Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7695/10.0T9PRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
CRIME DE HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
REQUISITOS
CAUSALIDADE
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
ATENUAÇÃO DA PENA
PENA PRINCIPAL
PENA ACESSÓRIA
CRITÉRIOS
Nº do Documento: RP202411137695/10.0T9PRT.P2
Data do Acordão: 11/13/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADO PROVIDO O RECURSO INTERPOSTO PELOS ASSISTENTES
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Existe um erro notório na apreciação da prova [artigo 410º, nº 2, al. c), do Código de Processo Penal], quando numa sentença se considera provado que num acidente de viação em que um veículo ligeiro de passageiros colide com a traseira de um veículo pesado de mercadorias que circulava à sua frente e no mesmo sentido de marcha, a velocidade inferior, de noite, numa autoestrada com três faixas de rodagem, encostado à berma do lado direito, não tendo o condutor do automóvel diminuído a sua velocidade, travado, ou desviado a direção do seu automóvel, apesar de ter tido sete segundos para avistar o obstáculo, que se encontrava bem visível e iluminado, tendo 200 metros de visibilidade, estando bom tempo e o piso em boas condições e estando afastado, pela fundamentação da decisão, que o mesmo tenha adormecido antes da colisão e, ao mesmo tempo, considere não provado, nomeadamente, que o mesmo condutor:
a) tenha circulado de forma desatenta, não vendo atempadamente o veículo que se encontrava na sua via de circulação e não efetuado qualquer manobra para evitar o embate, seguindo a sua marcha até à colisão;
b) teve uma condução descuidada e imprevidente e, nas circunstâncias de tempo e lugar supra mencionadas, incorrendo, ao assim proceder, na violação das regras estradais que era capaz de observar, que lhe era exigível e que estava ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências da sua conduta;
c) devia travar ou mudar de direção para outra faixa, por forma que da sua realização não resultasse perigo;
d) não tenha adequado a sua condução à via em que seguia, não agindo com o zelo e diligência com que devia e podia atuar na condução, nomeadamente adequando a velocidade ao espaço livre, visível e disponível à sua frente de modo a evitar a colisão e cuja violação foi causal do acidente em apreço e da morte da passageira do carro;
II – A prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, n.º 1, do Código Penal, pressupõe que o agente do crime não tenha procedido “com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, para evitar a realização de um facto típico” (artigo 15° do Código Penal), juízo que envolve conceitos como os da previsibilidade, capacidade e evitabilidade, fulcrais na compreensão e análise da categoria da negligência, como forma de culpa, objeto de censura penal; tratando-se de um crime rodoviário, cometido no exercício da condução, tal violação dos deveres de cuidado está relacionada com a violação de regras estradais.
III – Existe um concurso de culpas na produção do acidente acima descrito, quando o motorista do veículo pesado de mercadorias embatido circulava à velocidade de 35 kms/h na autoestrada, violando a regra estradal prevista no art. 27º, 6, do Código da Estrada, que impõe uma velocidade mínima de 50 kms/h nas autoestradas, sendo certo que um aumento da sua velocidade teria permitido ainda mais tempo ao condutor do automóvel que colidiu com a traseira daquele para se dar conta da aproximação ao veículo da frente e diminuído a força do embate verificado na colisão, por ser necessariamente menor a diferença de velocidades entre as duas viaturas, o que constitui um fator de atenuação da pena a aplicar ao condutor do automóvel pelo crime de homicídio por negligência.
IV – Sendo o crime de homicídio por negligência punível, em alternativa, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, o tribunal deve dar preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art. 40º do Código Penal). Estas circunscrevem-se à proteção de bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade. As exigências de prevenção geral no caso em apreço são algo elevadas, tendo em conta a sinistralidade rodoviária verificada em Portugal, não obstante a evolução positiva verificada nas duas últimas décadas e tendo em conta as circunstâncias que rodearam a prática da infração.
Sendo as preocupações de reintegração do agente na sociedade muito diminutas, pois o crime constituiu um ato isolado na sua vida e não tendo o mesmo quaisquer antecedentes criminais nem contraordenacionais estradais, sendo titular de licença de condução automóvel desde 18 de Fevereiro de 2009 e tendo a morte da vítima do crime – por si cometido por negligência simples - deixado sequelas psíquicas significativas, que careceram de intervenção terapêutica, uma vez que a vítima foi a sua noiva, e sendo a sua educação e percurso profissional diferenciados, evidenciando um modo de vida perfeitamente estabilizado e responsável, conclui-se que a aplicação de uma pena de multa será suficiente e adequada a corresponder às supra elencadas finalidades da punição. Tal não significa qualquer atenuação da gravidade das consequências do crime – a violação do bem jurídico mais precioso (a vida) de uma jovem, muito querida pelos seus familiares e pelo próprio agente do crime, seu noivo -, mas o reconhecimento que as preocupações de prevenção especial serão muito diminutas no caso concreto, sendo justamente, também, para este tipo de situações que o legislador previu a pena de multa para sancionar um crime de homicídio por negligência.
V – A determinação da pena acessória prevista no artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, prevê que deva ser efetuada com base nos critérios gerais estatuídos no art. 71º do Código Penal, com a ressalva de que a finalidade a atingir pela pena acessória é mais restrita, na medida em que a sanção acessória tem em vista sobretudo prevenir a perigosidade do agente, ainda que se lhe reconheça, também, um importante efeito de prevenção geral.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 7695/19.0PRT.P2
Data do acórdão: 13 de Novembro de 2024

Desembargador relator: Jorge M. Langweg
Desembargadora 1ª adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa Desembargador 2º adjunto: Francisco Mota Ribeiro
Origem:
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Criminal de Santo Tirso

Acordam, em conferência e por unanimidade, os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos, em que figuram como recorrentes os assistentes AA e BB;

I - RELATÓRIO
1. Em 22 de Janeiro de 2023 foi proferida nos presentes autos a sentença condenatória proferida na primeira instância que terminou com o dispositivo a seguir reproduzido:
" Pelos fundamentos expostos, julgo provada e procedente a acusação nos seguintes termos:
a) Condeno o arguido CC pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.137º, nº1, do Código Penal em concurso aparente com o disposto nos arts. 11º, nº2, 18º, nº1 e 24º, nº1 do Código da Estrada na pena de um ano de prisão, que se substitui por 360 horas de trabalho a favor da comunidade em instituição a indicar pela DGRSP;
b) Condeno o arguido CC na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de sete meses, p. pelo art.69º, nº1, al. a) do Código Penal;
(…)”

2. A decisão da matéria de facto vertida nessa sentença considerou provados e não provados os seguintes factos:
Factos Provados
1- No dia 19.6.2019 pelas 00h08, DD conduzia o veículo categoria pesado de mercadorias, com a matrícula ..-..-UI, na ..., no sentido de marcha Norte/Sul, localidade de ..., ... e transportava como passageiro EE.
2- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido CC conduzia atrás, o veículo categoria ligeiro de passageiros com a matrícula ..-UN-.. e transportava consigo, como passageira no banco da frente, FF, nascida em ../../1990.
3- O veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-..-UI circulava pela via da direita, carregado com carcaças de porco, a uma velocidade de 35 km/h e estava visível.
4- Durante a aproximação ao veículo de mercadorias, o arguido CC não travou, nem fez qualquer manobra evasiva, até colidir com a frente direita do veículo que conduzia contra a traseira esquerda do veículo pesado de mercadorias ao km 18,730.
5- Da colisão resultou a rotação da traseira do veículo ligeiro conduzido pelo arguido para o lado esquerdo e a consequente imobilização na berma.
6- Em consequência do acidente, FF sofreu ferimentos, foi assistida pelo INEM no local e posteriormente transportada para o Hospital ... no Porto.
7- FF, não resistiu aos ferimentos e acabou por falecer pelas 13h05 do mesmo dia.
8- A morte de FF, foi devida a lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 158 a 160, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido e integrado, para todos os efeitos legais, as quais foram causa directa, necessária e adequada da respectiva morte.
9- Na zona do acidente a faixa de rodagem tem três vias no mesmo sentido, em asfalto betuminoso e em bom estado de conservação.
10- Tem bermas delimitadas e marcas rodoviárias bem visíveis.
11- O local onde ocorreu o acidente é uma curva larga à direita, apresentando a faixa de rodagem a largura de 11 metros, com inclinação ascendente, sendo no local do acidente a inclinação de 8,8%.
12- As condições atmosféricas eram boas, não chovia, nem fazia nevoeiro.
13- O arguido tinha, pelo menos 200 metros de visibilidade para a sua frente.
14- A colisão ocorreu na via da direita.
15- O arguido CC circulou de forma desatenta, não vendo atempadamente o veículo que se encontrava na sua via de circulação e não efectuou qualquer manobra para evitar o embate e seguiu a marcha até à colisão.
16- O arguido, teve uma condução descuidada e imprevidente e, nas circunstâncias de tempo e lugar supra mencionadas, incorrendo, ao assim proceder, na violação das regras estradais que era capaz de observar, que lhe era exigível e que estava ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências da sua conduta.
17- O arguido devia travar ou mudar de direção para outra faixa, por forma que da sua realização não resultasse perigo.
18- O arguido CC não adequou a sua condução à via em que seguia, não agindo com o zelo e diligência com que devia e podia atuar na condução, nomeadamente adequando a velocidade ao espaço livre, visível e disponível à sua frente de modo a evitar a colisão e cuja violação foi causal do acidente em apreço e da morte de FF.
19- Ao arguido era-lhe previsível, que, como resultado da supra referida conduta, o veículo que conduzia pudesse vir a embater num outro veículo.
20- O arguido CC não previu, mas devia, que da sua conduta poderia resultar, como resultou, a morte da passageira.
21- O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
22- No dia e hora do acidente, o arguido CC e a sua então noiva FF regressavam à casa em Vila Nova de Gaia, onde ambos coabitavam.
23- O arguido CC e FF, assim como familiares de um e de outro, tinham estado num jantar preparativo do seu casamento, cuja realização estava agendada para o dia 7 de Setembro de 2019.
24- O arguido CC, nascido em a ../../1991, é licenciado em gestão de empresas, tendo o grau de mestre em negócios internacionais na universidade de ..., em Londres.
25- O arguido CC é piloto de veículos motorizados (não profissional), estando para tal legalmente habilitado desde 2015 pela Federação ... para o exercício da condução em qualquer prova de competição, participando com regularidade – até à data do acidente – em provas e campeonatos nacionais de todo-o-terreno.
26- O processo de socialização do arguido CC foi normativo, quer a nível social, como parental, tendo beneficiado de dinâmica familiar funcional, assente em condutas estruturantes, designadamente de proximidade familiar e de transmissão de valores pró-sociais. O arguido cresceu integrado no agregado familiar dos progenitores e da irmã germana, 16 anos mais nova, nos concelhos de Vila do Conde e Porto, onde estruturou, na generalidade, o seu percurso pessoal e social, sendo este agregado de condição socioeconómica de estrato médio elevado. Ao nível escolar e formativo, CC concluiu o ensino secundário no Colégio ..., no Porto, com subsequente ingresso no ensino superior e respetiva conclusão do curso de licenciatura em Gestão de Empresas, através da Universidade ..., no Porto. Posteriormente, concluiu o mestrado em Negócios Internacionais, em Londres, Shangai e São Francisco, entre 2013/2014. Após a conclusão da formação académica, o arguido veio a integrar a empresa familiar A..., com sede em .../Vila do Conde, como gestor e diretor comercial, situação que mantém. A empresa em apreço opera no setor da construção civil, em território nacional e estrangeiro, designadamente em Angola, A... Angola. Nesse país, o arguido regista a colaboração com outras empresas, como administrador, onde se incluem a B... e C.... Ainda em Portugal, o arguido é administrador da empresa D..., sediada no Porto, que opera no setor de Marketing Digital, Branding, Design Gráfico. CC mantinha, desde 2014, relacionamento afetivo com FF/vítima, com quem veio a estabelecer coabitação, durante cerca de um ano e meio, até ao momento do acidente que vitimou fatalmente a companheira. O relacionamento afetivo/conjugal era positivo e harmonioso, com concomitante perspetiva de concretização de casamento, agendado para 7 de Setembro de 2019. O percurso pessoal e social do arguido, configurado como normativo e pró-social, foi estruturado em torno da formação pessoal, consistência sociofamiliar e afetiva, investimento académico e laboral. Como complemento da sua formação pessoal, o arguido regista a realização de viagens para países estrangeiros, com afinco para o conhecimento e inserção na cultura local. O arguido testemunha ainda interesse e investimento, desde os 23 anos de idade, como piloto todo-o-terreno, federado, atividade interrompida por força do acidente em apreço, que recentemente retomou. Em termos de funcionamento pessoal, a construção de identidade do arguido foi norteada pela exposição a modelos de dedicação familiar e profissional, endossando aspetos de responsabilidade, com incentivo na educação como referencial pessoal. Características de rigor, competência, solidariedade, resiliência e sociabilidade apresentam-se como matriz no desenvolvimento pessoal do arguido. À data dos factos pelos quais está acusado, 19.6.2019, CC mantinha a atividade laboral já mencionada, diversificada, como gestor e administrador de diferentes empresas, a operar quer em território nacional como estrangeiro. Neste âmbito, a vítima, noiva do arguido à época do acidente, colaborava com o mesmo em empresa de construção civil que o casal tinha em conjunto. Da atividade que exerce na empresa A..., o arguido aufere o vencimento médio de €1700 líquidos, valor ao qual se acrescem condições laborais e benefícios extra que se constituem mais valia à sua condição financeira, onde se incluem, entre outras, carro próprio e habitação. O arguido reside, em agregado unifamiliar, em apartamento tipologia 3, correspondente à morada dos autos, inserida em condomínio privado, associado a estrato socioeconómico elevado. Por inerência à ocorrência que deu origem aos presentes autos, o arguido veio a interromper a atividade profissional pelo período de cerca de 3 meses, tendo a mesma sido assegurada, na generalidade, pelo respetivo progenitor, gestor/gerente da empresa. Durante esse período, o arguido veio a integrar a residência dos progenitores, no Porto, onde recebeu apoio familiar e social. A gravidade do acontecimento, com resultado fatal da noiva e consequente sobrevivência do arguido, impactou negativamente o habitual funcionamento pessoal do próprio, com manifesta tradução de instabilidade física e emocional. Recorreu a intervenção médica, onde se incluiu a neurologia, assim como psicológica. A intervenção psicológica foi prestada no âmbito da intervenção em crise, pro bono, quer junto do arguido como dos respetivos familiares (progenitores e irmã). Desde então, o arguido beneficiou de apoio/acompanhamento psicológico, situação que mantém. O arguido retomou as principais atividades, quer ao nível pessoal como profissional. Regressou à habitação onde o casal residia e retomou alguma convivialidade social, assim como, ainda que recentemente, a modalidade de piloto todo-o-terreno. O arguido encontra-se em fase de estabilização pessoal, com enfrentamento da realidade, pese embora a permanência de sentimentos de tristeza e ambivalência referentes ao acontecimento e à perda, por morte, da noiva. O acontecimento revelou-se traumático para os familiares do arguido, que consideravam a vítima integrada, desde há vários anos, nas relações de proximidade familiar. CC mantém as condições pessoais e sociais descritas, reconstruídas perante a experiência da perda. Mantém-se laboralmente ativo e socialmente inserido, áreas que se apresentam normativas e equilibradas. Nos contextos em que se move, o arguido é caracterizado por denotar atitude e sentido de censurabilidade ética e de responsabilidade. A presente situação determinou a vitimização fatal da companheira do arguido, com consequente interrupção de projeto de vida pessoal, familiar e profissional que o casal vinha mantendo em conjunto. Perante o impacto associado ao acontecimento em apreço, o arguido vivenciou alterações funcionais, que foram sendo alvo de intervenção especializada, onde se inclui apoio neurológico e clínico. Mantém o acompanhamento psicoterapêutico, em regime pro bono. Veio gradualmente a reconstruir a sua vida quotidiana e a readquirir funcionalidade pessoal. Suspendeu a atividade laboral e atividades de vida diárias, por incapacidade, com manifestação de sintomatologia ansiosa/depressiva, pós-acidente. A sua constituição como arguido é percecionada como fonte de perturbação pessoal, quer pelo impacto negativo do acontecimento, assim como o reviver do mesmo. Com censura e sentido crítico, e ressonância relativamente ao impacto deste tipo de crime, o arguido mantém a evidência de sentimentos de ansiedade, tristeza e perda. Não obstante o elevado impacto da presente situação, o arguido continua a merecer aceitação familiar e social.
27- O arguido CC é titular de carta de condução válida para a condução de veículos das B (ligeiros) e B1 (triciclo ou quadriciclo) a partir de 18.2.2009.
28- A carta de condução ... emitida pela DRMTN em nome do arguido encontra-se arquivada desde 16.1.2015 por ter sido trocada por idêntico título emitido pelo Reino Unido que mantém, conforme cópia de fls.363 cujo teor se considera aqui reproduzido.
29- O arguido CC não tem antecedentes criminais, nem lhe são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais.
*
Factos Não Provados
No momento do embate e nos instantes que imediatamente o antecederam, o arguido CC não tinha qualquer consciência nem capacidade de direcção efectiva do veículo.
Os travões do veículo conduzido pelo arguido CC foram accionados por sistema automático da viatura.
A travagem após o embate foi acto reflexo inconsciente, alheio à vontade do arguido.

3. Inconformado com a sua condenação, o arguido interpôs recurso da sentença.
4. Este Tribunal apreciou o recurso, tendo formulado a seguinte decisão:
“a) julgar parcialmente provido o recurso do arguido CC e, em consequência, alterar a decisão da matéria de facto nos termos acima concretizados, quanto à impugnação do facto considerado não provado[1];
b) conhecer oficiosamente os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da contradição insanável da sua fundamentação e, em consequência:
- determinam o reenvio do processo para novo julgamento (artigo 426º, nº 1, do Código de Processo Penal), a realizar pelo tribunal previsto no artigo 426º-A, ainda do mesmo texto legal, limitado ao apuramento da factualidade descrita nos factos provados 15. a 20. e o apuramento da conduta negligente concreta que resultou na colisão que resultou na morte da vítima do crime, bem como à eliminação da contradição do facto que foi considerado provado sob o ponto 21. com a demais factualidade provada.”

5. O processo regressou então à primeira instância, tendo sido proferida nova sentença, com o seguinte dispositivo:
- “julgo a acusação improcedente e, consequentemente, decido absolver CC pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.137º, nº1, do Código Penal.”

