Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PAULO DIAS DA SILVA | ||
Descritores: | HERANÇA INDIVISA EXERCÍCIO DE DIREITOS HERDEIROS LEGITIMIDADE ATIVA | ||
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Nº do Documento: | RP20250220885/24.5T8VLG.P1 | ||
Data do Acordão: | 02/20/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Só a herança jacente - aquela que já foi aberta, mas ainda não aceite nem declarada vaga para o Estado - tem personalidade judiciária. II - A herança que já foi aceite pelos respectivos herdeiros não dispõe de personalidade judiciária. III - Os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, ressalvando-se a acção de petição de herança (que pode ser intentada por qualquer dos herdeiros isoladamente) e acções relativas a “fenómenos periféricos da sucessão” para as quais o cabeça-de-casal terá legitimidade. IV - Tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pelos seus herdeiros, nada obsta a que se considere que quem interpõe a acção, nela figurando como autores, são os herdeiros aí correctamente identificados. V - Nas circunstâncias referidas em IV, deve proceder-se a uma interpretação correctiva que estabeleça a precisa correspondência entre a identificação do sujeito e a verdadeira intenção da parte. VI - Com efeito, no caso vertente, a falta de personalidade judiciária é apenas aparente, uma vez que todos os herdeiros estão presentes, identificados e outorgaram procuração ao mandatário subscritor da petição, devendo considerar-se que são eles os autores (e não a herança) que, em conjunto, exercem os direitos relativos à herança, conforme decorre do disposto no artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2025:885/24.5T8VLG.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de AA, representada pelas herdeiras BB e CC, instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum contra DD, residente da Rua ... n.º ... - 2º Esquerdo, ... ..., onde concluiu pedindo que seja declarado que o prédio descrito no artigo 2º da petição inicial é propriedade da Autora e que o Réu seja condenado a reconhecer o direito de propriedade da Autora e restituí-lo em prazo certo, livre e devoluto de pessoas e bens, bem como a abster-se da prática de quaisquer actos que impeçam ou diminuam a utilização ou posse por parte da Autora. * Citado, o réu DD contestou invocando, desde logo, a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da autora. * Notificada e no exercício do contraditório, veio a autora asseverar que não nos encontramos perante uma herança jacente, pois a mesma foi aceite pelos seus herdeiros e que a forma deficiente como se identificam na petição trata-se de mero formalismo passível de sanação. * Por despacho saneador proferido a 16-09-2024 foi decidido julgar procedente a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária invocada pelo réu e, consequentemente, absolver o réu da instância. * Não se conformando com a decisão proferida, veio a autora interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações concluiu da seguinte forma:
I.A sentença é nula por conter erros de qualificação jurídica da exceção dilatória;
II. Nos termos do artº 615º n.º 1 d) do C.P.C. “É nula a sentença quando o Juiz (...) conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (...)”;
III. Entende a recorrente que os autos não permitiam a tomada desta decisão.
IV. A Autora é uma herança ainda não partilhada, a qual se encontra nos autos com todos os seus herdeiros.
V. Conforme consta dos documentos dos autos são herdeiras BB e CC, deixada por óbito de AA.
VI. Estão as duas interessadas, enquanto herdeiras, a actuar no processo, aquelas que devem exercer os direitos em conjunto.
VII. Aliás, nos termos do artigo 2091º n.º 1 do CC, este é um caso de litisconsórcio necessário, de um direito que tem que ser exercido por todos os herdeiros.
VIII. Ora, apesar de na Petição Inicial se encontrar a formulação de Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de AA, certo é que todos os herdeiros estão a actuar no processo.
IX. Consta em todos os documentos, formulários e requerimentos, inclusive a procuração forense que todos os herdeiros, neste caso, herdeiras, estão, conjuntamente, a actuar nos autos.
X. O património indiviso está correctamente representado nos autos pelas herdeiras.
XI. Pelo que, se contesta o facto de, podendo ser entendimento que há lapso na designação, haver no imediato decisão de absolvição do Réu da Instância.
XII. Têm sido vários os entendimentos, tanto a nível doutrinal como jurisprudencial, que tem que existir um esforço integrativo pois que estão identificados os herdeiros e actuam todos no processo.
