Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ALVES DUARTE | ||
Descritores: | RECONHECIMENTO DE PESSOAS PROVA TESTEMUNHAL | ||
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Nº do Documento: | RP20150520198/12.5GAVFR.P1 | ||
Data do Acordão: | 05/20/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – Do texto do art. 147.º, do CPP, resulta evidente que no reconhecimento, enquanto meio autónomo de prova, se pode distinguir três modalidades: o reconhecimento por descrição (n.º 1), o reconhecimento presencial (n.º 2) e o reconhecimento com resguardo (n.º 3). Esta última modalidade apenas se autonomiza da anterior pela presença de um resguardo ou proteção visual ao reconhecedor, por razões que apenas se prendem com a sua segurança. II – A declaração do ofendido, no inquérito e em audiência de julgamento, de identificação do arguido com base na sua visualização e do veículo que conduzia não constitui um reconhecimento formal e a sua consideração na sentença como prova testemunhal, valorada nos termos dos art. 124.º, 127.º e 128.º, do CPP, nenhuma censura merece. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 198/12.5GAVFR.P1 Instância Local Criminal de Santa Maria da Feira Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: I - Relatório. B… recorreu da sentença proferida no processo em epígrafe que o absolveu da acusação da prática de um crime de furto qualificado tentado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 1 e n.º 2, 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e) do Código Penal, que lhe era imputado, e o condenou como autor material e na forma consumada da prática de um crime de furto tentado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), 202.º, alínea e), 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e) e n.º 4, todos do mesmo diploma, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 12, perfazendo o montante global de € 1440, pedindo que seja revogada, concluindo a motivação com as seguintes conclusões: I. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo julgou incorrectamente os factos referidos nos pontos 9, 12 e 14 a 20, porquanto em relação aos mesmos não foi produzida prova suficiente para suportar uma condenação criminal. II. De acordo com o referido na douta sentença, o Tribunal formou a sua convicção “considerando, essencialmente, o depoimento de C…, em conjugação com o depoimento de D….” III. Não se encontra provado nos autos a propriedade do imóvel em causa e que, alegadamente, foi atribuída a C…. IV. A única testemunha que alegadamente terá presenciado qualquer facto é o próprio ofendido C…. Assim, quanto aos factos, o Tribunal apenas apreciou as declarações do ofendido, pois mais ninguém terá presenciado sua prática. V. O próprio tribunal isso admite, quando refere que o depoimento de D…, militar da GNR, “nada pôde esclarecer quanto aos factos — que não observou — o seu depoimento serviu, essencialmente, para conferir credibilidade ao depoimento de C…”. VI. O Arguido se remeteu ao silêncio, usando do direito constitucional que lhe assiste, e que não pode ser entendido como assumpção de culpa, ou como tendo o condão de atribuir credibilidade a qualquer versão dos factos que seja apresentada. VII. Em fase de Inquérito, o Reconhecimento Físico/Pessoal encontra-se regulado no artigo 147.º CPP. De acordo com o disposto naquela norma, o acto de reconhecimento passará por duas fases essenciais. Numa primeira fase, a que alude o n.º 1 do referido artigo 147.º CPP, proceder-se-á a um controlo de credibilidade, no âmbito do qual o identificante procederá a uma descrição pormenorizada do sujeito a identificar, elucidando, nomeada e mormente o OPC que dirija o acto, de todas as características físicas e outras de que se recorde. Para além desta descrição, o identificante deverá esclarecer qual a sua relação com o sujeito a identificar, referindo, por exemplo, se já conhecia o sujeito a identificar anteriormente aos factos pelos quais aquele tem a correr (ou ainda não) processo penal contra si; bem como indicar outras circunstâncias que considere relevantes para o sucesso do acto recognitivo. VIII. Caso, todavia, esta primeira descrição não seja cabal, isto é, suficientemente elucidativa e geradora de um reconhecimento positivo, deverá proceder-se em conformidade com o disposto no nº 2 do artigo 147º CPP. Nessa medida, afastar-se-á o identificante, chamando duas pessoas com as maiores semelhanças possíveis (inclusive de vestuário), que se colocarão lado a lado com o sujeito a identificar. Com estes cuidados pretende-se a criação de um ambiente cénico adequado potenciador de uma neutralidade psíquica do identificante e evitando o seu prévio sugestionamento no acto de identificação. IX. Quanto ao reconhecimento em sede de audiência de julgamento, coloca-se a questão de saber se se aplicam, também aí, as regras gerais relativas ao reconhecimento, tal como previstas no artigo 147.º CPP. X. A tendência jurisprudencial anterior à Reforma de 2007 era esmagadora no sentido de entender que “os requisitos do artigo 147º CPP apenas se aplicam à instrução e inquérito e não à audiência de julgamento” (cf. Acórdãos do STJ de 01-02-96 CJ IV-I-198; de 11-05-2000, BMJ 497-293; de 2-10-96, BMJ 460-534; Acórdão da Relação de Évora de 07-12-2004, proc. 25/03-1; Acórdão da Relação de Lisboa de 11-02-2004, proc. 928/2004-3; Acórdão da Relação de Coimbra de 06-12-2006, proc. 146/05.9GCVIS.C1; Acórdão da Relação de Guimarães de 31-05-2004, proc. 2415/03-1; Acórdão da Relação do Porto de 22-01-2003, proc. 0240877; in www.dgsi.pt). XI. Todavia, apesar deste entendimento maioritário, a jurisprudência foi-se dividindo quanto à natureza dos reconhecimentos em audiência de julgamento. Assim sendo, parte da jurisprudência ia no sentido de considerar que este tipo de reconhecimentos consubstanciaria prova atípica, a qual seria admissível nos termos do disposto no artigo 125.