6. Inconformados com a decisão absolutória, os assistentes interpuseram recurso da sentença, terminando a motivação de recurso com a formulação das seguintes conclusões:
DA DECISÃO RECORRIDA:
A. Vem o presente recurso interposto da sentença depositada em 29 de abril de 2024, que julgou improcedente a acusação pública e, consequentemente, absolveu o Arguido da prática de um crime de homicídio por negligência.
B. Ora, desde logo se dirá que a decisão em apreço apresenta vários erros na apreciação da prova produzida, impondo os elementos de prova e as regras de experiência comum solução diversa.
DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
- Do erro notório na apreciação da prova
C. O Tribunal a quo apresentou a sua motivação relativamente aos factos não provados a) a g) no seu conjunto, pelo que também no presente recurso se procederá à análise dos referidos factos e respetiva prova de forma global.
D. Com o devido respeito, que é muito, aquele Tribunal parece não ter apreciado devidamente a prova produzida ao longo da audiência de discussão e julgamento, nomeadamente as declarações do Arguido e da Assistente, e os depoimentos das testemunhas GG, DD e EE.
E. A absolvição do Arguido, em bom rigor, assentou no facto de, na visão daquele Tribunal, não ter sido possível aferir da consciência, ou falta dela, do Arguido no momento do embate. Entendeu o Tribunal a quo que não foi possível determinar se o Arguido não evitou o embate porque se distraiu, porque adormeceu ou porque, por qualquer razão, perdeu a consciência.
F. Resulta da decisão recorrida que o Arguido, aquando da prestação das suas declarações, “Referiu ainda que não acusava cansaço, visto que nesse dia não trabalhou, tendo sido dedicado para tratar de assuntos relacionados com o casamento” – facto que não foi infirmado pela restante prova produzida.
G. Parece-nos, assim, ser, desde logo, de afastar a hipótese de o Arguido ter adormecido enquanto conduzia o veículo acidentado, inexistindo qualquer indício capaz de a sustentar.
H. De acordo com o que resulta da sentença relativamente às declarações do próprio Arguido, o mesmo encontrava-se plenamente consciente momentos antes do embate, recordando-se da chamada telefónica ocorrida entre a vítima e a Assistente e do sinal de luzes que a testemunha GG, que seguia numa outra viatura, atrás da sua, lhe fez.
I. Por outro lado, a propósito do momento posterior ao embate, resulta da decisão de que ora se recorre que a Assistente terá relatado que “o banco do condutor, aqui arguido, estava “direitinho”, a porta dele abriu e passado um pouco saiu” [destaque nosso].
J. Resulta, igualmente, daquela decisão que a testemunha DD, condutor do veículo pesado, “Relatou ainda que o arguido lhe pediu para ligar ao seu pai, o que fez e falou na ocasião com o pai do arguido, dando-lhe a notícia do acidente”.
K. Ora, outra conclusão não será de extrair que não a de que, no momento que sucedeu o embate, o Arguido encontrava-se, também, plenamente consciente, tendo saído do veículo sozinho, pelo seu próprio pé, conversado com a sobredita testemunha e lembrado o número de telemóvel do seu pai.
L. O Arguido afirma não se recordar do momento imediatamente anterior ao embate e, infelizmente, a vítima, única pessoa que seguia na viatura para além daquele, não sobreviveu.
M. Certo é que, tomando como premissa a restante prova produzida, é possível extrair uma conclusão lógica relativamente àquele facto. E a única conclusão lógica possível de extrair é a de que o embate ocorreu porque o Arguido se distraiu.
N. Não se nos afigura credível que alguém que não está cansado ou indisposto, que se recorda perfeitamente dos momentos anteriores ao acidente, onde ia a conversar com a sua noiva, e que, logo no momento após o embate, sai de carro sem necessidade de auxílio, conversa com o condutor do segundo veículo acidentado e se recorda até do contacto telefónico do seu pai, não estivesse igualmente consciente no momento imediatamente anterior ao embate.
O. A hipótese de o Arguido circular distraído naquele momento é a única hipótese lógica racional e consonante com os critérios do Homem Médio, inexistindo qualquer contraprova capaz de a afastar ou, sequer, de suscitar dúvida razoável quanto à sua ocorrência.
P. Distração essa que o levou a não visualizar atempadamente o veículo pesado que seguia à sua frente e, consequentemente, não travar ou realizar qualquer manobra evasiva – conforme resulta do facto provado 4.
Q. Conclui-se, pois, ter resultado provado que o Arguido sempre esteve consciente.
R. Assim, o Arguido, estando habilitado a conduzir o veículo em que seguia, conhecia necessariamente as obrigações que sobre si impendiam, nomeadamente o dever de manter uma vigilância ativa e adotar uma condução defensiva, com vista a evitar a ocorrência de colisões com outros veículos que circulassem na faixa de rodagem. Sabia também que ao violar tais obrigações gerava o perigo de colidir com outras viaturas, colocando, nomeadamente, em risco a vida da vítima. Mais ficou demonstrado que, por falta de atenção, o arguido violou as referidas obrigações, ainda que representasse o perigo de colisão, que acabou por ocorrer e a consequente morte da vítima.
S. Face ao exposto resulta claro que o Tribunal a quo interpretou erradamente a prova produzida em audiência de julgamento, motivo pelo qual deverá a decisão proferida sobre a matéria de facto acima indicada, ser revogada e substituída por outra que considere provados os factos a) a g).

DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO
- Da omissão de pronúncia
T. A conduta do Arguido em análise nos presentes autos sempre seria, abstratamente, suscetível de enquadrar, para além do crime de homicídio negligente, os elementos objetivos e subjetivos previstos pelos artigos 18.º, n.º 1, 24.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, al. e) e f) do Código da Estrada, consubstanciando a prática de contraordenações graves.
U. O concurso aparente existente entre as referidas normas não escusa o Tribunal da obrigação de tomar posição expressa acerca de cada um dos tipos de ilícitos – conforme ocorreu na primeira sentença proferida nos presentes autos.
V. Analisada a sentença de que se recorre, verificam os Assistentes que o Tribunal a quo apenas se pronunciou acerca da prática do ilícito criminal em questão, abstendo-se de tecer qualquer consideração respeitante às contraordenações em causa.
W. Face ao exposto, e nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), deverá a sentença recorrida ser declarada nula, com os devidos efeitos legais, o que se requer.
Do preenchimento do tipo
O tipo objetivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos: a violação de um dever objetivo de cuidado; a possibilidade objetiva de prever o preenchimento do tipo; e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado.
Y. Resulta evidente que o homem médio nas circunstâncias do Arguido, conhece necessariamente as regras de cuidado a observar na circulação rodoviária, como deveria conhecer o Arguido.
Z. O arguido foi imprevidente na condução que adotou, não observando as regras de cuidado na circulação rodoviária que se impunham no caso concreto, desde logo, o dever objetivo de transitar atento à presença de quem ali também circulava.
AA.O arguido estava em condições de abrandar a marcha ou de se desviar, uma vez que a via à sua esquerda se apresentava completamente livre, não tendo resultado demonstrada qualquer circunstância que afastasse a capacidade do Arguido de cumprir o dever de cuidado que sobre si impendia.
BB. E nem se diga que o facto de inexistir prova direta – nomeadamente, as declarações de quem seguia dentro da viatura –, impede o Tribunal de dar como provado o facto de o Arguido seguir distraído no momento do embate.
CC. Encontra-se consolidado no nosso ordenamento jurídico o entendimento de que para a prova dos factos em processo penal é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada de prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
DD. Constata-se, pois, estarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivos da incriminação em causa, nomeadamente:
- a violação do dever de cuidado, consubstanciado no não cumprimento das enunciadas regras de condução;
- a atitude de descuido ou leviandade do agente no incumprimento de tal dever, consubstanciada na imprudência com que conduziu o veículo em que seguia nas circunstâncias de tempo e lugar dos factos;
- o resultado da violação de tal dever ter sido a morte de outras pessoas, neste caso, da passageira que seguia no veículo conduzido pelo Arguido.
EE. A atuação do arguido foi, assim, desconforme às regras de circulação estradal mais básicas, impostas pelos artigos 11.º, n.º 2, 18.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1 do Código da Estrada, sendo o seu resultado suscetível de preencher o tipo ilícito de homicídio por negligência, previsto e punível pelo artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal.
FF. Ao absolver o Arguido, o Tribunal violou o disposto nos artigos 11.º, n.º 2, 18.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1 do Código da Estrada e os artigos 15.º e 137.º, n.º 1 do Código Penal, interpretando-os de forma errada por consequência do erro em que incorreu na apreciação da prova produzida. Com base na prova produzida nos autos, deveria aquele Tribunal ter concluído pelo preenchimento dos elementos do tipo, condenando o Arguido.
GG. Pelo que se impõe a revogação da decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que condene o Arguido pela prática do crime de homicídio por negligência pelo qual veio pronunciado.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. Senhores Desembargadores certamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a decisão recorrida revogada e substituída por outra que:
a) Declare nula a sentença recorrida, por omissão de pronúncia;
b) Condene o Arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelo artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal,
Pois só assim é de Direito e de Justiça!.

7. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo nos próprios autos e com efeito devolutivo.
8. O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, que concluiu nos seguintes termos:
“Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso dos assistentes deve ser improcedente.
Não se logrou apurar com a certeza exigida em processo penal qual a concreta conduta do arguido que determinou o acidente e, consequentemente, nada mais resta que proferir Sentença de absolvição.
Não existe qualquer omissão de pronúncia já que não ficou provada qual a concreta atuação do arguido e, consequentemente, das eventuais contraordenações estradais em causa.”

9. O arguido também apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
“Pretendem os assistentes, por via do presente recurso, que seja a decisão de absolvição proferida pelo douto Tribunal revogada e substituída por uma que condene o arguido na prática do crime de homicídio negligente p. e p. pelo artigo 137.º do CP alegando para tanto e quanto à mesma i) erro notório na apreciação da prova; ii) omissão de pronúncia; iii) preenchimento do tipo legal
Formulam não obstante para tanto um conjunto de raciocínios verdadeiramente contraditórios e sem qualquer reflexo ao nível da prova produzida, pretendendo, aparentemente e ao que tudo indica, defender a tese de que o acidente em causa nos presentes autos resultou do facto de o arguido conduzir distraidamente.
O recurso apresentado deve, todo ele, ser rejeitado pois que as respetivas conclusões são, no fundo, mera cópia do afirmado na motivação.
Ainda que assim não se entenda, é também certo que no que respeita ao recurso quanto à decisão sobre a questão de facto, o mesmo não deve sequer ser admitido por clara violação do disposto no artigo 412.ºCPP.
Em qualquer caso, a pretensão recursiva dos Assistentes, tal como formulada, é contraditória / atentatória do já decidido pela Relação do Porto em anterior acórdão proferido nestes autos, pelo que deverá sempre improceder.
Também quanto à matéria de Direito, devem improceder totalmente as alegações apresentadas pelos assistentes.
A decisão sob recurso não padece de qualquer nulidade, designadamente por omissão de pronuncia.
Acompanhando-se, de resto, a posição do Ministério Publico vertida na sua resposta às alegações, pois que de facto, não ficou provada a concreta atuação do agente, não sendo possível por esse motivo subsumir a sua conduta a quaisquer concretas regras estradais com vista a aferir do seu cumprimento ou não por pelo Arguido.
Por último referem ainda os assistentes, estarem reunidos os elementos necessários ao preenchimento do tipo legal de homicídio negligente – sem que se perceba bem porquê, desde logo dada a ambiguidade do recurso quanto à decisão sobre a questão de facto.
Em qualquer caso, qualquer decisão diversa da proferida pela sentença recorrida compreenderia uma total violação dos princípios do Direito Penal e mais uma afronta ao já decidido pela Relação do Porto nestes autos.
Devendo assim improceder as alegações e conclusões de recurso dos Assistentes, não tendo o Tribunal a quo violado quaisquer das normas invocadas em sede de recurso pela Recorrente.”

