Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1978/20.3T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO VILARES FERREIRA
Descritores: ACÇÃO POSSESSÓRIA
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE
DEFESA DA COMPOSSE
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RP202110121978/20.3T8PRD.P1
Data do Acordão: 10/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Pode recorrer às ações possessórias quem detenha a posse da coisa nos termos de um direito real de gozo, de um direito real de garantia suscetível de posse ou de um direito pessoal de gozo que beneficie dessa tutela.
II – No caso de composse, cada um dos compossuidores, seja qual for a parte que lhe cabe, tem legitimidade para usar contra terceiros dos meios processuais para defesa da própria posse e da posse comum.
III – Para que a restituição provisória da posse seja decretada basta que sumariamente (summaria cognitio) se conclua pela probabilidade séria da existência (fumus boni iuris) dos seguintes pressupostos: a posse do requerente; e o esbulho com violência daquela posse por parte do requerido.
IV – Na oposição a uma providência cautelar já decretada, deduzida em em alternativa ao recurso, nos termos do artigo 372.º, n.º 1, do CPCivil, sem prejuízo de uma valoração global dos meios de prova produzidos na primeira fase (antes do decretamento da medida) e no âmbito da oposição, o certo é que o objetivo fundamental deste meio de defesa não é o de proceder à reponderação dos primeiros, atividade que mais se ajusta ao recurso da decisão em cujo âmbito se inscreva a reapreciação do julgamento sobre a matéria de facto.
V – Por conseguinte, no recurso da decisão proferida após a oposição, terão também de ser os “novos meios de prova” a sustentar em primeira linha a pretensão de alteração da decisão da matéria de facto, por imporem decisão diversa da firmada pela 1.ª instância.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO N.º 1978/20.3T8PRD.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Paredes - Juiz 1

Relator: Fernando Vilares Ferreira
Adjunta: Maria Eiró
Adjunto: João Proença

SUMÁRIO:
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ACORDAM os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:

I.
RELATÓRIO

1.
B… e C…, residentes na Rua …, n.º .., …, …, Paredes, intentaram o presente procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra RD…, residente na Rua …, n.º …, …, …, Paredes.
Pediram que, sem audiência prévia do Requerido, fossem restituídas à posse de prédio que identificam, com a retirada de cães de raça pitbull e todos os bens pertencentes àquele, devendo ainda ser decretada a inversão do contencioso, com a consequente dispensa da propositura de ação principal.
2.
Produzidas as provas apresentadas, sem audiência da parte contrária, foi proferida decisão que julgou o procedimento cautelar procedente, nos seguintes termos:
a) Ordeno a restituição às Requerentes do Prédio ocupado pelo Requerido e identificado em 1) supra.
b) Ordeno a retirada imediata dos cães de raça pitbull e todos os bens, objetos e pertences do Requerido de modo a permitir a higienização da habitação, realização de obras e reparações necessárias.
c) Defiro a requerida inversão do contencioso, dispensando as Requerentes do ónus da propositura da acção principal.
3.
Citado para os termos do procedimento, veio o Requerido deduzir oposição, excecionando a ilegitimidade processual ativa, e impugnando a versão dos factos alegados pelas Requerentes, propugnando:
a) Pela rejeição do requerimento inicial; ou, subsidiariamente,
b) Pela improcedência do pedido formulado pelas Requerentes e consequente revogação da providência decretada; ou, subsidiariamente,
c) Pela revogação da determinada inversão do contencioso.
4.
Foi proferida sentença que:
a) Julgou improcedente a exceção de ilegitimidade processual ativa, não obstante considerar que apenas B… assume a qualidade de requerente neste processo, deixando de considerar-se como tal C…, por não se encontrar regularmente representada para o efeito;
b) Manteve o decretamento da providência cautelar de restituição provisória da posse à Requerente;
c) Acolheu a pretensão do Requerido quanto à inversão do contencioso, indeferindo tal pretensão da Requerente, não dispensando esta do ónus da propositura da ação.
5.
Inconformado com a decisão, o Requerido interpôs o presente recurso de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, versando matéria de facto e de direito.
6.
Com o requerimento de interposição do recurso, o Apelante apresentou alegações, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
[1.ª - Não se trata apenas de o recorrente não concordar com a forma como a prova foi valorada, mas sim de a prova efectivamente produzida impor uma decisão diversa da que foi assumida pela Meritíssima Julgadora.
2.ª - Foi considerado provado em 1) dos factos provados - “1-A Requerente é dona, legitima proprietária e possuidora (C… é titular do direito de uso e habitação) do prédio urbano sito na freguesia …, …, inscrito na matriz sob o nº 443 da freguesia … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº 1355.”
3.ª - Tal factualidade (titularidade dos direitos ali mencionados) apenas é suscetível de ser demonstrada por documento autêntico. O que não sucede no caso concreto.
4.ª - Os únicos documentos constantes dos autos a tal respeito (e de que o recorrente tenha sido notificado) são uma cópia de uma caderneta predial donde consta expressamente que a titularidade do mesmo será de C…, e que segundo o mesmo documento será titular da propriedade plena do prédio ali descrito. E um documento em tudo semelhante a uma cópia de algo semelhante a uma certidão predial, sem que conste a data da sua emissão, assinatura do alegado emitente, ou sequer a aposição de selo branco ou de qualquer código de acesso que permita a sua consulta, donde consta que por referência ao prédio ali descrito a recorrida seria titular da raiz da propriedade do prédio em causa, sendo o direito de uso e habitação da titularidade de C….
5.ª - A genuinidade de tais documentos foi posta em causa pelo recorrente, que no art. 9.º da sua oposição deduzida nos autos questionou exactamente a genuinidade e actualidade de tais documentos e das informações constantes dos mesmos. Cfr. art. 9.º oposição deduzida nos autos.
6.ª - Mas ainda que o não tivesse feito, sempre se diga que era à recorrida que se impunha o cumprimento de tal ónus processual nos termos previstos no art. 342.º do Código Civil (CC) caso pretendesse demonstrar nos autos os alegados direitos.
7.ª - Tal realidade (facto ou direito registado e respectiva titularidade) carece de ser demonstrado por certidão, nos termos previstos no art. 110.º n.º 1 do Código do Registo Predial e art. 364.º do Código Civil. Em tal sentido veja-se, entre muitos outros, o douto entendimento vertido no mui douto Acórdão do STJ, proferido em 11/04/2019, relator Excelentíssimo Juiz Conselheiro Tomé Gomes.
8.ª - Prevê o art. 607.º n.º 5 do CPC que a livre apreciação das provas que o Julgador possui não abrange os factos que só possam ser provados por documentos. Como sucede no caso concreto em relação a tais matérias.
9.ª - Acresce ainda que a factualidade dada como provada em “1” é contraditória em si mesma. Pois não é possível afirmar por um lado que “A Requerente é dona, legitima proprietária e possuidora…” do prédio em causa, e por outro lado afirmar na mesma frase que “…(C… é titular do direito de uso e habitação)…”.
10.ª - Porquanto a posse é um poder de facto que se manifesta quando alguém actua de um modo que se assemelha ao exercício daquele direito – art.º 1251º do C. Civil – e é integrada por dois elementos: o corpus - elemento material - que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo dos poderes materiais próprios do direito de propriedade sobre ela ou na possibilidade desse exercício e o animus – elemento intelectual ou volitivo – que consiste na intenção de exercer sobre a coisa como seu titular o direito real correspondente àquele domínio de facto.
11.ª - Assim, se se entende que a titular do direito de uso e habitação é a C…, como se afirma na sentença proferida, a recorrida nunca poderá ser possuidora de tal bem, porque lhe faltam os elementos relativos à posse – seja o corpus seja o animus. Se se afirma que é a recorrida a possuidora do prédio em causa (ou seja, com corpus e animus sobre o imóvel em causa) então nunca se pode afirmar que a titular do direito de uso e habitação é a C….
12.ª - Verificando-se assim uma contradição insanável. O que expressamente se invoca.