XIII. Há mesmo entendimento que, este caso de designação se traduzirá numa falta de personalidade aparente, por um simples erro de identificação processual.
XIV. Tem-se entendido que, em vez de se optar logo pela absolvição da instância decorrente da falta daquele pressuposto processual, é mais razoável que se observe a possibilidade de retificação da identificação do sujeito processual, nuns casos mediante formulação de um convite à parte, noutros casos por via direta, através de uma simples interpretação correctiva que estabeleça a precisa correspondência entre a identificação do sujeito e a verdadeira intenção da parte.
XV. Tal como no caso dos autos (…) quando a ação é instaurada ou dirigida em nome de “Herança H, representada pelos herdeiros X, Y e Z”, sendo evidente – como é, em geral – que se trata de uma situação de herança indivisa cujos interesses são titulados pelos respetivos herdeiros”
XVI. Assim é o sentido do Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 27/05/2008, processo n.º 400/2002.c1
XVII. São os herdeiros quem intervém como parte activa, actuando, não em nome próprio, mas em nome do património representado que não dispõe da possibilidade de ser parte em processo judicial, reunindo, assim, no conjunto deles, não só o requisito da personalidade judiciária, mas também o da legitimidade processual activa.
XVIII. Assim, deve entender-se a referência à «herança ilíquida e impartilhada de A...», como mero fundamento de serem as pessoas que se identificam como a viúva e cabeça-de-casal e filha as autoras, herdeiros e representantes da herança, que no interesse desta intentam a acção no quadro da legitimidade substantiva prevista no artº 2091º do CC.
XIX. Este tem sido o entendimento também do STJ acórdão de 12/09/2013, processo n.º 1300/05.9TBTMR.C1.S1 e da Relação de Lisboa de 16/04/2015, processo n.º 4933/13.6TCLRS.L1-8, Acórdão da Relação de Guimarães de 07/12/2016 processo n.º 74/15.0T8CHV-A.G1, Tribunal da Relação de Coimbra de 24/09/2019 processo n.º 348/18.8T8FNDA.C1.
XX. Num caso como o dos autos, a falta de personalidade judiciária é apenas aparente, uma vez que todos os herdeiros estão presentes, identificados e outorgaram procuração ao mandatário subscritor da petição, devendo considerar-se que são eles os autores (e não a herança) que, em conjunto, exercem os direitos relativos à herança, conforme decorre do disposto no artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil.
XXI. O Acórdão da Relação de Guimarães acaba por concluir, mesmo que a herança indivisa nem sequer corresponde a uma realidade diferente do conjunto dos herdeiros, sendo que a falta de personalidade da herança não jacente decorre da circunstância de os seus titulares já estarem determinados, pelo que a herança corresponde, na prática, ao conjunto dos herdeiros.
XXII. Pelo que, não tendo havido uma pronúncia correcta, considera a Autora que gera nulidade processual e assim nulidade do saneador sentença, o que implica a anulação do processado a fim de a tramitação regressar ao momento do despacho saneador e haver lugar a audiência para prova dos factos. * Foram apresentadas contra-alegações. * Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir. * 2. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir: Das conclusões formuladas pela recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso são as seguintes: - Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia; - Da falta de personalidade judiciária da autora. * 3. Conhecendo do mérito do recurso: - Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia Defende a Apelante, inferindo-se da argumentação que invoca a nulidade da decisão por excesso de pronúncia, que os autos não permitiam a tomada da decisão em crise sendo, por isso, nula ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil. Segundo o disposto no artigo 615º, n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil é nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. Esta previsão legal está em consonância com o comando do artigo 608º, n.º 2 do Código de Processo Civil, em que se prescreve que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” Cremos que, in casu, não existe, porém, qualquer “excesso de pronúncia” na decisão recorrida ao pronunciar-se pela verificação da excepção dilatória de falta de personalidade judiciária. Questão diversa é apurar se a decisão se encontra em conformidade com o regime legal, o que será apreciado de seguida. Termos em que se considera que não houve qualquer “excesso de pronúncia” na decisão recorrida, improcedendo, assim, a nulidade arguida.
