Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9604/07.0TBVNG-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
AÇÃO EXECUTIVA
Nº do Documento: RP202209159604/07.0TBVNG-E.P1
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A sanção pecuniária compulsória prevista no art. 829º-A, nº 4 do Cód. Civil não pode ser oficiosamente declarada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 9604/17.0T8VNG-E.P1 – 3ª Secção (Apelação) - 1442
Execução Ordinária – Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 7


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
CONDOMÍNIO DA RUA ... instaurou execução ordinária, para prestação de facto, contra AA e J... LIMITADA.
Atribuiu à execução o valor de €28.700,00.
No requerimento executivo, alegou o seguinte:
Factos:
1º. Por douta sentença transitada em julgado, proferida nos autos da acção declarativa a que a presente acção corre por apenso, foram os ali RR. e aqui executados, condenados a "proceder à realização de obras que reparem os defeitos de construção de que padece o prédio, de forma a repô-lo em perfeitas condições de habitabilidade...".
2º. Desde essa data, até ao momento, os executados não realizaram as referidas obras.
3º. Para a realização das referidas obras, é suficiente o prazo de 30 dias. Pelo que,
4º. Ao abrigo do disposto no artº. 933º nº1 CPC, ex vi artº. 939º nº1 CPC, requere-se a aplicação de sanção pecuniária compulsória pelo período de tempo de incumprimento pelos executados.
5º. Deixando-se ao prudente arbítrio de Vª. Excelência a fixação da mesma, sugerindo-se o valor diário de € 35,00.
Nestes termos, após a citação dos executados, deve ser fixado em 30 dias o prazo para a prestação do facto em que foram condenados, com a sanção compulsória de € 35,00 por cada dia de atraso após esse prazo sem que a pretação de facto se encontre cumprida.”.
Percorrida a tramitação subsequente, o Agente de Execução (AE) apresentou liquidação, na qual liquidou juros compulsórios.
Os executados reclamaram da liquidação, além do mais, suscitando a questão de não serem devidos juros compulsórios por o exequente não os ter pedido no processo executivo.
O MINISTÉRIO PÚBLICO pronunciou-se no sentido de tais juros serem devidos, oficiosamente.
A reclamação dos executados foi julgada parcialmente procedente, tendo sido ordenada a reformulação da liquidação feita pelo AE, determinando-se, além do mais, a exclusão do valor relativo a juros compulsórios.

O Ministério Público recorreu, suscitando, nas suas CONCLUSÕES a seguinte questão:
- Se são devidos juros compulsórios, ainda que o exequente não os tenha pedido no requerimento executivo.

Os executados contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
Os elementos com interesse para a decisão do recurso são os que constam do ponto I.
*
III.
A questão a decidir – delimitada pelas conclusões da alegação do apelante (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do CPC) – é a que se enunciou no ponto I:
- Se são devidos juros compulsórios, ainda que o exequente não os tenha pedido no requerimento executivo.

