Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0051631
Nº Convencional: JTRP00032356
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: ASSOCIAÇÃO
ESTATUTOS
NULIDADE
Nº do Documento: RP200106040051631
Data do Acordão: 06/04/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 4 V CIV PORTO
Processo no Tribunal Recorrido: 72/00
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE.
Área Temática: DIR CIV - DIR ASSOC.
Legislação Nacional: CCIV66 ART175 N2 N3 N4 ART280 N1 ART158-A ART292 ART294.
Sumário: I - O artigo 24 n.1 dos estatutos da Ré -"C....." ao prever que as deliberações da Assembleia Geral sejam sempre tomadas "por maioria" (sem mais), contraria de forma frontal, o disposto, imperativamente, no n.2 do artigo 175 do Código Civil, pelo que, dada a respectiva nulidade, tem de constar desse artigo "por maioria absoluta" em vez de "por maioria".
II - Quanto aos votos dos associados "não presentes", isto é, aos votos por procuração, eles só são permitidos, nos termos do artigo 175 n.4 do Código Civil, nas deliberações respeitantes à dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva. Assim, têm de ser suprimidas dos artigos 22 n.1 alínea a), 24 n.1 e 35 n.3 dos estatutos da Ré as referências deles constantes "ou representados".
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1- O Ex.mo Magistrado do Mº Pº instaurou, em 10.01.00, na comarca do ....., acção ordinária contra “C.....”, associação de direito privado com sede no ....., pedindo que seja declarada a nulidade, na parte respectiva, dos arts. 22º, nº1, al. a), 24º, nº1, 35º, nº3, 36º, nº2 e 37º, dos estatutos da R., passando a vigorar, em sua substituição e na parte afectada, o disposto nos arts. 175º, nº/s 2 e 3 e 166º, nº1, ambos do CC, respectivamente.
Fundamentando a respectiva pretensão, alegou o A., em resumo e essência, que aquelas três primeiras disposições estatutárias violam o disposto, imperativamente, no art. 175º, nº/s 2 e 3, do CC—são deste Cod. os demais arts. que venham a ser citados, desacompanhados de qualquer complementar menção—ao possibilitarem a tomada de deliberações da R., por mera maioria simples e emergente, inclusive, dos associados não presentes e apenas representados no acto, violando os aludidos arts. 36º, nº2 e 37º o disposto, também respectivamente, nos arts. 166º,nº1 e 167º, nº1, ambos de natureza imperativa.
Contestando, pugnou a R. pela improcedência da acção, insistindo na absoluta legalidade das disposições estatutárias postas em crise.
Saneados os autos e conhecendo-se, desde logo, do mérito da acção , foi esta julgada parcialmente procedente, quanto aos questionados arts. 36º, n2 e 37º, absolvendo-se a R. da remanescente parte do pedido.
Inconformados com a parte desfavorável da sentença, da mesma apelaram A. e R., muito embora este último recurso viesse a ser julgado deserto, por falta de alegações (fls. 56).