- Da falta de personalidade judiciária da autora Como se sabe a personalidade judiciária é, como refere Castro Mendes[1], o pressuposto dos restantes pressupostos processuais subjectivos relativos às partes. Dispõe o artigo 11.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte, sendo que, quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária - cfr. n.º 2 do citado preceito. De resto, a personalidade judiciária acha-se normalmente associada à personalidade jurídica, consistente na susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações, como resulta inequivocamente do citado n.º 2, do artigo 11.º, do Código de Processo Civil. Acontece que, esta regra de correspondência, ou seja, da coincidência ou da equiparação, entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária, não se verifica na situação inversa, pois que, em certas situações a lei confere personalidade judiciária a determinadas entidades carecidas de personalidade jurídica, como é o caso da herança jacente[2]. Esta extensão da personalidade judiciária a quem não possui ou é duvidoso que possua personalidade jurídica, «é uma forma expedita de acautelar a defesa judiciária de legítimos interesses em crise, nos casos em que haja qualquer situação de carência em relação à titularidade dos respectivos direitos (ou dos deveres correlativos)[3]». A respeito do caso em apreço, estatui o artigo 12.º, do Código de Processo Civil, que: “Têm ainda personalidade judiciária: a) A herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado[4]”. Este citado artigo 6º tinha na redacção anterior à revisão processual operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12.12. e pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25.9, a seguinte formulação:“A herança cujo titular ainda não esteja determinado e os patrimónios autónomos semelhantes, mesmo que destituídos de personalidade jurídica, têm personalidade judiciária”. Portanto, no domínio do Código do Processo Civil anterior aos citados diplomas legais, a herança em relação à qual se verificasse a indeterminabilidade do respectivo titular gozava de personalidade judiciária. Evidentemente que, sendo a herança um património autónomo, cumpre salientar que somente na primeira parte do citado preceito - “herança cujo titular ainda não esteja determinado” - se pretendia abranger aquela realidade constituída pelo conjunto de relações jurídicas, inseridas na esfera jurídica do de cujus, que são transmissíveis e que constituem precisamente a herança de uma pessoa falecida. Só, pois, naquele enquadramento normativo, em caso de indeterminação dos respectivos titulares, uma qualquer massa patrimonial proveniente da esfera de pessoa falecida podia ser enquadrada no artigo 6.º do anterior Código de Processo Civil, e só nesse caso disporia de personalidade judiciária, ou seja, constituiria uma pessoa meramente judiciária, ainda que desprovida de personalidade jurídica. Portanto, da concatenação dos dois textos legais verifica-se que se procedeu à substituição da expressão “herança cujo titular ainda não esteja determinado” pelo sinónimo “herança jacente” estatuído no artigo 2046.º, do Código Civil e aditou-se à expressão “patrimónios autónomos semelhantes” a expressão “cujo titular não estiver determinado”. Como razão justificativa desta alteração da letra da lei refere J. Lebre de Freitas[5], que se «entendeu que a fórmula proposta pela comissão Varela, que abarcava igualmente a herança já aceite mas ainda não partilhada (artigo 2050º do Código Civil), ia longe demais na atribuição da personalidade judiciária, que o facto de serem já conhecidos os sucessores tornava redundante.» Nesse sentido, milita, ainda, Miguel Teixeira de Sousa[6], quando refere que mesmo depois da herança partilhada, os bens herdados continuam a constituir um património autónomo (artigos 2068º e 2071º do Código Civil), «sem que alguma vez se tenha equacionado a questão de lhe [ao dito património autónomo] ser atribuída personalidade judiciária.[7]» Resulta, assim do exposto que a lei só atribui personalidade judiciária à herança jacente que, como se referiu, não se confunde com herança por partilhar ou indivisa. Nos termos do artigo 2046.º, do Código Civil “Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado”. Ora, permanecendo sem aceitação ou declaração de vacatura a favor do Estado[8], a herança assume nesta situação transitória o lugar do de cujus sendo, pois, titular dos direitos e obrigações. Todavia, esta personificação judiciária pode não a acompanhar até à partilha, cessando, como se referiu, com a aceitação por parte dos sucessores, efectuada nos termos previstos nos artigos 2050.