10. Nesta instância, o Ministério Público[2] emitiu parecer, no qual se pronunciou quanto ao mérito do recurso nos seguintes termos:
Nos termos e para os efeitos do art. 416º do Código de Processo Penal, o Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto formula o seguinte parecer:
Por Sentença proferida a 22 de Janeiro de 2023, o arguido CC foi condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.137º, nº 1 do Código Penal em concurso aparente com o disposto nos arts. 11º, nº 2, 18º, nº 1 e 24º, nº 1 do Código da Estrada na pena de um ano de prisão, substituída por 360 horas de trabalho a favor da comunidade em instituição a indicar pela DGRSP (bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de sete meses, p. pelo art. 69º, nº 1, al. a) do Código Penal).
Desta decisão, o arguido apresentou recurso, tendo sido determinado por este Venerando Tribunal o «reenvio parcial do processo para novo julgamento (artigo 426º, nº 1, do Código de Processo Penal) circunscrito (…) à reapreciação da factualidade vertida na decisão recorrida nos factos provados 15. a 20. e extrair do resultado as necessárias consequências jurídicas».
Isto porque «Resulta da factualidade provada – e da análise crítica da prova produzida na sentença - que o arguido conduziu um automóvel, embatendo na traseira de um veículo pesado de mercadorias que seguia mais devagar à sua frente na autoestrada, na mesma faixa de rodagem e no mesmo sentido de marcha, quando este último era visível a cerca de duzentos metros. Isto, sem esboçar a menor travagem, nem tentativa de ultrapassagem.
Tratando-se de uma conduta negligente – ninguém colocou sequer a possibilidade de se tratar de uma conduta dolosa do arguido – as regras de experiência comum evidenciam que o arguido não estava a olhar para a frente do seu veículo e/ou a estar atento e reativo ao que observava durante um espaço de tempo significativo – fazendo cálculos matemáticos elementares com os dados disponíveis (o veículo de mercadorias seguia a velocidade inferior ao limite mínimo legal, ao circular a 35 km/h, o veículo automóvel seguiria até um máximo de 120km/h e o veículo pesado de mercadorias era visível a 200 metros), o arguido teve, pelo menos, cerca de 7 segundos para ver o camião a circular na mesma faixa de rodagem e sentido de marcha, mais devagar, à sua frente -.
As hipóteses concretas (atos concretos que prejudicaram o exercício da condução com segurança) que podem explicar o resultado típico do crime de homicídio por negligência (a morte da vítima - no caso, a noiva do arguido que seguia como passageira no veículo conduzido pelo próprio -) são diversas e a causa concreta que levou à violação da regras estradais não foi apurada. Lida a sentença, conclui-se não ter sido apurada a razão concreta pela qual o arguido embateu no veículo pesado de mercadorias que seguia à sua frente a velocidade muito mais reduzida.
Concretizando:
a) por exemplo, se o arguido adormeceu no exercício da condução, a sua negligência não é consubstanciada pelo adormecimento, mas por conduta anterior, quando o arguido se apercebeu de que estava com sono e, mesmo assim, insistiu em conduzir; ou
b) se o arguido desviou o seu olhar da estrada durante cerca de sete segundos, olhando por exemplo para o écran do seu telemóvel, para uma aplicação de GPS, ou para a sua noiva, foi esse desvio de olhar no exercício da condução que consubstanciou a imprudência causadora da colisão e, por conseguinte, a conduta criminosa negligente.
Tem relevância jurídica, designadamente quanto ao grau de negligência na autoria do crime, apurar a conduta negligente concreta que resultou na morte da vítima, sendo certo que tal é relevante, inclusivamente, para a escolha e medida da pena.
É certo que nem sempre é possível apurar em julgamento todos os factos relevantes para a determinação da responsabilidade penal concreta. Porém, existe um dever do tribunal tentar averiguar os mesmos, pois constituem objeto da prova “todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis” (artigo 124º, nº 1, do Código de Processo Penal) e o tribunal “ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa” (artigo 340º, nº 1, do mesmo texto legal).
Lida a decisão da matéria de facto, percebe-se que a mesma é omissa na concretização da conduta negligente do arguido, pois apenas foram apurados os factos objetivos da colisão e não integralmente esclarecida a conduta negligente concreta que produziu o resultado típico do crime, não evidenciando a fundamentação da convicção do tribunal que este se tenha esforçado no sentido de provar esse facto juridicamente relevante à luz do disposto no artigo 124º, nº 1, do Código atrás citado».
Efetuado novo julgamento, a 29 de Abril de 2024 foi proferida nova Sentença, desta vez absolvendo o arguido do citado crime.
Foram dados como provados os seguintes factos:
«1. No dia 19.6.2019 pelas 00h08, DD conduzia o veículo categoria pesado de mercadorias, com a matrícula ..-..-UI, na ..., no sentido de marcha Norte/Sul, localidade de ..., ... e transportava como passageiro EE.
2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido CC conduzia atrás, o veículo categoria ligeiro de passageiros com a matrícula ..-UN-.. e transportava consigo, como passageira no banco da frente, FF, nascida em ../../1990.
3. O veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-..-UI circulava pela via da direita, carregado com carcaças de porco, a uma velocidade de 35 km/h e estava visível.
4. Durante a aproximação ao veículo de mercadorias, o arguido CC não travou, nem fez qualquer manobra evasiva, até colidir com a frente direita do veículo que conduzia contra a traseira esquerda do veículo pesado de mercadorias ao km 18,730 (sublinhado nosso)
5. Da colisão resultou a rotação da traseira do veículo ligeiro conduzido pelo arguido para o lado esquerdo e a consequente imobilização na berma.
(…)
9. Na zona do acidente a faixa de rodagem tem três vias no mesmo sentido, em asfalto betuminoso e em bom estado de conservação.
10. Tem bermas delimitadas e marcas rodoviárias bem visíveis.
(…)
14. O arguido CC é piloto de veículos motorizados (não profissional), estando para tal legalmente habilitado desde 2015 pela Federação ... para o exercício da condução em qualquer prova de competição, participando com regularidade – até à data do acidente – em provas e campeonatos nacionais de todo-o-terreno».
(…)
19. Os travões do veículo conduzido pelo arguido CC foram accionados por sistema automático da viatura».
Foi dado como não provado, o seguinte:
«a) O arguido CC circulou de forma desatenta, não vendo atempadamente o veículo que se encontrava na sua via de circulação e não efectuou qualquer manobra para evitar o embate e seguiu a marcha até à colisão.
b) O arguido, teve uma condução descuidada e imprevidente e, nas circunstâncias de tempo e lugar supra mencionadas, incorrendo, ao assim proceder, na violação das regras estradais que era capaz de observar, que lhe era exigível e que estava ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências da sua conduta.
c) O arguido devia travar ou mudar de direcção para outra faixa, por forma que da sua realização não resultasse perigo.
d) O arguido CC não adequou a sua condução à via em que seguia, não agindo com o zelo e diligência com que devia e podia actuar na condução, nomeadamente adequando a velocidade ao espaço livre, visível e disponível à sua frente de modo a evitar a colisão e cuja violação foi causal do acidente em apreço e da morte de FF.
e) Ao arguido era-lhe previsível, que, como resultado da supra referida conduta, o veículo que conduzia pudesse vir a embater num outro veículo.
f) O arguido CC não previu, mas devia, que da sua conduta poderia resultar, como resultou, a morte da passageira.
g) O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
h) No momento do embate e nos instantes que imediatamente o antecederam, o arguido CC não tinha qualquer consciência nem capacidade de direcção efectiva do veículo.
i) A travagem após o embate foi acto reflexo inconsciente, alheio à vontade do arguido».
No sentido de lavrar o presente parecer em consciência, procedemos à visualização do vídeo com as imagens do embate (e dos momentos anteriores) e à audição de grande parte da prova produzida nas duas audiências de julgamento, tendo efetuado também a consulta das diligências processuais efetuadas pela GNR.
Tudo isto, previamente à leitura do recurso interposto e respetivas respostas (a fim de não ficarmos, de alguma forma, condicionados).
Desde logo, não compreendemos como pode o Tribunal a quo dar como provado que o arguido não fez «qualquer manobra evasiva», considerando que o veículo que tripulava seguia no mesmo corredor de circulação do que o precedia e que, no momento imediatamente anterior ao embate, «parecia uma ultrapassagem mal calculada». Adiante explicaremos melhor esta divergência.
Como também não se compreende que possam estar como factos não provados as als. a) a e) do respetivo segmento, que se tratam, na sua essência, de conclusões a retirar ou não (depois de apurada a dinâmica do sinistro), ou seja, e nos dizeres do douto Acórdão deste Venerando Tribunal da Relação: «os factos conclusivos são ainda matéria de facto quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, apenas devendo considerar-se não escritos – ou transitarem para a fundamentação em matéria de direito - se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum».
Quanto à matéria sub judice:
Efetuado o visionamento das imagens atinentes ao acidente e considerando que o veículo pesado de mercadorias possuía – para além das luzes de presença ligadas (nomeadamente, no cimo da caixa térmica – um refletor na traseira da mesma que, com luzes de faróis a incidir, seria visível a cerca de 200 metros;
se, da perceção da testemunha GG parecia uma «ultrapassagem mal calculada», como também nos fez parecer a visualização das imagens, uma vez que o «BMW» (não guinando) se desvia ligeiramente para a esquerda antes do embate;
o que é confirmado pela comparação das lesões sofridas pelos ocupantes, pelos danos desta viatura e pela rotação que a mesma efetuou após o embate (que não foi «em cheio», tal como explicou o Sr. Militar da GNR);
não nos parece plausível a hipótese de o arguido ter adormecido e ter adormecido por um lapso de tempo considerável (alegadamente, desde o Km. 25.4 (logo após a entrada na ... – que confirmamos no «Google maps») e o Km. 18.730 (local do acidente);
- sendo certo que, sensivelmente a meio do caminho, ou seja, ao Km. 22.7 (também aferido no Google maps), a faixa de rodagem aumenta de dois para três corredores de circulação; daqui decorrendo que o arguido se desviou para a direita volvidos que foram 2,7 Kms. sobre a entrada na ....
Também por tudo isto, não nos parece credível a versão do arguido de não se recordar de nada, desde o nó da ....
Atentemos às suas declarações (cuja audição fizemos na íntegra):
Que a última recordação que tem é na entrada da ....
Durante esses Kms. e até ao acidente, não se recorda de nada.
Anote-se o que já se deixou dito, o mesmo mudou para o corredor de circulação mais à direita, quando a faixa de rodagem alargou (por esse lado) ao Km. 22.7.
Que não tem explicação para o acidente.
Que não viu o veículo pesado à sua frente.
Que se recorda do telefonema entre a vítima e a mãe, até porque colocaram a hipótese de estas não terem entrado na ....
Ora, se colocaram essa hipótese, então o «BMW» tripulado pelo arguido já o havia feito, ou seja, já se encontrava a circular na ....
E se foi esse o motivo para o telefonema, a vítima teve de pegar no respetivo telemóvel (ou até se admita que o levasse na mão), teve de acionar o número (ainda que se admita ter recorrido à lista de chamadas recentes), teve de ligar, acionando as antenas; teve a mãe da mesma de pegar no telemóvel (voltando a admitir-se que o levava na mão), teve de atender e de conversar com a ofendida; tudo isto enquanto seguiam viagem (o arguido a uma velocidade de cerca de 110 km/hora) e já na ....
Daqui decorre, não poder ser verdade que, desde que entrou nesta via, o arguido deixou de ter consciência do que se estava a passar.
E isto, porque (reitera-se) fez uma mudança de corredor de circulação e também porque até a chamada ter sido desligada, o BMW já teria percorrido uma distância não menosprezável.
Neste aspeto, salientam-se os depoimentos da mãe e irmã da vítima, sobre o lapso de tempo «pressentido» entre o final da chamada e a visualização, destas, do «BMW» e do veículo pesado de mercadorias.
Como nota, sempre se dirá que o registo da chamada (com a hora/minuto/segundo do seu início e fim) era de fundamental importância para o caso em concreto (atentos os registos de vídeo do acidente, com essas menções).
Aliás, o arguido referiu:
Recorda-se de aparecer um carro atrás de si.
Carro este que era, inevitavelmente, o da irmã da ofendida (como se pode constatar das imagens).
E, na segunda audiência de julgamento, o arguido referiu recordar-se de o veículo que o secundava fez sinal de luzes (mas situando este facto logo após a saída da ... e entrada na ...).
Admitiu, ainda, que ia olhando pelo espelho retrovisor para ver se a irmã da vítima se mantinha atrás do BMW.
Só que, de acordo com o depoimento desta e da mãe, logo que avistaram o BMW, aperceberam-se da existência de um veículo de mercadorias que o precedia, bem visível porque iluminado e de caixa branca e, ainda, porque se tratava de uma ligeira subida.
Anote-se, ainda, que (na primeira audiência de julgamento) o arguido de certo modo desconversou sobre uma alegada perda de consciência, percebendo-se também que, em data posterior ao acidente, não fez qualquer exame médico para perceber dessa possibilidade e dos motivos (porventura cardíacos e, portanto, não despicientes) que a podiam ter originado. E nunca referiu ter tido algo similar em situações anteriores, continuando a participar em provas de automobilismo (como referiu).
Já na segunda audiência em que foi ouvido e a instâncias, referiu nunca ter tido qualquer «falha» ou «branca» física ou psíquica, salientando (ele próprio) que lhe disseram ser normal não se recordar do acidente.
Também resulta dos autos que o mesmo saiu sozinho e consciente do interior da viatura sinistrada.
A testemunha GG referiu, aliás, que ainda viu o arguido sentado dentro do BMW e que o mesmo estava consciente.
O condutor do veículo pesado referiu que se tinha apercebido do BMW atrás, que ouviu um estrondo e supôs ter sido o rebentar de um pneu, que parou na berma e quando apeado viu um indivíduo (o arguido) com sangue na face que lhe pediu o telemóvel para telefonar ao pai, digitando o respetivo número.
Impunha-se, quanto a nós, o avivar de memória desta testemunha que, perante a GNR referiu que o arguido, após o sinistro, lhe comentou que não se lembrava de nada e «que tinha adormecido».
Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10 de Maio de 2016 (Processo nº 73/11.0JAPTM.E2): «Não configuram “depoimentos indiretos” os relatos de testemunhas que, muito embora não tendo presenciado os factos, apenas esclareceram que o arguido esteve no local dos mesmos, e que, perante elas, posteriormente, “justificou” os ferimentos sofridos, na altura e no local, pela vítima».
Ainda que assim não se entenda (no caso), importa atender ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15 de Dezembro de 2021 (Processo nº 67/19.8GBBAO.P1): «Para que possa ser devidamente valorado o depoimento de ouvir-dizer, basta-se a lei que o tribunal chame a fonte a depor, não se exigindo a necessidade de prestação efetiva de depoimento, nem a confirmação da conversa mantida com a testemunha de ouvir-dizer, nem tão pouco a coincidência de conteúdo na descrição do facto probando. A lei limita-se a exigir que o tribunal diligencie no sentido de obter o depoimento da fonte. A proibição de valoração inerente ao artigo 129.º cessa de imediato com o chamamento a depor da fonte originária, mesmo que posteriormente a mesma se recuse legitimamente a depor, pois a valoração não depende do conteúdo do depoimento da mesma». E isto, ainda que seja o próprio suspeito.
Ainda assim:
Reitera-se que não nos parece, de todo, aceitável a versão do arguido, de ter adormecido desde a entrada na ..., conforme o que já se deixou dito.
E isto, até porque se percebe (pelas imagens e testemunhos) que não ocorreu qualquer alteração da velocidade do BMW.
Ora, parece-nos estranho que, relaxando e perdendo o controlo do corpo, o arguido (ao adormecer ou ao dormir) não tivesse afrouxado ou aumentado a pressão no acelerador da viatura (a menos que estivesse acionado o sistema «cruise control» (facto não referido por aquele, mas que seria de primordial importância para a sua defesa e, portanto, não negligenciável).
A talhe de foice, entendemos existir, de certo modo, uma omissão de atos investigatórios, nomeadamente na recolha e leitura da centralina do «BMW», que poderia ter fornecido os dados concretos, nomeadamente, de velocidade, aceleração e desaceleração.
Afastada que está a perda de sentidos, restam-nos duas opções:
- ou o adormecimento por segundos, e que, em face da aproximação aos refletores da caixa frigorífica e com a crescente intensidade da luz – determinou que o arguido acordasse e tivesse uma espécie de reação (a tal ideia de «ultrapassagem mal calculada»), o que explica as zonas do embate das viaturas (a direita do BMW com a esquerda do veículo de mercadorias);
- ou uma distração do mesmo;
(só ele poderá saber, porque mais ninguém vivo).
E a versão do arguido não se nos afigura, de todo, credível (o que o desabona).
Ainda assim:
Em ambos os casos, afigura-se-nos de concluir que - ao conduzir o veículo automóvel ligeiro de passageiros pela ... (uma Autoestrada) – o arguido não respeitou as regras de prudência estradais que se lhe impunham.
Nas condições em que tripulava (sonolento ou distraído), o arguido não guardou a distância necessária para evitar a colisão com o veículo que o precedia, nem foi capaz de imobilizar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (arts. 18º nº 1 e art. 24º nº 1 do Código da Estrada;
entendendo não poder ser dada como provada a infração ao art. 11º do mesmo Diploma, pois que permanece desconhecido qualquer «ato», em concreto, do arguido suscetível de prejudicar o exercício da condução com segurança.
Face ao exposto, perante tal omissão dos deveres de cuidados inerentes à condução de veículos automóveis na via pública, fator determinante do sinistro e do óbito da passageira, somos de parecer pela condenação do mesmo pelo crime que que foi acusado (com a alteração referida supra).
«No proémio do art.º 15.º do CP, a negligência é definida, de modo unitário, prevendo o tipo de ilícito – a violação do cuidado a que o agente, segundo as circunstâncias, está obrigado portanto, a violação do cuidado objectivamente devido – e o tipo de culpa – a violação do cuidado que o agente, de acordo com os seus conhecimentos e capacidades pessoais, está em condições de observar. Assim, no caso do crime de homicídio por negligência, p.p. pelo art.º 137.º do CP, o tipo de ilícito fica preenchido sempre que uma conduta diverge da que era objectivamente devida numa situação de perigo para a vida humana, por forma a evitar a violação deste bem que, por causa daquela divergência, vem a ser efectivamente lesado. Já o tipo de culpa fica preenchido quando aquele dever de cuidado objectivamente devido – previsível, evitável e inobservado – podia também ter sido cumprido pelo agente concreto, de acordo com as suas capacidades, inteligência, experiência de vida e posição social» (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9 de Outubro de 2019; Processo nº 58/16.0PTCBR.C1, sublinhado nosso).
Num segundo momento deste parecer, procedemos à leitura do recurso interposto e das respetivas respostas, que (salvo melhor entendimento) em nada alteraram as considerações efetuadas supra.
Assim, e nos termos e para os efeitos do art. 416º do Código de Processo Penal, somos de parecer pela procedência do recurso apresentado. .”

11. Apenas o arguido respondeu ao parecer, o que fez nos seguintes termos:
O parecer do Ministério Público mais não é do que um conjunto de considerações, verdadeiras conclusões, de (nenhuns) factos, ou pelo menos de pretensos factos “indirectos” que não resultaram provados na audiência de julgamento realizada – e que nem sequer deveriam ter sido dados como provados na 1ª sentença propalada objecto de revogação parcial
É um escrito, data venia, absolutamente parcial que “sem ovos” pretende fazer uma “omelete”
Aliás, conferir-se mérito à “alegações” constantes do parecer do Ministério Público seria violar frontalmente – de forma até grosseira - o Acórdão proferido por este Tribunal da Relação transitado em julgado.
Além do mais assume uma visão dos factos diametralmente oposta à do Ministério Publica na 1ª instância e extravasa manifestante o próprio recurso interposto pelos Assistentes
Tal acórdão, por si só, já condicionava de alguma forma o Tribunal recorrido pois que esta Veneranda Relação, em rigor, ali havia reconhecido que a conduta não poderia ser abstratamente (ou indutivamente) ficcionada pelo Tribunal, para efeitos da respetiva imputação ao Arguido, devendo antes apurar-se concretamente em que é que a mesma, a ter existido, se consubstanciou.
E do “novo julgamento” resultou, concretamente de facto, nada……
Ou melhor, resultou a total ausência de demonstração ou prova da verdadeira conduta negligente que era imputada ao arguido e daí a sua inequívoca e consequente absolvição O que aparentemente faz (ou fez) agora o MP foi “por dedução” contrariar frontalmente aquilo que nunca foi matéria controvertida- desde logo a inexistência de qualquer manobra de desvio, qualquer alteração no ritmo e sentido da circulação e muito menos uma alegada “ tentativa de ultrapassagem mal calculada” – que de facto, para além da testemunha GG (irmã da Vítima e “padroeira” da cruzada contra o arguido…) numa alegação inconsequente- como a própria reconheceu na 1ª audiência de julgamento (mera percepção…) apenas o MP agora descortinou
Veja-se o seu depoimento prestado na Audiência de julgamento de 12.05.2021
[00:06:28] Procurador: Da parte direita?
[00:06:30] GG: Exatamente. Onde seguia a minha irmã. Ou seja, deu-me a sensação que o BMW onde a minha irmã seguia, quase que esteve… enfiou-se por baixo do camião, a certa altura, e lembro-me que tive a sensação e a perceção que seria uma ultrapassagem mal calculada. Porquê? Porque quando eu estou nesta via, e estou assim exatamente com aquele campo de visão também do outro condutor – não é? – eu consigo ter uma perceção mais clara do espaço em que aconteceu, então significa que o embate ter sido só do lado direito, ou essencialmente do lado direito, e eu presumi na altura que tivesse sido uma ultrapassagem mal calculada. Porquê? Porque o veículo nunca seguiu em frente, digamos assim, ou seja, o embate não foi de frente.
Tal testemunha, no seu depoimento presumiu em função do resultado do embate…
O que a testemunha disse foi: e eu presumi na altura que tivesse sido uma ultrapassagem mal calculada.
Não viu, não presenciou nem o poderia ter presenciado
NÃO EXISTIU QUALQUER DESVIO NEM SEQUER TENTATIVA
Conforme resulta dos autos - bastando uma visualização atenta do registo de vídeo- o ..-..-UI circulava na faixa da direita completamente encostado á berma direito quando o BMW segui na mesma faixa mas no meio – explicação plausível para o facto do embate ter incidido do lado direito do BMW
Veja-se o depoimento do Militar da GNR HH Audiência de julgamento de 12.05.2021
[00:14:42] Mandatário do Arguido (Dr. II): “Imagem onde é visível o veículo ligeiro em aproximação ao pesado de mercadorias e onde não é visível qualquer manobra evasiva”. Confirma? Folhas 106, “imagem onde é visível o veículo ligeiro já muito perto da parte de trás do veículo pesado de mercadorias e onde não é visível qualquer manobra evasiva”. Folhas 107, “imagem onde é visível o momento da colisão entre o veículo ligeiro e o pesado de mercadorias. Nesta imagem, é visível que o condutor só travou depois do embate”. Confirma e está de acordo com o seu depoimento [sobreposição de vozes]?
[00:15:18] HH: Eu confirmo aquilo que vi na altura.
[00:15:20] Mandatário do Arguido (Dr. II): Repare, eu não lhe estou a dizer para me confirmar que o condutor só travou depois do embate. Aquilo que resultava da sua análise.
[00:15:27] HH: Certo, certo. Da minha análise.
[00:15:31] Mandatário do Arguido (Dr. II): Daquilo que viu, muito bem. Sim, senhor. Olhe, e a seguir vem a tal rotação que o meu colega e que a senhora Procuradora evidenciou. Ó senhor agente, o camião circula aqui. Esta é a berma do lado direito, vamos partir do pressuposto que o veículo automóvel circula aqui mais afastado da berma. Diga-me uma coisa, se não houver qualquer alteração da direção do veículo ligeiro, o embate vai ser sempre sobre o lado direito do veículo ligeiro, certo?
[00:16:05] HH: Sim.
[00:16:05] Mandatário do Arguido (Dr. II): Certo?
[00:16:06] HH: Sim.
[00:16:07] Mandatário do Arguido (Dr. II): Portanto, o senhor disse há bocadinho que podia ter havido um ligeiro desvio e aí…
[00:16:14] HH: No momento final, sim.
[00:16:15] Mandatário do Arguido (Dr. II): E aí explicar que a incidência da colisão não é frontal e é mais lateral, que provoca a rotação do veículo ligeiro.
[00:16:25] HH: Certo.
[00:16:26] Mandatário do Arguido (Dr. II): Estamos a partir do pressuposto que ambos os veículos estão completamente alinhados com a berma e o veículo aqui teve uma alteração, nomeadamente, para a esquerda, não é verdade?
[00:16:35] HH: Sim, sim.
[00:16:37] Mandatário do Arguido (Dr. II): E a pergunta é: se não havendo esse alinhamento, a colisão não é considerada frontal. Vai [impercetível] neste caso concreto, pela direita do veículo ligeiro, certo?
[00:16:49] HH: Certo, mas também pode-se ter dado o caso de o veículo, como vinha em marcha lenta, vir mais encostado à direita.
[00:16:56] Mandatário do Arguido (Dr. II): É o que lhe estou a dizer.
[00:16:57] HH: Ah, OK.
[00:16:58] Mandatário do Arguido (Dr. II): É isto, é essa... não é o que eu lhe estou a dizer, é essa a conclusão que eu queria que o senhor me confirmasse.
[00:17:04] HH: Pode acontecer.
[00:17:04] Mandatário do Arguido (Dr. II): Aliás, dos fotogramas, daquilo que nos é permitido conhecer, nota-se claramente que, no momento do embate, o veículo pesado, e muito bem, está completamente encostado ao lado direito da berma.
[00:17:22] HH: Sim.
[00:17:23] Mandatário do Arguido (Dr. II): Eventualmente [impercetível] velocidade, aquela faixa de rodagem cabe… quer dizer, eu posso vir na mesma faixa de rodagem e vir mais à esquerda ou mais à direita, certo?
[00:17:33] HH: Certo.
…..
[00:34:53] Mandatário do Arguido (Dr. II): Se o reflexo das luzes dos faróis do veículo ligeiro não estão, efetivamente, mais sobre a esquerda do que sobre a direita?
[00:35:03] HH: Sim, nesta imagem, a impressão que dá é que estão ligeiramente mais para cá, sim.
[00:35:08] Mandatário do Arguido (Dr. II): Estão ligeiramente mais para a esquerda, não é verdade?
[00:35:09] HH: Mais para a esquerda.
[00:35:11] Mandatário do Arguido (Dr. II): E eu pergunto-lhe se é lícito eu concluir que efetivamente o veículo ligeiro está mais encostado à faixa da esquerda do que o veículo pesado.
[00:35:20] HH: É possível, sim.
[00:35:20] Mandatário do Arguido (Dr. II): Pronto.
[00:35:22] HH: É possível.
….
[00:37:20] Procuradora: Retrocedendo um bocadinho à penúltima pergunta ali [impercetível], das luzes, ligeiramente mais, portanto, para a esquerda…
[00:37:34] HH: Incidirem… terem uma incidência mais sobre o lado esquerdo.
[00:37:37] Procuradora: Isso também já disse que o pesado circulava mais junto à berma.
[00:37:42] HH: Mais encostado à linha guia, digamos, ao limite da faixa de rodagem.
[00:37:47] Procuradora: E o ligeiro de passageiros, portanto, no centro?
[00:37:51] HH: Exatamente.
[00:37:52] Procuradora: E ali é uma curva?
[00:37:55] HH: É uma curva larga, sim.
[00:37:57] Procuradora: Isso também pode explicar, exatamente, porque é que se nota um bocadinho o feixe das luzes mais num sentido e o camião do outro? Digo eu.
[00:38:08] HH: Eu diria que a curva é tão larga que não seria pelo facto da curvatura da via essa incidência luminosa. Não me parece.
[00:38:20] Procuradora: Não lhe parece? Então, seria já o carro, portanto, o ligeiro de passageiros a tentar evitar a colisão?
[00:38:31] HH: Ou podia ser o simples facto de o veículo ligeiro de mercadorias vir mais encostado à sua direita. Pode também acontecer. É lógico que nós, a imagem também é relativamente curta, não é? Não é assim tão extensa para que nós possamos ter uma avaliação mais objetiva, mas daquilo que é visível, me parece que o pesado de mercadorias vem, efetivamente, a circular por causa do peso, um bocadinho mais encostado ao limite da faixa de rodagem e o veículo ligeiro viria na vidinha dele, normal, dentro da via. Daí, se calhar, a incidência luminosa ser um bocadinho mais sobre o lado esquerdo. É possível que isso possa ocorrer. É possível.
Da mesma forma e conforme matéria dada como provada (em sede de pedido de alteração da matéria de facto) NÃO EXISTIU QUALQUER TRAVAGEM POR PARTE DO ARGUIDO
Da mesma forma o Parecer “ficciona” um pretenso adormecimento, que retira das declarações do arguido, quando de facto nunca, jamais, o arguido disse que adormeceu e muito menos disse que adormeceu depois da entrada na A/ e o local do acidente- e bastará ouvirmos ou relermos as declarações do arguido
Aliás, retirar das declarações do arguido uma dúvida quanto á lógica ou a sua veracidade e transformar essa duvida em prova efectiva da prática de um crime é no mínimo insólito (para além de ilegítimo e ilegal)
Também a alusão a uma pretensa “mudança” de corredor do BMW não existe nos autos, não está escrito e/ou descrito
É matéria que não existe… a não ser no google maps quanto à configuração das faixas de rodagem da ...- aliás se o BMW circulava á direita na intersecção com a ... manter-se-á, como se manteve, à direita…
Por fim e quanto ao telefonema, veja-se o depoimento da testemunha GG- audiência de julgamento de 12.05.2021
[00:22:49] Mandatário do Arguido (Dr. II): Olhe, os senhores quando recebem o telefonema da FF estão na ... ou na ...?
[00:23:00] GG: Eu posso-lhe responder a isso de uma forma muito clara, tal como já fiz, ou seja, eu quando recebi o telefonema da FF, estaria a entrar no ramal de acesso, que foi onde se deu o acidente, portanto, seria a ....
[00:23:17] Mandatário do Arguido (Dr. II): Perfeito. Olhe, sabe quantos quilómetros é que medeiam esse local para o local do acidente?
[00:23:27] GG: Não sei.
[00:23:28] Mandatário do Arguido (Dr. II): É que já aqui ouvi falar em metros. Quantos quilómetros?
[00:23:32] GG: É assim, como deve imaginar, uma pessoa…
[00:23:33] Mandatário do Arguido (Dr. II): Não imagino.
[00:23:34] GG: Pois, se calhar deveria imaginar que uma pessoa quando está a conduzir, e numa situação até que nós estávamos extremamente relaxados, depois de um jantar, não estaria preocupada nem a contar quilómetros quando, à partida, estaria tudo bem, estaria a regressar a casa com toda a calma e, inclusive, como já deixei claro…
[00:23:58] Mandatário do Arguido (Dr. II): Doutora, eu não lhe estou a perguntar a sua perceção. Eu estou a perguntar se sabe quantos quilómetros mediaram entre a receção do telefonema e a zona do acidente. Sabe? Não?
[00:24:07] GG: Não.
[00:24:09] Mandatário do Arguido (Dr. II): Pronto, avancemos.
Do alegado telefonema, do qual não temos registos, a ter sido realizado no nó da ..., estamos a km, repete-se, km do local do embate
Também esta matéria não serve para descredibilizar as declarações do arguido e muito menos para sustentar a prática do crime….
Diga-nos a Sr. Procuradora do Tribunal da Relação o que de facto sucedeu? O arguido vinha ao telemóvel, vinha a olhar para o lado, adormeceu, perdeu os sentidos, ??????
Nada, não tem explicação….
Ou seja, no caso, sucedeu tão só que não foi possível ao tribunal, em face da prova produzida, formular qualquer juízo em relação à pretensa distração do Arguido, pelo que, mesmo em face do já decidiu por esta relação, não se provando tal matéria – como até os Assistentes aceitaram que não se provou – só poderia – poderá – o Arguido ser absolvido, como, bem, foi.
Não o foi diretamente, no que toca aos factos dados como não provados nas alíneas a) a g), nem nunca o poderia ser indiretamente porque tal resultaria de meras especulações e de uma simples presunção, presunção essa que não parte tão pouco de qualquer base minimamente solida, mas ela própria de factos que em si mesmo também não foram dados como provados no decurso dos presentes autos… - presunção que, para esse efeito, também a Relação do Porto já rejeitou.
Ou seja, o Parecer do Ministério Pública utiliza, na sustentação da sua tese, os mesmos argumentos que o Acórdão da Relação do Porto REJEITOU
Donde decorrente que, no caso em apreço, os factos apurados, manifestam-se inconcludentes e ou insuficientes para deles inferir-se o elemento subjetivo da negligência- A negligência não se satisfaz, de qualquer forma, com a mera postergação de um dever objectivo de cuidado, aqui imposto por uma norma legal. Impõe-se ainda subjectivar esse dever, estabelecendo um nexo psicológico entre o agente e o facto que é consequência da violação do dever de diligência. Mas para tal - para aferir essa possibilidade de previsão - importa determinar qual o cuidado especifico que o arguido não cumpriu, que podia ter cumprido e era adequado a evitar o resultado.- CLAUS ROXIN (Problemas Fundamentais de Direito Penal, 257),
Para existir negligência é necessário, desde logo, que se esteja perante uma situação em que é objetivamente previsível o perigo de uma determinada ação ou omissão.
“Na verdade, apenas a previsibilidade objetiva do perigo da ação ou da omissão pode criar no agente um determinado dever de agir ou de se abster. Torna-se, pois, necessário que uma pessoa de capacidade medianamente diligente, perante a mesma situação, pudesse prever o perigo de determinada ação ou omissão, ou seja, a chamada previsibilidade objetiva.
No entanto, tal não basta para existir negligência. Como é manifesto, ela pressupõe a inobservância do cuidado adequado a impedir a ocorrência do resultado típico.” (cfr. resumo do Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 03.08.2009, disponível para consulta em www.dgsi.pt )
Nas palavras de Claus Roxin, sic:
“para se saber se determinada conduta pode ou não ser imputada ao agente como violadora do dever de cuidado a que está obrigado e em virtude da qual se produziu o resultado, há que averiguar se, na configuração dos factos submetidos a julgamento, a conduta concreta do autor fez aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação com o risco permitido. Se assim for, existe uma violação do dever que se integra na tipicidade e dever-se-á punir a título de crime negligente. Contrariamente, se não houver aumento de risco, o agente não poderá ser responsabilizado.”- cfr., neste sentido, Claus Roxin, "Violação do Dever e Resultado nos Crimes Negligentes", in Problemas Fundamentais do Direito Penal, Colecção Vega Universidade, 3.a Edição - 2004, Pág. 256 e seg.).
Do mesmo autor – in Problemas Fundamentais de Direito Penal, 257), sic:
"a questão fundamental, no que concerne aos crimes negligentes é a seguinte: como se pode reconhecer se uma violação do dever de cuidado à qual se segue uma morte, fundamenta, ou não, o homicídio negligente? ... examine-se qual a conduta que não se poderia imputar ao agente como violação do dever, de acordo com os princípios do risco permitido; faça-se uma comparação entre ela e a forma de actuar do arguido e comprove-se então se, na configuração dos factos submetidos a julgamento, a conduta incorrecta do autor fez aumentar a probabilidade de produção do resultado, em comparação com o risco permitido. Se assim for, existe uma violação do dever que se integra na tipicidade e dever-se-á punir a titulo de crime negligente. Se não houver aumento do risco, o agente não poderá ser responsabilizado pelo resultado e consequentemente deve ser absolvido".
Ainda refutando o Parecer do MP nunca é demais chamar à colação os princípios constitucionais e processuais penais daqueles emergentes plasmados no artigo 32.º da CRP que nos dizem que todas as pessoas se presumem inocentes e que é a acusação que incumbe a prova da culpa do arguido- o Parecer parece querer inverter esta norma fundamental
Deve considerar-se verdadeiro quando provado. Verdadeiro apenas e só quando as provas trazidas são concludentes, apontando todos de modo concordante para o sentido da culpabilidade do arguido.
Deve-se atender, nesta fase e em todas as outras, aos princípios constitucionais e de processo penal emergentes do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Deve-se, em processo penal, ter especial cuidado em respeitar o princípio da presunção de inocência, do que resulta que todas as pessoas se presumem inocentes, competindo ã acusação provar a culpa do arguido.
Assim, apenas se pode considerar culpado quando as provas são concludentes, apontando todas para a culpabilidade do arguido
Isto para dizer que, ao contrário do que lhe impõe a lei (constitucional e infra constitucional) e do que lhe impõe os princípios que norteiam o nosso ordenamento jurídico penal, o Parecer do MP – colocado perante uma situação de verdadeiro non liquet probatório – ao invés de considerar o princípio do in dúbio pro reo considera precisamente o contrário (?!) .
No caso, mesmo com recurso a esta nova forma de prova da criminalidade- a famosa prova indireta- não será possível imputar ao arguido factos que sejam subsumíveis à conduta negligente por manifesta falta de requesitos para a sua aplicação e consagração - pluralidade de factos-base ou indícios; que tais indícios estejam acreditados por prova de carácter directo; que sejam periféricos do facto a provar ou interrelacionados com esse facto; racionalidade da inferência; expressão, na motivação do tribunal de instância, de como se chegou à inferência; não se admitir que a demonstração do facto indício que é a base da inferência seja também ele feito através de prova indiciária.
Não temos facto “base” e muito menos indício seguro para concluir pelo facto acusado, porque do primeiro se retira a conclusão, firme, segura e sólida sobre a ocorrência do segundo e os demais factos provados são consonantes com a conclusão alcançada.