13.ª - Atentos os elementos dos autos, e a ausência de quaisquer documentos autênticos demonstrativos da situação relativa ao imóvel em causa, nos termos previstos nos art. 342.º n.º1 do Código Civil (CC) e 414.º do CPC, nunca deveria ter sido dado como provado que “A Requerente é dona, legitima proprietária e possuidora (C… é titular do direito de uso e habitação) do prédio urbano sito na freguesia …, …, inscrito na matriz sob o nº443 da freguesia … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº 1355.”.
14.ª - Tal factualidade deveria ter sido dada como não provada. Devendo assim a sentença em causa ser alterada no sentido de dar tal factualidade como não provada.
15.ª - Foi considerado provado em 5) dos factos provados - “5-Sendo o referido prédio, desde há mais de 24 anos possuído de forma pública e pacífica, pela Requerente e sua irmã C…, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.”
16.ª - Apesar de tal ter sido alegado pela recorrida no artigo 5.º do seu requerimento inicial, certo é que nenhuma prova se produziu a tal respeito. Nenhuma das testemunhas que depuseram em audiência corroborou tal facto (designadamente o lapso temporal), nem tal conclusão de direito (a alegada posse pública e pacífica)–que há mais de 24 anos possuído de forma pública e pacífica, pela Requerente e sua irmã C…, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.
17.ª - Tão pouco consta dos autos qualquer outra prova que demonstre tal factualidade e conclusão.
18.ª - Tal foi devidamente impugnado pelo recorrente em 16.º do seu requerimento de oposição, por não se tratar de facto pessoal nem de que o recorrente devesse ter conhecimento.
19.ª - A respectiva prova competia à recorrida nos termos previstos no art. 342.º n.º 1 do CC.
20.ª - Assim na ausência de qualquer prova nesse sentido, sempre se impõe que tal matéria de facto (lapso temporal) e respectiva conclusão de direito (posse pública e pacífica) seja dada como não provada, nos termos previstos nos art. 342.º n.º 1 do CC e art. 414.º do Código de Processo Civil (CPC), alterando-se assim a decisão proferida em tal medida no sentido de dar tal matéria como não provada.
21.ª - Foi dado como provada em 19) dos factos provados – “19-O Requerido, furioso, dirigiu-se a casa das Requerentes e família de faca em punho para os ameaçar de morte, com insultos.”
22.ª - Resulta evidente que os conceitos referidos no ponto 19 dos factos dados como provados relativamente a “… ameaçar de morte” e “… com insultos.” Revestem matéria meramente conclusiva. Não se traduzem em factos.
23.ª - Nenhuma das testemunhas que prestou depoimento nos autos referiu qualquer expressão nem qualquer palavra concreta que o recorrente tenha alegadamente proferido de onde se possa concluir no sentido constante de 19 dos factos provados. Nem no que concerne às alegadas ameaças nem relativamente aos insultos!
24.ª - Nem dos autos consta qualquer outra prova a tal respeito.
25.ª - Inclusivamente, tal matéria foi devidamente impugnada pelo recorrente em 17.º do seu requerimento de oposição, por ser falsa. E o recorrente no seu depoimento prestado em audiência no dia 16-04-2021, com inicio pelas 11:27:04 horas, entre os minutos 23:35 e 23:45, confrontado com tal situação (de ter proferido ameaças) negou tal hipótese, tendo referido expressamente “Eu não ameacei ninguém.”.
26.ª - Na ausência de qualquer prova nesse sentido, sempre se impõe que tal matéria constante do ponto 19 dos factos provados seja dada como não provada, nos termos previstos nos art. 342.º n.º 1 do CC e art. 414.º do CPC, alterando-se assim a decisão proferida em tal medida no sentido de dar tal matéria como não provada.
27.ª - Foi dado como provada em 20) dos factos provados- “Dizendo que não saía, proferindo ao mesmo tempo ameaças de morte.”.
28.ª - Resulta evidente que o conceito referido no ponto 20 dos factos dados como
provados relativamente a “… ameaças de morte” reveste matéria meramente conclusiva. Não se traduzindo em qualquer facto concreto.
29.ª - Nenhuma das testemunhas que prestou depoimento nos autos referiu qualquer expressão nem qualquer palavra concreta que o recorrente tenha proferido de onde se possa concluir no sentido constante de 20 dos factos provados relativamente a quaisquer alegadas ameaças de morte alegadamente levadas a cabo pelo recorrente.
30.ª - Nem dos autos consta qualquer outra prova a tal respeito.
31.ª - Inclusivamente, tal matéria foi devidamente impugnada pelo recorrente em 17.º do seu requerimento de oposição, por ser falsa. E o recorrente no seu depoimento prestado em audiência no dia 16-04-2021, com inicio pelas 11:27:04 horas, entre os minutos 23:35 e 23:45, confrontado com tal situação (de ter proferido ameaças) negou tal hipótese, tendo referido expressamente “Eu não ameacei ninguém.”.
32.ª - Na ausência de qualquer prova nesse sentido, sempre se impõe que tal matéria constante do ponto 20 dos factos provados, relativamente a quaisquer alegadas ameaças de morte alegadamente levadas a cabo pelo recorrente, seja dada como não provada, nos termos previstos nos art. 342.º n.º 1 do CC e art. 414.º do Código de Processo Civil (CPC), alterando-se assim a decisão proferida em tal medida no sentido de dar tal matéria como não provada.
33.ª - Em audiência de discussão e julgamento ocorrida em 02/12/2020 a recorrida requereu a junção aos autos de vários documentos, tendo sido concedido ao recorrente o prazo de vista de cinco dias para se pronunciar.
34.ª - O que o recorrente fez por requerimento apresentado em juízo em 07/12/2020.
35.ª - Em que impugnou que a recorrida alguma vez tivesse enviado as sms cuja junção requerera aos autos, o seu envio e recepção, bem como foi impugnada a sua genuinidade, teor e intenção probatória. Tendo ainda invocado a ilicitude na obtenção de uma imagem sua a segurar um canivete de campismo, alegando que tal imagem teria sido partilhada na rede social facebook de forma privada – ou seja, não estando acessível ao público e não tendo sido partilhada com a requerente. E por via de tal não poderia nunca ser valorada nestes autos como prova do que quer que fosse uma vez que foi obtida de forma ilícita em violação dos art. 26.º n.º 1 e 34.º n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.
36.ª - As questões de direito invocadas pelo recorrente, na qual se inclui a invocação da ilicitude na obtenção do meio de prova em causa por violação do previsto nos art. 26.º n.º 1 e 34.º n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa, não foram alvo de qualquer apreciação ou decisão sobre tal questão jurídica.
37.ª - Nos termos previstos no art. 608.º n.º 2 do CPC, o Juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.
38.ª -Tais questões são relevantes para a análise da motivação vertida na sentença recorrida e entendimento da decisão proferida, que fica assim prejudicado.
39.ª - Ao não ter existido qualquer decisão sobre tais questões de direito invocadas pelo recorrente verifica-se que foi violado o previsto no art. 608.º n.º 2 do CPC, e a consequente nulidade da sentença prevista no art. 615.º n.º 1 alínea d) do CPC. O que expressamente se invoca.
40.ª - Em audiência de discussão e julgamento ocorrida em 18/01/2021, mais uma vez a recorrida ter requerido a junção aos autos de documento, tendo sido concedido ao recorrente o prazo de vista de dez dias para se pronunciar.
41.ª - O que o recorrente fez por requerimento apresentado em juízo em 26/01/2021.
42.ª - Em que invocou a inadmissibilidade da junção de tal documento aos autos por falta de pressupostos que determinassem a sua junção naquele momento, bem como invocou a ilicitude na obtenção do documento em causa por violação do previsto na Lei 37/2015 de 05 de Maio.
43.ª - Tais questões de direito invocadas pelo recorrente, não foram alvo de qualquer apreciação ou decisão.
44.ª - Nos termos previstos no art. 608.º n.º 2 do CPC, o Juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.
45.ª - Tais questões são relevantes para a análise da motivação vertida na sentença recorrida e entendimento da decisão proferida, que fica assim prejudicado.