º CPP (“são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”), devendo ser valorada nos termos do preceituado no artigo 127.º CPP (livre apreciação da prova), cuja interpretação no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo CPP foi julgada inconstitucional por Acórdão n.º 137/2001, processo n.º 778/00 do Tribunal Constitucional; ao passo que outra parte considerável jurisprudência entendia que o reconhecimento em audiência de julgamento corresponde ao relato de uma testemunha que não tem valor processual autónomo do depoimento prestado, sem que tal consideração prejudique os direitos do arguido, na medida em, na audiência de julgamento, vigora em toda a sua plenitude o Princípio do Contraditório. Assim sendo, e considerando o reconhecimento em audiência de julgamento como prova testemunhal, devia o referido “reconhecimento” ser livremente apreciado, nos termos do artigo 127.º CPP (cf. neste sentido de que “o reconhecimento de um arguido na audiência de julgamento é prova testemunhal e não prova por reconhecimento” os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 425/2005, proc. n.º 425/05; do STJ de 06-09-2006, proc. n.º 06P1392; da Relação do Porto de 19-01-2000, proc. n.º 9940498 e de 07-11-2007, proc. n.º 0713492). XII. Com a Reforma de 2007, todavia, a redacção actual do n.º 7 do artigo 147.º prescreve que “o reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer”. XIII. Independentemente das dúvidas quanto à natureza do reconhecimento pessoal em audiência de julgamento, veio o legislador consagrar uma posição diametralmente oposta à anteriormente defendida pela esmagadora maioria da jurisprudência que defendia a inaplicabilidade das regras do artigo 147.º do CPP à audiência de julgamento. XIV. É por demais evidente que o reconhecimento que foi feito ao Arguido, quer em fase de inquérito, quer em fase de julgamento, não respeitou o disposto no artigo 147.º do CPP. XV. A consequência da ausência das formalidades legais do acto de reconhecimento encontra-se prevista no n.º 7 do artigo 147.º do CPP, onde se lê que “o reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer”. XVI. A ausência de valor como meio de prova tem sido entendida, não obstante, de formas díspares. Parte da doutrina entende que se estará aqui perante uma proibição de prova, geradora de uma nulidade que impede a sua utilização, salvo consentimento da pessoa visada (cf. artigo 126.º n.º 3; neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, anotação 22 ao artigo 147.º, UCP, 2007, págs. 420 e 421), nulidade que ora se invoca para todos os efeitos legais. XVII. Todavia, também já foi entendido (cf. por todos o Acórdão da Relação do Porto de 19-01-2000, proc. 9940498, in www.dgsi.pt) que “O reconhecimento feito pelo arguido sem o cumprimento do art.º 147.º constitui inexistência e não nulidade; é como se o acto não se tivesse realizado”. XVIII. Qualquer que seja o entendimento quanto à efectiva e concreta consequência do desrespeito das regras do artigo 147.º CPP, o Tribunal nunca poderá fundar a sua convicção acerca da identidade do autor dos factos, no reconhecimento do Arguido que tiver sido feito contra o legalmente estipulado. XIX. No entanto, e ainda que assim se não considere e se venha a entender que foi efectivamente o Arguido quem se encontrava dentro pátio das instalações do Armazém em causa, não foi produzida em audiência de julgamento qualquer prova quanto à “intenção” que o Arguido teria aquando da sua permanência ou trânsito no aludido local. XX. O Arguido não foi visto na posse de quaisquer objectos. XXI. O Arguido não foi visto, sequer no interior do armazém, que se encontrava, de resto, fechado. XXII. Nunca poderia dar-se por provado que: “(...) o arguido dirigiu-se a armazém "E…", sito na …, em Santa Maria de Lamas, pertencente a C…, com a intenção de retirar do mesmo, os bens que aí viesse a encontrar e de que tal fosse susceptível”. XXIII. Tão pouco existem quaisquer elementos nos autos que sustentem que “Na prossecução de tal objectivo e para aceder ao referido armazém, o arguido subiu e saltou um muro (...)” XXIV. ou sequer que “(...) antes de entrar no aludido armazém e retirar o que quer que fosse”. XXV. Não se podia assim concluir, como fez o tribunal a quo, que “O arguido agiu com o intuito de fazer seus os referidos objectos, sabendo que agia contra a vontade do respectivo proprietário, lesando o património deste, o que representou e quis”. XXVI. Não se fez qualquer prova quanto a que objectos o Arguido alegadamente pretendia furtar. XXVII. Não basta a alegação feita na douta sentença de que os factos descritos nos pontos 5) a 7) da matéria provada (onde se inclui a referência acima transcrita) “resultam da normalidade das coisas perante o descrito em 1) a 4), sendo certo que nenhuma prova foi produzida que permitisse ao Tribunal afastar ou suspeitar que "o normal acontecer" não se verificou no caso em apreço.” XXVIII. O Tribunal a quo, não tendo colhido qualquer prova quanto à intenção do Arguido ao permanecer no pátio do Armazém, entende que “o normal” acontecer corresponde à intenção de furto, XXIX. O Arguido poderia ter uma putativa intenção de destruição, seja do imóvel, seja de objectos no seu interior ou exterior, eventualmente praticando assim um crime de dano, previsto e punido nos artigos 212.º e ss do Código Penal; XXX. O Arguido poderia ter uma putativa intenção de mera introdução em lugar vedado a público, praticando assim o crime previsto e punido pelo artigo 191.º do Código Penal. XXXI. O Arguido poderia ter encontrar-se ainda numa mera situação de facto que não sofra tutela penal... XXXII. O princípio in dubio pro reo "pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como do dolo ou da negligência do seu autor". Cristina Líbano Monteiro Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo. Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 11. XXXIII. Estamos, sem dúvida, perante a violação do principio do in dubio pro reo, segundo o qual o juiz deve decidir "sobre toda a matéria que não se veja afectada pela dúvida", de forma que, "quanto aos factos duvidosos, o princípio da livre convicção não fornece, não pode fornecer, qualquer critério decisório", Cristina Líbano Monteiro Perigosidade de inimputáveis..., p. 54. XXXIV. O invocado princípio é, duplamente, atingido, porquanto e no seguimento da sua consolidação jurídico-normativa, a doutrina entende que "O universo fáctico - de acordo com o pro reo - passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para a prova dos segundos se exige certeza", Cristina Líbano Monteiro "Perigosidade de inimputáveis...", p. 54. XXXV. Nos presentes autos não só ficou cabalmente provado que o arguido não praticou o crime em que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pêlos quais o arguido vem acusado e quanto à culpa deste, pelo que "a sua absolvição aparece como a única atitude legítima a adoptar”, Alexandra Vilela in Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal, Coimbra Editora, 2000, p. 121. XXXVI. O tribunal a quo violou, ainda, o disposto no n.º 2 do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa. XXXVII. Nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do Código de Processo Penal, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o erro notório de apreciação da prova. XXXVIII. A prova produzida, tal como resulta do próprio texto do douto acórdão recorrida não permite considerar que o Recorrente foi o autor de uma tentativa de furto, crime pelo qual veio a ser condenado. XXXIX. O douto acórdão recorrido baseia-se, para concluir que foi o arguido e recorrente o autor desse furto, na forma tentada, apenas e exclusivamente nas declarações do ofendido. XL. A prova dos factos em processo penal não tem de ser directa, pode ser indirecta. Como se refere, entre outros no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2010, proc. n.º 86/06.0GBPRD.P1.S1, relatado por Soares Ramos (sum. in www.dgsi.pt): «Encontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser directa e imediatamente percepcionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “… as provas que não foram proibidas pela lei” (cf. art.º 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art.º 349.º do CC). As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indirecta, mediante o qual o julgador adquire a percepção de um facto diverso daquele que é objecto directo imediato de prova, sendo exactamente através deste que, uma vez determinado usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objecto de prova).» XLI. Importa, porém, não olvidar um princípio estruturante do processo penal: o de que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade. Na ausência desse juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida razoável), vale o princípio de presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição) e a regra, seu corolário, in dubio pro reo. XLII. A questão reside, então, em saber se o facto de o arguido ter sido avistado no pátio de um local vedado é suficiente como indício seguro e inequívoco, capaz de fundar um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável, e não de mera probabilidade, de que ele se encontrava no mesmo com a intenção de praticar um furto. E parece-nos que não. XLIII. “Resultam da normalidade das coisas”, afirma-se na douta sentença recorrida. XLIV. É razoável, por um lado, a dúvida de que tenha sido o Arguido a pessoa avistada. XLV. Assim como não podemos dizer que está, razoavelmente, de todo afastada a hipótese de o arguido se encontrar no interior do aludido pátio, com outra intenção, que não a de furtar. XLVI. Invoca o douto acórdão recorrido o facto de “(...) nenhum elemento de prova foi trazido ao julgamento que, de algum modo, conteste a versão dos factos apresentada pelo arguido (assinalando-se que o arguido optou por não prestar declarações)” (por mero lapso de escrita, este troço da douta sentença trocou o dizer “ofendido” pelo de arguido”. XLVII. Como o Arguido não apresentou outra versão, considerou-se provada a versão do ofendido, provando-se que houve tentativa de furto. XLVIII. Não parece, aceitável esta argumentação, desde logo, porque faz recair sobre o arguido um ónus de prova, contra a regra do princípio in dubio pro reo. Não é sobre o arguido que recai o ónus de provar que não estava no local ou, se estava, qual a intenção que o movia. É sobre a acusação que recai o ónus de provar o contrário. A dúvida que a esse respeito se suscita não pode prejudicar o arguido, deve beneficiá-lo. XLIX. Por outro lado, o raciocínio em causa efectivamente contradiz o direito de o arguido prestar declarações. Este direito decorre do princípio de que o arguido é um sujeito processual, mais do que objecto de prova, e da regra de não obrigatoriedade de auto-incriminação (nemo tenetur se ipse acusare). Implica que o silêncio do arguido ou a não prova das suas declarações, não podem ser valorados contra si, como indício de culpabilidade. L. Não pode concluir-se, simplesmente, do silêncio do arguido, que seria ele autor de uma tentativa furto. LI. Deste modo, porque devemos considerar que, à luz do princípio in dubio pro reo, estamos perante erro notório de apreciação da prova e a prova produzida não permite a condenação do arguido, impõe-se dar provimento ao recurso e absolver o arguido do crime por que vinha acusado. O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da sentença recorrida, com o qual concorda. Nesta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, na linha da resposta do Ministério Público ao recurso. Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem qualquer sequela por parte do recorrente. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir. *** II - Fundamentação.1. Da decisão recorrida. 