12. Proferiu-se despacho de exame preliminar e, não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos do Código de Processo Penal].

Questões a decidir
Do thema decidendum do recurso:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [3] e a jurisprudência [4] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que os recorrentes extrairam da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
Por conseguinte, analisadas as conclusões da motivação do recurso, identificam-se, somente, as seguintes questões:
a) Nulidade por omissão de pronúncia da sentença relativamente à prática, pelo arguido, de contraordenações estradais graves, p. e p. pelo disposto nos artigos 18.º, n.º 1, 24.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, al. e) e f) do Código da Estrada;
b) Erro notório na apreciação da prova, devendo passar a ser considerados provados os factos a) a g) do elenco considerado não provado na sentença;
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
*
Para decidir as questões controvertidas que importa apreciar, impõe-se concretizar o facto jurídico-processual relevante – a fundamentação em matéria de facto, bem como a fundamentação jurídica da sentença recorrida -.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A – Fundamentação da sentença recorrida:
“II. Fundamentação
Discutida a causa, produzida a prova e analisada criticamente a mesma, resultou a seguinte:
Matéria de Facto Provada
1. No dia 19.6.2019 pelas 00h08, DD conduzia o veículo categoria pesado de mercadorias, com a matrícula ..-..-UI, na ..., no sentido de marcha Norte/Sul, localidade de ..., ... e transportava como passageiro EE.
2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido CC conduzia atrás, o veículo categoria ligeiro de passageiros com a matrícula ..-UN-.. e transportava consigo, como passageira no banco da frente, FF, nascida em ../../1990.
3. O veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-..-UI circulava pela via da direita, carregado com carcaças de porco, a uma velocidade de 35 km/h e estava visível.
4. Durante a aproximação ao veículo de mercadorias, o arguido CC não travou, nem fez qualquer manobra evasiva, até colidir com a frente direita do veículo que conduzia contra a traseira esquerda do veículo pesado de mercadorias ao km 18,730.
5. Da colisão resultou a rotação da traseira do veículo ligeiro conduzido pelo arguido para o lado esquerdo e a consequente imobilização na berma.
6. Em consequência do acidente, FF sofreu ferimentos, foi assistida pelo INEM no local e posteriormente transportada para o Hospital ... no Porto.
7. FF, não resistiu aos ferimentos e acabou por falecer pelas 13h05 do mesmo dia.
8. A morte de FF, foi devida a lesões traumáticas crâniomeningo-encefálicas, melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 158 a 160, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido e integrado, para todos os efeitos legais, as quais foram causa directa, necessária e adequada da respectiva morte.
9. Na zona do acidente a faixa de rodagem tem três vias no mesmo sentido, em asfalto betuminoso e em bom estado de conservação.
10. Tem bermas delimitadas e marcas rodoviárias bem visíveis. [5]
11. No dia e hora do acidente, o arguido CC e a sua então noiva FF regressavam à casa em Vila Nova de Gaia, onde ambos coabitavam.
12. O arguido CC e FF, assim como familiares de um e de outro, tinham estado num jantar preparativo do seu casamento, cuja realização estava agendada para o dia 7 de Setembro de 2019.
13. O arguido CC, nascido em a ../../1991, é licenciado em gestão de empresas, tendo o grau de mestre em negócios internacionais na universidade de ..., em Londres.
14. O arguido CC é piloto de veículos motorizados (não profissional), estando para tal legalmente habilitado desde 2015 pela Federação ... para o exercício da condução em qualquer prova de competição, participando com regularidade – até à data do acidente – em provas e campeonatos nacionais de todo-o-terreno.
15. O processo de socialização do arguido CC foi normativo, quer a nível social, como parental, tendo beneficiado de dinâmica familiar funcional, assente em condutas estruturantes, designadamente de proximidade familiar e de transmissão de valores pró-sociais. O arguido cresceu integrado no agregado familiar dos progenitores e da irmã germana, 16 anos mais nova, nos concelhos de Vila do Conde e Porto, onde estruturou, na generalidade, o seu percurso pessoal e social, sendo este agregado de condição socioeconómica de estrato médio elevado. Ao nível escolar e formativo, CC concluiu o ensino secundário no Colégio ..., no Porto, com subsequente ingresso no ensino superior e respectiva conclusão do curso de licenciatura em Gestão de Empresas, através da Universidade ..., no Porto. Posteriormente, concluiu o mestrado em Negócios Internacionais, em Londres, Shangai e São Francisco, entre 2013/2014. Após a conclusão da formação académica, o arguido veio a integrar a empresa familiar A..., com sede em .../Vila do Conde, como gestor e director comercial, situação que mantém. A empresa em apreço opera no sector da construção civil, em território nacional e estrangeiro, designadamente em Angola, A... Angola. Nesse país, o arguido regista a colaboração com outras empresas, como administrador, onde se incluem a B... e C.... Ainda em Portugal, o arguido é administrador da empresa D..., sediada no Porto, que opera no sector de Marketing Digital, Branding, Design Gráfico. CC mantinha, desde 2014, relacionamento afectivo com FF/vítima, com quem veio a estabelecer coabitação, durante cerca de um ano e meio, até ao momento do acidente que vitimou fatalmente a companheira. O relacionamento afectivo/conjugal era positivo e harmonioso, com concomitante perspectiva de concretização de casamento, agendado para 7 de Setembro de 2019. O percurso pessoal e social do arguido, configurado como normativo e pró-social, foi estruturado em torno da formação pessoal, consistência sociofamiliar e afectiva, investimento académico e laboral. Como complemento da sua formação pessoal, o arguido regista a realização de viagens para países estrangeiros, com afinco para o conhecimento e inserção na cultura local. O arguido testemunha ainda interesse e investimento, desde os 23 anos de idade, como piloto todo-o-terreno, federado, actividade interrompida por força do acidente em apreço, que recentemente retomou. Em termos de funcionamento pessoal, a construção de identidade do arguido foi norteada pela exposição a modelos de dedicação familiar e profissional, endossando aspectos de responsabilidade, com incentivo na educação como referencial pessoal. Características de rigor, competência, solidariedade, resiliência e sociabilidade apresentam-se como matriz no desenvolvimento pessoal do arguido. À data dos factos pelos quais está acusado, 19.6.2019, CC mantinha a actividade laboral já mencionada, diversificada, como gestor e administrador de diferentes empresas, a operar quer em território nacional como estrangeiro. Neste âmbito, a vítima, noiva do arguido à época do acidente, colaborava com o mesmo em empresa de construção civil que o casal tinha em conjunto. Da actividade que exerce na empresa A..., o arguido aufere o vencimento médio de €1700 líquidos, valor ao qual se acrescem condições laborais e benefícios extra que se constituem mais valia à sua condição financeira, onde se incluem, entre outras, carro próprio e habitação. O arguido reside, em agregado unifamiliar, em apartamento tipologia 3, correspondente à morada dos autos, inserida em condomínio privado, associado a estrato socioeconómico elevado. Por inerência à ocorrência que deu origem aos presentes autos, o arguido veio a interromper a actividade profissional pelo período de cerca de 3 meses, tendo a mesma sido assegurada, na generalidade, pelo respectivo progenitor, gestor/gerente da empresa. Durante esse período, o arguido veio a integrar a residência dos progenitores, no Porto, onde recebeu apoio familiar e social. A gravidade do acontecimento, com resultado fatal da noiva e consequente sobrevivência do arguido, impactou negativamente o habitual funcionamento pessoal do próprio, com manifesta tradução de instabilidade física e emocional. Recorreu a intervenção médica, onde se incluiu a neurologia, assim como psicológica. A intervenção psicológica foi prestada no âmbito da intervenção em crise, pro bono, quer junto do arguido como dos respectivos familiares (progenitores e irmã). Desde então, o arguido beneficiou de apoio/acompanhamento psicológico, situação que mantém. O arguido retomou as principais actividades, quer ao nível pessoal como profissional. Regressou à habitação onde o casal residia e retomou alguma convivialidade social, assim como, ainda que recentemente, a modalidade de piloto todo-o-terreno. O arguido encontra-se em fase de estabilização pessoal, com enfrentamento da realidade, pese embora a permanência de sentimentos de tristeza e ambivalência referentes ao acontecimento e à perda, por morte, da noiva. O acontecimento revelou-se traumático para os familiares do arguido, que consideravam a vítima integrada, desde há vários anos, nas relações de proximidade familiar. CC mantém as condições pessoais e sociais descritas, reconstruídas perante a experiência da perda. Mantém-se laboralmente activo e socialmente inserido, áreas que se apresentam normativas e equilibradas. Nos contextos em que se move, o arguido é caracterizado por denotar atitude e sentido de censurabilidade ética e de responsabilidade. A presente situação determinou a vitimização fatal da companheira do arguido, com consequente interrupção de projecto de vida pessoal, familiar e profissional que o casal vinha mantendo em conjunto. Perante o impacto associado ao acontecimento em apreço, o arguido vivenciou alterações funcionais, que foram sendo alvo de intervenção especializada, onde se inclui apoio neurológico e clínico. Mantém o acompanhamento psicoterapêutico, em regime pro bono. Veio gradualmente a reconstruir a sua vida quotidiana e a readquirir funcionalidade pessoal. Suspendeu a actividade laboral e actividades de vida diárias, por incapacidade, com manifestação de sintomatologia ansiosa/depressiva, pós-acidente. A sua constituição como arguido é percepcionada como fonte de perturbação pessoal, quer pelo impacto negativo do acontecimento, assim como o reviver do mesmo. Com censura e sentido crítico, e ressonância relativamente ao impacto deste tipo de crime, o arguido mantém a evidência de sentimentos de ansiedade, tristeza e perda. Não obstante o elevado impacto da presente situação, o arguido continua a merecer aceitação familiar e social.
16. O arguido CC é titular de carta de condução válida para a condução de veículos das B (ligeiros) e B1 (triciclo ou quadriciclo) a partir de 18.2.2009.
17. A carta de condução ... emitida pela DRMTN em nome do arguido encontra-se arquivada desde 16.1.2015 por ter sido trocada por idêntico título emitido pelo Reino Unido que mantém, conforme cópia de fls.363 cujo teor se considera aqui reproduzido.
18. O arguido CC não tem antecedentes criminais, nem lhe são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais.
19. Os travões do veículo conduzido pelo arguido CC foram accionados por sistema automático da viatura.

