Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0554268
Nº Convencional: JTRP00039670
Relator: JORGE VILAÇA
Descritores: AUTOR
HERANÇA
SUCESSÃO
PROCESSO DE INVENTÁRIO
Nº do Documento: RP200610300554268
Data do Acordão: 10/30/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 277 - FLS 03.
Área Temática: .
Sumário: I - O fideicomissário não sucede ao fiduciário mas ao autor da sucessão, àquele que transmitiu os bens.
II - O direito do fideicomissário é exercido o perante os verdadeiros interessados que são os herdeiros do fiduciário e não os do autor da sucessão.
III - A consequência da existência de alguma indignidade de um fideicomissário em relação ao autor da sucessão não faz reverter a quota hereditária que lhe coube a favor dos outros herdeiros do autor da herança, os beneficiários são os herdeiros do fiduciário.
IV - Para partilha dos bens por morte do fiduciário pode ser requerido inventário que tem a natureza de “inventário-arrolamento” – art. 1326º,nº2, do Código de Processo Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I

Relatório

B………. e mulher C……….
Requereram no Tribunal Judicial da Comarca de Paredes (.º Juízo Cível) inventário facultativo para partilha da herança aberta por óbito de D……….
Alegando, em suma, que:
- Em inventário por óbito de E………. foram adjudicados bens imóveis sujeitos a fideicomisso a favor dos herdeiros dos irmãos do inventariado;
- O requerente é filho de uma irmã do inventariado.

O requerente foi nomeado cabeça-de-casal.
Em declarações prestadas na qualidade de cabeça-de-casal, o requerente disse que os bens a partilhar foram deixados ao inventariado D………. por óbito da sua irmã E………., tendo os mesmos bens ficado sujeitos a fideicomisso a favor dos herdeiros legítimos desta.

Foi proferida sentença que, julgando procedente excepção dilatória atípica, determinou a extinção da instância.

Não se conformando com esta decisão, dela recorreu o requerente cabeça-de-casal, formulando as seguintes “CONCLUSÕES”:
1ª - A disposição testamentária de E………, pela qual deixou, a favor dos seus irmãos, no qual se inclui o Inventariado D………. “…o remanescente da minha herança …, sendo porém todos somente usufrutuários, revertendo os seus legítimos herdeiros a raiz da propriedade que lhes pertencer, logo que estes meus irmãos venham a falecer”, constitui uma instituição de herdeiros e não legatários;
2ª - A instituição de substituição fideicomissária – que está em causa nestes autos – é causal do processo de Inventário, já que a fideicomisso recai sobre a universalidade ou uma quota da universalidade, e em que, por isso fiduciário e fideicomissário são herdeiros;
3ª - Assim aos presentes autos cabia o processo especial de Inventário, tal qual foi requerido pelo aqui Recorrente;
4ª - Sendo que neste caso, o Inventário, nos termos do artigo 1326º, n.º 2, do Código de Processo Civil, toma a figura de Inventário arrolamento, arrolando-se, apenas, os bens objecto de fideicomisso.
II