º e segs. do Código Civil. Claro que sempre se poderia questionar se apenas nestas situações, de jacência da herança, esta goza de personalidade judiciária, isto é, se não assistirá àquela, na fase de indivisão até à partilha, em que a mesma permanece, distinta do património dos herdeiros, e afecta a um fim próprio, a personificação judiciária que dispunha antes da respectiva aceitação por aqueles e, portanto, a possibilidade de ser parte processual activa e passiva em processo civil. Nesse sentido, se pronunciava Antunes Varela[9], defendendo, por aplicação analógica do disposto artigo 6º, a persistência da personalidade judiciária da herança indivisa, estando em curso inventário judicial, com a consequência de as acções tendentes a defender/atingir interesses do património hereditário terem de ser intentadas em nome ou contra a herança. Cremos, não obstante, a pena autorizada daquele Ilustre Professor que assim não será. Com efeito, cessando a situação de jacência, como atrás se referiu, com a aceitação do chamamento por parte do sucessível ou sucessíveis, pode mesmo assim a herança continuar indivisa, não partilhada e, portanto, sem se verificar a definitiva confusão ou integração dos bens dela componentes no património do ou dos herdeiros, restringindo a personalidade judiciária, nos termos do art. 6º, à herança que, se bem que impartilhada, se mostre, ainda, não aceite - herança jacente[10]. De facto, como salienta, C. Lopes do Rego[11], por via da alteração legislativa (Decreto Lei n.º 329-A/95 de Decreto Lei n.º 108/96) ao artigo 6º do anterior Código de Processo Civil [que foi transposto para o actual art. 12º, al. a)], «afastou-se a maior amplitude da personalidade judiciária da herança que constava do n.º 3 do art. 61º do Ant. 1993 [a acima denominada Comissão Varela], onde se atribuía personalidade à “herança ainda não partilhada ou cujo titular ainda não esteja determinado”: na verdade, se já correu a aceitação da herança, o contraditório deve estabelecer-se necessariamente com os herdeiros que já a aceitaram, apesar de ainda se não ter procedido à respectiva liquidação e partilha, sem prejuízo dos casos excepcionais em que a lei substantiva atribui poderes de administração - e, portanto, de representação em juízo - ao cabeça-de-casal.» Como assim, a herança indivisa ou não partilhada apenas enquanto se mantiver na situação de jacente goza de personalidade judiciária, passando a (…) partir da cessação daquela situação, operada mediante a sua aceitação por parte dos sucessíveis chamados, a não dispor de tal prerrogativa processual pelo que não poderá, em seu próprio nome, desempenhar o papel de parte processual em lide forense, demandar ou ser demandada. Portanto, aceite a herança, cessa a personalidade judiciária atribuída à herança jacente e, quem pode intervir como partes são os respectivos titulares, enquanto herdeiros do de cujus, ou o cabeça-de-casal naquelas situações em que a lei expressamente o prevê. Aliás, isso mesmo resulta do artigo 2091º, nº 1, do Cód. Civil, no qual se estatui que: “Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art. 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.” Ou seja, fora dos casos excepcionais em que se poderá verificar a intervenção do cabeça de casal, ou de qualquer herdeiro ou mesmo terceiro, casos esses previstos nos artigos 2075.º, 2078.º e 2087.º a 2089.º do mesmo diploma, as acções com interesses respeitantes ao acervo hereditário ainda por partilhar terão de ser intentadas por ou contra a totalidade dos herdeiros, actuando estes em litisconsórcio necessário, activo ou passivo[12]. Trata-se, portanto, de legitimidade imposta por lei, decorrente da falta de personalidade judiciária por parte da herança ilíquida e indivisa. Decorre, assim, do exposto, que o relevante, para efeitos de aferição da personalidade judiciária da Herança Ré, é saber, por um lado, se os seus herdeiros se encontram determinados e, ainda, se aceitaram eles a herança. Reportando-nos ao caso vertente, constata-se ser certo que os herdeiros se encontram determinados e aceitaram a herança. Por sua vez, é indiscutível, como vimos, que a herança indivisa (mas não jacente) não tem personalidade judiciária e como tal não pode ser demandante, antes devendo ser demandantes os herdeiros já devidamente identificados em sua