1.1. Factos julgados provados: I 1. No dia 2 de Março de 2012, cerca das 18.00 horas, o arguido dirigiu-se a armazém “E…”, sito na …, em Santa Maria de Lamas, pertencente a C…, com a intenção de retirar do mesmo, os bens que aí viesse a encontrar e de que tal fosse susceptível;A 2. Na prossecução de tal objectivo e para aceder ao referido armazém, o arguido subiu e saltou um muro, com arame, que cerca o referido edifício, acedendo ao pátio das instalações do referido armazém; 3. Todavia, antes de entrar no aludido armazém e retirar o que quer que fosse, o arguido foi surpreendido pela presença de C… que, entretanto, chegou ao local; 4. Então, apercebendo-se da presença de C…, o arguido encetou uma fuga, saltando o muro e fugindo no veículo de matrícula RQ-..-.. que utilizou para se deslocar àquele local e, antes de realizar o descrito em 2), havia estacionado nas proximidades; B 5. O arguido agiu com o intuito de fazer seus os referidos objectos, sabendo que agia contra a vontade do respectivo proprietário, lesando o património deste, o que representou e quis;6. O arguido só não concretizou os seus intentos devido à chegada de C…; 7. Agiu de modo livre, voluntário e conscientemente, ciente do carácter ilícito e reprovável da sua conduta, sabedor que a mesma era proibida e punida por lei; II 8. O arguido encontra-se desempregado, auferindo € 540 de subsídio de desemprego;9. É proprietário do veículo automóvel Peugeot …, de matrícula DT-..-..; 10. Não é titular de rendimentos prediais; 11. O arguido já foi condenado: I. No âmbito do processo correccional n.º 2203/84, da 2.ª Secção do 2.º Juízo do Tribunal de Espinho, por decisão de 26.04.1985, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelos artigos 23.º e 24.º do Decreto-Lei n.º 13 004, de 12.01.1927, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, na condição de, no prazo de 3 meses, pagar à ofendida a indemnização de 65.000$00; II. No âmbito do processo correccional n.º 257/85, da 1.ª Secção do 1.º Juízo Correccional do Porto, por decisão de 29.11.1985, pela prática de dois crimes de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelos artigos 23.º e 24.º do Decreto-Lei n.º 13 004 de 12.01.1927, na pena de 150 dias de prisão, substituída por multa à taxa diária de 200$00 e na pena de 60 dias de prisão substituída por multa à taxa diária de 200$00; III. No âmbito do processo de querela n.º 306/86, da 2.ª Secção do 3.º Juízo de Santa Maria da Feira, por decisão de 3.04.1987, pela prática de dois crimes de furto qualificado, um sob a forma tentada, e cinco crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelos artigos 329.º, n.º 1 do Código Penal, artigos 296.º e 297.º, n.º 1, al. a), n.º 1, als. c), d) e h) e 22.º do Código Penal e artigos 23.º e 24.º do Decreto-Lei n.º 13 004, de 12.01.1927, na pena de 17 meses de prisão e 35 dias de multa à razão de 200$00 por dia; No âmbito do processo de querela n.º 178/88, da 2.ª Secção do 3.º Juízo do Tribunal de Santa Maria da Feira, por decisão de 29.11.1988, pela prática de sete crimes de furto qualificado e burla, previsto e punido pelos artigos 296.º, 297.º, n.º 2, als. a), c), d) e h), 313.º e 314.º, al. c), todos do Código Penal, na pena única de 9 anos de prisão, sendo-lhe perdoados 18 meses por força da Lei 16/86, de 11 de Junho; IV. No âmbito do processo de querela n.º 65/89, da 2.ª Secção do 2.º Juízo do Tribunal de Oliveira de Azeméis, por decisão de 28.05.1990, pela prática, a 4-5.06.1985, de dois crimes de burla e dois crimes de falsificação, previsto e punido pelos artigos 228.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 e 313.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 14 meses de prisão e 20 dias de multa à taxa diária de 200$00; V. No âmbito do processo comum colectivo n.º 123/95, do Tribunal de Círculo de Santa Maria da Feira, por decisão de 18.12.1995, pela prática, a 21.01.1994, de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 300.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão, que foi perdoada; VI. No âmbito do processo comum colectivo n.º 72/96, do Tribunal de Círculo de Santa Maria da Feira, por decisão de 3.07.1996, pela prática, a 30.11.1994, de um crime de furto e um crime de falsificação, previsto e punido pelo artigo 218.º, n.º 1 e 228.º, n.º 1, al. a e n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão e 12.000$00 de prisão; VII. No âmbito do processo comum singular n.º 222/96, do 1.º Juízo Criminal de Aveiro, por decisão de 11.11.1996, pela prática a 30.10.1994, de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo 11.º, n.º 1, al. a) do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro e artigo 313.º do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão; VIII. No âmbito do processo comum singular n.º 222/96, do 2.º Juízo Criminal de Santa Maria da Feira, por decisão de 19.02.1997, pela prática, em Janeiro de 1993, de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 300.º, n.º 1 do Código Penal; na pena de 8 meses de prisão; IX. No âmbito do processo comum colectivo n.º 121/00, do 2.º Juízo Criminal de Santa Maria da Feira, por decisão de 23.10.2000 transitada em julgado a 7.11.2000, pela prática, em Julho de 1994, de um crime de subtracção de documento, sete crimes de falsificação, três crimes de burla agravada e dois crimes de burla agravada, previsto e punido pelos artigos 256.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1 e n.º 3, 206.º, n.º 1, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos, com condições; e X. No âmbito do processo comum colectivo n.º 110/98.2IDAVR, do 1.º Juízo Criminal de Santa Maria da Feira, por decisão de 11.02.2010 transitada em julgado a 31.01.2011, pela prática, a 1.01.1997, de um crime de fraude fiscal, previsto e punido pelos artigos 23.º, n.º 1 e n.º 2, als. a) e c) e n.º 3, als. a) e e) do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, na pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, na condição do arguido, nesse prazo, proceder ao pagamento à Fazenda Nacional de € 4286,29; 1.2. Factos julgados não provados: A) O arguido levou consigo um macaco. 