46.ª - Ao não ter existido qualquer decisão sobre tais questões de direito invocadas pelo recorrente verifica-se que foi violado o previsto no art. 608.º n.º 2 do CPC, e a consequente nulidade da sentença prevista no art. 615.º n.º 1 alínea d) do CPC. O que expressamente se invoca.
47.ª - A sentença recorrida inicia-se, nas primeiras 5 páginas, com o conhecimento de parte da matéria de excepção invocada pelo recorrente no seu requerimento de oposição.
48.ª - Ao longo dessas 5 páginas iniciais, em especial na 4.ª e 5.ª página, a Meritíssima Juiz refere-se a uma alegada acção judicial de Acompanhamento de Maior que teria corrido termos no Juízo Local Civel de Paredes, em que alegadamente teria sido proferida determinada sentença (nada se referindo sobre o eventual trânsito em julgado, ou não da mesma) a nomear acompanhante a C… a aqui recorrida.
49.ª - Chegando mesmo na parte decisória relativa à “Fundamentação de Direito”, na página 22 da sentença em causa, a decidir que “Quanto à posse, também ficou provado que a Requerente (dada a incapacidade da irmã) se encontra investida na mesma.” (O sublinhado é nosso.)
50.ª - O recorrente alegou expressamente nos art. 1.º a 3.º da sua oposição apresentada em juízo, que inexiste nos autos qualquer certidão de sentença ou documento equivalente a tal respeito, nem o recorrente foi notificado da sua alegada existência. Sendo certo que o recorrente não foi parte nem interveniente na eventual acção alegada, desconhecendo se a mesma existiu, e a ter existido, em que contornos e com que alcance. Sendo que dos documentos de que o recorrente foi notificado/citado tal factualidade não se encontra sequer minimamente indiciada.
Motivo pelo qual impugnou tal factualidade no seu requerimento de oposição.
51.ª - Prevê o n.º 2 do art. 412.º do CPC que “Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove.” (O sublinhado é nosso).
52.ª - Na sentença recorrida a Meritíssima Juiz fez menção a tal situação, porém não ordenou a junção aos autos de qualquer documento demonstrativo de tal nem o mesmo foi junto. Designadamente, certidão judicial, que comprove tal alegada factualidade. Tornando assim impossível, ao recorrente e a este Venerando Tribunal, a sindicância de tal alegada realidade, bem como das conclusões vertidas na sentença recorrida a tal respeito.
53.ª - Consubstanciando tal omissão uma nulidade nos termos previstos no art. 195.º n.º 1 do CPC, porquanto tal situação contende directamente com o direito de recurso e cumprimento dos ónus processuais impostos ao recorrente nos artigos 639.º e 640.º do CPC por impossibilitar ao recorrente e a este Venerando Tribunal, o exame de tal realidade referida na sentença recorrida a tal respeito, violando assim o previsto no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa, e bem assim a boa decisão da causa, porque inclusivamente na fundamentação de direito tal questão assume especial relevo para a solução jurídica sobre o mérito da causa tomada pela Meritíssima Juiz. O que expressamente se invoca, com as legais consequências.
54.ª - Ou ainda que se entenda que a gravidade da situação em concreto não assume a relevância de nulidade, sempre consubstanciará séria irregularidade, porquanto tal situação contende directamente com o direito de recurso e cumprimento dos ónus processuais impostos ao recorrente nos artigos 639.º e 640.º do CPC por impossibilitar ao recorrente e a este Venerando Tribunal, o exame de tal realidade referida na sentença recorrida a tal respeito, violando assim o previsto no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa, e assim a boa decisão da causa. O que à cautela igualmente se invoca, porque inclusivamente na fundamentação de direito tal questão assume especial relevo para a solução jurídica sobre o mérito da causa tomada pela Meritíssima Juiz.
55.ª - Foi assim sido violado o art. 412.º n.º 2 do CPC, porquanto a Meritíssima Juiz se socorreu de factos de que o Tribunal teve conhecimento por virtude do exercício das suas funções, não tendo porém sido ordenada a junção aos autos de qualquer documento, nem foi junta, designadamente, certidão judicial, que comprovasse tal alegada factualidade.
56.ª - A sentença recorrida não refere na sua motivação sobre a matéria de facto, concreta e especificamente que provas foram consideradas para ter decidido no sentido que decidiu relativamente a cada um dos factos. Sendo certo que perante as omissões de pronúncia já supra invocadas ficámos sem saber se aquelas provas foram ou não igualmente consideradas na decisão. Pois a sentença não o esclarece.
57.ª - Na página 18 da sentença recorrida consta: “Por fim, não logrou o Requerido abalar a prova quanto aos factos exarados em 19 e 20 supra, relativos aos factos provados do requerimento inicial.”.
58.ª - No entanto a sentença recorrida é totalmente omissa relativamente a que meios de prova serviram para dar tais factos como provados.
59.ª - Tais factos (19 e 20 dos factos provados do requerimento inicial) não são passíveis de serem demonstrados por prova documental - e, obviamente, não foi produzida qualquer prova documental a tal respeito nos autos - nem existiram quaisquer pontos em comum relativos a tais matérias nos depoimentos prestados entre as testemunhas da recorrida e do recorrente.
60.ª - Não sendo assim possível compreender a motivação da sentença recorrida em ter dado tais factos como provados sem indicar que meios de prova concretos estiveram na base da sua convicção e de que forma foram interpretados para se concluir no sentido referido em 19 e 20 dos factos provados do requerimento inicial.
61.ª - A sentença recorrida não foi elaborada com clareza, objectividade, nem discriminadamente, impossibilitando assim que as partes, destinatárias imediatas da decisão, afiram com segurança qual a fundamentação dessa decisão no que concerne à decisão reportada à prova fornecida pelas partes e aceite e adquirida pelo Tribunal.
62.ª - O que se lhe exigia.
63.ª - Verifica-se assim terem sido violados os arts. 205.º n.º 1 e 20.º ambos da Constituição da República Portuguesa, bem como o art. 607.º n.º 4 do CPC, consubstanciando tal a nulidade prevista no art. 615º, nº1, als. c) e d) do CPC.
64.ª - Insurgiu-se o recorrente no presente recurso por ter sido dado como provado a matéria constante de “1” dos factos provados - (1-A Requerente é dona, legitima proprietária e possuidora (C… é titular do direito de uso e habitação) do prédio urbano sito na freguesia …, …, inscrito na matriz sob o nº443 da freguesia … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº 1355).
65.ª - Defendendo que tal matéria deve ser dada como não provada.
66.ª - Desde logo porque nenhum documento consta dos autos apto a demonstrar tal factualidade, pois não se encontra nos autos qualquer documento autêntico donde conste tal informação ou sequer que permita concluir em tais termos.
67.ª - Tal realidade (facto ou direito registado e respectiva titularidade) carece de ser demonstrado por certidão, nos termos previstos no art. 110.º n.º 1 do Código do Registo Predial e art. 364.º do Código Civil. Não o tendo sido.
68.ª - Nos termos do art. 607.º n.º 5 do CPC, a livre apreciação das provas que o Julgador possui não abrange os factos que só possam ser provados por documentos.
Como sucede no caso concreto em relação a tais matérias.
69.ª - Na sentença recorrida, na “Fundamentação de Direito”, foi considerado (cfr pág. 21): “Segundo entendimento pacífico, o reivindicante só tem de alegar e provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra em poder do R.” (O sublinhado é nosso).
70.ª - Prova que apenas poderia ser efectuada por documento autêntico (certidão).
Não o tendo sido.
71.ª - Tendo assim, necessariamente, de se considerar tal requisito (posse) como não provado e consequentemente indeferir o pedido formulado no presente procedimento cautelar.
72.ª - A sentença recorrida decidiu relativamente à matéria de excepção invocada pelo recorrente na sua oposição que “Assim sendo, dúvidas não há de que, de facto, a Requerente C… “não está no processo”, não estando regularmente representada, não devendo pois, figurar como Requerente.”