representação. Refere, porém, Abrantes Geraldes[13], relativamente a uma decisão em que se havia considerado que a falta de personalidade judiciária de um serviço municipalizado não é suprível através da intervenção respectiva Câmara Municipal, que esta interpretação, excessivamente formalista, “(…) deve dar lugar, em determinadas circunstâncias, a solução diversa que imponha o aproveitamento do processado, quando, por exemplo, a falha se apresente unicamente como errada identificação do sujeito processual” e acrescenta[14] que “devem ainda ser distinguidas as situações de verdadeira falta de personalidade judiciária de outras em que a falta de tal pressuposto é aparente, como sucede quando, apesar de claramente se pretender demandar uma pessoa singular, dona de um estabelecimento comercial, se identifica o réu como “A...”, além de outros casos que se apresentem apenas como errada identificação dos sujeitos”. Ora, na nossa perspectiva, será precisamente essa a situação dos autos, importando notar que, em bom rigor, não está sequer em causa a sanação da falta de personalidade da herança (porque essa não poderá ser ultrapassada), mas sim uma leitura e interpretação da petição inicial da qual decorre que a parte (a autora) não é a herança, mas sim os seus herdeiros ali identificados os quais intervêm na acção na qualidade de representantes da herança. Assim, consta do cabeçalho da petição inicial “Herança Ilíquida e Indivisa Aberto por Óbito de AA, representada pelas herdeiras BB e CC (…)” e alega-se no artigo 1.º que “A Autora é representada por BB e CC, as quais são as únicas e universais herdeiras de seu marido e pai - AA, conforme se pode alcançar do comprovativo de participação de imposto de selo por óbito, cfr doc. n.º 1. É certo que ao concretizar a qualidade em que propõe a acção a autora, aqui Apelante, refere como autor “Herança Ilíquida e Indivisa Aberto por Óbito de AA, representada pelas herdeiras BB e CC (…)” e não “BB e CC, herdeiras únicas, representantes da Herança Ilíquida e Indivisa Aberto por Óbito de AA (…)”. Afigura-se-nos que, tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pelos seus herdeiros, nada obsta a que se considere que quem interpõe a acção, nela figurando como autores, são os herdeiros aí correctamente identificados, pois é evidente que se trata de uma situação de herança indivisa cujos interesses são titulados pelos respetivos herdeiros, não devendo julgar-se a falta de personalidade judiciária da autora mas sim proceder a uma interpretação correctiva que estabeleça a precisa correspondência entre a identificação do sujeito e a verdadeira intenção da parte. De resto, num caso como o dos autos, a falta de personalidade judiciária é apenas aparente, uma vez que todos os herdeiros estão presentes, identificados e outorgaram procuração ao mandatário subscritor da petição, devendo considerar-se que são eles os autores (e não a herança) que, em conjunto, exercem os direitos relativos à herança, conforme decorre do disposto no artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil. Não nos parece, assim, que essa circunstância deva impedir o normal prosseguimento da acção, na medida em que, em rigor, aquilo que está em causa, é uma mera incorrecção na expressão utilizada para identificar a parte e a qualidade em que intervêm nesta acção. Note-se que a herança indivisa nem sequer corresponde a uma realidade diferente do conjunto dos herdeiros; a falta de personalidade da herança não jacente decorre da circunstância de os seus titulares já estarem determinados, pelo que a herança corresponde, na prática, ao conjunto dos herdeiros, afigurando-se-nos, assim, ser excessivamente formalista a posição do Tribunal a quo. De resto, a considerar-se (e não consideramos) relevante no caso em apreço esta incorrecção é a própria lei que impõe o convite ao aperfeiçoamento da petição inicial[15]. Além disso, podemos encontrar, na nossa jurisprudência, várias decisões em que, ultrapassando o rigor formalista das palavras ou expressões utilizadas na petição inicial, se considerou que a verdadeira parte não era aquela que, formal e literalmente, resultava da petição inicial. Assim, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/05/2000[16] onde se considerou que uma Câmara Municipal não é dotada de personalidade judiciária e como tal não pode ser demandada, mas que, se o for - ainda que formalmente incorrecto - deverá entender-se que foi demandado o Município. E, ainda, no Acórdão da Relação de Coimbra de 15/02/2005[17], em