Matéria de Facto Não Provada
a) O arguido CC circulou de forma desatenta, não vendo atempadamente o veículo que se encontrava na sua via de circulação e não efectuou qualquer manobra para evitar o embate e seguiu a marcha até à colisão.
b) O arguido, teve uma condução descuidada e imprevidente e, nas circunstâncias de tempo e lugar supra mencionadas, incorrendo, ao assim proceder, na violação das regras estradais que era capaz de observar, que lhe era exigível e que estava ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências da sua conduta.
c) O arguido devia travar ou mudar de direcção para outra faixa, por forma que da sua realização não resultasse perigo.
d) O arguido CC não adequou a sua condução à via em que seguia, não agindo com o zelo e diligência com que devia e podia actuar na condução, nomeadamente adequando a velocidade ao espaço livre, visível e disponível à sua frente de modo a evitar a colisão e cuja violação foi causal do acidente em apreço e da morte de FF.
e) Ao arguido era-lhe previsível, que, como resultado da supra referida conduta, o veículo que conduzia pudesse vir a embater num outro veículo.
f) O arguido CC não previu, mas devia, que da sua conduta poderia resultar, como resultou, a morte da passageira.
g) O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
h) No momento do embate e nos instantes que imediatamente o antecederam, o arguido CC não tinha qualquer consciência nem capacidade de direcção efectiva do veículo.
i) A travagem após o embate foi acto reflexo inconsciente, alheio à vontade do arguido.
**
MOTIVAÇÃO
A decisão quanto à matéria de facto fundou-se no conjunto da prova produzida, a qual foi valorada segundo as regras da lógica e as máximas da experiência comum, segundo o princípio da sua livre apreciação, como infra se explicita. O arguido CC prestou declarações em audiência de julgamento, transmitindo que não tem lembrança dos momentos que antecederam imediatamente o acidente, mencionando que a última recordação que tem se reporta ao nó de acesso à ..., provindo da ... e aos sinais de luzes que a irmã da vitima fez quando se aproximou do veiculo conduzido pelo arguido, visto que, momentos antes, havia sido feito um telefonema pela vitima à mãe a questionar a sua localização, tendo abrandado a marcha, mantendo-se na faixa da direita, com vista a ser alcançado pelo veiculo conduzido por GG, irmã da vitima, que seguia mais atrás; que vinha a conversar sobre o casamento.
O arguido deu conta que não se lembra de ver o veículo que circulava à sua frente, fazendo menção que as memórias que tem são de momentos posteriores ao sinistro e que teve várias perdas de consciência após o acidente:
O arguido deu ainda nota do contexto em que o acidente ocorreu (num dia dedicado à organização do seu casamento com FF que seria celebrado em 7.9.2019 que acabou em “tragédia”, como referiu) e a sua reacção ao mesmo, que envolveu necessidade de terapia intensa e prolongada. O arguido explicou também o motivo pelo qual trocou a carta de condução portuguesa por título inglês, que mantém, dado que estudou nesse país.
Referiu ainda que não acusava cansaço, visto que nesse dia não trabalhou, tendo sido dedicado para tratar de assuntos relacionados com o casamento.
Por seu turno, a assistente AA, mãe da falecida FF, prestou impressivas declarações – coerentes e fidedignas - sobre o sucedido e a que assistiu, uma vez que ocupava o lugar ao lado da sua outra filha, GG, que seguia ao volante do veículo ligeiro que circulava atrás do veículo conduzido pelo arguido. Relatou que, a dada altura do percurso, transitando na via da direita, avistou o carro onde era transportada FF e viu o camião de caixa fechada, branca (“era bastante visível”), “sinalizado”, “a rua subia ligeiramente”, “era fácil visualizar o pesado”, “vi nitidamente, não tenho a mínima dúvida, eu vi os dois veículos”.
Observou também que o veículo conduzido pelo arguido circulava a uma velocidade constante, sem diminuição de velocidade ou sem ter travado, em direcção ao camião: “deu-se o embate”, “rodopia” e fica virado em direcção contrária: “foi inacreditável”, “muito difícil de eu entender”, “ o impacto foi brutal”. Descreveu que o banco da filha ficou partido, “a filha ficou deitada no carro, eu não a conseguia ver”, “a porta metida dentro, o capot metido dentro”, “a parte direita do carro totalmente danificada”. Por outro lado, o banco do condutor, aqui arguido, estava “direitinho”, a porta dele abriu e passado um pouco saiu.
GG, economista, irmã da falecida FF, descreveu, ponto por ponto, a dinâmica do acidente, a que assistiu na posição de condutora do veículo ligeiro em que circulava, no momento do embate, atrás, na mesma via de trânsito do veículo conduzido pelo arguido. A depoente narrou que começou a avistar o veículo onde seguia a irmã, foi-se aproximando e quando teve a certeza que se tratava do veículo conduzido pelo arguido deu sinais de luzes para se identificar e continuou a sua marcha. A determinada altura, a depoente reparou que a via estava ocupada por um pesado de caixa branca (”dava para ver bem”, “a estrada era a subir”, “nunca me passou pela cabeça que o veículo da frente não o visse”). Não obstante, a testemunha viu que o veículo onde estava a irmã continuou a circular a uma velocidade constante em direcção ao camião e embate violentamente, sem sinal de travagem ou luzes de ultrapassagem, no pesado (“foi um embate brutal, como se fosse um carro contra uma parede”). Mais adiantou que o veículo rodopiou e vem uns metros na sua direcção, acabando por se imobilizar. Deu nota que conseguiu parar com alguma segurança e foi, em desespero, à procura da sua irmã (“não a via, pensei que tivesse sido projectada”). A depoente descreveu a dimensão dos danos que a viatura sofreu, principalmente, do lado direito.
HH, militar da GNR, que exerce funções na equipa especializada na recolha de indícios e análise de acidentes de viação, mais precisamente no Núcleo de Investigação de Crimes em Acidentes de Viação do Destacamento de Trânsito do Porto (abreviadamente NICAV) não se deslocou ao local do acidente no momento do sinistro. No entanto, teve acesso ao auto de notícia, participação de acidente de viação e respectivo croquis (não elaborado à escala) e fez “print screen” das imagens do acidente (“as imagens falam por si”) que se mostram juntas aos autos, incluindo em fotogramas, as quais foram, em conjunto, visualizadas em audiência de julgamento. Como também referiu o depoente (e decorre das aludidas imagens) não é visível qualquer travagem ou manobra evasiva antes do embate, sendo que só há sinal de travagem depois de o veículo conduzido pelo arguido abalroar o pesado (sendo certo que no acórdão do TRP foi considerado provado que os travões foram accionados pelo sistema do veiculo, não se podendo extrair qualquer conclusão no sentido de ter sido o arguido a travar).
O depoente fez a análise ao tacógrafo do pesado de mercadorias onde se acha registada a velocidade a que o mesmo circulava (carregado com carcaças de porco, pelo que o peso dificultava a marcha, principalmente na subida). Da visualização das imagens resulta que o camião só liga os quatro piscas depois do embate, sendo certo que a caixa do camião estava sinalizada com luzes reflectoras.
Na realidade, DD, motorista do pesado, transmitiu que acciona habitualmente os quatro piscas em circunstâncias semelhantes. Porém, confrontado com as imagens recolhidas antes do embate, admitiu que apenas as tivesse ligado após o acidente. Além disso, o depoente retratou a percepção que teve do sinistro (“pensei que me tinha rebentado o pneu”), reportando que vinha mesmo encostado à berma, o que também é visível nas imagens. Relatou ainda que o arguido lhe pediu para ligar ao seu pai, o que fez e falou na ocasião com o pai do arguido, dando-lhe a notícia do acidente.
EE, ajudante de motorista, transportado no camião conduzido por DD, corroborou – em traços gerais - o depoimento prestado por este, naquilo que a testemunha percepcionou.
JJ, médico especialista em neurocirurgia, subscritor do relatório junto aos autos, transmitiu que observou o arguido algum tempo após o acidente e que, apresentando o mesmo sintomas habituais na sequência de traumatismo crânio-encefálico, concluiu serem tais sintomas compatíveis com o impacto decorrente de acidente de viação.
KK, empresário, pai do arguido, deslocou-se ao local do acidente, onde já estava o INEM. A testemunha abonou a favor do filho traçando perfil favorável ao mesmo, dando conta do suporte familiar de que o arguido beneficia.
Quanto às consequências do acidente e no que tange ao nexo de causalidade entre o acidente e a morte da vítima, o tribunal valorou o pormenorizado relatório de autópsia inserto a fls.37 e ss., cuja autora, perita em medicina legal (e chefe de serviço), conclui pela compatibilidade entre as lesões que causaram a morte da vítima e uma etiologia traumática de natureza contundente, nomeadamente por acidente de viação.
Os depoimentos acima enunciados foram conjugados com a documentação inserta nos autos, com destaque para as imagens do acidente que são elucidativas do respectivo desenvolvimento e dos fotogramas juntos a fls.100 e ss., imagens da via a fls.121 e aéreas a fls.122 e ss., que ilustram bem a via onde se deu o acidente e o local do embate; a participação de acidente de viação e esboço de fls.73 e ss.; o disco tacógrafo de fls.149 e respectiva análise de fls.150 e ss.; informação do registo automóvel de fls.88-89, 91-92; consulta de fls.90; as fotografias do veículo ligeiro conduzido pelo arguido de fls.142 e ss. demonstrativo do estado do veículo conduzido pelo arguido após imobilização; documentos juntos a fls.290 e ss.; print da carta de condução do arguido de fls.362-363 e informação do IMT; registos clínicos de fls.377 e ss; habilitação de herdeiros junta aos autos a fls.25.
Anota-se que os depoimentos de AA e GG afiguraram-se-nos genuínos, apesar da emoção que naturalmente perpassou pelos mesmos dada a situação extremamente dramática que viveram, não se nos suscitando dúvidas a sua autenticidade.
Tais depoimentos não se nos afigura terem sido inquinados pela referência que fizeram ao facto de o camião circular com os quatro piscas ligados, uma vez que é possível que – tendo o motorista do camião ligado os quatro piscas na sequência do estacionamento do veículo na berma após o acidente – tenham registado esse facto na memória pela forma que verbalizaram em audiência, aos nossos olhos, sem malícia. Aliás, o próprio condutor do pesado afirmou em audiência, antes de ver as imagens, que - na subida - teria acendido os quatro piscas, o que se veio a constatar, através das imagens visualizadas em audiência, não ter sucedido.
No que tange à situação pessoal, económica e profissional do arguido foi valorado o teor do relatório social inserto nos autos, o qual foi conjugado com o depoimento de KK, pai do arguido.
A ausência de antecedentes criminais ou contra-ordenacionais (cfr. fls.95), encontra-se certificada nos autos
Quanto aos factos não provados, tal resulta da circunstância de analisados conjugadamente os meios de prova constantes dos autos e produzidos em audiência, não ser possível ao tribunal formar um juízo de certeza sobre os factos enunciados em a) a g) dos factos não provados.
Assim, a total nebulosidade da situação, levou a que não se resolvesse o ponto mais importante da matéria de facto.
Neste caso, a dúvida que assalta o Tribunal é insanável, porque a própria situação fáctica não é propícia a depoimentos claros; razoável, porque ambos os cenários opostos se afiguram como possíveis, em face do material probatório carreado para o processo; e objectivável, porque sustentada em meios de prova, de credibilidade (ou falta dela) idêntica, que apontam em sentidos divergentes.
Ora, tendo o Tribunal dúvidas insanáveis acerca da verificação dos factos constantes da acusação ou acerca dos factos integrantes de uma causa de exclusão de ilicitude, impõe-se a aplicação ao caso concreto do princípio “in dubio pro reo”.
O princípio “in dubio pro reo” respeita à decisão da matéria de facto, constituindo uma regra legal de decisão em matéria de facto, segundo a qual o tribunal deve decidir a favor do arguido se não se encontrar convencido da verdade ou falsidade de um facto, isto é, se permanecer em estado de dúvida sobre a realidade do mesmo (non liquet).
Assim, o princípio não constitui uma regra probatória em sentido próprio, i.e. uma regra relativa à produção ou valoração da prova, nomeadamente à dúvida sobre credibilidade de um dado meio de prova individualmente considerado, reportando-se, antes, às consequências da não realização de prova suficiente sobre a verdade ou falsidade de um facto, depois de concluído o processo de valoração da prova produzida.
Por sua vez, este princípio fundamental do processo penal é uma emanação ou corolário da garantia constitucional da presunção de inocência consagrada no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, no artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
A materialização de tal princípio, dirigido à apreciação dos factos objecto de um processo penal, desdobra-se em dois vectores essenciais: primo, o ónus probatório da imputação de factos ou condutas que integram um ilícito criminal cabe a quem acusa; secundo, no caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos descritos na acusação ou na pronúncia, o Tribunal deve decidir a favor do arguido (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de Janeiro de 2006, processo n.º JTRP00038687, disponível em www.dgsi.pt).
Revertendo ao caso dos autos, temos que estamos perante um acidente que, dadas as circunstancias em ocorreu, tinha tudo para não acontecer.
Desde logo, a visibilidade do veiculo pesado em que o arguido veio a embater, a existência de duas faixas de rodagem à esquerda que podiam ter sido ocupadas pelo veiculo do arguido, o local configurar uma recta extensa, com boa visibilidade e a circunstancia do arguido ser experiente na condução (participando em competições).
Daí ser válido questionar o que terá provocado o embate. Poder-se á especular se o arguido circulava distraído, ou por estar a conversar com a vitima, a manusear o telemóvel, a procurar uma estação de rádio, ou até se teria adormecido ou ter sofrido uma perda de consciência, como o próprio alega.
O certo é que tal não foi possível apurar. O arguido referiu não ter memória dos factos. O depoimento da irmã e mãe da vitima, que assistiram ao embate, embora esclarecedor quanto à dinâmica do mesmo, não contribuem para o apuramento da causa respectiva.
E do visionamento das imagens do sinistro é possível verificar que, pelo menos durante sete segundos, o arguido teria de estar a conduzir sem atenção à estrada.
Ora, a signatária, ao circular de veiculo automóvel, conduzido por si, no local em que ocorreu o acidente, e aproveitando a inexistência de transito à sua frente, tentou vivenciar a experiencia de desviar o olhar da estrada, o que apenas conseguiu durante não mais do que três segundos, pois a sensação é de total perda de controlo do veiculo. No acto de conduzir, estes sete segundos, duram outro tempo, mais longo.
No caso, tratam-se de sete segundos, pelo menos, sendo certo que o arguido sempre seria alertado pela acentuada sinalização luminosa do pesado em que embateu, visto ser de noite e não ter como não ver tal obstáculo à sua frente, até pelo contraste com o local, como se retira das imagens captadas.
Por outro lado, o facto de ter sido accionado o sistema automático de travagem do veiculo, após o embate, aponta no sentido do arguido não ter esboçado nenhuma reacção ou tentativa de realizar uma manobra evasiva até à sua ocorrência.
Aqui chegados, permanece a duvida quanto à causa do embate.
E, por isso, não pode o Tribunal deixar de resolver tal duvida, que é inultrapassável, a favor do arguido, como acima se expôs, em obediência ao principio in dúbio pro reo.

DO DIREITO
Do crime de homicídio por negligência
Preceitua o art. 137º, nº1 do Código Penal que quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Por seu turno, dispõe o art. 15º do mesmo diploma que “age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”.
São, pois, elementos do tipo legal de crime de homicídio negligente:
- a não observância do cuidado objectivamente adequado, segundo o padrão do homem consciente e cuidadoso, de modo a impedir a produção do resultado típico (ou seja, a omissão de um dever de cuidado adequado para evitar o resultado morte);
- a previsibilidade objectiva do perigo da acção praticada para o bem jurídico vida;
- a verificação do resultado típico morte;
- a imputação objectiva deste resultado típico à omissão do dever objectivo de cuidado (tem de poder afirmar-se que, com razoável probabilidade, o resultado se teria evitado se o agente tivesse procedido com o cuidado objectivamente exigível);
- a possibilidade de o agente, segundo as suas capacidades individuais e as circunstâncias concretas, ter previsto os perigos da conduta, e de ter cumprido o dever objectivo de cuidado que a espécie de conduta praticada impunha.
Pretendendo explicitar o teor do artigo 137º do Código Penal referem Simas Santos e Leal Henriques, in Código Penal Anotado, 2º Vol., 1996, p. 104, que “a culpabilidade afirma-se quando o sujeito, no caso concreto, tendo a possibilidade de agir de acordo com o direito, não o faz, o que vale por dizer que não observou a diligência pessoal possível para evitar o resultado danoso.
Portanto, a culpabilidade decorre da previsibilidade subjectiva. Previsibilidade é, pois, a possibilidade de ser prefigurada a morte de alguém”.
Também Nélson Hungria, citado por Simas Santos e Leal Henriques, in op. cit., p. 105, debruçando-se sobre o conceito de previsibilidade refere que esta existe “quando o agente, nas circunstâncias em que se encontrou, podia, segundo a experiência geral, ter representado como possíveis as consequências lesivas do seu acto”.
Sucede, porém, que para que a conduta do agente seja negligente, a mesma, além de ter uma consequência previsível, há-de representar a violação do dever objectivo de cuidado ou dever de diligência, para cuja aferição se faz apelo aos padrões do homem médio.
Como escreve Damásio de Jesus, citado por Simas Santos e Leal Henriques, in op. cit., p. 105, a todos “é determinada a obrigação de realizar condutas de forma a não causar a morte de terceiro”, passando a ser típica a acção “no momento em que o sujeito pratica uma conduta causadora do resultado morte sem o discernimento e prudência que uma pessoa normal deveria ter”.
Entre nós já o Prof. Eduardo Correia, in “Direito Criminal”, Vol. I, Almedina, 1971, p. 431 se referia à negligência caracterizando-a como a “omissão de um dever de cuidado, adequado a evitar a realização de um tipo legal de crime, que se traduz num dever de previsão ou de justa previsão daquela realização, e que o agente (segundo as circunstâncias concretas do caso e as suas capacidades pessoais) podia ter cumprido”.
Tal omissão do dever de cuidado mostra-se, no entanto, superlativada nos casos de negligência grosseira que se caracteriza pela “grave violação do dever de cuidado, de atenção e de prudência, de grave omissão das cautelas necessárias para evitar a realização do facto antijurídico” – vide Leal Henriques, in ob. cit. p. 106.
Assim, para graduar a negligência, uma vez que esta consiste na violação de um dever objectivo de cuidado e de diligência, deverá averiguar-se a medida da divergência entre a conduta do agente e a conduta exigível e que devia ter sido assumida, partindo das regras de cuidado que deveriam ter sido tomadas em cada caso concreto, sendo certo que, quanto maior for a medida da divergência, mais facilmente se poderá concluir pela ocorrência de negligência grosseira.
Antes de entrarmos na análise da actuação estradal do arguido, deve ter-se em atenção o princípio geral que deve nortear o exercício da condução, em toda e qualquer circunstância, segundo o qual as pessoas – condutores e demais utentes da via – se devem comportar prudentemente, agindo sempre com o objectivo de não comprometer a segurança dos demais utentes das vias (art. 3º do CE). Este princípio geral em matéria de trânsito rodoviário mais não traduz do que um dever geral de diligência, tendo em vista o normal processamento do tráfego. Trata-se, pois, de um dever de cuidado genérico, o qual deve ser observado rigorosamente pelos utentes da via, na medida em que nos encontramos perante uma actividade potencialmente perigosa.
No mesmo sentido, dispõe, nomeadamente, o art. 11º, nº2 do Código da Estrada (aprovado pelo DL nº. 114/94 de 03.05, com as alterações introduzidas pelos DL nºs. 2/98 de 03.01, 265-A/01 de 28.09 e DL nº44/2005, de 23.2) relativamente à condução de veículos que: “os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança”.
Também com relevância para o caso estabelece o art.18º, nº1 do Código da Estrada acerca da distância entre veículos que “o condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste (…)”.
Estatui outrossim o art.24º, nº1, do Código da Estrada que “o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”
Assim e relativamente ao quadro factual apurado no caso concreto, ter-se-á que concluir que não resultou demonstrada a acção típica por parte do arguido, nos termos acima descritos.
Ou seja, que o arguido se comportou de forma negligente no exercício da condução estradal, violando – por omissão- as mais básicas regras atinentes à distância entre veículos e à adequação da velocidade e que podia e devia ter evitado a colisão, estando em condições de abrandar a marcha ou de se desviar para o seu lado esquerdo, onde a via se apresentava completamente livre.
Desta forma, não se encontrando reunidos os elementos que, em concreto, permitem afirmar o conteúdo de culpa próprio da negligência e fundamentar a respectiva punição pela prática, como autor material de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, nº 1 do Código Penal, o arguido terá de ser absolvido da prática deste ilícito.