1.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto: Α. Mesmo antes de nos abalançarmos na motivação da factualidade provada e não provada, importa fazer dois esclarecimentos. O primeiro, a sinalizar que a audiência de discussão e julgamento decorreu com o registo da prova (depoimentos das testemunhas) em sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do tribunal. Esta circunstância, permitindo uma ulterior reprodução desses meios de prova e um efectivo controlo do modo como o Tribunal formou a sua convicção, deve, nesta fase do processo, revestir-se de alguma utilidade, nomeadamente dispensando o relato detalhado dos depoimentos prestados. O segundo, para afirmar que, em termos genéricos, o Tribunal fundou a sua convicção considerando os depoimentos das testemunhas e a prova documental junta aos autos, analisando todos os elementos probatórios ao dispor do Tribunal em confronto entre si e de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador (artigo 127.º do Código de Processo Penal). Concretizemos. Β. Factos provados. Β.α. Factualidade descrita em 1) a 4) dos factos provados Β.α.1. O Tribunal fundou a sua convicção considerando, essencialmente, o depoimento de C…, em conjugação com o depoimento de D…. a) Em primeiro lugar, cabe dizer que C…, proprietário do armazém, prestou um depoimento escorreito, claro, procurando esclarecer os exactos termos em que viu o arguido, dentro das instalações e, ainda, depois, a conduzir o veículo de matrícula RQ-..-... Com efeito, neste âmbito, C… foi peremptório na afirmação de que, entrando nas suas instalações, se apercebe da presença do arguido, ainda fora do armazém, mas já depois das instalações, mais referindo que pôde vê-lo de costas, é certo, mas também a sua cara, já que na fuga o arguido olhou para trás várias vezes. Como claro e também peremptório foi na identificação do arguido como sendo o condutor do veículo de matrícula RQ-..-.. e não tendo dúvida em afirmar que o condutor era a mesma pessoa que, momentos antes, havia visto no interior das suas instalações e que se colocou em fuga no momento em que se apercebeu da presença da testemunha. Acresce que as circunstâncias em que o arguido, depois, procedeu à concreta identificação do arguido foram de molde a fazer crer que tal identificação efectivamente correspondia à pessoa que, momentos antes, viu nas suas instalações. Neste âmbito, recordando-se a dinâmica dos factos — aqui conjugando os depoimentos de C… e de D…, este último militar da Guarda Nacional Republicana — deve dizer-se que, logo após os factos, aquele C… se deslocou ao posto da Guarda Nacional Republicana de Santa Maria de Lamas, aí o tendo informado que se deveria deslocar para o local dos factos que aí acorreria uma patrulha daquela força policial, o que efectivamente sucedeu. E logo aí (quando uma patrulha da Guarda Nacional Republicana integrada, além de outro militar, por D…), C… esclareceu o que pôde observar, nomeadamente que havia surpreendido uma pessoa nas suas instalações e que esta fugiu e que, depois, observou essa mesma pessoa na condução de um veículo cuja matrícula e imediato forneceu os militares da Guarda Nacional Republicana. É em face dessa informação que os militares da Guarda Nacional Republicana iniciam diligências no sentido de encontrar a aludida viatura. O que efectivamente vem a suceder, tendo localizado a viatura em casa do arguido. Depois, é chamado o C… que, logo de imediato, identifica o arguido como sendo a pessoa que viu nas suas instalações e que fugiu, assim como sendo a pessoa que viu ao volante do veículo cuja matrícula logo forneceu aos militares da Guarda Nacional Republicana. b) Do que vai dito, crê-se que fica a descoberto a importância do depoimento de D…, militar da Guarda Nacional Republicana que se deslocou ao local dos factos e que, depois, identificou o arguido. Na verdade, se é certo que nada pôde esclarecer quanto aos factos — que não observou — o seu depoimento serviu, essencialmente, para conferir credibilidade ao depoimento de C…, justamente porque permitiu ao Tribunal apurar que este último manteve uma versão dos factos coincidente com a apresentada em audiência, assim como aferir das reacções do dito C… aquando da identificação do arguido no momento em que se confrontou com ele. c) Não se ignora que o depoimento de C…, ofendido nos presentes autos e essencialmente, tendo sido alvo de outros furtos que o lesaram de modo muito significativo, sempre haveria de ser analisado com especial cuidado, uma vez que o mesmo poderia visar, de algum modo, a satisfação de interesses puramente particulares ou pela necessidade de, por via do presente processo e da punição, obter alguma espécie de vingança sobre a pessoa que acha que foi o autor de factos onde surge como lesado. E, como não podia deixar de ser, o Tribunal na análise e valoração do respectivo depoimento teve em atenção estes aspectos que, de algum modo, poderiam desvirtuá-lo. Contudo, o depoimento de C… procurou ser objectivo, relatando essencialmente o que observou e não se preocupando em fazer meras conjecturas. Além disso, nenhum elemento de prova foi trazido ao julgamento que, de algum modo, conteste a versão dos factos apresentada pelo arguido (assinalando-se que o arguido optou por não prestar declarações) e, tal como já se disse, ainda que de modo indirecto, o depoimento de D… (militar da Guarda Nacional Republicana que, de sua banda, nada tinha contra o arguido) acaba por dar credibilidade ao depoimento de C…. Β.β. Factualidade descrita em 5) a 7) dos factos provados Os factos que aqui se descrevem resultam da normalidade das coisas perante o descrito em 1) a 4), sendo certo que nenhuma prova foi produzida que permitisse ao Tribunal afastar ou suspeitar que “o normal acontecer” não se verificou no caso em apreço. Assinale-se, ainda, que o militar da Guarda Nacional Republicana que foi ouvido em audiência de julgamento manteve contacto direito com o arguido aquando da descoberta do veículo e não revelou qualquer anormalidade ou especialidade neste âmbito que merecesse sequer ser referida. Β.