que se considerou que, numa acção intentada pela Junta de Freguesia (destituída de personalidade judiciária) se deverá entender que o faz na qualidade de representante da Freguesia e que, portanto, se deverá considerar ser a Freguesia, e não a Junta, a verdadeira parte na acção. No referido sentido, milita, ainda, o acórdão desta Relação de 20/06/1991[18] onde se refere, a dado passo, o seguinte: “(…) a função jurisdicional consiste, não apenas em interpretar a lei e aplicá-la, mas em interpretar os articulados, não restando dúvidas de que uma Câmara Municipal (ou uma Junta) ao ser demandada o é como representante do Município (da Freguesia) e que demandar o Município representado pela Câmara Municipal ou demandar a Câmara Municipal como representante do Município tem o mesmo significado (…)”. E, a propósito da herança, encontramos, igualmente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/07/1990[19], em cujo sumário se lê o seguinte: “perante uma petição em que no cabeçalho se diz que a acção é proposta contra a herança do falecido, mas logo a seguir se identificam todos os herdeiros pedindo-se a citação destes para os termos da causa, é de entender que a acção foi proposta contra estes”. Ainda, no mesmo sentido e numa situação em que a autora era identificada pelos herdeiros, lê-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 27/05/2008[20] o seguinte: “No caso, permanecendo a situação de indivisão dos bens que integram a herança, despida ela de personalidade judiciária, como acima se disse, os direitos que lhe são relativos devem ser, conforme se salientou, exercidos pelos herdeiros. Ora, sendo eles conhecidos, estando terminada a situação de jacência, necessário se torna que no lugar da herança intervenham os respectivos titulares em bloco, ou seja, os herdeiros identificados na petição. Estes, na defesa dos interesses da herança por partilhar, intentam a acção apresentando-se como representantes da herança, embora impropriamente falem em “herança por eles representada”. São os herdeiros quem intervém como parte activa, actuando, não em nome próprio, mas em nome do património representado que não dispõe da possibilidade de ser parte em processo judicial, reunindo, assim, no conjunto deles, não só o requisito da personalidade judiciária, mas também o da legitimidade processual activa (art. 2091º/1, C.C. e 28º/C.P.C.)”. Além disso, no acórdão da Relação de Coimbra de 23-02-2021[21], defende-se que: “(…) 2. Tendo sido proposta uma ação onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pela respetiva cabeça-de-casal, nada obsta a que se considere, com base numa leitura e interpretação menos rígida e formalista (e centrada nos direitos e interesses a regular), que quem interpõe a ação, nela figurando como autora - ainda que atuando no interesse de todos os herdeiros - é a cabeça-de-casal. (…)” De resto, o mesmo se defende no acórdão da Relação de Guimarães de 13-02-2022[22], onde se consigna que: “4 - Tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pelos seus herdeiros, nada obsta a que se considere que quem interpõe a acção, nela figurando como autores, são os herdeiros aí correctamente identificados, pois é evidente que se trata de uma situação de herança indivisa cujos interesses são titulados pelos respetivos herdeiros, não devendo julgar-se a falta de personalidade judiciária da autora mas sim proceder a uma interpretação correctiva que estabeleça a precisa correspondência entre a identificação do sujeito e a verdadeira intenção da parte. 5 - Num caso como o dos autos, a falta de personalidade judiciária é apenas aparente, uma vez que todos os herdeiros estão presentes, identificados e outorgaram procuração ao mandatário subscritor da petição, devendo considerar-se que são eles os autores (e não a herança) que, em conjunto, exercem os direitos relativos à herança, conforme decorre do disposto no artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil.” Importa, por fim, mencionar que o espírito e a filosofia que estão subjacentes ao nosso Código de Processo Civil também apontam para a conveniência de interpretar a petição inicial de modo a que a acção possa ser aproveitada, evitando a absolvição da instância por razões meramente formais e sem que tal justificação se vislumbre como efectivamente necessária. De facto, a filosofia subjacente ao nosso Código de Processo Civil - concretizada por diversos modos em várias disposições legais - visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, pretendendo