- FACTOS
Os factos relevantes para a decisão são os seguintes:
a) O inventariado D………. faleceu no dia 14 de Abril de 1974, no estado de casado com F………. (cfr. doc. fls. 4);
b) No requerimento de Inventário, B………. e mulher C………. alegam, além do decesso do inventariado, que “em inventário obrigatório que correu seus termos neste Tribunal de Paredes por óbito de E………., foram adjudicados ao inventário bens imóveis sujeitos a fideicomisso a favor dos herdeiros legítimos dos irmãos do Inventariado” e ainda que “o Requerente é filho de G………., irmã do inventariado” (fls. 2 e);
c) No presente processo, veio o mesmo cabeça de casal afirmar que “a herança a partilhar nos presentes autos, foi adjudicada ao Inventariado no Inventário Obrigatório que correu seus termos neste Tribunal por óbito de E………., tendo contudo os respectivos bens ficado sujeitos a fideicomisso a favor dos herdeiros legítimos dos irmãos daquela inventariada”, “(…) Daí que os interessados na partilha dos pressentes autos sejam os sobrinhos de E……….” (fls. 10 e 11);
d) Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Paredes, sob o n.º ../64, um processo de Inventário obrigatório por óbito de E………., a qual deixou testamento no qual se pode ler “(…) O remanescente da minha herança, será dividida em partes iguais, pelos meus dez irmãos sendo, porém, todos somente usufrutuários, revertendo para os seus legítimos herdeiros a raiz da propriedade que lhes pertencer, logo que estes meus irmãos venham a falecer (…)” (vide fls. 69 do doc. de fls. 63 a 175);
e) No processo de Inventário Obrigatório de E………. foram adjudicados ao ora inventariado um terço das verbas nºs 49, 50, 79 e 84 da Relação de bens apresentada naqueles autos;
f) A verba n.º 49 corresponde a uma “casa térrea, sobradada e telhada e quintal que mede mil e duzentos metros quadrados, sita no ………., a confrontar do norte com o ………., nascente com a Rua ………., sul com Igreja, poente com H………., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o numero oitocentos e sessenta, folhas duzentos e dezasseis verso, do livro B-cinco e inscrita na matriz sob o artigo duzentos e trinta e três: (cfr. fls. 98 e 99);
g) A verba n.º 50 corresponde a “uma casa térrea, sobradada e telhada e quintal, sita à Rua ………, a confrontar do nascente com a rua (…) ………., poente e sul com o próprio e norte com o ………., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o número cinte e um mil duzentos e quarenta e nove, a folhas noventa e nove, do livro B-cinquenta e quatro e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo trezentos e três.” (cfr. fls. 99);
h) A verba n.º 79 corresponde ao imóvel “I………, sito no lugar do mesmo nome, a confinar do nascente com J………., poente com L………., Norte com M………. e do Sul com caminho público, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o numero trinta e cinco mil quatrocentos e trinta e dois, a folhas cento e noventa e seis, do livro B-cento e três e inscrita na matiz sob o artigo cinco” (cfr. fls. 113);
i) A verba n.º 84 corresponde ao “direito a metade do N………., sito no ………., que se compõe de Casa sobrada e telhada, com cinco leiras e ramadas, tudo ligado, que confronta do nascente com terras do casal, poente e sul com O………. e norte com caminho, sendo parte descrito na Conservatória do Registo Predial sob o numero catorze mil e quarenta e um, folhas quarenta, do livro B quarenta e sete e inscrito na matriz predial sob os artigos oitenta e oito da urbana e duzentos e noventa e oito da rústica” (cfr. fls. 115;
j) Os imóveis referidos nas alíneas anteriores, na devida proporção em que foram adjudicados ao Inventariado D………., são os que constam da Relação de bens de fls. 24 e 25.
* * *
III

- FUNDAMENTAÇÃO

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

Nos termos do art.º 684º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é limitado e definido pelas conclusões da alegação do recorrente.

No presente recurso a única questão a decidir é a de se saber se pode haver lugar a inventário por morte do fiduciário quando os bens a partilhar são os deixados como fideicomisso.

A decisão recorrida, considerando que o fideicomissário não é herdeiro do fiduciário, mas daquela que deixou o fideicomisso, não há lugar a inventário por morte do fiduciário quando os bens sejam objecto de fideicomisso.

Segundo Oliveira Ascensão:
“Se a posição do fideicomissário for de entender como limitada ao direito sucessório, ainda devemos perguntar se o fideicomissário é um sucessor do ‘de cuius’ ou do fiduciário. No segundo caso, haveria uma posição análoga à que encontrámos na substituição pupilar: tudo se resumiria em permitir que o ‘de cuius’ realizasse um acto designativo com efeito em relação ao fiduciário. No primeiro, teríamos verdadeiramente uma modalidade nova de vocação, a que deve chamar-se vocação sucessiva: o direito de suceder, em relação àqueles bens, seria atribuído primeiro a um, e posteriormente a outro, de maneira que se substituíssem na titularidade dos bens. De todos os modos, quer um quer outro seriam sucessíveis do ‘de cuius’.
Só a segunda modalidade é compatível com o desenho legal do fideicomisso. Não existindo os mesmos motivos que vimos existirem para a solução dada na substituição pupilar. O fideicomissário nenhuma relação necessita ter com o fiduciário; em nada o representa por sucessão, digamos. Por isso o legislador diz simplesmente que os bens revertem do fiduciário para o fideicomissário, não que este suceda àquele. …
O fideicomissário está pois directamente em ligação com o ‘de cuius’, e se for herdeiro é um verdadeiro sucessor pessoal deste, é quem o autor da sucessão quer que o continue – com mais justificação do que o fiduciário, a quem está reservado o benefício efémero. Por isso o fideicomissário não precisa de ter capacidade ou dignidade em relação do fiduciário, mas precisa de a ter em relação ao fiduciário, mas precisa de a ter em relação ao autor da sucessão.” (cfr. Direito das sucessões, 1979, págs. 311/312).