73.ª - Se na sentença recorrida se afirma que o titular do usufruto (cfr pág 22 da sentença recorrida) e do Direito de Uso e Habitação é a C… (que não está nos autos como parte) então não se pode afirmar, como se faz na sentença recorrida, que a recorrida tem a posse do imóvel em causa. Porquanto a posse é um poder de facto que se manifesta quando alguém actua de um modo que se assemelha ao exercício daquele direito – art.º 1251º do C. Civil – e é integrada por dois elementos: o corpus - elemento material - que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo dos poderes materiais próprios do direito de propriedade sobre ela ou na possibilidade desse exercício e o animus – elemento intelectual ou volitivo – que consiste na intenção de exercer sobre a coisa como seu titular o direito real correspondente àquele domínio de facto.
74.ª - Tal decisão levada a cabo na sentença recorrida é contraditória pois, se se entende que a titular do direito de usufruto e de uso e habitação é a C… como se afirma na sentença proferida, nunca se poderá igualmente entender que a recorrida é possuidora de tal bem. Porque lhe faltam os elementos relativos à posse – seja o corpus seja o animus. Do mesmo modo, se se afirma que é a recorrida a possuidora do prédio em causa (ou seja, com corpus e animus sobre o imóvel em causa), então nunca se poderá afirmar que a titular do direito de usufruto e uso e habitação é a C….
75.ª - Verificando-se assim uma contradição insanável. O que expressamente se invoca. Geradora da nulidade prevista no n.º 1 alínea c) do art. 615.º do CPC.
76.ª - Sempre se diga que afirmando-se o que é afirmado na sentença recorrida a este respeito, sempre se impunha que a C… estivesse em juízo. Fosse como titular do Direito de Uso e Habitação – direito que a recorrente pretendeu que fosse retirado ao recorrente (o direito de usar e residir no imóvel em causa) – fosse como demandada no sentido de se defender do entendimento de que tal direito (uso e habitação) pertence afinal à recorrida e não àquela C… ao contrário do que a recorrida pretendeu demonstrar com os documentos 1 e 2 por si juntos no seu requerimento inicial e expressamente invocou nos art. 5.º, 28.º, 29.º e 30.º todos do requerimento inicial.
Fosse ainda como se afirma em “5” dos factos provados que “5-Sendo o referido prédio, desde há mais de 24 anos possuído de forma pública e pacífica, pela Requerente e sua irmã C…, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.”. Pois se o prédio em causa é, segundo a sentença recorrida, (o que se não aceita mas apenas para efeitos académicos se concebe), possuído pela recorrida e pela C…, então sempre se verifica que esta última igualmente teria de estar em juízo a exercer o seu alegado Direito como demandante.
77.ª - Não estando!
78.ª - Verifica-se assim, independentemente da alteração à matéria de facto requerida, uma situação de litisconsórcio necessário (art. 33.º do CPC) que leva à situação de ilegitimidade (seja ela activa no caso de se entender que é a C… a única titular ou co-titular do Direito de Uso e Habitação sobre o imóvel em causa, seja passiva se se entender que o alegado Direito desta última é colocado em causa pela recorrida) já invocada pelo recorrente no art. 9.º do seu requerimento de oposição apresentado nos presentes autos.
79.ª - A preterição de tal litisconsórcio leva necessariamente a que seja declarada a ilegitimidade processual referida no citado art. 33.º n.º 1 e 2 do CPC. O que igualmente se invoca. Devendo ser assim declarada a verificação de tal excepção dilatória prevista no art. 577.º alínea e) do CPC, e assim ser o recorrente absolvido da instância nos termos previstos no art. 576.º n.º 2 do CPC.
80.ª - Independentemente da alteração ou não da matéria de facto nos termos já requeridos, nunca poderia ter sido julgado procedente o presente procedimento cautelar de restituição provisória da posse por falta de verificação dos requisitos legais previstos nos arts. 377.º e 378.º ambos do CPC.
81.ª - Desde logo, a ausência da posse da recorrida e do esbulho. Pois ainda que se não altere a matéria de facto dada como provada e impugnada no presente recurso, o que apenas para efeitos académicos se concebe, a sentença recorrida afirma expressamente que é a C… que é a titular do usufruto e do Direito de uso e habitação do imóvel– ou seja, o direito que o recorrente tem sobre o imóvel (usar e habitar) em causa e que a recorrida pretende ver cessado- e assim a recorrida não pode ser esbulhada de algo que não tem nem possui.
82.ª - Sendo igualmente certo que atenta a matéria dada como provada em 19 dos factos provados (O Requerido, furioso, dirigiu-se a casa das Requerentes e família de faca em punho para os ameaçar de morte, com insultos.), apenas se deu como provado que o recorrente se tenha dirigido a tal casa com um determinado intuito.
Não tendo sido dado como provado que efectivamente o recorrente os ameaçou, mas apenas que lá se dirigiu para o fazer.
83.ª - Verificando-se assim, independentemente da alteração à matéria de facto já requerida em relação a tal matéria, não estar provada uma situação de violência como exigido nos arts. 377.º e 378.º ambos do CPC.
84.º - Verificando-se assim ter sido violado o art. 378.º do CPC, porquanto foi decretado o presente procedimento cautelar sem que se verifiquem os requisitos legais previstos no art. 377.º do CPC.
85.ª - Devendo assim a sentença recorrida ser revogada nos termos supra requeridos, e serem os pedidos formulados pela recorrido julgados integralmente improcedentes revogando-se assim o procedimento cautelar decretado.]
6.
Contra-alegou a Apelada, pugnando pela improcedência do recurso.
II.
OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do CPCivil).
Assim, não obstante um certo atabalhoamento e desnecessária prolixidade evidenciados nas conclusões das alegações apresentadas pelo Apelante, as questões essenciais a decidir no presente recurso, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica, são as seguintes:
a) Se se verifica exceção dilatória de ilegitimidade processual ativa, por preterição de litisconsórcio necessário;
b) Se a sentença padece de vício de nulidade, desde logo por omissão de pronúncia e contradição insanável, nos termos do art. 615.º, n.º 1, als, c) e d), do CPCivil;
c) Se se justifica a modificação da decisão da matéria de facto, com fundamento em erro de julgamento; e
d) Se a providência decretada respeita os pressupostos previstos nos artigos 377.º e 378.º, ambos do CPCivil.
III.
FUNDAMENTAÇÃO

1.
Da invocada exceção de ilegitimidade processual ativa por preterição de litisconsórcio necessário
Defende o Apelante que, à luz do alegado pela Apelada e julgado provado sob o respetivo ponto 5) da sentença – “Sendo o referido prédio, desde há mais de 24 anos, possuído de forma pública e pacífica, pela Requerente e sua irmã C…, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja” –, também a dita C… teria de estar em juízo a exercer o seu alegado direito como demandante; não estando, ocorre preterição de litisconsórcio necessário, conduzindo à verificação de ilegitimidade processual ativa, prevista no art. 577.º, al. e) do CPCivil, e determinando a absolvição da instância nos termos previstos no art. 576.º, n.º 2, do mesmo Código.
Estamos perante uma ação possessória a qual visa tutelar a posição do possuidor.
Como é sabido, a lei confere ao possuidor diversos meios judiciais de defesa da posse, nomeadamente:
a) ação de prevenção (artigo 1276.º do CCivil);
b) ação de manutenção da posse (artigo 1278.º do CCivil);
c) ação de restituição da posse (artigo 1278.º do CCivil);
d) procedimento cautelar de restituição provisória da posse no caso de esbulho violento (artigo 1279.º do CCivil); e
e) embargos de terceiro (artigo 1285.º do CCivil).
No caso é de um procedimento cautelar de restituição provisória da posse que se trata.
Quanto à legitimidade ativa, pode recorrer às ações possessórias quem detenha a posse da coisa nos termos de um direito real de gozo, de um direito real de garantia suscetível de posse ou de um direito pessoal de gozo que beneficie dessa tutela.
E, no caso de composse, como é o que ocorre nos autos, rege o art. 1286.º do CCivil: “1 – Cada um dos compossuidores, seja qual for a parte que lhe cabe, pode usar contra terceiro dos meios facultados nos artigos precedentes, quer para defesa da própria posse, quer para defesa da posse comum, sem que ao terceiro seja lícito opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro”.
