Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
48/21.1T8MCN.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOSÉ SIMÕES
Descritores: CABEÇA DE CASAL
PODERES DE ADMINISTRAÇÃO
DEPÓSITOS BANCÁRIOS
MOVIMENTAÇÃO DE CONTA BANCÁRIA
Nº do Documento: RP2022050448/21.1T8MCN.P1
Data do Acordão: 05/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A lei não define o conteúdo da administração a que se refere o citado artº 2079º do CCivil e que pertence ao cabeça de casal.
II - Por isso, há que apurar na doutrina se a movimentação de depósitos bancários da herança é um acto de disposição ou se, pelo contrário, é um acto de mera administração.
III - In casu, estamos perante um depósito bancário singular, em que o titular da conta é uma única pessoa, o de cujus.
IV - O acto de movimentação de depósito bancário, constitui um acto de mera administração, não envolvendo em si mesmo qualquer acto de disposição, no sentido comummente atribuído a estes relativo à afectação/alteração da sua substância, pois o levantamento de dinheiro depositado, só por si, não envolve a alteração ou composição e estrutura do património, uma vez que a “composição e estrutura” do dinheiro depositado numa conta bancária é, atenta a sua natureza fungível, necessariamente idêntica à do dinheiro à guarda do seu titular.
V - Assim, tendo sido confiado à cabeça de casal um património para administrar, nele se inclui naturalmente, o depósito bancário existente na instituição bancária ré, titulado pelo falecido pai da cabeça de casal, devendo esta poder movimentá-lo, até para poder prover às despesas que tenha que assumir e cumprir algumas obrigações expressamente prescritas na lei, como sejam as que vêm elencadas nos artºs 2090º nº 2, 2092º e 2093º nº 3, todos do CCivil.
VI - Não é, de todo, à instituição bancária que incumbe aquilatar da boa ou má administração levada a cabo pela cabeça de casal, mas sim aos herdeiros.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pº nº 48/21.T8MCN.P1
(552)

Sumário:
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ACÓRDÃO

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos, a autora AA peticiona que seja declarada a sua qualidade de herdeira e cabeça de casal por óbito do seu ascendente BB, pedindo ainda que a Ré Banco 1..., S.A. seja condenada a:
- Entregar à Autora, em representação da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB, a totalidade da quantia ou quantias que se encontram ou encontrarem depositadas na conta junto à Ré, acrescida de juros à taxa legal, calculados desde 28 de fevereiro de 2020 até efectiva entrega;
- A pagar à Autora, em representação da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB a quantia de 2.048,00 €, acrescida de juros de mora à taxa legal calculados desde 28 de fevereiro de 2020 até efectivo pagamento, a título de danos patrimoniais sofridos em virtude de as suas próprias expensas, ainda que na qualidade de cabeça de casal, ter liquidado as dívidas do falecido conforme elencado na petição inicial;
- A pagar à Autora, em representação da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB a quantia de 1.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal calculados desde 28 de fevereiro de 2020 até efectivo pagamento, sofridos em virtude dos incómodos, preocupações, ansiedade e dificuldades económicas no seio familiar por si sofridos por causa da actuação da ré.