Considerando que os herdeiros, como sucessores universais, “são portanto os que sucedem no património, mas no património considerado unitariamente, visto por um prisma universal.” e que a “existência de uma pluralidade faz surgir a ideia de quota: quota do conjunto que é o património como universitas. A cada herdeiro toca uma parte desse conjunto. Digamos: o bolo é de vários e portanto cada um tem uma fatia. A quota exprime uma relação numérica com o conjunto, é uma fracção aritmética: metade, um terço, 30%, etc. Não tem de se tratar de parte alíquota, ou seja, de parte que se contenha um número preciso de vezes no conjunto: duas, três.” e que o legatário “sucede em bens determinados. É um sucessor particular ou singular.” (cfr. Inocêncio Galvão Telles, Direito das sucessões, 3ª edição – 1978, págs. 163/164 e 169), a instituição de fideicomisso a que se reportam estes autos integram-se dentro de uma instituição de herdeiros.

A posição doutrinária defendida por Luís Carvalho Fernandes sobre a situação jurídica és muito esclarecedora para a resolução da questão colocada no presente recurso, ao referir que na “sucessão fideicomissária … não há vocação conjunta do fiduciário e do fideicomissário, pois a herança só reverte para este por morte daquele. Sobre este ponto são particularmente significativos o n.º 1 do art.º 2293.° e o art.º 2294.°. Na verdade, o fideicomissário não pode aceitar ou repudiar a herança nem dispor dos bens hereditários antes de ela lhe ser devolvida, fenómeno que só ocorre com a morte do fiduciário.” (cfr. Lições de direito das sucessões, 2ª edição, 2001, pág. 241).

Com efeito, por “morte do testador, é chamado imediatamente à herança o fiduciário, sendo a vocação do fideicomissário diferida para o momento da morte do fiduciário. Daí que o fideicomissário não possa exercer o direito de suceder imediatamente, mas apenas quando ocorrer a morte do fiduciário. Em face de tudo quanto fica dito, os requisitos da vocação, nomeadamente o da capacidade sucessória do fideicomissário, colocam-se perante o autor na sucessão e não perante o fiduciário.” (cfr. idem, pág. 241).

Perante os ensinamentos expostos, de onde ressalta a questão fundamental de que o fideicomissário não sucede ao fiduciário mas ao autor da sucessão, àquele que transmitiu os bens, resta questionar perante quem é exercido o direito do fideicomissário: perante os herdeiros do fiduciário ou perante os herdeiros do autor da herança?

Os verdadeiros interessados são os herdeiros do fiduciário e não os do autor da sucessão.
A consequência da existência de alguma indignidade de um fideicomissário em relação ao autor da sucessão não faz reverter a quota hereditária que lhe coube a favor dos outros herdeiros do autor da herança. Os beneficiários são os outros herdeiros do fiduciário.

Assim, acompanhamos a solução dada ao problema pelo Acórdão desta Relação de 21-02-2006, in Colectânea de Jurisprudência, 2006, tomo 1, pág. 195, no sentido de haver lugar a inventário, ainda que tenha a natureza de inventário arrolamento apenas (art.º 1326º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

Em face do exposto, o recurso terá de proceder, a fim de o processo de inventário correr os seus termos.
* * *
IV

Decisão

Em face de todo o exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso de agravo interposto pelo recorrente, revogando-se a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que o ordene o prosseguimento do inventário.
Custas pelo recorrente.

Porto, 30 de Outubro de 2006
Jorge Manuel Vilaça Nunes
António Augusto Pinto dos Santos Carvalho
Baltazar Marques Peixoto