γ. Factualidade descrita em 8) a 11) dos factos provados. Aqui o Tribunal valorou, essencialmente, os elementos que resultam das consultas das bases de dados (fls. 131 e 132), assim como as informações do IPS (fls. 137 e fls. 147) e da Autoridade Tributária (fls. 138 a 142). Quanto aos antecedentes criminais, o Tribunal atendeu ao certificado do registo criminal do arguido que consta de fls. 67 a 80 e fls. 109 a 121. Γ. Factos não provados. Não foi produzida prova relativamente à factualidade que aqui se mostra descrita. *** 2. Poderes de cognição desta Relação e objecto do recurso.2.1. O âmbito do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente que culminam as suas motivações e é por elas delimitado.[1] Às quais acrescem as questões que são de conhecimento oficioso desta Relação enquanto Tribunal de recurso, como no caso dos vícios ou nulidades da sentença a que se reporta o art.º 410.º, n.os 2, alíneas a), b) e c) e 3 do Código de Processo Penal.[2] Tendo isso em conta e uma vez que se não detecta qualquer vício ou nulidade na douta sentença recorrida de entre os que se devesse conhecer ex officio, diremos que as questões a apreciar neste recurso são as seguintes: 1.ª A afirmação feita pelo ofendido na audiência de julgamento de que viu a cara da pessoa que praticou os factos e a identificou como sendo o arguido insere-se na prova por reconhecimento? 2.ª Nesse caso, tem que obedecer ao disposto no art.º 147.º do Código de Processo Penal? 3.ª Não obedecendo, quais as consequências daí decorrentes? 4.ª Para julgar provado que o arguido agiu com dolo não basta afirmar que isso decorre «da normalidade das coisas perante o descrito em 1) a 4) [factos objectivos], sendo certo que nenhuma prova foi produzida que permitisse ao Tribunal afastar ou suspeitar que "o normal acontecer" não se verificou no caso em apreço»? 5.ª Ao assim julgar, o Tribunal violou o princípio in dubio pro reo? *** 2.2. Vejamos então as questões atrás enunciadas, começando, naturalmente, pela primeira delas: referindo o ofendido, primeiro no inquérito e depois no julgamento, que viu o arguido no local e depois a afastar-se dele ao volante de certo veículo, designadamente a sua cara, pois que estando de costas posteriormente voltou-se para trás, na sua direcção, isso vale como reconhecimento e, nesse caso, é ilegal, ou como depoimento testemunhal.A este propósito, o art.º 147.º reza assim: 1. Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação. 2. Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar -se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual. 3. Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo efectuar-se, se possível, sem que aquela pessoa seja vista pelo identificando. 4. As pessoas que intervierem no processo de reconhecimento previsto no n.º 2 são, se nisso consentirem, fotografadas, sendo as fotografias juntas ao auto. 5. O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do n.º 2. 6. As fotografias, filmes ou gravações que se refiram apenas a pessoas que não tiverem sido reconhecidas podem ser juntas ao auto, mediante o respectivo consentimento. 7. O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer». Do texto deste normativo resulta evidente que no reconhecimento, enquanto meio autónomo de prova, se pode distinguir três modalidades: o reconhecimento por descrição (n.º 1), o reconhecimento presencial (n.º 2) e o reconhecimento com resguardo (n.º 3).[3] Porém, esta última modalidade apenas se autonomiza da anterior pela presença de um resguardo ou protecção visual ao reconhecedor, por razões que apenas se prendem com a sua segurança.[4] Ora, pressuposto de qualquer reconhecimento é a necessidade de a ele se proceder para identificar determinada pessoa. É o que resulta da letra da lei: no n.º 1, diz-se «quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa» e, no n.º 2,[5] «se a identificação não for cabal».[6] Daí que, sabendo a testemunha identificar a pessoa e, designadamente, o arguido enquanto autor dos factos em julgamento, o reconhecimento não é necessário e a ele se não tem que proceder, por manifesta desnecessidade.[7] Mas a afirmação de alguém que viu determinada pessoa praticar os factos não é descartável antes se insere na prova testemunhal e não está sujeito ao regime daquele normativo, conforme, de resto, em persistente compasso vem entendendo a jurisprudência.[8] Como lapidarmente esclareceu o Supremo Tribunal de Justiça, «diversamente, a identificação do arguido, que se insere no âmbito do depoimento da testemunha, destina-se a permitir ao tribunal assegurar-se, em audiência, que o depoimento respeita à pessoa do arguido, de modo a que não ocorra incerteza quanto à identificação do agente do crime, não sendo a esse acto de identificação que o n.º 7 do art.º 147.º do CPP se refere quando determina que, em qualquer fase do processo, o reconhecimento seja feito com observância das respectivas formalidades».[9] Tanto mais assim é que, como se colhe do sentença em dissídio no recurso, desde logo no inquérito mas também na audiência de julgamento o ofendido referiu não só ter identificado o arguido, dentro das instalações como na sequência da sua fuga a conduzir o veículo de matrícula RQ-..-.., pela cara pois que então se virou para trás várias vezes, tendo sido precisamente por ter fornecido esses elementos aos agentes da GNR que lhes permitiu de imediato proceder a diligenciarem para encontrar aquele veículo automóvel, o qual vieram a encontrar na casa do arguido. Tratou-se, assim, no inquérito e na audiência de julgamento, de uma declaração pelo ofendido de identificação do arguido com base na sua visualização e do veículo que conduziu e não de um reconhecimento formal deste por aquele. Pelo que a sua consideração na sentença como prova testemunhal, valorada no âmbito dos art.os 124.