Para tanto, na petição inicial, a Autora alegou que:
- A Autora é filha de BB e CC;
- O progenitor BB faleceu no dia quatro de .../.../2022 de dois mil e dezanove (04-03-2019);
- O progenitor da Autora era titular de uma conta bancária aberta na Ré, onde rececionava a sua reforma por velhice e fazia pagamentos decorrentes de obrigações por si contraídas no âmbito de contratos de prestação de serviços;
- A referida conta bancária situava-se, à data do óbito, no balcão do ...;
- A 28-02-2020, a Autora junto da agência central-... da Ré procurou iniciar o procedimento de habilitação de herdeiros que lhe foi exigível pela Ré para efeitos de encerramento da referida conta bancária cujo único titular era o progenitor falecido;
- A Ré exigiu à Autora diversos documentos, concretamente: a certidão de óbito; a escritura de habilitação de Herdeiros; a certidão emitida pela Autoridade Tributária comprovativa de que por óbito do Sr. BB, a conta bancária titulada por aquele na Ré, foi relacionada pelo valor existente à data do óbito e que o respetivo imposto de Selo, caso fosse devido foi liquidado, ou a declaração de que o mesmo não era devido; a identificação dos herdeiros e a identificação da conta bancária para onde se pretendia que a Ré transferisse o saldo bancário existente na conta titulada pelo de cujus;
- A Autora, através de mandatária com procuração para o efeito, procedeu à declaração do óbito do seu progenitor e a respetiva transmissão gratuita de bens – cujo procedimento foi atribuído o número ... -junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e aí declarou que o de cujus era titular da conta bancária nº ... junto da Ré;
- Para comprovar junto da ATA os referidos valores monetários titulados pelo de cujus teve dea 13 de maio de 2020 solicitar à Ré uma “declaração de saldos por óbito de cliente” e um “comprovativo de movimentos de conta” relativo aos últimos 90 dias anteriores ao mês em que ocorreu o óbito;
- A 28 de maio de 2020, apresentou todos os documentos exigíveis pela Ré. - Remeteu, por correio eletrónico, a seguinte comunicação:
«Proc. de habilitação de Herdeiros nº ... em nome de BB: participação on line de transmissão gratuita de bens - com o número ....
Exmos. Senhores,
Venho pelo presente em representação da M/Cliente, a Exma. Srª AA, solicitar o V/ contacto no seguimento da carta endereçada por V. Exas. à M/Cliente referente ao assunto em epígrafe.
Como podem constatar, a participação do óbito do Exmo. Sr. BB ao Serviço de Finanças foi por mim realizado por correio eletrónico e aceite pelo respetivo Serviço de Finanças. Aliás este Serviço remeteu-me pelo mesmo meio de comunicação o comprovativo de participação de transmissão gratuita de bens (modelo 1, anexo I e II).
Assim sendo, envio a V. Exas. o comprovativo recebido no dia de hoje por correio eletrónico. Apresento os meus cumprimentos.
A Advogada, DD”
- A 15 de junho de 2020, a Autora rececionou diretamente da Ré um correio eletrónico no qual constava o seguinte:
«Exmo(a). Senhor(a),
Relativamente ao processo de habilitação de herdeiros em epígrafe, comunicamos a V. Exa. que se encontram reunidas as condições para o Banco 1..., S.A. proceder à entrega dos saldos das contas objeto de habilitação.
Convidamos V. Exa. a contatar a agência onde o processo foi criado, a fim de ser informado das particularidades que envolvem a mobilização dos saldos das contas e da forma como se irá operacionalizar a entrega.
Por favor, não responda a este email.
Para informações sobre produtos e serviços do Banco 1..., consulte-nos em https://www.banco1....pt. Com os melhores cumprimentos,
Centro de Operações»
- A 16 de Junho de 2020, a Autora, através da sua mandatária, pela mesma via respondeu à Ré o seguinte: «Exmos. senhores,
A M/Cliente recebeu o correio eletrónico do V/ departamento de Habilitação de Herdeiros que reencaminho abaixo. Face ao mesmo e, considerando que a mesma investiu-me com procuração que consta do V/ processo venho questionar quais são “particularidades que envolvem a mobilização dos saldos das contas e da forma como se irá operacionalizar a entrega”?
A M/cliente indicou a V. Exas. o seu IBAN para o qual pretende que seja remetido o valor dos saldos das contas.
Apresento os meus cumprimentos. A Advogada,
DD»
- A 17 de junho de 2020, a mandatária da Autora recebeu um correio eletrónico da Ré com o seguinte teor: «Boa tarde,
No seguimento do pedido infra, informamos que os valores referentes ao processo devem ser liquidados/entregues da seguinte forma:
- O saldo atual disponível de capital e juros da conta objeto de habilitação n.º..., presencialmente e em conjunto às interessadas/herdeiras.