Extrai-se desta norma, com toda a clarividência, que a legitimidade processual ativa nesta ação resulta assegurada em pleno apenas com a intervenção, na qualidade de requerente, de uma das duas possuidoras, à luz da relação material controvertida tal como delineada pela Requerente na petição inicial.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso.
2.
Da invocada nulidade da decisão recorrida
2.1.
Sustenta o Recorrente que a sentença não se pronunciou, como devia, sobre determinadas questões de direito, sendo por isso nula, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPCivil.
As questões tidas em conta pelo Apelante são, desde logo, as que refere nas conclusões 33.ª a 46.ª, para onde remetemos, mas que contendem com a admissibilidade de certos documentos, como meios de prova, apresentados pela Recorrida em sede de audiência de julgamento.
Vejamos.
Antes de mais, convém ter presente a distinção entre nulidades de processo, cujo regime se encontra previsto nos arts. 195.º e segs, do CPCivil), e nulidades de julgamento, previstas no art. 615.º, de natureza estritamente formal.
Segundo dispõe o art. 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPCivil, “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
Tal cominação decorre do dever imposto ao juiz de “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” (art. 608.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPCivil).
Nesta matéria, importa apenas lembrar o que é pacífico na doutrina e na jurisprudência: as “questões” previstas nos normativos em apreço “reportam-se aos pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções, não se reconduzindo à argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim às concretas controvérsias centrais a dirimir”[1].
Ora, no caso dos autos, bastará ler atentamente a sentença para concluir que o Tribunal de que vem o recurso apreciou todas as questões essenciais à formulação de um juízo jurídico acerca da verificação da totalidade dos pressupostos legais do decretamento da providência requerida.
É certo que a decisão recorrida não se refere expressamente a certos argumentos esgrimidos pelo Recorrente, nomeadamente acerca da admissibilidade ou não dos tais documentos como meio de prova, mas também não se vislumbra qualquer necessidade de o fazer, até porque os documentos em questão não foram tão-pouco especificamente valorados para efeitos de formulação do juízo probatório acerca da factualidade relevante para a boa decisão da causa.
E, de todo o modo, argumentos jurídicos não se confundem com questões jurídicas estruturais controvertidas, e estas últimas foram abordadas pela sentença em termos que se coadunam suficientemente com as exigências da lei processual, que no caso não vão além da summaria cognitio, como é por demais sabido.
Conclui-se, pois, pela improcedência da arguida nulidade da decisão recorrida fundada em omissão de pronúncia.
2.2.
Defende ainda o Recorrente que a sentença “não refere na sua motivação sobre a matéria de facto, concreta e especificamente que provas foram consideradas para ter decidido no sentido que decidiu relativamente a cada um dos factos” (conclusão 56.ª); e também que a sentença “não foi elaborada com clareza, objetividade, nem discriminadamente, impossibilitando assim que as partes, destinatárias imediatas da decisão, afiram com segurança qual a fundamentação dessa decisão no que concerne à decisão reportada à prova fornecida pelas partes e aceite e adquirida pelo Tribunal” (conclusão 61.ª); omissões suscetíveis de determinar a nulidade da sentença, por via do preceituado no art. 615.º, n.º 1, als. b) e c), do CPCivil.
A jurisprudência vem entendendo, de modo reiterado e unânime, que “apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão”[2] constitui fundamento da nulidade cominada na al. b) do n.º 1 do cit. art. 615.º.
Por seu turno, para efeitos do preceituado na segunda parte da al. c) do n.º 1 do cit. art. 615.º, entende-se que a decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.
Ora, analisada a decisão sob recurso, não temos dúvidas em afirmar que a mesma não enferma de qualquer dos apontados vícios, mostrando-se suficientemente fundamentada, tanto em matéria de facto como de direito, em termos de permitir a sua compreensibilidade pelos seus imediatos destinatários e, assim permitir o cabal exercício do direito de recurso, como de resto sucedeu.
Improcede também nesta parte o recurso.
2.3.
E no que respeita a vícios da decisão, o Recorrente também não deixou para trás o que qualificou de “contradição insanável”, geradora da nulidade prevista na primeira parte da al. c) do n.º 1 do art. 615.º do CPCivil.
Nos termos daquela disposição legal, a sentença é nula “quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente”[3].
Na base do entendimento do Recorrente parece estar o raciocínio descrito sob a conclusão 74.ª: “Tal decisão levada a cabo na sentença recorrida é contraditória pois, se se entende que a titular do direito de usufruto e de uso e habitação é a C… como se afirma na sentença proferida, nunca se poderá igualmente entender que a recorrida é possuidora de tal bem. Porque lhe faltam os elementos relativos à posse – seja o corpus seja o animus. Do mesmo modo, se se afirma que é a recorrida a possuidora do prédio em causa (ou seja, com corpus e animus sobre o imóvel em causa), então nunca se poderá afirmar que a titular do direito de usufruto e uso e habitação é a C…”.
Trata-se de um raciocínio que parece à partida tolhido pelo equívoco em que se funda, traduzido afinal em fazer coincidir os direitos de usufruto e de uso e habitação com a posse.
Com efeito, a posse, enquanto poder de facto que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1251.º do CCivil) não se confunde de modo algum com o direito de propriedade (art. 1305.º do CCivil) ou com qualquer outro direito real, nomeadamente usufruto (art. 1439.º do CCivil) e uso e habitação (art. 1484.º do CCivil).
De todo o modo, na sentença recorrida não se constata contradição entre a decisão do que é essencial e os respetivos fundamentos. Na verdade, após se deixar afirmada a qualidade de possuidora da Requerente relativamente ao imóvel em causa, assim como a perturbação daquela posse por parte do Requerido, a sentença decidiu em conformidade.
Improcede também este fundamento do recurso.
2.4.
O invocado sob as conclusões 47.ª a 55.ª do recurso, independentemente do acerto ou não da qualificação que lhe foi dada pelo Recorrente – “nulidade nos termos previstos no art. 195.º, n.º 1, do CPC” ou “séria irregularidade”, ou seja, vícios de processo e não da decisão – não assume qualquer utilidade na perspetiva do conhecimento das questões essenciais objeto deste recurso, desde logo por via do que deixámos afirmado acerca da questão da legitimidade processual ativa, ficando por isso prejudicado o seu conhecimento.
3.
OS FACTOS

3.1.
Factos provados e não provados pela 1.ª instância
O Tribunal de que vem o recurso proferiu decisão em matéria de facto, nos seguintes termos:
[I - Alteração da matéria de facto assente na decisão que decretou a providência.
Face aos depoimentos das testemunhas arroladas pelo Requerido e ouvidas em sede de oposição e às suas declarações de parte, foi posta em causa parte da factualidade dada como assente na decisão que decretou a providência a saber.
Assim, antes de mais,
II - No que tange à matéria de facto quer constante do Requerimento Inicial, quer constante da Oposição, responde-se à mesma da seguinte forma:
O Tribunal considera provados os seguintes factos:
Constantes do Requerimento Inicial:
1 - A Requerente é dona, legitima proprietária e possuidora (C… é titular do direito de uso e habitação) do prédio urbano sito na freguesia …, …, inscrito na matriz sob o nº443 da freguesia … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº 1355.
2 - Contra o Requerido já foi apresentada queixa-crime por ofensas à integridade física, ameaças de morte, crime de dano perpetrados contra a Requerente e sua filha.
3 - O inquérito do referido processo nº 861/19.8GAPRD corre termos pela 2ª Secção do DIAP de Paredes.
4 - O Prédio é composto por uma habitação de rés-do-chão e quintal onde a 1ª Requerente criava galinhas para comer, galinhas poedeiras e ainda cultivava batatas, cebolas, hortaliças e mimos da época para o sustento da família, o que fazia com que lá fosse todos os dias.
5 - Sendo o referido prédio, desde há mais de 24 anos possuído de forma pública e pacífica, pela Requerente e sua irmã C…, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.
6 - Os Pais do Requerido são vizinhos das Requerentes há mais de 6 anos.
7 - O Requerido em meados de 2017 foi viver para a habitação que sabia estar devoluta, do prédio supra identificado.