A prestação debitória pode revestir diversas variantes ou modalidades, interessando-nos aqui precisar os conceitos de prestação de coisa e de prestação fungível e infungível.
Segundo Antunes Varela[1], a prestação de coisa pode integrar no direito vigente uma de três modalidades: a) obrigação de dar, quando a prestação visa constituir ou transferir um direito real definitivo sobre a coisa; b) obrigação de entregar quando visa apenas transferir a posse ou detenção dela, para permitir o seu uso, guarda ou fruição; c) obrigação de restituir, quando através dela o credor recupera a posse ou detenção da coisa ou o domínio sobre coisa equivalente, do mesmo género ou qualidade.
A prestação diz-se fungível quando pode ser realizada por pessoa diferente do devedor, sem prejuízo do interesse do credor, e será infungível no caso inverso.
A fungibilidade aparece consagrada como regra no artigo 767.º, n.º 2 do CC, que apenas ressalva os casos em que expressamente se tenha acordado em que a prestação deva ser feita pelo devedor (não fungibilidade convencional) ou em que a substituição prejudique o credor (não fungibilidade fundada na natureza da prestação).
A noção de fungibilidade da prestação é paralela ao conceito de fungibilidade das coisas, dano no artigo 207.º do CC: se a coisa for determinada apenas pelo seu género, qualidade e quantidade, como neste preceito se diz, as coisas concretas com que o devedor se dispunha a cumprir podem ser substituídas por outras do mesmo género e qualidade e na mesma quantidade.
Quando, porém, se trate de prestação de coisa, a prestação é em regra fungível, quer a coisa seja fungível, quer seja não fungível: tanto num caso como no outro, o interesse do credor não será lesado com a substituição do devedor[2].
O artigo 1.º do CPC proíbe a auto-defesa. Em consequência, o artigo 2.º do mesmo Diploma garante o acesso aos tribunais, num duplo sentido: atribui o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo; faz corresponder a todo o direito substantivo um direito de acção – salvo quando a lei diga o contrário.
O titular do direito lesado ou simplesmente ameaçado pode fazê-lo reconhecer ou declarar judicialmente ou obter mesmo a sua realização coactiva (cfr. artigos 817.º e seguintes do CC).
Relativamente aos direitos de crédito, as formas mais importantes de que o credor, nesses momentos de crise da relação obrigacional, pode socorrer-se perante os órgãos judiciários, como instrumento do Estado, são a acção de cumprimento e a execução (cfr. a epígrafe da subsecção que encabeça o citado artigo 817.º do CC)[3].
Em rigor, pode falar-se apenas em realização coactiva da prestação, ou seja, em cumprimento coercivo, forçado da prestação inicial, quando o devedor é condenado numa acção declarativa e cumpre (de forma voluntária, mas não espontânea, e, por isso, forçada) ou quando, na acção executiva, o devedor paga a quantia, entrega a coisa ou presta o facto, voluntariamente, ainda que sob a cominação iminente da penhora[4].
Configuração própria tem a chamada execução específica, que tem em comum com a realização coactiva da prestação a circunstância de proporcionar ao credor a obtenção da prestação devida (ou, pelo menos, o resultado da prestação devida). Mas distingue-se dela pelo facto de a prestação não ser realizada pelo devedor, ou por terceiro em lugar dele, mas pelo próprio tribunal (que apreende e entrega a coisa devida ao credor, que substitui o promitente faltoso na emissão da declaração da vontade prometida)[5].
Como salienta Calvão da Silva[6], conseguir que o credor obtenha aquilo que foi estipulado, é, na verdade, o resultado perfeito e ideal que a Justiça, face ao devedor recalcitrante, pode proporcionar àquele. Pelo que o cumprimento, prestação daquilo que é devido (praestatio quod este in obligatione), e a execução específica aparecem, antes de tudo, como uma prioridade natural e temporal, lógica e teleológica. Por eles – cumprimento e execução in natura – se satisfaz plena e integralmente o interesse do credor, razão existencial da relação obrigacional, assegurando-lhe o mesmo resultado prático, a mesma utilidade que teria conseguido através do cumprimento pontual, voluntário e espontâneo do devedor.
Se a prestação devida se torna impossível por causa imputável ao devedor e o credor vai a juízo requerer a indemnização a que tem direito; se o devedor citado para pagar, entregar a coisa ou prestar o facto, não o faz, e a execução prossegue para satisfação da indemnização a que o credor tem direito à custa dos bens do devedor ou para realização da prestação de facto (fungível) por terceiro à custa do devedor, já não há realização coactiva da prestação inicial devida.
O que houve, sob o prisma do direito substantivo, foi a substituição, na moldura envolvente da relação creditória (do direito de obrigação, lato sensu), do direito (inicial) à prestação principal pelo direito à indemnização. Direito à indemnização a que corresponde ainda um verdadeiro dever de prestar, que é, porém, um dever secundário de prestação, inteiramente distinto do direito à prestação principal, mas que se enxerta na mesma relação de crédito, no mesmo direito (complexo) de obrigação[7].
À realização coactiva deste direito à indemnização dá-se o nome de execução por equivalente – que é o prolongamento e projecção daquela no processo executivo, constituindo o seu objecto[8].
A reparação do dano e a execução por equivalente constituem um sucedâneo, a que se recorre, como expediente jurídico, para compensar o credor dos danos provenientes do não cumprimento da obrigação. Expediente indispensável, sem dúvida, mas sempre expediente[9].
É fácil de ver que se a prestação devida for infungível, não é possível a sua realização coactiva nem a sua execução específica, nem sequer a sua realização por terceiro.
Neste caso, o credor tem apenas direito a exigir do devedor a indemnização pelos danos resultantes do incumprimento, ou seja, em sede de acção executiva, tem direito à chamada execução por equivalente, pagando-se da indemnização pelo valor da venda dos bens que penhorar ao devedor[10].
Tendo em conta a inaptidão do processo executivo para realizar o cumprimento da prestação de facto infungível e com fundamento na prioridade que, no domínio do direito das obrigações, deve ser dada ao princípio do cumprimento sobre a via residual e sucedânea da execução por equivalente, impõe-se que, neste domínio, o ordenamento jurídico esteja aparelhado de meios de constrangimento indirecto, ou seja de medidas coercitivas que, sem actuarem directamente sobre a pessoa do devedor, sem o constrangerem fisicamente, actuem sobre a sua vontade, de modo a impeli-lo a cumprir voluntariamente[11].
Um desses meios de coerção é a sanção pecuniária compulsória, prevista no artigo 829.º-A do CC, introduzido pelo DL 262/83, de 16.06.
Diz o n.º 1 daquele preceito que, nas obrigações de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.
A sanção pecuniária compulsória ali prevista é uma medida coercitiva, de carácter patrimonial, - que entronca no modelo da astreinte criada pela jurisprudência francesa, tendo-se o legislador apartado daqueles modelos que, como o alemão e o anglo-americano, consagram meios de coerção pessoal – seguida de sanção pecuniária na hipótese de a condenação principal não ser obedecida e cumprida[12].
Como se escreveu no relatório do DL 262/83 de 16.06, a sanção pecuniária compulsória visa, em suma, uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis.
No direito a constituir, é defensável a extensão da aplicação da sanção pecuniária compulsória às obrigações fungíveis, designadamente, às obrigações de coisa.
Sendo possível a execução específica e a realização coactiva das obrigações fungíveis, a razão de ser daquela extensão radicaria em razões de razões de eficácia e de oportunidade, passando o credor a dispor, além da técnica executiva, também da técnica coercitiva, podendo, dessa forma, dispensar o processo executivo, com todos os inconvenientes que lhe andam ligados[13].
Mas, por todas as razões que acima expusemos, no direito constituído, a aplicação da sanção pecuniária compulsória permanece restringida às obrigações infungíveis.