B – De jure:
1º - Questão prévia
Conforme referido, este Tribunal decidiu conhecer oficiosamente os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da contradição insanável da sua fundamentação e, em consequência, determinou o reenvio do processo para novo julgamento (artigo 426º, nº 1, do Código de Processo Penal), a realizar pelo tribunal previsto no artigo 426º-A, ainda do mesmo texto legal, limitado ao apuramento da factualidade descrita nos factos provados 15. a 20. e o apuramento da conduta negligente concreta que resultou na colisão que resultou na morte da vítima do crime, bem como à eliminação da contradição do facto que foi considerado provado sob o ponto 21. com a demais factualidade provada.”.
Porém, em violação do caso julgado formal emergente dessa decisão, o tribunal a quo eliminou do elenco dos factos provados aqueles que constavam da primeira sentença proferida sob os números 11 a 14, confirmados pelo acórdão deste Tribunal, bem como aquele que, por força da mesma decisão, transitou para os factos provados, tendo os mesmos sido excluídos na nova sentença, sem a menor explicação:
“11- O local onde ocorreu o acidente é uma curva larga à direita, apresentando a faixa de rodagem a largura de 11 metros, com inclinação ascendente, sendo no local do acidente a inclinação de 8,8%.
12- As condições atmosféricas eram boas, não chovia, nem fazia nevoeiro.
13- O arguido tinha, pelo menos 200 metros de visibilidade para a sua frente.
14- A colisão ocorreu na via da direita.”
Facto que transitou para os factos provados:
“No momento da colisão, os travões do veículo conduzido pelo arguido CC foram accionados por sistema automático da viatura”.

Atento o exposto, o tribunal da primeira instância exerceu um poder jurisdicional que não lhe foi conferido pelo tribunal superior e violou o caso julgado formal, ao eliminar do elenco dos factos provados aqueles que já se encontravam processualmente adquiridos e estabilizados.
Nestes termos, impõe-se aditar tais factos à factualidade provada, o que se decide.

Da alegada omissão de pronúncia:
§ 1 – Os recorrentes motivam o seu recurso numa alegada nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, por não ter enquadrado a conduta provada do arguido, para além do crime de homicídio negligente, quanto às contraordenações graves previstas nos artigos 18.º, n.º 1, 24.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, al. e) e f) do Código da Estrada, consubstanciando a prática de contraordenações graves.
No seu entender, o concurso aparente existente entre as referidas normas não escusa o Tribunal da obrigação de tomar posição expressa acerca de cada um dos tipos de ilícitos, tal como tinha sido efetuado na primeira sentença proferida nos presentes autos.
§ 2 – Em resposta, o Ministério Público alegou na primeira instância que “Não existe qualquer omissão de pronúncia já que não ficou provada qual a concreta atuação do arguido e, consequentemente, das eventuais contraordenações estradais em causa” e, no parecer formulado não chegou a pronunciar-se a respeito desta questão.
§ 3 – No seu parecer junto aos autos, o Ministério Público não se pronunciou a respeito desta questão concreta.
Cumpre apreciar e decidir.
O artigo 379.º, 1, c), do Código de Processo Penal estatui que é nula a sentença “Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”.
Ora, tendo presentes as repercussões emergentes do princípio do acusatório no processo penal português, designadamente quanto ao objeto do processo, recorda-se que o arguido se encontrava acusado, somente, pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo art. 137º, n.º 1, do Código Penal, por referência à infração rodoviária prevista e punida no art. 11º, n.º 2, do Código de Estrada.
No desenvolvimento do processo, este Tribunal ordenou o reenvio parcial limitado ao apuramento da factualidade descrita nos factos provados 15. a 20. e o apuramento da conduta negligente concreta que resultou na colisão que resultou na morte da vítima do crime, bem como à eliminação da contradição do facto que foi considerado provado sob o ponto 21. com a demais factualidade provada.
Realizado o julgamento com esse objeto, foi produzida a nova decisão da matéria de facto, com o teor acima reproduzido, tendo o tribunal “a quo” extraído da factualidade apurada, expressamente, as seguintes consequências jurídicas: “Assim e relativamente ao quadro factual apurado no caso concreto, ter-se-á que concluir que não resultou demonstrada a acção típica por parte do arguido, nos termos acima descritos.
Ou seja, que o arguido se comportou de forma negligente no exercício da condução estradal, violando – por omissão- as mais básicas regras atinentes à distância entre veículos e à adequação da velocidade e que podia e devia ter evitado a colisão, estando em condições de abrandar a marcha ou de se desviar para o seu lado esquerdo, onde a via se apresentava completamente livre.
Desta forma, não se encontrando reunidos os elementos que, em concreto, permitem afirmar o conteúdo de culpa próprio da negligência e fundamentar a respectiva punição pela prática, como autor material de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, nº 1 do Código Penal, o arguido terá de ser absolvido da prática deste ilícito.”
Tendo o tribunal decidido, expressamente, não ter resultado demonstrado que o arguido se tenha comportado de forma negligente no exercício da condução estradal (violando, por omissão, as mais básicas regras atinentes à distância entre veículos e à adequação da velocidade e que podia e devia ter evitado a colisão, estando em condições de abrandar a marcha ou de se desviar para o seu lado esquerdo, onde a via se apresentava completamente livre), o tribunal pronunciou-se expressamente a respeito não só da contraordenação referida na acusação, como a todas as demais potenciais infrações rodoviárias.
Assim sendo, recorda-se aos recorrentes que também em relação a estes ilícitos vigora o princípio da tipicidade, pois “Constitui contraordenação rodoviária todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de norma do Código da Estrada ou de legislação complementar e legislação especial cuja aplicação esteja cometida à ANSR, e para o qual se comine uma coima.” (art. 131º do Código da Estrada), sendo as contraordenações rodoviárias também sancionadas se tiverem sido cometidas com negligência (art. 133º do Código da Estrada).
Quanto ao conceito amplo de autoria, este assenta ainda numa exigência causal, apenas podendo ser considerado autor de uma contraordenação quem tiver, no mínimo, contribuído de forma culposa para a realização do tipo, tendo dado origem a uma causa para a sua realização ou que haja promovido, com a sua ação ou omissão, o facto ilícito. Daqui podemos retirar um conteúdo mínimo do conceito de autoria - a existência de um nexo causal mínimo entre o autor e a prática da contraordenação em causa - indispensável à satisfação do princípio da culpa.
Tendo o tribunal concluído não ter sido provada, concretamente, qualquer conduta negligente do arguido, inclusivamente quanto às regras estradais, absolvendo o arguido da acusação pela prática do crime de homicídio por negligência de que vinha acusado, a sentença apreciou e decidiu todo o objeto do processo, improcedendo o alegado vício de omissão de pronúncia imputado pelos recorrentes à sentença recorrida.