O A. apresentou alegações em que pede a revogação da sentença (com a inerente procedência integral da acção), culminando-as com a formulação das seguintes conclusões:
1ª- Impõe o nº2 do art. 175º do CC que: “Salvo o disposto nos nº/s seguintes, as deliberações são tomadas por maioria absoluta de votos dos associados presentes”;
2ª- O art. 24º, nº1, dos estatutos em crise dispõe, por seu turno: “... as deliberações da Assembleia Geral serão sempre tomadas por maioria dos associados com direito a voto presentes ou representados,...”;
3ª- “Maioria” não é o mesmo que maioria absoluta, uma vez que a primeira é relativa, ou seja, é a situação em que os votos a favor são mais que os contrários, simplesmente, com indiferença pelo nº das abstenções, e a segunda corresponde ao nº que representa metade e mais um do nº de votantes, implicando, assim, um nº maior de votos para aprovação de uma posição, e diferente ainda da qualificada, pois que pode ser calculada em função dos presentes ou dos votantes ou em função do nº de membros do órgão em causa;
4ª- Logo, viola tal dispositivo legal a norma estatutária em crise, devendo ser substituída pela norma legal supletiva;
5ª- Por outro lado, a votação por representação ou procuração—art. 176º do CC—só pode ser entendida como aplicável aos casos em que o art. 175º a não proíbe, isto é, nas deliberações sobre dissolução ou prorrogação da associação, tal como foi já decidido no Ac. do STJ de 1996.06.08, in C. J., Ano IV, Tomo II, pags.132 e segs.;
6ª- Entendemos que o fundamento legal para tal distinção radica no facto de, porque é necessário um tão grande nº de votos numa matéria tão importante para a vida da associação, se a lei não permitisse essa forma de votação, poderia causar um impasse sem solução, por não ser possível a reunião física de três quartos de todos os associados;
7ª- Compaginando tal posição com o disposto no art. 172º, nº/s 1 e 2, do CC e, bem assim, art. 9º, do mesmo Cod., não podemos tirar outra conclusão senão que o legislador quis expressamente proibir, nos casos indicados, a votação por representação;
8ª- Sendo nulas as normas estatutárias que violem uma disposição legal de carácter imperativo—o art. 175º, nº/s 2 e 3, do CC—são nulas as normas constantes dos arts. 24º, nº1, 22º, nº1, al. a) e 35º, nº3 dos estatutos da “C.....”;
9ª- A apontada nulidade não acarreta a extinção da associação, por força do princípio da redução dos negócios jurídicos consagrado no art. 292º, do CC, pelo que deverão as referidas normas estatutárias serem tidas como não escritas, passando a vigorar, em sua substituição, o disposto no art. 175º, nº/s 2 e 3 do mesmo diploma legal;
10ª- Violou a douta sentença recorrida, por erro de interpretação e de aplicação, o disposto nos arts. 158º-A, 175º, nº/s 2 e 3, 280º, nº1, 292º, 294º e 295º, todos do CC.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
2- Com interesse para a apreciação e decisão do recurso, há que ter em consideração os seguintes factos provados:
a)- A R. “C.....” é uma associação que visa a formação tecnológica especializada de curta , média e longa duração, com especial incidência na preparação de jovens, técnicos e gestores;
b)- Por escritura pública celebrada em 20 de Maio de 1999, no 2º Cartório Notarial de ....., a R. remodelou totalmente os seus estatutos, os quais ficaram a constar do documento complementar junto, de fls. 11 a 23;
c)- De tal remodelação emergiram as seguintes redacções para os seguintes arts. dos mencionados estatutos:
Art. 22º, nº1, al. a):
“A Assembleia Geral poderá funcionar: ... em primeira convocação se estiverem presentes ou representados um mínimo de 80% dos associados” (Sublinhámos);
Art. 24º, nº1:
“Sem prejuízo do disposto nos arts. 35º e 36º relativamente à Alteração dos Estatutos ou à Dissolução da Associação, as deliberações da Assembleia Geral serão sempre tomadas por maioria dos associados com direito a voto presentes ou representados, e constarão das respectivas actas” (Sublinhámos);
Art. 35º, nº3:
“A deliberação sobre alteração aos estatutos exige uma maioria de oitenta e cinco por cento dos votos dos associados com direito a voto que se encontrem presentes ou representados” (Sublinhámos).
3- Face às conclusões formuladas pelo Dig.mo apelante—que, como é sabido, e exceptuando razões de Direito ou questões de conhecimento oficioso, delimitam o objecto do recurso (arts. 660º nº2, 664º, 684º, nº3 e 690º, nº1, todos do CPC)—é colocada à consideração deste Tribunal de recurso a questão de saber se as disposições estatutárias da R. e constantes da al. c) de 2 antecedente devem(ao contrário do decidido na 1ª instância) ser declaradas nulas, por contrariarem preceitos legais de carácter imperativo (preceptivo), passando a vigorar, em sua substituição e na parte afectada, os preceitos legais pelas mesmas violados.