Em contrapartida, em incoerência com a intenção e disciplina visadas com o n.º 1 do artigo 829.º-A do CC, no seu n.º 4 consagrou uma diferente sanção pecuniária (ainda compulsória) para forçar o devedor ao cumprimento de obrigações pecuniárias, com a criação do adicional de juros à taxa de 5% ao ano, devidos desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado.
Isto é, “O legislador, em vez de confiar à soberania do tribunal a ordenação (a requerimento do credor) da sanção pecuniária compulsória, disciplina-a, ele próprio, fixando o seu montante, o ponto de partida (trânsito em julgado da sentença de condenação) e o funcionamento automático. Por isso, porque prevista e disciplinada por lei, poderá qualificar-se como sanção pecuniária compulsória legal, enquanto aquela que é ordenada e fixada pelo juiz poderá chamar-se de sanção pecuniária compulsória judicial. O espírito de ambas, porém, é o mesmo: levar o devedor a encarar as coisas a sério e a não desprezar o interesse do credor e do tribunal.”[14].

Porque a “introdução da sanção pecuniária compulsória veio colmatar uma lacuna existente no processo executivo - a lacuna da incapacidade de actuar in natura a obrigação infungível constante de qualquer título executivo - … não faria sentido que o juiz em processo declaratório pudesse fazer seguir a sentença de condenação de sanção pecuniária compulsória e já não pudesse decretar esta em processo executivo.”[15].
Por isso, sufragando a orientação constante do citado aresto, “a sanção pecuniária compulsória pode ser requerida na fase executiva da execução para prestação de facto infungível acordada em transacção homologada por sentença”.
E, se assim é, em caso de prestação de facto infungível, em que a sanção pecuniária compulsória só opera a requerimento do credor, a fortiori o mesmo há-de entender-se relativamente à actuação da sanção pecuniária compulsória do n.º 4 do artigo 829.º-A, que opera de forma automática, sendo devida desde o trânsito em julgado da sentença de condenação, e que, nessa medida, se pode ter como consequência imediata - resultado necessário - da sentença que constitui o título executivo em que se fundamenta a execução[16].
Portanto, prima facie, nada impede que a sanção pecuniária compulsória prevista no n.º 4 do artigo 829.º-A do CC, não constando da sentença de condenação no pagamento de uma quantia pecuniária, possa ser exigida no processo de execução.