2º Do alegado erro notório na apreciação da prova:
§ 1 - Os recorrentes concluíram pela existência de erro notório na apreciação da prova, devendo ser considerados provados os factos vertidos nas alíneas a) a g) da factualidade considerada não provada.
Para tanto, alegaram que o Tribunal a quo fundamentou a decisão por não ter sido possível determinar se o arguido não evitou o embate porque se distraiu, porque adormeceu ou porque, por qualquer razão, perdeu a consciência.
Porém, resulta da decisão recorrida que o arguido, aquando da prestação das suas declarações, “Referiu ainda que não acusava cansaço, visto que nesse dia não trabalhou, tendo sido dedicado para tratar de assuntos relacionados com o casamento” – concluindo os recorrentes que, por isso, deve ser logo afastada a hipótese do arguido ter adormecido enquanto conduzia o veículo acidentado.
Segundo descrito na mesma fundamentação:
a) o arguido declarou que se encontrava plenamente consciente momentos antes do embate, recordando-se da chamada telefónica ocorrida entre a vítima e a assistente e do sinal de luzes que a testemunha GG, que seguia numa outra viatura, atrás da sua, lhe fez;
b) a propósito do momento posterior ao embate, a assistente terá relatado que “o banco do condutor, aqui arguido, estava “direitinho”;
c) a testemunha DD, condutor do veículo pesado, “Relatou ainda que o arguido lhe pediu para ligar ao seu pai, o que fez e falou na ocasião com o pai do arguido, dando-lhe a notícia do acidente”;
Concluem, assim, que o arguido se encontrava plenamente consciente logo a seguir ao embate, tendo saído do veículo sozinho, pelo seu próprio pé, conversado com a sobredita testemunha e lembrado o número de telemóvel do seu pai.
Do exposto, os assistentes concluem que o embate ocorreu por motivo de distração do arguido.
§ 2 – O Ministério Público e o arguido responderam ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
§ 3 – No seu parecer formulado neste Tribunal, o Ministério Público não abordou esta questão, diretamente, tendo analisado de forma exaustiva a prova produzida em julgamento e identificado também prova que poderia ter sido recolhida, com interesse para o apuramento da verdade, concluindo pela procedência do recurso.
§ 4 – Apenas o arguido respondeu, impugnando, de forma fundamentada, a tese vertida no parecer.
Cumpre apreciar e decidir.
§ 5 – Para a devida apreciação do mérito da impugnação em apreço, julga-se útil recordar os critérios legais de apreciação da prova e as regras que condicionam a impugnação das decisões em matéria de facto, tendo por base um alegado erro de julgamento.
De jure
O erro notório na apreciação da prova integra um vício da decisão (artigo 410º, nº 2, al. c), do Código de Processo Penal), que só ocorre quando a convicção do julgador (fora dos casos de prova vinculada) for inadmissível, contrária às regras elementares da lógica ou da experiência comum.[6]
Deve assim tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Trata-se de um vício de decisão e não de julgamento que, enquanto subsistir, não permite que a causa seja decidida.
Recorda-se, ainda, que não existe tal erro quando a convicção da julgadora tiver sido plausível, ou possível, embora pudesse ter sido outra. A valoração da prova produzida em julgamento é realizada de acordo com a regra geral prevista no art. 127º do Código de Processo Penal, segundo a qual o tribunal forma livremente a sua convicção, estando apenas vinculado às regras da experiência comum e aos princípios estruturantes do processo penal - nomeadamente ao princípio da legalidade da prova e ao princípio in dubio pro reo -.
Esta regra concedeu à julgadora uma margem de liberdade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Essa liberdade não é, pois – de todo - absoluta, estando condicionada pela sua prudente convicção e temperada pelas regras da lógica e da experiência. A formação dessa convicção não se resume, pois, a uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, exigindo uma atividade intelectual de análise crítica da prova baseada nos critérios legais, beneficiando da imediação com a prova e tendo sempre presente que a dúvida inultrapassável fará operar o princípio in dubio pro reo. Tal impossibilitou que a julgadora pudesse formar a sua convicção de um modo puramente subjetivo e emocional.
Para os cidadãos – e os Tribunais superiores – poderem controlar a formação dessa convicção, o nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal exige que a sentença deverá conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal”, podendo o rigor dessa fundamentação ser aferido, também, com recurso à documentação da prova. Como decorre claramente da fundamentação da decisão da matéria de facto, acima reproduzida, a sentença recorrida satisfez plenamente tais exigências, podendo, por conseguinte, ser sindicada a convicção do Tribunal a quo em relação às provas produzidas em julgamento.
Tal fundamentação permitiu aos recorrentes impugnar o processo de formação da convicção da julgadora, e este Tribunal só poderia revogar a decisão da matéria de facto recorrida, se tal convicção não tivesse sido formada em consonância com as regras da lógica e da experiência comum na análise dos meios concretos de prova produzidos em julgamento, o que poderia ser aferido com base na análise da fundamentação da decisão e verificação da sua conformação, ou não, com a prova produzida em julgamento.
Porém, os recorrentes optaram por não impugnar a decisão da matéria de facto por essa vertente, prevista no artigo 412º, 3, do CPP, impedindo este Tribunal de apurar um eventual erro de julgamento mediante a reapreciação da prova documentada nos autos – e, por isso, todo o labor de análise da prova concreta produzida em julgamento, vertida no parecer, não poderá ser considerado na apreciação do alegado erro notório da apreciação da prova, o qual apenas pode ser aferido com base na análise do texto da fundamentação da sentença [art. 410º, 2, c), do CPP] -.
Os recorrentes discordam da conclusão vertida na sentença, segundo a qual o Tribunal não conseguiu determinar se o arguido não evitou o embate porque se distraiu, porque adormeceu ou porque, por qualquer razão, perdeu a consciência.
Efetivamente, ao proceder à análise crítica da prova na fundamentação da sentença foi referido o seguinte – destacando-se a negrito as passagens mais relevantes que evidenciam a ratio decidendi - que “estamos perante um acidente que, dadas as circunstancias em ocorreu, tinha tudo para não acontecer.
Desde logo, a visibilidade do veiculo pesado em que o arguido veio a embater, a existência de duas faixas de rodagem à esquerda que podiam ter sido ocupadas pelo veiculo do arguido, o local configurar uma recta extensa, com boa visibilidade e a circunstancia do arguido ser experiente na condução (participando em competições).
Daí ser válido questionar o que terá provocado o embate. Poder-se á especular se o arguido circulava distraído, ou por estar a conversar com a vÍtima, a manusear o telemóvel, a procurar uma estação de rádio, ou até se teria adormecido ou ter sofrido uma perda de consciência, como o próprio alega.
O certo é que tal não foi possível apurar. O arguido referiu não ter memória dos factos. O depoimento da irmã e mãe da vitima, que assistiram ao embate, embora esclarecedor quanto à dinâmica do mesmo, não contribuem para o apuramento da causa respectiva.
E do visionamento das imagens do sinistro é possível verificar que, pelo menos durante sete segundos, o arguido teria de estar a conduzir sem atenção à estrada.
Ora, a signatária, ao circular de veiculo automóvel, conduzido por si, no local em que ocorreu o acidente, e aproveitando a inexistência de transito à sua frente, tentou vivenciar a experiencia de desviar o olhar da estrada, o que apenas conseguiu durante não mais do que três segundos, pois a sensação é de total perda de controlo do veiculo. No acto de conduzir, estes sete segundos, duram outro tempo, mais longo.
No caso, tratam-se de sete segundos, pelo menos, sendo certo que o arguido sempre seria alertado pela acentuada sinalização luminosa do pesado em que embateu, visto ser de noite e não ter como não ver tal obstáculo à sua frente, até pelo contraste com o local, como se retira das imagens captadas.
Por outro lado, o facto de ter sido accionado o sistema automático de travagem do veiculo, após o embate, aponta no sentido do arguido não ter esboçado nenhuma reacção ou tentativa de realizar uma manobra evasiva até à sua ocorrência.
Aqui chegados, permanece a duvida quanto à causa do embate.
E, por isso, não pode o Tribunal deixar de resolver tal duvida, que é inultrapassável, a favor do arguido, como acima se expôs, em obediência ao princípio “in dubio pro reo”.”
No entender dos recorrentes, ocorreu um erro notório na apreciação a prova, por resultar da decisão recorrida que o arguido, aquando da prestação das suas declarações, “Referiu ainda que não acusava cansaço, visto que nesse dia não trabalhou, tendo sido dedicado para tratar de assuntos relacionados com o casamento” (o que corresponde à verdade) – concluindo os recorrentes que, por isso, deve ser logo afastada a hipótese do arguido ter adormecido enquanto conduzia o veículo acidentado, pois, segundo também descrito na mesma fundamentação:
a) o arguido declarou que se encontrava plenamente consciente momentos antes do embate, recordando-se da chamada telefónica ocorrida entre a vítima e a assistente e do sinal de luzes que a testemunha GG, que seguia numa outra viatura, atrás da sua, lhe fez;
b) a propósito do momento posterior ao embate, a assistente terá relatado que “o banco do condutor, aqui arguido, estava “direitinho”;
c) a testemunha DD, condutor do veículo pesado, “Relatou ainda que o arguido lhe pediu para ligar ao seu pai, o que fez e falou na ocasião com o pai do arguido, dando-lhe a notícia do acidente”;
Concluem, assim, que o arguido se encontrava plenamente consciente logo a seguir ao embate, tendo saído do veículo sozinho, pelo seu próprio pé, conversado com a sobredita testemunha e lembrado o número de telemóvel do seu pai.
Do exposto, os assistentes concluem que o embate ocorreu por motivo de distração do arguido.
Para aferir, de forma fundamentada, o mérito da tese do recurso, começa-se por recordar a factualidade pacificamente considerada provada:
“No dia 19.6.2019 pelas 00h08, DD conduzia o veículo categoria pesado de mercadorias, com a matrícula ..-..-UI, na ..., no sentido de marcha Norte/Sul, localidade de ..., ... e transportava como passageiro EE.
Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido CC conduzia atrás, o veículo categoria ligeiro de passageiros com a matrícula ..-UN-.. e transportava consigo, como passageira no banco da frente, FF, nascida em ../../1990.
O veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-..-UI circulava pela via da direita, carregado com carcaças de porco, a uma velocidade de 35 km/h e estava visível.
Durante a aproximação ao veículo de mercadorias, o arguido CC não travou, nem fez qualquer manobra evasiva, até colidir com a frente direita do veículo que conduzia contra a traseira esquerda do veículo pesado de mercadorias ao km 18,730.
No momento da colisão, os travões do veículo conduzido pelo arguido CC foram accionados por sistema automático da viatura.
Da colisão resultou a rotação da traseira do veículo ligeiro conduzido pelo arguido para o lado esquerdo e a consequente imobilização na berma.
Em consequência do acidente, FF sofreu ferimentos, foi assistida pelo INEM no local e posteriormente transportada para o Hospital ... no Porto.
FF, não resistiu aos ferimentos e acabou por falecer pelas 13h05 do mesmo dia.
A morte de FF, foi devida a lesões traumáticas crâniomeningo-encefálicas, melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 158 a 160, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido e integrado, para todos os efeitos legais, as quais foram causa directa, necessária e adequada da respectiva morte.
Na zona do acidente a faixa de rodagem tem três vias no mesmo sentido, em asfalto betuminoso e em bom estado de conservação.
Tem bermas delimitadas e marcas rodoviárias bem visíveis.
O local onde ocorreu o acidente é uma curva larga à direita, apresentando a faixa de rodagem a largura de 11 metros, com inclinação ascendente, sendo no local do acidente a inclinação de 8,8%.
As condições atmosféricas eram boas, não chovia, nem fazia nevoeiro.
O arguido tinha, pelo menos 200 metros de visibilidade para a sua frente.
A colisão ocorreu na via da direita.”
Por outro lado, o tribunal da primeira instância considerou não provados os seguintes factos:
a) O arguido CC circulou de forma desatenta, não vendo atempadamente o veículo que se encontrava na sua via de circulação e não efectuou qualquer manobra para evitar o embate e seguiu a marcha até à colisão.
b) O arguido, teve uma condução descuidada e imprevidente e, nas circunstâncias de tempo e lugar supra mencionadas, incorrendo, ao assim proceder, na violação das regras estradais que era capaz de observar, que lhe era exigível e que estava ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências da sua conduta.
c) O arguido devia travar ou mudar de direção para outra faixa, por forma que da sua realização não resultasse perigo.
d) O arguido CC não adequou a sua condução à via em que seguia, não agindo com o zelo e diligência com que devia e podia actuar na condução, nomeadamente adequando a velocidade ao espaço livre, visível e disponível à sua frente de modo a evitar a colisão e cuja violação foi causal do acidente em apreço e da morte de FF.
e) Ao arguido era-lhe previsível, que, como resultado da supra referida conduta, o veículo que conduzia pudesse vir a embater num outro veículo.
f) O arguido CC não previu, mas devia, que da sua conduta poderia resultar, como resultou, a morte da passageira.
g) O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
h) No momento do embate e nos instantes que imediatamente o antecederam, o arguido CC não tinha qualquer consciência nem capacidade de direção efectiva do veículo.
i) A travagem após o embate foi acto reflexo inconsciente, alheio à vontade do arguido.
Ora, os assistentes recorrentes identificam o erro notório na apreciação da prova, precisamente, em relação aos factos considerados não provados sob as alíneas a) a g).
Como já se explicou, o erro notório na apreciação da prova deve emergir do próprio texto da decisão, razão pela qual se torna necessário revisitar a respetiva fundamentação e proceder à sua análise à luz das regras da experiência comum:
“(…) Quanto aos factos não provados, tal resulta da circunstância de analisados conjugadamente os meios de prova constantes dos autos e produzidos em audiência, não ser possível ao tribunal formar um juízo de certeza sobre os factos enunciados em a) a g) dos factos não provados.
Assim, a total nebulosidade da situação, levou a que não se resolvesse o ponto mais importante da matéria de facto.(…)”
(…)
Recorda-se, nesta parte, que o reenvio parcial determinado por este Tribunal se deveu ao seguinte:
“Tratando-se de uma conduta negligente – ninguém colocou sequer a possibilidade de se tratar de uma conduta dolosa do arguido – as regras de experiência comum evidenciam que o arguido não estava a olhar para a frente do seu veículo ou a estar atento e reativo ao que observava durante um espaço de tempo significativo – fazendo cálculos matemáticos elementares com os dados disponíveis (o veículo de mercadorias seguia a velocidade inferior ao limite mínimo legal, ao circular a 35 km/h, o veículo automóvel seguiria até um máximo de 120km/h e o veículo pesado de mercadorias era visível a 200 metros), o arguido teve, pelo menos, cerca de 7 segundos para ver o camião a circular na mesma faixa de rodagem e sentido de marcha, mais devagar, à sua frente -, .
As hipóteses concretas (atos concretos que prejudicaram o exercício da condução com segurança) que podem explicar o resultado típico do crime de homicídio por negligência (a morte da vítima - no caso, a noiva do arguido que seguia como passageira no veículo conduzido pelo próprio -) são diversas e a causa concreta que levou à violação da regras estradais não foi apurada. Lida a sentença, conclui-se não ter sido apurada a razão concreta pela qual o arguido embateu no veículo pesado de mercadorias que seguia à sua frente a velocidade muito mais reduzida.
Concretizando:
a) por exemplo, se o arguido adormeceu no exercício da condução, a sua negligência não é consubstanciada pelo adormecimento, mas por conduta anterior, quando o arguido se apercebeu de que estava com sono e, mesmo assim, insistiu em conduzir; ou
b) se o arguido desviou o seu olhar da estrada durante cerca de sete segundos, olhando por exemplo para o écran do seu telemóvel, para uma aplicação de GPS, ou para a sua noiva, foi esse desvio de olhar que consubstanciou a imprudência causadora da colisão e, por conseguinte, a conduta criminosa negligente.
Tem relevância jurídica, designadamente quanto ao grau de negligência na autoria do crime, apurar a conduta negligente concreta que resultou na morte da vítima, sendo certo que tal é relevante, inclusivamente, para a escolha e medida da pena.
É certo que nem sempre é possível apurar em julgamento todos os factos relevantes para a determinação da responsabilidade penal concreta. Porém, existe um dever do tribunal tentar averiguar os mesmos, pois constituem objeto da prova “todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis” (artigo 124º, nº 1, do Código de Processo Penal) e o tribunal “ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa” (artigo 340º, nº 1, do mesmo texto legal. (…)”
Porém, não obstante a factualidade considerada provada, o tribunal entendeu não se ter provado qualquer conduta negligente do arguido, o que determinou que considerasse não provados os factos das alíneas a) a f).
Para tanto, explicou o seguinte:
“Ora, tendo o Tribunal dúvidas insanáveis acerca da verificação dos factos constantes da acusação ou acerca dos factos integrantes de uma causa de exclusão de ilicitude, impõe-se a aplicação ao caso concreto do princípio “in dubio pro reo”.
(…)
Revertendo ao caso dos autos, temos que estamos perante um acidente que, dadas as circunstancias em ocorreu, tinha tudo para não acontecer.
Desde logo, a visibilidade do veiculo pesado em que o arguido veio a embater, a existência de duas faixas de rodagem à esquerda que podiam ter sido ocupadas pelo veiculo do arguido, o local configurar uma recta extensa, com boa visibilidade e a circunstancia do arguido ser experiente na condução (participando em competições).
Daí ser válido questionar o que terá provocado o embate. (…)”
No entanto, contrariamente a tal entendimento, a decisão evidencia, de forma clara – à luz das regras de experiência comum – o que sucedeu na verdade.
Como ficou explicitado no acórdão que procedeu ao reenvio, o arguido agiu com negligência, como já tinha resultado da factualidade provada no julgamento anterior – factos que se mantiveram provados na sequência do reenvio parcial -.
Como referido, o reenvio destinou-se a apurar factos com relevância jurídica,” designadamente quanto ao grau de negligência na autoria do crime, apurar a conduta negligente concreta que resultou na morte da vítima, sendo certo que tal é relevante, inclusivamente, para a escolha e medida da pena.”
Tendo procedido ao julgamento com o objeto acima definido, a juíza procurou, como determinado, apurar a factualidade concreta integrante de tal conduta / condução negligente, tendo explicado que “(…) Poder-se á especular se o arguido circulava distraído, ou por estar a conversar com a vitima, a manusear o telemóvel, a procurar uma estação de rádio, ou até se teria adormecido ou ter sofrido uma perda de consciência, como o próprio alega. O certo é que tal não foi possível apurar. O arguido referiu não ter memória dos factos. O depoimento da irmã e mãe da vitima, que assistiram ao embate, embora esclarecedor quanto à dinâmica do mesmo, não contribuem para o apuramento da causa respectiva. E do visionamento das imagens do sinistro é possível verificar que, pelo menos durante sete segundos, o arguido teria de estar a conduzir sem atenção à estrada.[7] No caso, tratam-se de sete segundos, pelo menos, sendo certo que o arguido sempre seria alertado pela acentuada sinalização luminosa do pesado em que embateu, visto ser de noite e não ter como não ver tal obstáculo à sua frente, até pelo contraste com o local, como se retira das imagens captadas. Por outro lado, o facto de ter sido accionado o sistema automático de travagem do veiculo, após o embate, aponta no sentido do arguido não ter esboçado nenhuma reacção ou tentativa de realizar uma manobra evasiva até à sua ocorrência. Aqui chegados, permanece a duvida quanto à causa do embate. E, por isso, não pode o Tribunal deixar de resolver tal duvida, que é inultrapassável, a favor do arguido, como acima se expôs, em obediência ao principio in dúbio pro reo.”
No entanto, salvo o devido respeito pelo esforço manifestado na decisão no sentido de apurar de forma mais detalhada o sucedido, a sua fundamentação evidencia, pelas regras de experiência comum que tais conclusões não são razoáveis à luz das regras de experiência comum.
Concretizando.
Das declarações do arguido citadas na fundamentação resulta que o mesmo transmitiu ao tribunal, em suma:
a) lembrar-se de ter entrado na autoestrada, da sua noiva ter telefonado à mãe para saber a localização do carro em que seguia, de ter abrandado a sua marcha, mantendo-se à direita, para que aquele os alcançasse, de ter visto os sinais de luzes efetuados pelo veículo da irmã da sua noiva, quando o alcançou e de ter conversado com a sua noiva sobre o casamento;
b) de não se lembrar de ter visto o veículo que circulava à sua frente.
Ora, o arguido declarou que as suas memórias seriam apenas de momentos posteriores ao sinistro, mas isso foi infirmado pelas suas próprias declarações, ao descrever o sucedido acima reproduzido na alínea a) e, de algum modo, o descrito na alínea b), pois se o arguido tivesse adormecido ao volante, com o cruise control ligado (para explicar a estabilização da velocidade do carro, que foi confirmada na fundamentação da sentença), o mesmo ter-se-ia apercebido disso imediatamente no momento da colisão e, naturalmente, revelado ao motorista do camião, a quem pediu o telemóvel emprestado para telefonar ao seu pai, bem como lembrado em julgamento – o que o arguido negou, ao dizer apenas se recordar do descrito nas duas alíneas já referidas.
De resto, de acordo com a fundamentação da decisão, o arguido afastou também implicitamente a possibilidade de ter adormecido ou perdido os sentidos ao volante, declarando que “não acusava cansaço, visto que nesse dia não trabalhou, tendo sido dedicado para tratar de assuntos relacionados com o casamento”.
Ora, daqui se depreende que o arguido se encontra consciente no exercício da condução.
De resto, considerando a elevada distância a que o obstáculo – o veículo pesado de mercadorias - era claramente visível para o arguido, seguindo à sua frente, tendo o arguido, pelo menos, sete segundos para abrandar a sua marcha e/ou ultrapassá-lo por uma das duas faixas de rodagem situadas à esquerda, evitando desse modo a fatídica colisão, não resta outra explicação para o sucedido, senão o seguinte:
a) O arguido CC circulou de forma desatenta, não vendo atempadamente o veículo que se encontrava na sua via de circulação e não efectuou qualquer manobra para evitar o embate e seguiu a marcha até à colisão.
b) O arguido, teve uma condução descuidada e imprevidente e, nas circunstâncias de tempo e lugar supra mencionadas, incorrendo, ao assim proceder, na violação das regras estradais que era capaz de observar, que lhe era exigível e que estava ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências da sua conduta.
c) O arguido devia travar ou mudar de direção para outra faixa, por forma que da sua realização não resultasse perigo.
d) O arguido CC não adequou a sua condução à via em que seguia, não agindo com o zelo e diligência com que devia e podia actuar na condução, nomeadamente adequando a velocidade ao espaço livre, visível e disponível à sua frente de modo a evitar a colisão e cuja violação foi causal do acidente em apreço e da morte de FF.
e) Ao arguido era-lhe previsível, que, como resultado da supra referida conduta, o veículo que conduzia pudesse vir a embater num outro veículo.
f) O arguido CC não previu, mas devia, que da sua conduta poderia resultar, como resultou, a morte da passageira.
g) O arguido agiu de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Obviamente, tratando-se de uma condução negligente, a sua conduta não foi deliberada, ou seja voluntária, no sentido etimológico do termo.
O tribunal da primeira instância procurou, e bem, investigar a causa concreta pela qual o arguido estava desatento na sua condução, tal como determinado pelo acórdão que determinou o reenvio parcial.
Não tendo apurado essa causa concreta – e estando afastado, pelas razões já explicitadas, que o arguido tenha perdido a consciência, por razões não culposas, no exercício da condução -, o tribunal não podia concluir que o arguido não circulou de forma desatenta, descuidada e imprevidente, pois tal resulta, inequivocamente da fundamentação da decisão à luz das regras de experiência comum
Importa ainda referir que a alínea c) dos factos não provados se encontrava em manifesta contradição com o facto provado 4 (um vício da decisão de conhecimento oficioso, nos termos do art. 410º, 2, b), do CPP), transitando, também por essa via, para os factos provados.
Por tudo quanto ficou exposto, transita para a factualidade provada, nos termos do disposto nos artigos 410º, 2, b) e c) 426º, 1, a contrario, e 431º, corpo, do CPP, o seguinte:
a) O arguido CC circulou de forma desatenta, não vendo atempadamente o veículo que se encontrava na sua via de circulação e não efectuou qualquer manobra para evitar o embate e seguiu a marcha até à colisão.
b) O arguido, teve uma condução descuidada e imprevidente e, nas circunstâncias de tempo e lugar supra mencionadas, incorrendo, ao assim proceder, na violação das regras estradais que era capaz de observar, que lhe era exigível e que estava ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências da sua conduta.
c) O arguido devia travar ou mudar de direção para outra faixa, por forma que da sua realização não resultasse perigo.
d) O arguido CC não adequou a sua condução à via em que seguia, não agindo com o zelo e diligência com que devia e podia actuar na condução, nomeadamente adequando a velocidade ao espaço livre, visível e disponível à sua frente de modo a evitar a colisão e cuja violação foi causal do acidente em apreço e da morte de FF.
e) Ao arguido era-lhe previsível, que, como resultado da supra referida conduta, o veículo que conduzia pudesse vir a embater num outro veículo.
f) O arguido CC não previu, mas devia, que da sua conduta poderia resultar, como resultou, a morte da passageira.
g) O arguido agiu de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