8 - A 1ª Requerente tentava falar com o Requerido para que lhe dissesse quando deixaria a habitação.
9 - O tempo foi passando e o Requerido continuava na habitação com a maior naturalidade.
10 - Em meados de 2019 deixou de pagar as despesas de água e de luz e, deixou de dar a contagem do consumo dos referidos serviços, bem como não permitia que ninguém fosse à habitação para o fazer.
11 - Meteu dentro de casa dois cães que mantém até hoje.
12 - A Requerente e família assumiram desde a referida data o pagamento das despesas que estavam em divida e as mensais que estavam curso, porque sentiam vergonha de verem os seus nomes associados a dívidas.
13 - A situação tornou-se insustentável, pois para além de continuar a permanecer na casa contra a vontade expressa da Requerente, e não pagar as despesas, o Requerido começou a dizer à Requerente para ir para casa dela, e que não tinha nada que lá meter o nariz, sempre que passava à porta da habitação para ir dar comida às galinhas e cuidar da sua horta.
14 - Em 28.12.2019 a Requerente na passagem pela habitação no momento que se dirigia para a sua horta e dar comer às galinhas o Requerido exaltado virou-se para a Requerente a dizer que não tinha nada que entrar na casa dele.
15 - A Requerente foi transportada de ambulância para o hospital.
16 - O Requerido destruiu pelo menos uma porta dentro de casa.
17 - A Requerente desde essa data nunca mais entrou na sua propriedade, abandonou a horta e mandou de lá retirar as galinhas com medo do Requerido.
18 - A Requerente e família apesar do pavor que têm do Requerido no mês de abril, em plena pandemia deram ordem de cancelamento dos serviços de água e luz da referida habitação.
19 - O Requerido, furioso, dirigiu-se a casa das Requerentes e família de faca em punho para os ameaçar de morte, com insultos.
20 - Dizendo que não saía, proferindo ao mesmo tempo ameaças de morte.
21 - O Requerido mesmo depois de constituído arguido e de se ter separado da mulher que levou consigo os filhos, continuou a habitar a casa.
Constantes da Oposição:
1 - O demandado foi residir para a habitação em causa, que se encontrava devoluta.
2 - O demandado pagava as quantias que a demandante B… em cada mês indicava como sendo relativas a água e luz.
3 - Não era emitido um documento de quitação relativamente às quantias por si entregues.
4 - No passado dia 28/12/2019, cerca das 12 horas, o demandado encontrava-se em casa, no quarto, quando subitamente e sem que nada o fizesse prever, a demandante irrompeu pelo interior da sua habitação.
5 - Encontrando-se o demandado completamente nu.
6 - O mesmo ficou extremamente envergonhado e atrapalhado, tendo-se apressado a fechar a porta.
7 - Tendo a demandante saído de imediato.
8 - Nesse dia, a filha da demandante e o demandado discutiram.
*
Factos não provados:
O Tribunal considera não provados, os seguintes factos:
Constantes do requerimento inicial:
1 - Os pais do requerido aparentemente são pessoas de fracos recursos.
2 - Em 2018 a mulher (do Requerido) voltou a engravidar e pedia à Requerente a chorar que tivesse paciência.
3 - Para que ninguém lhe fosse bater à porta na tentativa de entrar, meteu dentro de casa dois cães de raça proibida – pitbull.
4 - Correndo sério risco de danificar as próteses que tem na anca e nos joelhos (a 1ª. Requerente).
5 - Contra o Requerido já foi apresentada queixa-crime por ofensas à integridade física, ameaças de morte, crime de dano perpetrados contra a Requerente e sua filha (parte provada), quando ambas intercederam para proteger o direito de propriedade e de uso e habitação da Requerente (parte não provada).
6 - Os Pais do Requerido em meados de 2017 pediram a título gratuito à 1ª Requerente o especial favor de deixar o Requerido ir viver para a habitação que sabiam estar devoluta, do prédio supra identificado por dois a três meses.
7 - O período de dois ou três meses seria, segundo os Pais do Requerido o tempo suficiente para concluírem umas obras em casa com o propósito de acolher o filho, a nora e a neta.
8 - Como o Requerido à altura estava desempregado a 1ª Requerente reuniu com o marido e os filhos e decidiram que - por dois ou três meses - e, que findo esse tempo teria que sair.
9 - A 1ª Requerente procurou saber qual o motivo da permanência do Requerido na habitação ao que este respondia que as obras na casa dos pais não estavam prontas, que continuava desempregado e por tal motivo não tinha para onde ir com a mulher e a filha.
10 - Perante tais argumentos a Requerente e família apesar de indignadas com a falta de palavra, ficaram sem saber muito bem o que fazer.
11 - Obrigá-lo a sair com mulher, filha, sem trabalho e sem ter para onde ir causou-lhes pena e resolveram aguardar as obras prontas na casa dos Pais do Requerido.
12 - A 1ª Requerente e família deixaram de ver com tanta frequência os Pais do Requerido, e quando os viam, aqueles não davam oportunidade de conversas.
13 - Quem iam vendo, mas raramente, era o Requerido, o qual passava grande parte do dia fechado em casa e quando saia era sempre por volta das 15h00/16h00.
14 - Meteu dentro de casa dois cães de raça proibida – pitbull - que mantém até hoje.
15 - Nesse momento a Requerente julgou ter entendido mal e aproximou-se do Requerido para conseguir entender melhor o que dizia.
16 - Ficou ainda mais exaltado e violento, insultou, agrediu e projetou a Requerente, com cerca de 70 anos de idade, que se locomovia de muletas para o chão ordenando que saísse dali e, ainda agrediu, insultou a filha da Requerente que lhe foi prestar auxilio.
17 - A Requerente teve que ser transportada de ambulância para o hospital (provado) inanimada (não provado).
18 - Passou a destruir portões.
19 - A Requerente e família apesar do pavor que têm do Requerido foram obrigadas no mês de abril, em plena pandemia a dar ordem de cancelamento dos serviços de água e luz da referida habitação para poderem prestar auxílio a familiares que estavam a passar por dificuldades financeiras em consequência do COVID-19.
20 - O Requerido continuou a ameaçar e aterrorizar a vida da Requerente e família.
Constantes da Oposição:
1 - O demandado foi residir para a habitação em causa, sem qualquer estipulação de prazo.
2 - O demandado entregava ainda, por si ou pelos seus pais, quantias monetárias com periodicidade mensal à mesma, no valor de Euros 150 (cento e cinquenta euros).
3 - E tudo corria muito bem.
4 - Até ao momento em que o demandado começou a solicitar que lhe fosse emitido um documento de quitação relativamente às quantias por si entregues.
5 - O que foi perentoriamente negado pela demandante e pela sua filha.
6 - Não obstante, o demandado, atentas as excelentes relações que existiam com a demandante e a sua filha, foi tolerando a situação.
7 - E de imediato, de forma calma, mas atrapalhada, pedido à demandante para sair, porque precisava de se vestir.
8 - “Palavra puxa palavra”, e voltou-se a falar da questão dos recibos de quitação relativamente aos pagamentos efectuados pelo demandante e seus pais.
9 - Na sequência de tal o demandado contactou telefonicamente a filha da demandante dando-lhe conta do sucedido e manifestando o seu desagrado e vergonha com tal situação.
10 - Mais solicitando que de futuro antes de irem à sua residência avisassem para que o mesmo estivesse a contar.
11 - Na sequência de tal a filha da demandante entendeu ir tirar satisfações do demandado.
12 - O que fez, sozinha, no mesmo dia.
13 - E estando o demandado no logradouro da casa de seus pais, aquela, sozinha, irrompeu por lá dentro e começou a discutir com o demandado que estava a limpar e arrumar o interior do seu carro naquele local.
14 - Tendo inclusivamente danificado a porta do lado do condutor do carro do demandado.
15 - Porque a filha da demandante estava completamente fora de si, o demandado entendeu sair do local para tentar que a mesma se acalmasse.
16 - Sendo que quando este chegou junto ao portão de casa dos seus pais para sair, viu a demandante ali sentada no chão.