A questão que a seguir se coloca é a de saber se, ainda que não seja pedida no requerimento executivo, a sanção pecuniária compulsória prevista no citado n.º 4 do artigo 829.º-A, pode ser oficiosamente declarada.
A resposta da jurisprudência não é uniforme, como se escreveu no despacho recorrido.
Em sentido afirmativo, salientamos os Acórdãos do STJ de 08.11.18 e 12.09.19, citados pelo apelante na sua alegação, e o acórdão da RL de 20.06.13, citado no despacho recorrido.
Argumenta-se naqueles arestos com o carácter automático da sanção e com o disposto no artigo 713.º, n.º 3 do CPC.

Adiantamos já que perfilhamos a posição no sentido negativo, que foi acolhida no despacho recorrido.
Desde logo, o artigo 829.º-A, n.º 1 do CC é taxativo e muito claro no sentido de que a sanção pecuniária compulsória só a pedido do credor pode (deve) ser decretada.
E também no que respeita ao n.º 4, quanto ao adicional de 5%, se infere essa mesma característica, já que, não obstante ser a sanção automaticamente devida desde o trânsito em julgado da sentença condenatória de pagamento em dinheiro (que, por isso, normalmente não conterá a decretação dessa sanção pecuniária), não poderá ser judicialmente exigida se o credor o não requerer ao tribunal (normalmente na execução).
Por outro lado, permitir a liquidação oficiosa da sanção pecuniária seria violador de princípios processuais como o da estabilidade da instância, do dispositivo, do contraditório e da igualdade das partes (artigo 265.º, 3.º, 4.º e 5.º do CPC).
Finalmente, o artigo 713.º, n.º 3 do CPC refere-se à liquidação pelo agente de execução das “importâncias devidas em consequência da imposição de sanção pecuniária compulsória”, o que significa que a sanção é liquidada se tiver sido imposta, daqui não se inferindo, portanto, que essa imposição seja oficiosa.
Pelas razões expostas, entendemos que mesmo a sanção pecuniária compulsória prevista no referido n.º 4 não pode ser oficiosamente declarada[17].
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência:
- Confirma-se o despacho recorrido.

Sem custas (artigo 4.º, n.º 1, al. a) do RCP aprovado pelo DL 34/08, de 26.02).
***

Porto, 15 de Setembro de 2022
Deolinda Varão
Isoleta Almeida Costa
Ernesto Nascimento
________________
[1] Obra citada, I, 10ª ed., págs. 89 e 90.
[2] Antunes Varela, obra citada, I, 10ª ed., págs. 97 e 98 (também nos dois parágrafos anteriores).
[3] Antunes Varela, obra citada, II, 7ª ed., pág. 149.
[4] Antunes Varela, obra citada, II, 7ª ed., pág. 150.
[5] Antunes Varela, obra citada, II, 7ª ed., pág. 152.
[6] Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª ed., pág. 141.
[7] Antunes Varela, obra citada, II, 7ª ed., págs. 150 e 151.
[8] Calvão da Silva, obra citada, pág. 145.
[9] Calvão da Silva, obra citada, pág. 146.
[10] Cfr. Almeida Costa, obra citada, pág. 592 e Antunes Varela, obra citada, I, 2ª ed., pág. 97.
[11] Cfr. Calvão da Silva, obra citada, págs.202 a 205.
[12] Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª ed., págs. 225 e 385 e 294.
[13] Sobre esta matéria, ver Calvão da Silva, obra citada, págs. 502 e seguintes.
[14] Calvão da Silva, obra citada, pág. 456.
[15] Acórdão do STJ de 19.04.01, anotado por Calvão da Silva in RLJ 134.º-50.
[16] Acórdão do STJ de 05.06.97, BMJ 468.º-315.
[17] Neste sentido, ver os Acórdãos do STJ de 23.01.03 e os Acórdãos desta Relação citados no despacho recorrido, de 05.07.06 e desta Secção de 14.06.17 (Rel. Des. Carlos Portela) e, na doutrina, Sérgio Rebelo, “Acção Executiva Anotada e Comentada”, 2ª ed., pág. 142, também citado no despacho recorrido.