Vejamos:
4-I- Dispõe-se no nº2 do art. 175º que “Salvo o disposto nos nº/s seguintes, as deliberações são tomadas por maioria absoluta de votos dos associados presentes.” (Sublinhámos). Acrescentando-se, no mesmo art., que “as deliberações sobre alterações dos estatutos exigem o voto favorável de três quartos do nº dos associados presentes” (nº3), que “as deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva requerem o voto favorável de três quartos do nº de todos os associados” (nº4) e que “os estatutos podem exigir um nº de votos superior ao fixado nas regras anteriores” (nº5)—(os sublinhados são de nossa autoria).
Por outro lado, “ Os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei” (art. 294º) e “A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada” (art. 292º). Sendo que, nos termos do art. 280º, nº1, “É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja...contrário à lei...”, o que, visto o disposto no art. 158º-A, é aplicável à constituição de pessoas colectivas, devendo o Mº Pº promover a declaração judicial da nulidade.
Paralelamente, segundo J. Pinto Furtado (“Cod. Com. Anotado”, Vol. II, Tomo II, pags.559—com inteira actualidade, perante a legislação correspondente e, entretanto, publicada), “a deliberação social é...o produto da emissão conjunta de todos ou da maioria dos votos e traduz na doutrina jurídica a vontade do órgão colegial imputável à pessoa colectiva”. Segundo o mesmo autor (ob. citada, pags. 564 e segs.), o princípio maioritário (maior nº de votos conformes que precipita o conteúdo sedimentar da deliberação) pode reportar-se a diferentes formas de expressão, uma vez que a maioria pode ser simples ou qualificada. Esta última é a que se estabelece especialmente na lei ou nos estatutos, como uma exigência reforçada de certas deliberações mais importantes. Faltando o «quorum» deliberativo se não se reunir o nº de presenças indispensável para que num dado processo deliberativo se torne materialmente possível obter a maioria imposta.
Por seu turno, a aludida maioria simples pode ser absoluta(traduzida por uma fracção aritmética superior à metade dos votos (válidos) expressos—excluindo, pois, os votos nulos ou brancos e as abstenções—quanto à deliberação considerada, ou relativa (a que reúne um nº mais elevado de votos independentemente de qualquer referência à metade do total).
Anota, ainda, o mesmo autor que “o princípio geral posto para as associações, no CC, é o da maioria absoluta das presenças (art. 175º, nº2)”, para, a propósito, observar que, “tratando-se, aí, de maioria deliberativa, cremos que o nº de associados presentes se aferirá pelos votos expressos, quanto à deliberação considerada, reputando-se não presentes os associados que, mesmo assistindo à assembleia, recusem participar da votação, dela se abstenham, ou exprimam um voto nulo ou branco” (Ob. citada, pags. 568).
II- Ante os transcritos preceitos legais e a sua melhor interpretação, na decorrência dos ensinamentos a que foi feita menção, cremos não se deverem suscitar dúvidas de que o art. 24º, nº1 dos estatutos da R., ao prever que as deliberações da Assembleia Geral da R. sejam sempre tomadas “por maioria” (sem mais), contraria, de forma frontal, o disposto, imperativamente, no nº2 do referido art. 175º, uma vez que, não estipulando que as deliberações sejam tomadas por maioria absoluta de votos , não contém exigência de um nº de votos superior ao fixado em tal preceito, nem ao previsto nos nº/s 3 e 4 do mesmo art. (três quartos do nº dos associados presentes e do nº de todos os associados, respectivamente). Ficando, desse modo, sempre aberta a possibilidade de, em frontal violação de tal prescrição legal, as deliberações em causa serem tomadas por mera maioria simples e de natureza relativa, sem que, em tal hipótese, seja legítimo invocar (como se sustenta na sentença apelada) a aplicação supletiva do aludido comando imperativo constante do mencionado nº2 do art. 175º. O que, além do mais, sempre propiciaria incertezas, indefinições e perdas de tempo que o legislador, por certo, não teve em mente e, antes, quis evitar. Além de que esbarra na expressa previsão, de sentido diferente, constante da questionada cláusula dos estatutos da R., a não consentir a defesa da correspondente posição constante da sentença apelada.