17 - Sem que em momento algum este lhe tivesse tocado ou sequer aproximado da mesma.
18 - Em momento algum lhe tocou ou dirigiu quaisquer palavras ou expressões intimidatórias.
19 - Nunca em momento algum havia sido imputado ao demandado, fosse por quem fosse relacionado com a demandante, a prática dos factos que agora lhe é imputada por esta no seu requerimento inicial.
20 - O demandado nunca teve atitudes violentas ou intimidatórias com a demandante.
21 - Nunca até ao passado dia 3 de Novembro lhe foi solicitado pela demandante que abandonasse o imóvel, e consequentemente nunca lhe foi fixado um prazo para o fazer, nunca foi interpelado para qualquer situação de mora ou sido efectuada qualquer cominação que qualquer situação de mora se convertesse em incumprimento definitivo a partir de determinada data.
*
A demais matéria ou é conclusiva ou encerra conceitos de direito, ou de mera impugnação ou é irrelevante para a presente decisão.]
3.2.
Apreciação da impugnação da matéria de facto

O Apelante pretende que este Tribunal reaprecie a decisão da matéria de facto em relação a um conjunto de factos julgados provados, designadamente os descritos sob os pontos 1), 5), 19) e 20), com referência ao requerimento inicial, com fundamento em erro na apreciação da prova. Entendem que os mencionados factos deverão antes ser julgados não provados, tendo por base razões e meios de prova que explicitam.
Segundo dispõe o art. 662.º, n.º 1 do CPCivil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
À luz deste preceito, “fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”[4].
Porque estamos perante um procedimento cautelar, destinado, como sabemos, a acautelar o efeito útil da ação (dependente desta), convém que tenhamos presente certas especificidades, marcadas sobretudo pela simplicidade e celeridade, que justificam, para além do mais, que em lugar da prova do direito, o tribunal deva satisfazer-se com uma probabilidade séria da sua existência[5].
No entanto, simplicidade e celeridade não poderão nunca redundar em ligeireza na aferição dos pressupostos de que a lei faz depender a concessão de uma tutela provisória[6].
Mas, por outro lado, também importa ter presente que o caso que nos ocupa gira em volta de um incidente de oposição a uma providência cautelar já decretada.
Com efeito, quando o requerido não tenha sido ouvido antes do decretamento da providência, é-lhe lícito, em alternativa, nos termos do art. 372.º, n.º 1 do CPCivil: “a) Recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido deferida; b) deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução, aplicando-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 367.º e 368.º”.
À luz deste normativo, o requerido terá, pois, de optar entre um, ou outro, dos meios de reação à sua disposição: ou recorre da decisão de decretamento da providência cautelar, nomeadamente sindicando o julgamento feito da matéria de facto realizado, a suficiência dos factos apurados para o decretamento da providência, ou a seleção, interpretação e aplicação feita da lei; ou deduz oposição à mesma, visando então alegar novos factos que infirmem os fundamentos do seu decretamento, ou produzir novos meios de prova que abalem a credibilidade conferida aos inicialmente considerados[7].
Deste modo, “sem prejuízo de uma valoração global dos meios de prova produzidos na primeira fase (antes do decretamento da medida) e no âmbito da oposição, o certo é que o objectivo fundamental deste meio de defesa não é o de proceder à reponderação dos primeiros, actividade que mais se ajusta ao recurso da decisão em cujo âmbito se inscreva a reapreciação do julgamento sobre a matéria de facto”[8].
Por conseguinte, no recurso da decisão proferida após a oposição, terão também de ser os “novos meios de prova” a sustentar em primeira linha a pretensão de alteração da decisão da matéria de facto, por imporem decisão diversa da firmada pela 1.ª instância[9].
Vejamos, então, escutados os depoimentos atinentes e vistos os documentos presentes nos autos.
3.2.1.
Ponto 1):
“A Requerente é dona, legitima proprietária e possuidora (C… é titular do direito de uso e habitação) do prédio urbano sito na freguesia …, …, inscrito na matriz sob o nº 443 da freguesia … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº 1355”.
Defende o Recorrente que tal factualidade apenas é suscetível de ser demonstrada por documento autêntico, o que não sucede no caso, porquanto os documentos tidos em conta pelo Tribunal a quo para o efeito (docs. 1 e 2 juntos com a petição inicial), correspondem a uma cópia simples de caderneta predial e a uma cópia simples de algo semelhante a uma certidão predial, sendo certo ter ele posto em causa a genuinidade de tais documentos, sob o artigo 9.º do seu articulado de oposição.
Antes de mais, impõe-se-nos dar nota de que não podemos aceitar o afirmado pelo Recorrente, no sentido de que impugnou a genuinidade dos documentos em questão, por via do que alegou sob o artigo 9.º do articulado de oposição. Na realidade, o Recorrente, no mencionado artigo 9.º, referindo-se apenas ao documento n.º 2, e no pressuposto da sua veracidade e atualidade, acabou por extrair dele ilações em abono da sua tese de ilegitimidade processual ativa.
Pese embora estejamos perante fotocópias simples, num caso de caderneta predial, e noutro de informação da Conservatória do Registo Predial de Paredes, a verdade é que o Tribunal de que vem o recurso os admitiu como meio de prova relevante, logo quando proferiu a primeira decisão previamente ao exercício do contraditório do Requerido.
Assim, e não tendo o Recorrente contrariado de modo relevante o conteúdo dos referidos documentos particulares – bem pelo contrário, pelo que dissemos –, juntando documentos autênticos em sentido divergente, não vislumbramos razões substanciais que impeçam a consideração dos mesmos como meio de prova do respetivo conteúdo, num processo que se basta com uma prova meramente indiciária – fumus boni juris.
Tal não implica, contudo, que possamos deixar intocado o ponto 1) dos factos julgados provados.
Na verdade, o descrito sob o dito ponto 1) encerra sobretudo juízos jurídico-conclusivos ou conceitos de direito, que têm naturalmente de ser expurgados do elenco da materialidade relevante para a boa decisão da causa.
E sendo assim, tendo por base o conteúdo descritivo dos documentos juntos com a petição inicial sob os nºs 1 e 2, o ponto 1) do elenco da factualidade julgada indiciariamente provada, com referência ao requerimento inicial, passa a assumir a seguinte redação:
“O prédio urbano sito na freguesia …, …, encontra-se inscrito na respetiva matriz predial sob o n.º 443, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o número 1355 da dita freguesia, com inscrição de aquisição, por partilha por morte, a favor da Requerente B…, sob Ap. 12 de 1996/18/13, e com inscrição do direito de uso e habitação, por partilha, a favor de C…, sob Ap. 12 de 1996/18/13”.
3.2.2.
Ponto 5):
“Sendo o referido prédio, desde há mais de 24 anos possuído de forma pública e pacífica, pela Requerente e sua irmã C…, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja”.
Relativamente a este ponto, o Recorrente limitou-se a alegar não ter sido produzido qualquer meio de prova no sentido do que a 1.ª instância deu como provado.
Ora, semelhante alegação é manifestamente insuficiente e inadequada para contrariar um facto que o Tribunal já havia julgado provado na primeira decisão que precedeu o exercício do contraditório do Requerido, com fundamento nos meios de prova produzidos, pelas razões que deixámos mencionadas supra. Competia ao Recorrente, como dissemos, por via da oposição que deduziu, produzir novos meios de prova capazes de contrariar o sentido da primeira decisão, o que manifestamente não fez.
Mantém-se, assim, inalterado o ponto 5) dos factos julgados provados, com o esclarecimento de que o termo “possuído” que dele consta se apresenta como expressão comum da materialidade descrita no precedente ponto 4) – “(…) onde a 1.ª Requerente criava galinhas para comer, galinhas poedeiras e ainda cultivava batatas, cebolas, hortaliças e mimos da época para o sustento da família, o que fazia com que lá fosse todos os dias”.
Pontos 19 -“O Requerido, furioso, dirigiu-se a casa da Requerente e família de faca em punho para os ameaçar de morte, com insultos” e 20“Dizendo que não saía, proferindo ao mesmo tempo ameaças de morte”.
