu objecto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando (…) estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis.
(…)
Compreendem-se perfeitamente as razões que levaram a que o sistema assim fosse arquitectado. A diversidade de graus de jurisdição determina que, em regra, os tribunais superiores apenas devam ser confrontados com questões que as partes discutiram nos momentos próprios. (…)”
A assunção desta regra encontra na jurisprudência numerosos exemplos:
As questões novas não podem ser apreciadas no recurso, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões, e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprimir um ou mais órgãos de jurisdição;[11]
- Os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo, e não a provocar decisões sobre questões que não foram antes submetidas ao contraditório e decididas pelo tribunal recorrido, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso;[12] [13]
(…).
Mais adiante, o mesmo autor escreve ainda que “sendo admissível recurso da parte dispositiva da sentença, é legítimo à parte confrontar o tribunal com questões de conhecimento oficioso, ainda que estas não tenham sido anteriormente suscitadas, desde que a sua decisão não esteja coberta pelo caso julgado.”
Regressando ao caso dos autos, e face ao que se vem expondo, se não é possível apreciar a questão do enriquecimento sem causa, já o mesmo não sucede quanto ao abuso de direito, que é unanimemente considerado como matéria de conhecimento oficioso, o que impõe o seu conhecimento nesta sede, mesmo tratando-se de questão nova.[14]
O abuso do direito vem previsto no art. 334º do Cód. Civil onde se preceitua que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.»
Para que haja abuso do direito exige-se que o excesso seja manifesto. Os tribunais só podem, por isso, fiscalizar a moralidade dos atos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. Manuel de Andrade refere-se aos direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (in “Teoria Geral das Obrigações”, pág. 63) e às “hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição”.
Para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade. Já no que respeita ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, 4ª ed., págs. 298/9.
Ora, na situação “sub judice” não se nos afigura que a conduta assumida pelos condóminos que não deram o seu acordo à retificação das permilagens e à consequente alteração do título constitutivo da propriedade horizontal possa ser havida como abusiva.
Com efeito, estes condóminos, não secundando a ocorrência de manifesto lapso na fixação das permilagens, limitaram-se a agir de acordo com a regra constante do art. 1419º, nº 1 do Cód. Civil que postula para a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal o acordo unânime de todos os condóminos expresso em escritura pública ou documento particular autenticado.
Unanimidade com a qual se pretende evitar que a posição relativa de cada condómino possa ser alterada sem o seu consentimento.
Não se vislumbra, pois, que a atuação dos recorridos consubstancie qualquer excesso – e muito menos manifesto – dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, razão pela qual, ainda nesta parte, improcede o recurso interposto.
Há assim que confirmar a sentença recorrida.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. do Proc. Civil):
- A modificação do valor relativo de várias frações em relação ao valor total do prédio, expresso em permilagem, por consubstanciar alteração do título constitutivo da propriedade horizontal só se pode efetuar com o acordo de todos os condóminos através de escritura pública ou documento particular autenticado.
- Por conseguinte, não é legalmente admissível que essa modificação se concretize através de decisão judicial, nem sequer mediante o recurso a uma ação de suprimento do consentimento.
- Havendo uma situação de erro manifesto no título constitutivo da propriedade horizontal este pode ser retificado a requerimento do interessado nos termos do art. 132º do Cód. do Notariado.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos autores B…, C…, D…, E…, F… e G… e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos autores/recorrentes.

Porto, 6.4.2017
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Maria de Jesus Pereira
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[1] Nesta norma estatui-se que «não é permitida a divisão de frações em novas frações autónomas, salvo autorização do título constitutivo ou da assembleia de condóminos, aprovada sem qualquer oposição
[2] Cfr. Sandra Passinhas, “A Assembleia de Condóminos e o Administrador da Propriedade Horizontal”, 2ª ed., pág. 62.
[3] Cfr. Abílio Neto, “Manual da Propriedade Horizontal”, 3ª ed., pág. 76.
[4] Cfr. Ac. STJ de 7.6.2001, proc.01B1350, sumariado in www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Abílio Neto, ob. cit., pág. 102.
[6] Cfr., por ex., Acs. STJ de 15.11.2011, proc. 718/03.6 TBPNL.L1.S1, de 20.10.2011, proc. 369/2002.E1.S1 e de 13.12.2007, proc. 07A3023, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[7] Cfr, por ex., Ac. STJ de 12.3.2002, proc. 02A410, disponível in www.dgsi.pt.
[8] Em dissonância com a jurisprudência e a doutrina dominantes, Abílio Neto (ob. cit., pág. 102), nestes casos, não afasta liminarmente a possibilidade de recurso à ação de suprimento do consentimento “… em situações de manifesto abuso do direito, em que o interesse colectivo é sacrificado a determinado interesse particular, sem sustentação objectiva e razoável…”.
[9] Todavia, o erro só é cognoscível ou ostensivo quando a divergência entre a vontade real e a declarada é apreensível com segurança pelos próprios termos e circunstâncias da declaração – cfr. Castro Mendes, “Teoria Geral do Direito Civil”, vol. III, pág. 297. [10] Cfr. também Ac. Rel. Coimbra de 22.4.2008, proc. 97/04.4 TBFVN.C1, disponível in www.dgsi.pt., em cujo sumário se escreveu que o erro manifesto vertido no título constitutivo da propriedade horizontal pode ser retificado mediante requerimento do interessado ao abrigo da alínea f) do art. 132º do Cód. do Notariado.
[11] Ac. do STJ, de 1.10.2002, CJSTJ, tomo III, pág. 65.
[12] Cfr. Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, CPC anot., vol. III, tomo I, 2ª ed., pág. 8, e o Ac. do STJ, de 29.4.98, BMJ 476º/401.
[13] Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes quanto às questões novas de conhecimento oficioso referem as questões de inconstitucionalidade de normas suscitadas nas alegações de recurso, do abuso do direito, da nulidade de actos jurídicos ou da caducidade de conhecimento oficioso (ob. cit., pág. 8).
[14] Cfr., por ex., Ac. Rel. Lisboa de 22.1.2004, CJ, ano XXIX, tomo I, págs. 74/79 e demais jurisprudência aí citada; Ac. STJ de 11.12.2012, proc. 116/07.2 TBMCN.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt; Menezes Cordeiro, “Litigância de Má Fé; Abuso do Direito de Acção e “Culpa in Agendo”, Almedina, 2006, pág. 77.