º, n.º 1, 127.º e 128.º do Código de Processo Penal, nenhuma censura merece. E com isto fica resolvida esta e as duas questões subsequentemente elencadas. 2.3. Apreciemos seguidamente a questão de saber se, como pretexta o recorrente, para julgar provado que o arguido agiu com dolo não basta afirmar que isso decorre «da normalidade das coisas perante o descrito em 1) a 4) [factos objectivos], sendo certo que nenhuma prova foi produzida que permitisse ao Tribunal afastar ou suspeitar que "o normal acontecer" não se verificou no caso em apreço». Também aqui discordamos do ponto de vista do recorrente. Na verdade, sendo o dolo do domínio interior de cada pessoa, na ausência de confissão do agente ele só pode ser alcançado a partir dos elementos objectivos do tipo,[10] em resultado da conjugação de princípios de normalidade ou regras da experiência comum.[11] Ora, o que é normal concluir-se de uma situação em que alguém transpõe um muro, com arame, que cerca um armazém e para ele se dirige quando é interceptado pelo respectivo proprietário é que tem o propósito dele subtrair e se apropriar de coisas que nele vier a encontrar. Não foi visto na posse de quaisquer objectos, é certo, mas também não foi disso que fora acusado mas apenas do propósito não conseguido de o fazer. Claro que o seu propósito poderia ser destruir os objectos que encontrasse ou até meramente introduzir-se no armazém mas, naturalmente, como bem assinalou a sentença recorrida, não é isso que normalmente corresponde ao padrão de quem salta um muro com arame e se dirige a um armazém. 2.4. Resta por apurar se ao assim julgar o Tribunal violou o princípio in dubio pro reo. Como sabemos, essa é uma das formas que pode revestir o vício do erro notório na apreciação da prova.[12] E por isso, como a propósito dos demais vícios da sentença, dele se poderá conhecer apenas se resultar da decisão recorrida.[13] Por outro lado, o princípio in dubio pro reo constitui uma máxima de acordo com a qual o juiz, face a um non liquet probatório, deve julgar em favor do arguido. Na verdade, conforme sustentadamente vem decidindo a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, a dúvida relevante tem que radicar no espírito do próprio julgador (que a não pode valorar contra o arguido) e não no de qualquer outro sujeito ou interveniente processual que, porventura, considere dúbia a certeza probatória afirmada por aquele.[14] Descendo ao caso sub iudicio e analisado a sentença recorrida diremos que não se descortina que os julgadores tivessem ficado na dúvida sobre a realidade da matéria de facto que julgaram provada e muito menos que tivessem optado por decidir essa dúvida (imaginária ou apenas por ele mesmo sentida, portanto) contra o arguido e ora recorrente. Valoraram a prova de modo diverso dele, é certo, mas isso é algo que está dentro da normalidade das coisas se atendermos a que ele é parte interessada no dissídio com o ofendido, enquanto que o Tribunal estava numa posição equidistante de todos eles. Por tudo isto e em jeito de conclusão diremos que deve prevalecer o julgamento da matéria de facto efectuado pelo Tribunal a quo na sentença recorrida. Não terminaremos, no entanto, sem referir que se não provou que no armazém existia qualquer coisa móvel e, portanto, coisa susceptível de poder ser objecto de furto pelo ora recorrente. É certo que na sentença recorrida se afirma que ele saltou o muro e se dirigiu ao armazém «com intenção de retirar do mesmo os bens que aí viesse a encontrar e de que tal fosse susceptível» e que «agiu com o intuito de fazer seus os referidos objectos». Porém, que objectos seriam esses, é o que se pode perguntar mas não se pode responder pois que em lugar algum a sentença recorrida o diz. Não o diz nos factos provados, como teria que dizer atendendo aos princípios do acusatório e da vinculação temática da sentença à acusação, mas, já agora, também não o diz na fundamentação. Repare-se, de resto, que a sentença recorrida refere «bens que aí viesse a encontrar» e não bens que lá se encontravam. Por outro lado, mesmo que dissesse bens que aí se encontravam e não apenas «bens que aí viesse a encontrar», a solução seria a mesma pois que a sentença recorrido não identifica as coisas nem refere qual o seu valor[15] e este, em regra, é pressuposto do crime de furto. É verdade que certas coisas fora do comércio, como os documentos de identificação, ou de pura relevância pessoal, como as fotografias de família, nesse sentido são destituídas de um valor económico mas podem ser objecto do crime de furto na medida em que, não deixando de poder ser objecto do direito de propriedade, são coisas que, quer pelo valor intrínseco, quer pelo valor afectivo, merecem a mesma protecção que as coisas com valor; mas o mesmo já não acontece com muitas das coisas sem qualquer valor, seja económico ou outro, que por isso não merecem a tutela penal.[16] Neste contexto, mesmo admitindo, sem conceder, que algumas coisas efectivamente se encontravam dentro do armazém, sem saber a sua natureza ou valor não se poderia dar-lhes relevo penal para efeitos de perfeição da prática do tipo de crime de furto. Destarte, mais do que dizer que se não fez qualquer prova quanto a que objectos (rectius: coisas móveis) o recorrente pretendia furtar, como o mesmo sustenta na conclusão XXVI, o que na verdade se deverá dizer é que se não provou que dentro do armazém se encontravam coisas móveis e daí, portanto, se impõe concluir que a sua intenção apropriativa era meramente ideal, sem que se possa afirmar que se poderia materializar no sentido consumar uma apropriação. Porém, daí não se pode concluir pela irresponsabilidade criminal do recorrente. Com efeito, o art.º 22.º do Código Penal reza assim: «1. Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se. 2. São actos de execução: (…) c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores. Por outro lado, o art.