que o processo e a respectiva tramitação possam ter a maleabilidade necessária para que possa funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes, como claramente se evidencia no preâmbulo do Dec. Lei nº 329-A/95 de 12/12[23], quando ali se diz que as linhas mestras do processo assentam, designadamente na “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz (…)”; quando ali se refere que “visa, deste modo, a presente revisão do Código de Processo Civil torná-lo moderno, verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários, manifestamente simplificado nos seus incidentes, providências, intervenção de terceiros e processos especiais, não sendo, numa palavra, nem mais nem menos do que uma ferramenta posta à disposição dos seus destinatários para alcançarem a rápida, mas segura, concretização dos seus direitos”; quando se alude ao “(…) objectivo de ser conseguida uma tramitação maleável, capaz de se adequar a uma realidade em constante mutação (…)” e quando se afirma que o processo civil terá que ser perspectivado “(…) como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo”. Afigura-se-nos, por isso, que atendendo a estes princípios, não se justificará, na nossa perspectiva e no caso vertente, a absolvição da instância por falta de legitimidade activa, porquanto, com uma leitura e interpretação menos rígida e formalista da lei e da petição inicial e com vista a simplificar e facilitar (e não complicar) o exercício dos direitos das partes e sua eventual satisfação, poderemos admitir e considerar, sem grande dificuldade, que quem é efectivamente autor da acção são os herdeiros da herança, aí devidamente identificados. Impõe-se, portanto, revogar a decisão recorrida, quando absolveu o réu da instância por falta de personalidade judiciária da autora, considerando-se, pelas razões atrás mencionadas, que os autores da acção são BB e CC na qualidade de representantes da herança aberta por óbito de AA. Assim, merece provimento o recurso de apelação. * Sumariando, em jeito de síntese conclusiva: ……………………………… ……………………………… ……………………………… * 5. Decisão Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, dar provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento da acção, figurando como autora BB e CC, na qualidade de herdeiros da herança aberta por óbito de AA. * Custas a cargo do apelado. * Notifique. Os Juízes Desembargadores Paulo Dias da Silva Aristides Rodrigues de Almeida Ana Luísa Loureiro (a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinatura electrónica e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem) ____________ [1] Cfr. “Direito Processual Civil”, AAFDL, 1980, II volume, pág. 13. [2] Cfr. artigos 12º a 14.º do Código de Processo Civil. [3] Cfr. A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 111. [4] Cfr. corresponde, sem alterações, ao anterior artigo 6º, al. a) do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo Decreto Lei n.º 180/96 de 25.09. [5] Cfr. “Código de Processo Civil Anotado”, I volume, 1999, pág. 20. [6] Cfr. “As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, Lex, 1995, pág. 18. [7] Cfr., ainda, no mesmo sentido, após os citados Decreto-Lei n.º 329-A/95 e Decreto-Lei n.º 180/96, Carlos Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil “, 1999, pág. 32. [8] Cfr. artigo 2132.º do Código Civil. [9] Cfr. op. cit., pág. 111, nota 1. [10] Cfr., neste sentido, além de J. Lebre de Freitas, op. cit., pág. 20, M. Teixeira de Sousa, op. cit., págs. 18-19, C. Lopes do Rego, op. cit., pág. 32, A. Abrantes Geraldes, “Personalidade Judiciária”, CEJ, 1997, págs. 6 e segs. e a inúmera jurisprudência invocada nesta última obra. [11] Cfr. op. cit., pág. 32. [12] Cfr. art. 33º, n.º 1 do Código de Processo Civil. [13] Cfr. in Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, Almedina 1997, págs 6 e 7. [14] Cfr. fls. 69 da ob. citada. [15] Cfr. artigo 590º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil. [16] Cfr. processo nº 99B1228, disponível www.dgsi.pt. [17] Cfr. processo nº 3911/04, disponível www.dgsi.pt. [18] Cfr. colectânea de Jurisprudência, Ano XVI, tomo 3, pág. 262. [19] Cfr. processo nº 078685, disponível em www.dgsi.pt. [20] Cfr. processo nº 400/2002.C1, disponível em www.dgsi.pt. [21] Cfr. processo 1088/19.6T8LRA.C1, disponível em www.dgsi.pt. [22] Cfr. processo 164/21.0T8GMR-A.G1, disponível em www.dgsi.pt. [23] Cfr. note-se que toda essa filosofia foi reafirmada e até reforçada no Código de Processo Civil actualmente vigente. |