Tudo razões para haver por procedentes as correspondentes conclusões firmadas pelo Dig.mo apelante.
III- Quanto às demais disposições estatutárias postas, parcialmente, em causa pelo Mº Pº--arts. 22º, nº1, al. a) e 35º, nº3—entendemos , igualmente, que assiste razão ao apelante, pelos fundamentos vertidos no douto Ac. do STJ de 18.06.96 (COL/STJ-2º/133), quanto aos votos dos associados “não presentes”, e que, por merecerem a nossa adesão e terem sido objecto da aludida publicação, e a fim de evitar fastidiosa repetição, nos dispensamos de, aqui, reproduzir, antes remetendo, nessa parte, para a referida publicação da especialidade. Salientando, não obstante e a propósito, que o legislador, atendendo ao carácter predominantemente colectivo dos interesses tutelados, impôs a observância de um quorum deliberativo necessário para fazer prevalecer a vontade individual e esclarecida dos associados presentes, apenas sendo permitido o voto por procuração nas deliberações respeitantes à dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva (associação, no caso dos autos), em atenção à importância e transcendência de tais deliberações para a subsistência da pessoa colectiva, tudo “agravado" pelo elevado quorum (três quartos dos votos de todos os associados) para tanto exigido pelo nº4 do art. 175º.
Aliás, atendendo ao exposto, afigura-se-nos que, ressalvado o inerente e devido respeito, não procedem os argumentos invocados, em contrário, pelo M.mo Juiz “a quo”: não vislumbramos em que é que a solução defendida contende com o “princípio constitucional da liberdade de associação” (que, além do mais, se queda “a montante”) e em que é que belisca com o “sistema jurídico na sua globalidade”, certo sendo que, como se tentou evidenciar e se acentua no aludido e douto Ac. do STJ, os interesses a proteger só com aquela solução não correm o risco de ser postergados.
Diga-se, finalmente, que também não colhe a argumentação adiantada pela R., no art. 17º da respectiva contestação: que os associados da R. “terão de estar representados na assembleia, uma vez que só os associados efectivos têm direito de voto e estes são , única e exclusivamente, constituídos por pessoas colectivas”. É que, como ensinou, com o habitual brilho e clareza, o Saudoso Prof. MOTA PINTO (“Teoria Geral do Direito Civil”-1976-pags. 199 e segs.), o vínculo existente entre a pessoa colectiva e as pessoas físicas que procedem em seu nome e no seu interesse consubstancia um nexo de verdadeira organicidade, que não de mera ou simples representação, sendo, pois, de verdadeira identificação a relação ocorrida entre o órgão e o ente em que se integra, por forma a que, agindo o órgão é a própria pessoa que age.
Procedem, assim, e igualmente, as demais conclusões formuladas pelo Dig.mo apelante.
5- Em face do exposto, acorda-se em, julgando procedente a apelação, revogar, na parte impugnada, a douta sentença recorrida, declarando-se também nulos, na integral procedência da acção, os arts. dos estatutos da R. transcritos na al. c) de 2 supra, tendo-se por suprimidas as duas referências “ou representados” e passando a figurar, no art. 24º, nº1, “por maioria absoluta”, em vez de “por maioria”, tudo conforme art. 175º, nº/s 2 e 3.
Custas, em ambas as instâncias, pela R.
Porto, 04 de Junho de 2001
José Augusto Fernandes do Vale
Narciso Marques Machado
Rui de Sousa Pinto Ferreira