Quanto a estes pontos, argumenta o Apelante que as expressões “ameaçar de morte” e “insultos” revestem matéria conclusiva, pelo que não devem figurar no elenco da factualidade relevante, e ainda que ele próprio, em sede de prestação de depoimento em audiência, negou ter proferido qualquer ameaça.
Aceitamos sem dificuldade que a expressão “insultos” nada contém de materialidade relevante, não passando de mero juízo jurídico-conclusivo, pelo que determinamos a sua eliminação do ponto em questão.
Quanto ao mais, não comungamos do entendimento do Recorrente.
Por um lado, a expressão “ameaçar de morte”, no contexto em que se insere, ligada à ação de empunhar uma faca, assume concretização bastante. Por outro lado, o depoimento do próprio Recorrente, prestado em audiência, no sentido de que “não ameaçou ninguém”, não se nos apresenta como suficientemente sério e credível, a ponto de poder contrariar o sentido da primeira decisão da 1.ª instância, fundada nos meios de prova então produzidos, e à luz do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, mantemos inalterada a redação do ponto 20 e alteramos a redação do ponto 19, passando neste a constar:
“O Requerido, furioso, dirigiu-se a casa da Requerente e família de faca em punho para os ameaçar de morte.”
3.3.
Síntese da modificação da decisão da matéria de facto
A alteração da decisão da matéria de facto, por via deste recurso, circunscreve-se aos pontos 1) e 19) do elenco dos factos julgados indiciariamente provados, com referência à petição inicial, nos seguintes termos:
a) O ponto 1) passa a assumir a seguinte redação:
“O prédio urbano sito na freguesia …, …, encontra-se inscrito na respetiva matriz predial sob o n.º 443, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o número 1355 da dita freguesia, com inscrição de aquisição, por partilha por morte, a favor da Requerente B…, sob Ap. 12 de 1996/18/13, e com inscrição do direito de uso e habitação, por partilha, a favor de C…, sob Ap. 12 de 1996/18/13”.
b) O ponto 19) passa a assumir a seguinte redação:
“O Requerido, furioso, dirigiu-se a casa da Requerente e família de faca em punho para os ameaçar de morte.”
4.
OS FACTOS E O DIREITO

4.1.
O recurso ao procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse, como é o caso, é legitimado nos termos do preceituado no art. 377.º do CPCivil: ”No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência”.
Assim, para que a restituição da posse seja decretada basta que sumariamente (summaria cognitio) se conclua pela probabilidade séria da existência (fumus boni iuris) dos seguintes pressupostos: a posse do requerente; e o esbulho com violência daquela posse por parte do requerido.
A posse traduz-se no “poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” (art. 1251.º do CCivil).
A atuação de facto correspondente ao exercício do direito, por parte do possuidor, constitui o corpus da posse (elemento material); já a intenção de exercer sobre a coisa como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto, representa o animus da posse (elemento subjetivo).
No caso dos autos, para além de resultar afirmada a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em causa, a favor da Requerente, por via da factualidade julgada indiciariamente provada e descrita sob o ponto 1) – com referência à petição inicial -, e bem assim da presunção derivada do preceituado no art. 7.º do Código do Registo Predial[10] - “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define” -, a Requerente logrou provar a sua qualidade de possuidora (ou compossuidora) sobre o mesmo imóvel, considerando a factualidade descrita sob os pontos 4) e 5) do elenco dos factos provados, com referência à petição inicial.
A presunção registral a que nos referimos “actua no sentido de que o direito registado: a) existe e emerge do facto inscrito; pertence ao titular inscrito; a sua inscrição tem determinada substância (objecto e conteúdo dos direitos ou ónus ou encargos nela definidos)”[11].
Diz-se que há “esbulho”, para efeitos de aplicação do preceituado nos arts. 377.º e 378.º, ambos do CPCivil, sempre que alguém seja privado do exercício da retenção ou fruição do objeto possuído, ou da possibilidade de o continuar.
Da matéria de facto descrita sob os pontos 7) e segs. do elenco dos factos provados, com referência à petição inicial, extrai-se com clareza que o Requerido, em meados de 2017, foi morar para o prédio em causa, nele se mantendo, a partir de certa altura, contra a vontade da Requerente, sem para tanto ter título que legitime tal ocupação, o que é bastante para considerarmos verificado o requisito “esbulho”.
Por último, no que concerne à violência exigível do esbulho, importa ter presente que ela tanto pode assumir natureza física como moral; violento é o esbulho que resulta do emprego de força física ou de intimidação contra o possuidor; mas também é violento o esbulho obtido por via de coação moral, resultante da superioridade numérica das pessoas dos esbulhadores, da presença da autoridade, do apoio da força pública, com constrangimento moral ou perturbação da liberdade de determinação e tranquilidade do possuidor[12].
No caso que nos ocupa resultou indiciariamente provado que o Requerido, para além de se recusar a abandonar o prédio contra a vontade da Requerente, assume perante esta atitudes manifestamente intimidatórias, consubstanciadas em ameaças de morte e de faca em punho, assim como na destruição de pelo menos uma porta no interior da casa, em contexto de discussão com a Requerente, o que configura manifestamente violência para efeitos de aplicação dos normativos dos arts. 377.º e 378.º, ambos do CPCivil.
Concluímos, pois, pela verificação da totalidade dos pressupostos de que dependia o decretamento da restituição provisória da posse à Requerente, improcedendo por isso o recurso em matéria de direito.
4.2.
Tendo dado causa às custas do recurso, o Recorrente é responsável pelas mesmas, sem prejuízo da dispensa de pagamento de que possa eventualmente beneficiar por via do instituto do apoio judiciário (arts. 527.º, nºs 1 e 2, do CPCivil).
IV.
DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, julgamos a apelação parcialmente procedente em matéria de facto e totalmente improcedente em matéria de direito, e, em consequência, decidimos:
a) Confirmar a decisão da 1.ª instância, mantendo, consequentemente, a providência decretada.
b) Atribuir ao Apelante a responsabilidade pelas custas do recurso, sem prejuízo da dispensa de pagamento de que possa beneficiar por via do instituto do apoio judiciário.
***
Porto, 12 de outubro de 2021
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Vilares Ferreira
Maria Eiró
João Proença
_____________
[1] Cf. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, Coimbra, 2020, p. 753; acórdão do STJ, de 27-3-2014 (Processo n.º 555/2002.E2.S1), relatado por Álvaro Rodrigues, disponível na data do presente acórdão em www.dgsi.pt(http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b120d2d9cf6ea51480257ca8005bd2da?OpenDocument).
[2] Cf. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES e outros, ob. cit., p. 763.
[3] Cf. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES e outros, ob. cit., p. 763.
[4] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição Atualizada, Coimbra, 2020, p. 332.
[5] Cf. ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, 2.ª Edição Revista e Atualizada, Coimbra, 1985, p. 25; “A essa probabilidade (séria) da existência do direito davam os antigos a designação sugestiva de fumus boni iuris. E falavam da summaria cognitio, a que o juiz devia proceder, para contraporem a forma abreviada da produção e julgamento da prova, própria destes procedimentos, à tramitação normal da instrução da causa para o julgamento da matéria de facto” (ibidem, nota 2, mesma página).
[6] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, III volume, Coimbra, 1998, p. 208.
[7] Cf. Ac. da RG de 30.03.2017, relatado por Maria João Marques no processo 2522/16.2T8BRG-B.G1, acessível em www.dgsi.pt.
[8] Cf. ABRANTES GERALDES, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. III, 1998, pág.232).
[9] Cf. Ac. da RG de 25.02.2021, relatado por MARGARIDA SOUSA no processo 321/19.9T8PRG.G1, acessível em www.dgsi.pt.
[10] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84 e objeto de sucessivas alterações.
[11] Cfr. ISABEL PEREIRA MENDES, Código do Registo Predial, Anotado, 8.ª Edição, 1996, Coimbra, p. 78.
[12] Cf. Ac. da RP de 9.5.2019, relatado por FILIPE CAROÇO no processo 612/19.9T8PRD.P1, acessível em www.dgsi.pt.