º 23.º, n.º 3 do Código Penal estabelece que «a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime». Assim sendo, uma vez que o recorrente praticou actos de execução de um crime de furto de coisas que desconhecia existirem no interior do armazém mas que isso não era para ele manifesto, já que não chegou a lá entrar, cometeu um crime de furto na forma tentada, como de resto foi considerado pela sentença recorrida. É que o desvalor ético-jurídico da actuação do recorrente se funda no seu convencimento da existência de bens subtraíveis dentro do armazém, vedado com muro encimado com arame e situado numa tapada, pois que caso contrário, como vem provado, não teria lá pretendido entrar quando normalmente ninguém lá se encontraria (repare-se que eram 18 horas de uma Sexta-feira, final de semana e, portanto, final do dia e semana de trabalho). *** III - Decisão.Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC (art.os 513.º, n.º 1 e 514º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa). * Porto, 20-05-2015.Alves Duarte Castela Rio ________ [1] Art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Na linha, aliás, do que desde há muito ensinou Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil, Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1984, página 359: «Para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação.» [2] Que assim é decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão do Plenário das Secções Criminais, de 19-10-1995, tirado no processo n.º 46.680/3.ª, publicado no Diário da República, série I-A, de 28 de Dezembro de 1995, mantendo esta jurisprudência perfeita actualidade, como se pode ver, inter alia, do acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, de 18-06-2009, consultado em www.dgsi.pt, assim sumariado: «Continua em vigor o acórdão n.º 7/95 do plenário das secções criminais do STJ de 19-09-1995 (DR I Série - A, de 28-12-1995, e BMJ 450.º/71) que, no âmbito do sistema de revista alargada, decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.» Na Doutrina e no sentido propugnado, vd. Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, página 1049. [3] Acórdãos das Relações de Coimbra, de 11-10-2010, no processo n.º 209/1PBFIG.C1 e de Lisboa, de 15-11-2011, no processo n.º 464/10.4PEAMD.L1-5, publicados em http://www.dgsi.pt. [4] É o que nos diz o n.º 3 do art.º 147.º do Código de Processo Penal: «Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento e este não tiver lugar em audiência …». [5] O que, por conseguinte, pelas razões já apontadas, também vale para o n.º 3 do art.º 147.º do Código de Processo Penal. [6] Acórdão da Relação de Coimbra, de 01-06-2011, no processo n.º 533/09.3JAAVR.C1, publicado em http://www.dgsi.pt. [7] Acórdãos das Relações de Coimbra, de 01-06-2011, no processo n.º 533/09.3JAAVR.C1 e do Porto, de 26-01-2011, no processo n.º 270/07.3GTBRG.P1, publicado em http://www.dgsi.pt. [8] Sendo manifestamente exagerada a afirmação feita pelo recorrente no recurso de que tal assim deixou de ser logo após a revisão do processo penal que teve lugar no ano de 2007, como bem se pode ver dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 03-03-2010, no processo n.º 886/07.8PSLSB.L1.S1e de 23-11-2011, no processo n.º 20/09.0GALLE.E1.S1, da Relação do Porto, de 25-02-2015, no processo n.º 26/09.9GASPS.C1, de Lisboa, de 30-10-2008, no processo n.º 7066/2008-9 e de 14-01-2014, no processo n. º 76/10.2GTEVR.L1-5, da Relação de Coimbra, de 10-11-2010, no processo n.º 209/09.1PBFIG.C1, de 16-02-2011, no processo n.º 217/09.2PEAVR.C1, de 26-10-2011, no processo n.º 179/10.3GBVNO.C1, de 11-06-2014, no processo n.º 26/09.9GASPS.C1, de 18-06-2014, no processo n.º 26/09.9GASPS.C1, da Relação de Évora, de 08-01-2013, no processo n.º 134/10.3GCABF.E1 e de 20-01-2015, no processo n.º 1243/11.7PBFAR.E1 e de 23-03-2009, no processo n.º 1109/08-1, todos publicados em publicado em http://www.dgsi.pt. [9] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-11-2011, no processo n.º 20/09.0GALLE.E1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt. [10] Art.º 127.º do Código de Processo Penal. Neste sentido, cfr. os acórdãos da Relação do Porto, de 08-03-1995, no processo n.º 9441049 e da Relação de Lisboa, de 14-10-1997, no processo n.º 0033945, de 28-01-1997, no processo n.º 0001015 e de 09-04-2013, no processo n.º 641/11.0 JDLSB.L1-5, publicados em http://www.dgsi.pt. [11] Acórdãos da Relação do Porto, de 28-02-1990, no processo n.º 0123684, de 08-03-1995, no processo n.º 9441049 e de 19-12-2012, no processo n.º 497/08.0GAMCN.P1, da Relação de Lisboa, de 28-01-1997, no processo n.º 0001015, de 23-11-2000, no processo n.º 0065989 e de Guimarães, de 14-12-2005, no processo n.º 1559/05-1, publicados em http://www.dgsi.pt. [12] Art.º 410.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal Neste sentido, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição, página 1094. [13] Art.º 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. Que assim é vd. Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição, página 1050 e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-05-2009, processo n.º 05P0145, publicado em http://www.dgsi.pt. [14] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-07-2008, processo n.º 08P1787, de 05-02-2009, de 27-05-2009, processo n.º 05P0145 e da Relação de Guimarães, de 09-05-2005, processo n.º 475/05-1, todos publicados em http://www.dgsi.pt. [15] E não o poderia referir, pois que do mesmo mal padece a acusação. [16] Neste sentido, Miguez Garcia e Castela Rio, no Código Penal, Parte geral e especial, Almedina, 2014, páginas 838 e seguinte, Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, página 552, Maia Gonçalves, Código Penal Português - Anotado e Comentado, Almedina, 2007, 18.ª edição, página 721 e Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal, volume, 2.ª edição, 1.ª reimpressão, Rei dos Livros, 1997, página 426. |