3º Das consequências jurídicas da alteração da decisão da matéria de facto
A alteração da decisão da matéria de facto impõe a este Tribunal Superior que decida as respetivas consequências jurídicas, determinando, se for o caso, a pena concreta correspondente, à luz da doutrina subjacente ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 93/02.6TAPTB-G1-A.S1, de 21 de Janeiro de 2016, publicado no Diário da República, Série I-A, de 22 de Fevereiro de 2016 e tendo sempre presente os termos da condenação proferida na primeira decisão condenatória proferida na primeira instância e a proibição da reformatio in pejus prevista no art. 409º do CPP.
De jure
A - Da tipificação da conduta do arguido
O arguido encontrava-se pronunciado pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, n.º 1, do Código Penal, por referência à infração rodoviária contraordenacional, prevista e punida no art. 11º, n.º 2, do Código de Estrada e tendo presente o disposto no artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, que prevê a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.
Tratando-se de um crime negligente, resulta dos factos provados que o arguido não procedeu “com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, para evitar a realização de um facto típico” (artigo 15° do Código Penal), juízo que envolve conceitos como os da previsibilidade, capacidade e evitabilidade, fulcrais na compreensão e análise da categoria da negligência, como forma de culpa, enquanto defeito de atitude interna, objeto de censura penal.
Na previsibilidade, como limite inferior, encontra-se o mínimo necessário que demarca a fronteira do caso fortuito e o nullum crimen.
O mesmo é dizer que as especificidades do caso concreto são essenciais na aferição da responsabilidade penal do arguido desde a própria existência de crime, até à escolha e medida da pena, dependendo, neste caso, do grau de violação do dever de cuidado.
Tratando-se de um crime rodoviário, cometido no exercício da condução, tal violação dos deveres de cuidado está relacionada com a violação de regras estradais.
A regra estradal violada pelo arguido, na lógica da acusação e do despacho de pronúncia, descreve uma regra genérica de cuidado, de modo a assegurar o exercício da condução em segurança:
“Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança.” (artigo 11º, nº 2, do Código da Estrada)
De resto, no primeiro julgamento também resultou da sentença a citação de outras regras estradais pertinentes:
“1 - O condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis.”
(artigo 18º, nº 1, do Código da Estrada)
“1 - O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”
(artigo 24º, nº 1, do Código da Estrada)
Resulta da factualidade provada – e da análise crítica da prova produzida na sentença - que o arguido conduziu um automóvel, embatendo na traseira de um veículo pesado de mercadorias que seguia mais devagar à sua frente na autoestrada, na mesma faixa de rodagem e no mesmo sentido de marcha, quando este último era visível a cerca de duzentos metros. Isto, sem esboçar a menor travagem, nem tentativa de ultrapassagem. Não regulou a sua velocidade, assim, tendo em consideração a sua aproximação rápida ao veículo pesado que o precedia na autoestrada.
Tratando-se de uma conduta negligente – ninguém colocou sequer a possibilidade de se tratar de uma conduta dolosa do arguido – as regras de experiência comum evidenciam que o arguido não se encontrava a olhar para a frente do seu veículo ou a estar atento e reativo ao que observava durante um espaço de tempo significativo – durante cerca de sete segundos - para ver o camião a circular na mesma faixa de rodagem e sentido de marcha, mais devagar, à sua frente, conforme referido na fundamentação da sentença recorrida.
Não tendo tido esse cuidado básico na condução automóvel, o arguido só se apercebeu da presença do veículo pesado de mercadorias que seguia à sua frente quando colidiu com o mesmo e, nesse momento, foi o sistema automático de travagem de emergência que acionou os travões – e não o arguido -.
Não resta outra solução, senão concluir que o arguido se comportou de forma negligente no exercício da condução estradal, violando – por omissão - as mais básicas regras atinentes à distância entre veículos e à adequação da velocidade – mais precisamente, no caso, redução da velocidade e/ou realização de manobra de ultrapassagem, tendo em conta que à sua frente, encostado à berma, transitava um camião em marcha excecionalmente lenta - comportamento esse que se terá de considerar causal do acidente.
Na realidade, o arguido circulava, sem excesso de velocidade diga-se, na via mais à direita da faixa de rodagem da autoestrada que, no local, era composta por três vias de circulação e tinha a largura total de 11 metros, desenvolvendo-se em curva larga à direita.
Na mesma via de circulação, transitava à frente do arguido o referido camião de caixa fechada, carregada, numa subida ligeira, a cerca de 35 kms/h.
As condições atmosféricas, de piso e de circulação eram ótimas e o arguido tinha, pelo menos 200 metros de visibilidade para a sua frente em via larga com ligeira inclinação ascendente, sendo o veículo pesado perfeitamente visível.
Apesar disso, o arguido manteve a sua trajetória e não abrandou a marcha de forma a evitar a colisão, que, nas circunstâncias em que o arguido se encontrava, podia e devia ter evitado, comportamento omissivo esse que se terá de considerar causal do acidente: não há a menor dúvida, perante os factos provados, que o arguido não observou as regras de cuidado na circulação rodoviária que se impunham no caso concreto, desde logo, o já enunciado dever objectivo de transitar atento à presença de quem ali também circulava.
No entanto, apesar da morte da vítima se dever à conduta – condução – negligente do arguido, logo culposa, importa ter presente que existiu um concurso de culpas na produção do acidente - podendo atribuir-se ao motorista do veículo pesado de mercadorias embatido uma percentagem muito reduzida na produção do acidente, por se encontrar nessa altura a circular à velocidade de 35 kms/h na autoestrada, o que violou a regra estradal prevista no art. 27º, 6, do Código da Estrada, que impõe uma velocidade mínima de 50 kms/h nas autoestradas, sendo certo que um aumento da sua velocidade teria permitido ainda mais tempo ao arguido para se dar conta da aproximação ao veículo da frente e diminuído a força do embate verificado na colisão, por ser necessariamente menor a diferença de velocidades entre as duas viaturas.
Na verdade, o dever objectivo de cuidado imposto no caso ao arguido passava, desde logo, por este conduzir atento à presença de outro(s) veículo(s) na faixa de rodagem, designadamente na via da direita onde também transitava, a fim de prevenir o risco de colisão.
Em face do exposto, conforme exarado na primeira sentença proferida na primeira instância, “a conduta do arguido é desconforme às regras de circulação estradal previstas nos já citados art. 11º, nº2, 18º, nº1 e 24º, nº1, do Código da Estrada.
Acresce que tal comportamento estradal, de violação grave de contraordenação rodoviária, encontra-se em nítida conexão causal com a ocorrência do sinistro.
Na verdade, uma pessoa (condutor) médio colocado nas condições em que o arguido se encontrava podia prever, como sendo altamente provável, que do seu comportamento – desatenção à ocupação da via onde seguia por veículo pesado de mercadorias, sem consideração pelos utentes que ali circulassem - resultaria o embate do seu veículo com o que quer que estivesse naquele momento ali a transitar, nomeadamente o aludido veículo pesado.
Foi tal previsão que o arguido não fez, apesar de ter consciência de todos os dados objetivos que lhe permitiam chegar a essa conclusão.
Nenhuma dúvida se oferece, de facto, quanto à capacidade de previsão do arguido de todo o mencionado circunstancialismo, nem tão-pouco, suscita incerteza a ocorrência do resultado morte, bem como o nexo de causalidade entre ele e a omissão do dever de cuidado, uma vez que ficou provado que foi em consequência da conduta levada a cabo pelo arguido que resultou para a ofendida tal resultado.
Agiu, pois, o arguido com negligência, uma vez que podia ter previsto, nas condições em que se encontrava, que na via em que seguia podia circular outro utente da estrada, designadamente o camião que circulava à sua frente, em marcha lenta, e que, não abrandando a marcha ou encetando manobra evasiva para a esquerda na largura livre da faixa de rodagem, resultaria o embate no(s) veículo(s), nomeadamente pesado de mercadorias, que ali circulasse(m) e que deste embate, necessariamente decorreriam lesões graves para o(s) seu(s) tripulante(s), do género das que vieram a sobrevir para a vítima e que determinaram a morte desta.”
Nestes termos, encontra-se preenchido o tipo legal de crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, nº 1 do Código Penal, com referências às normas estradais acima enunciadas, tendo ainda presente o disposto no artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
Como existiu um concurso de culpas, nos termos acima enunciados, a negligência é simples e não grosseira, não chegando assim a preencher o tipo previsto no número 2 do art. 137º do Código Penal.
*
B – Da medida da sanção penal
Como ensinado por Figueiredo Dias [8], “a determinação definitiva da pena é alcançada pelo Juiz da causa através de um procedimento que decorre em três fases distintas: na primeira, o Juiz investiga e determina a moldura aplicável ao caso; na segunda, o Juiz investiga e determina, dentro daquela moldura legal a medida concreta da pena que vai aplicar; na terceira, o Juiz escolhe a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida.”
A pena principal prevista para o crime de homicídio por negligência é de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
De harmonia com o disposto no art.70º do Código Penal (CP), entre uma pena privativa e outra não privativa da liberdade, o tribunal deve dar preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Estas encontram-se previstas no art. 40º/CP: as penas visam “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
As exigências de prevenção geral são algo elevadas, tendo em conta a sinistralidade rodoviária verificada em Portugal[9], não obstante a evolução positiva verificada nas duas últimas décadas e tendo em conta as circunstâncias que rodearam a prática da infração - e de ter resultado a morte de uma pessoa jovem, com 28 anos de idade, que em nada terá contribuído para o desfecho da colisão -.
Porém, as preocupações de reintegração do agente na sociedade são muito diminutas, pois o crime constituiu um ato isolado – e, diga-se, extremamente traumatizante, uma vez que a vítima foi a sua noiva - na vida do arguido, não tendo o mesmo quaisquer antecedentes criminais nem contraordenacionais estradais, sendo titular de licença de condução automóvel desde 18 de Fevereiro de 2009. A morte da vítima do crime – por si cometido por negligência simples - deixou-lhe sequelas psíquicas significativas, que careceram de intervenção terapêutica. A sua educação e percurso profissional diferenciados também evidencia um modo de vida perfeitamente estabilizado e responsável.
Atento o exposto, conclui-se que a aplicação de uma pena de multa será suficiente e adequada a corresponder às supra elencadas finalidades da punição.
Isto não significa qualquer atenuação da gravidade das consequências do crime – a violação do bem jurídico mais precioso (a vida) de uma jovem, muito querida pelos seus familiares e pelo próprio arguido, seu noivo -, mas o reconhecimento que as preocupações de prevenção especial serão muito diminutas no caso concreto, sendo justamente, também, para este tipo de situações que o legislador previu a pena de multa para sancionar um crime de homicídio por negligência. Além do concurso de culpas na produção da morte da vítima, também importa ter presente que o arguido não conduziu sob a influência de álcool, não circulou em excesso absoluto de velocidade e não efetuou, deliberadamente, uma condução perigosa, como por vezes sucede noutros crimes rodoviários.
Além do mais, as sequelas psíquicas sofridas pelo arguido, em resultado da perda da vida da sua noiva, da qual é responsável, terão um efeito preventivo especial maior do que, quase, qualquer sanção penal.
Por conseguinte, o crime é punido com uma pena principal de multa até 360 dias.
A determinação da medida concreta da pena, tendo em conta essa moldura, faz-se atendendo ao grau de culpa expresso nos factos e às exigências de prevenção geral e especial que, no caso, se mostrem relevantes, tomando em linha de conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o arguido.
Com efeito, de harmonia com o disposto no art. 71º n.º 1, do Código Penal, importa ponderar que a culpa constitui o limite inultrapassável da pena, atento o princípio de inviolabilidade da dignidade pessoal, e que a prevenção deve ser entendida num sentido positivo, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida[10].
Assim, é perfeitamente uniforme e pacífico o entendimento que ao sentido pedagógico e ressocializador das penas acresce a finalidade de restabelecer a confiança coletiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, sem que possa ser excedida a medida da culpa.
A este respeito não é indiferente que a finalidade das penas é “a protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade” (artigo 40º, n.º 1, do Código Penal) e que a determinação da sua medida combina os critérios da culpa e prevenção, cometendo àquela «a função (única, mas nem por isso decisiva) de determinar o limite máximo inultrapassável da pena à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida ótima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente[11].
A culpa e a prevenção são assim os dois parâmetros que norteiam a indagação da medida da pena, conforme resulta claro da estatuição do artigo 71º, n.º 1, do Código Penal.
Tal tarefa não se satisfaz com argumentos genéricos e abstratos, antes assentando numa concreta análise dos factos e personalidade do agente do crime, não só na sua expressão refletida no(s) crime(s), mas também, e sobretudo, avaliando o seu percurso evolutivo, quando conhecido, uma vez que “…o substrato da culpa, e portanto também o da medida da pena, não reside apenas nas qualidades do carácter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível…” mas reside, isso sim, “…na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizada naquilo que chamamos a atitude da pessoa perante as exigências do dever-ser”[12].
Quanto à pena consonante com a culpa revelada, tal fará com que a sanção corresponda à pena que o agente do crime merece, ou seja, corresponda à gravidade do crime. Só assim se consegue a finalidade político-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade.
Observados tais critérios, para a determinação da pena concreta, o tribunal deverá atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depuserem a favor ou contra o agente, por força do disposto no nº 2 do mesmo artigo, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa.
As referidas circunstâncias relevantes podem ser agrupadas em três grupos fundamentais:
a) fatores relativos à execução do facto [alíneas a), b) e c) do nº 2 do art. 71º do Código Penal – grau de ilicitude do facto, modo de execução, grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade da culpa e sentimentos manifestados e fins determinantes da conduta], sendo de destacar o grau de violação de várias regras estradais – fator agravante da pena de elevada eficácia – e, a favor do arguido, como atenuantes de média eficácia, a circunstância do grau de negligência na prática do crime ser simples e existir um concurso de culpas com o motorista do veículo pesado de mercadorias na produção da morte – fatores atenuantes da pena dotado de reduzida eficácia, uma vez que este último pouca responsabilidade teve no evento -; e
b) fatores relativos à personalidade do agente [alíneas d) e f) do mesmo nº 2 – as condições pessoais, sociais e económicas do agente, na perspetiva de que isso aumenta ou diminui as preocupações de prevenção especial, sendo a factualidade apurada favorável ao arguido, configurando atenuante de média eficácia, por se tratar de uma pessoa com uma educação e profissão diferenciada, sem antecedentes criminais e contraordenacionais, não obstante ser titular de licença de condução há muitos anos;
Valorando os fatores acima descritos, considera-se ajustada uma de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa.
Da taxa diária de multa
Quanto ao montante diário da multa, importa ter presente o critério legal que exige uma ponderação da situação económico-financeira do arguido, tendo em conta o critério enunciado no nº 2 do artigo 47º do Código Penal:
"Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre (euro) 5 e (euro) 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais."
A este respeito, provou-se que o arguido aufere da atividade que exerce na empresa A..., um salário médio de €1700 líquidos, valor ao qual se acrescem condições laborais e benefícios extra que constituem uma mais-valia à sua condição financeira, onde se incluem, entre outras, carro próprio e habitação. O arguido reside, em agregado unifamiliar, em apartamento tipologia 3, correspondente à morada dos autos, inserida em condomínio privado, associado a estrato socioeconómico elevado.
Assim sendo, considera-se ajustada uma taxa diária de 20€ (vinte euros).
Da sanção acessória
Como já se referiu, tendo cometido um crime de homicídio por negligência no exercício da condução de veículo automóvel, o arguido também se encontra sujeito a uma pena acessória, por força do disposto no artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, que prevê a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor:
1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor ou na proibição de pilotar aeronaves com ou sem motor, consoante os casos, por um período fixado entre 3 meses e 3 anos quem for punido:
a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos, no exercício da condução de veículo com motor (…), com violação das regras de trânsito rodoviário (…);”
A determinação da medida concreta da pena acessória é efetuada de acordo com os critérios gerais utilizados para a fixação da pena principal, enunciados no art. 71º do Código Penal [13], uma vez que depende da gravidade do ilícito e da culpa do agente do crime.
Dada a identidade de critérios para a determinação da medida concreta da pena principal e da pena acessória na respetiva determinação exigir-se-á, em princípio, uma certa proporcionalidade entre a definição da pena e da sanção acessória que cabem ao caso.
No entanto, como decidiu o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 667/94 de 14 de Dezembro [14], “a ampla margem de discricionariedade facultada ao juiz na graduação da sanção de inibição de conduzir, permite-lhe perfeitamente fixá-la, em concreto, segundo as circunstâncias do caso, desde logo as conexionadas com o grau de culpa do agente, nada na Lei Fundamental exigindo que as penas acessórias tenham que ter, no que respeita à sua duração, correspondência com as penas principais”.
Apesar da identidade de critério base para definição da medida concreta da pena principal e da pena acessória, importa considerar a natureza específica de cada uma delas (privação da liberdade, no caso da prisão ou natureza patrimonial no caso da multa, enquanto a pena acessória incide sobre a privação temporária do exercício da condução automóvel, no âmbito do qual foi praticado o crime em causa) bem como as finalidades próprias de cada uma delas, de modo a assegurar que a pena acessória aplicada em concreto se mostre ajustada às suas finalidades específicas no contexto dos fins das penas.
A este respeito, importa recordar que a pena acessória tem uma função preventiva adjuvante da pena principal, cuja finalidade não se esgota na intimidação da generalidade, mas dirige-se também, ao menos em alguma medida, à perigosidade do agente, reforçando e diversificando o conteúdo penal sancionatório da condenação [15].
Trata-se, inclusivamente, de medida na qual o legislador tem vindo a depositar expectativas acrescidas: após as alterações introduzidas no Código Penal pelo Decreto-Lei nº 48/95 de 15 de Março, esta pena acessória mereceu novamente a atenção do legislador através da Lei nº 77/2001, de 13 de Julho, que introduziu uma alteração significativa na estatuição do art. 69º do Código Penal, definindo com maior rigor o âmbito da sua aplicação e elevando o limite mínimo e o limite máximo (de 1 para 3 meses e de 1 para 3 anos, respetivamente), tendo subjacente fortes preocupações de prevenção geral no combate aos elevadíssimos índices de sinistralidade rodoviária verificados em Portugal.
Nestes termos, a determinação da pena acessória deve ser efetuada com base nos critérios gerais estatuídos no art. 71º do Código Penal, com a ressalva de que a finalidade a atingir pela mesma é mais restrita, na medida em que a sanção acessória tem em vista sobretudo prevenir a perigosidade do agente, ainda que se lhe reconheça, também, um importante efeito de prevenção geral [16].
A perigosidade do agente revela-se na gravidade do factos praticados, bem identificados na presente decisão.
A favor do arguido, importa ter presente que o mesmo ficou com sequelas psíquicas emergentes da morte da sua noiva – com efeito preventivo - e não tem quaisquer antecedentes criminais, nem contraordenacionais rodoviários, beneficiando ainda de uma formação, profissão e situação económico-laboral e social diferenciada.
Estes últimos factos diminuem de forma sensível as preocupações de prevenção especial, com média eficácia atenuante da pena acessória.
Atento o exposto, entende-se ser ajustada a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor durante 18 (dezoito) meses.
Importa, ora, decidir em conformidade.
*
Pelo exposto, o recurso dos assistentes merece provimento.
*
Das custas:
Sendo o recurso dos assistentes julgado provido com oposição do arguido, este deverá suportar o pagamento de custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta [artigo 513º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal].
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes subscritores, em conferência e por unanimidade, julgar provido o recurso dos assistentes e, em consequência:
a) alterar a decisão da decisão da matéria de facto, nos termos concretizados na fundamentação, que aqui se dão por reproduzidos, em resultado de erro notório na apreciação da prova, contradição na fundamentação e violação de caso julgado formal;
b) revogar a absolvição da pronúncia do arguido; e
c) condenar o arguido CC pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, n.º 1, do Código Penal, por referência às infrações rodoviárias contraordenacionais, previstas e punidas nos arts. 11º, n.º 2,18º, 1 e 24º, 1, do Código da Estrada e tendo presente o disposto no artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa à taxa diária de 20,--€ (vinte euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor durante 18 (dezoito) meses.

Custas do recurso a cargo do arguido, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, 13 de Novembro de 2024.
Jorge Langweg
Maria Dolores Silva e Sousa
Francisco Mota Ribeiro

[1] Em consequência, passou a considerar-se provado o seguinte: “No momento da colisão, os travões do veículo conduzido pelo arguido CC foram accionados por sistema automático da viatura”.
[2] Parecer emitido pela Procuradora-Geral Adjunta Dra. Teresa Morais.
[3] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[4] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[5] 11- O local onde ocorreu o acidente é uma curva larga à direita, apresentando a faixa de rodagem a largura de 11 metros, com inclinação ascendente, sendo no local do acidente a inclinação de 8,8%.
12- As condições atmosféricas eram boas, não chovia, nem fazia nevoeiro.
13- O arguido tinha, pelo menos 200 metros de visibilidade para a sua frente.
14- A colisão ocorreu na via da direita.
[6] Recorda-se que constituem características comuns a todos os vícios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 410°, n° 2, do Código de Processo Penal as seguintes:
a) de fundamentarem o reenvio do processo para outro julgamento quando insanáveis no tribunal de recurso (artigos 426° e 436° do C.P.P.); e
b) de resultarem do texto da decisão recorrida, sem influência de elementos exteriores àquela, a não ser as regras da experiência comum.
[7] Seguidamente, consta da fundamentação da decisão que “(…) a signatária, ao circular de veiculo automóvel, conduzido por si, no local em que ocorreu o acidente, e aproveitando a inexistência de transito à sua frente, tentou vivenciar a experiencia de desviar o olhar da estrada, o que apenas conseguiu durante não mais do que três segundos, pois a sensação é de total perda de controlo do veiculo. No acto de conduzir, estes sete segundos, duram outro tempo, mais longo.”.
Obviamente, esta passagem não constitui uma fundamentação admissível para uma decisão judicial, pois envolve a prática de uma produção de prova ilegal (reconstituição dos factos) à luz do disposto nos arts. 321º, 1, 340º, 2 e 355º, 1, todos do CPP, extraprocessual, à margem do julgamento, secreta, indocumentada e insindicável pelo Ministério Público, pelos assistentes, pelo arguido e por este Tribunal, não podendo pois valer em julgamento por não ter sido produzidas nem examinada em audiência.
[8] Direito Penal Português - Parte Geral II - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2009, a págs. 198
[9] No ano em que ocorreram os factos em discussão, comparativamente a 2018, verificou-se que o número de acidentes com vítimas aumentou 4% (mais 1.469), tendo reduzido em 9% o número de vítimas mortais (menos 49). Apesar da descida do número de vítimas mortais, os feridos graves subiram 9%, o equivalente a 173 pessoas, e os feridos leves aumentam 4% (+1.848). Em resultado da redução no número de vítimas mortais, o índice de gravidade reduziu de 2 mortos por cada 100 acidentes com vítimas em 2018, para 1,8 em 2019 (Fonte: http://www.ansr.pt/Estatisticas/RelatoriosDeSinistralidade/Documents/2019/Relat%C3%B3rio%20Anual%20Sinistralidade%20Rodovi%C3%A1ria%202019.pdf)
[10] É consabido que “O direito penal assenta no reconhecimento de que os homens podem ser influenciados nos seus comportamentos por normas e valores, especialmente quando se afigura provável a realização de umas e outras através do emprego da força. Ele pretende por isso, mediante o estabelecimento de linhas de conduta, cominações penais, aplicação e execução de penas, motivar o cidadão – tanto o potencial delinquente como as pessoas em geral – a observar aquelas normas cujo respeito é imprescindível para que os homens possam conviver em paz e liberdade. É da fundada expectativa que os homens, em regra, são levados pelo direito penal a comportarem-se de modo conforme aos imperativos legais que resultam, para uma sociedade, a paz e a segurança. Por isso, quando alguém viola as leis penais, provoca um abalar da consciência jurídica da generalidade das pessoas (e, com isso, o descontentamento e insegurança) que cessa quando as normas afirmam a sua validade através da punição do agente. Se os delitos permanecessem impunes, as normas perderiam largamente a sua força motivadora e a sociedade mergulharia cada vez mais na anarquia.” [Claus Roxin, conferência proferida em 11 de Abril de 1983, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, citado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22 de Junho de 2011 (processo nº 67/09.6GACHV.P1), relatado pela Desembargadora Dra. Maria Deolinda Dionísio].
[11] Citando a doutrina mais impressiva nesta matéria, nos escritos de Figueiredo Dias, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril/Dezembro 1993, pág. 186 e segs. e Anabela Rodrigues, no artigo “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, na mesma Revista, Ano 12, n.º 2 Abril/Junho de 2002, págs. 147/182.
[12] Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa, Direito Penal, Coimbra Editora, 1983, págs. 183 e 184.
[13] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção dos Direitos do Homem, 2ª edição atualizada, U.C.E., 2010, pág. 263, nota 1, Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, pena acessória e medidas de segurança, Universidade Católica, 1996, pág. 28 e Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 15ª ed., pág. 237.
[14] BMJ, 446º - Suplemento -, - 102.
[15] Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Ed. Aequitas/Editorial Notícias, 1993, §§ 88 e 232.
Ibidem, a págs. 164 e 165, refere, a propósito, o seguinte:
«(…) a necessidade e a urgência político-criminais de que o sistema sancionatório português passe a dispor – em termos de direito penal geral e não somente de direito penal da circulação rodoviária – de uma verdadeira pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados. Uma tal pena deveria ter como pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução, ou com utilização de veículo, ou cuja execução tivesse sido por este facilitada de forma relevante; e por pressuposto material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável(…)». E, quanto às finalidades da pena acessória em causa, «(…) se (…) o pressuposto material de aplicação desta pena deve ser que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa. Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano (…)».
[16] Neste sentido, entre muitos outros, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 6 de Março de 2012, relatado pela Desembargadora Dra. Alda Casimiro, no processo nº 282/09.2SILSB.L-5.