- A transferência solicitada pelas interessadas/herdeiras, que consta do requerimento datado de 2020.02.28, não foi aceite uma vez que não está assinada por uma das herdeiras.
Acresce ainda que não está indicada a devida fração.
- A requerente AA pode ser representada por Dr.ª DD, na qualidade de sua bastante procuradora, conforme procuração datada de 2020.02.28.
- Previamente à entrega, será deduzida a comissão de Elaboração de Processos de Habilitação de Herdeiros (conforme Preçário).
Com os melhores cumprimentos
EE».
- A 25 de junho de 2020, a mandatária da Autora respondeu ao correio eletrónico da Ré de 17 de junho de 2020, do seguinte modo:
«Exmos. Senhores,
Após leitura cuidadosa do vosso correio eletrónico, cumpre-me dizer o seguinte:
Recordo que o Exmo. Sr. BB faleceu no ano passado, era o único titular da conta bancária com o nº ... e que apresentei à V/ instituição o pedido de entrega e valores, por meio de requerimento assinado pela M/Cliente, entregando a escritura pública de habilitação de herdeiros onde se identifica o autor da herança, os herdeiros e a cabeça de casal nomeada, a certidão de óbito e o comprovativo de transmissão gratuita de bens à ATA.
Ora, nos termos do Código Civil, com a abertura da sucessão todos os interessados no direito de exigir a partilha podem fazê-la de duas formas (art. 2102º Código Civil): partilha extrajudicial quando houver acordo de todos os interessados ou partilha judicial por meio de inventário judicial que decorre num Tribunal Judicial ou num Cartório Notarial, conforme dispõe o art. 1083º Código Processo Civil.
A Administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal (art. 2079.º Código Civil).
O cabeça-de-casal administra os bens próprios do falecido e, tendo este sido casado em regime de comunhão, os bens comuns do casal (art. 2087.º Código Civil).
O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído (art. 2088.º Código Civil).
Está-se perante uma herança indivisa (porque ainda não foi dividida, cabendo essa divisão e respetiva forma apenas às herdeiras) que responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados (art. 2068.º Código Civil).
A cabeça de casal aguarda receber os referidos valores monetários depositados na conta acima identificada para, por exemplo, proceder ao pagamento das despesas com o funeral realizado, prestar contas e iniciar a partilha, não o tendo feito até ao momento porque a V. Instituição ainda não disponibilizou tais valores.
Recordo que a V/ Instituição não é nem um Tribunal Judicial, nem um Cartório Notarial, não tendo qualquer legitimidade legal para arrogar-se de poderes para, sob condição prévia, solicitar que cada uma das interessadas/herdeiras assine um requerimento e indique a “devida fração” para, assim, fazer a divisão e a entrega dos valores.
A V/ Instituição tem na Vossa posse um bem móvel, os valores monetários depositados na conta acima identificada e a M/Cliente na qualidade de cabeça de casal tem o direito de o solicitar, como o já fez ao indicar o seu IBAN, e a V/ Instituição o dever de entregar, por meio de transferência bancária.
A M/Cliente apesar de não concordar com essa cobrança a título de “comissão”, aceita a Vossa dedução a título de “comissão de elaboração de processo de habilitação de herdeiros (conforme vosso preçário)”.
Face ao exposto, reitero em nome da M/Cliente e cabeça de casal do Exmo Sr BB o outrora solicitado, ou seja, a entrega dos valores monetários depositados na conta bancária com o nº ... pela forma acima descrita.
Apresento os meus cumprimentos. A Advogada,
DD»
- Passadas algumas semanas e sem obter uma resposta, a mandatária da Autora voltou a contactar a Ré em 28-07-2020 questionando o seguinte:
«Exmos. Senhores,
Reencaminho o meu correio eletrónico de 25 de Junho de 2020, reiterando o teor do mesmo, uma vez que até à presente data não obtive resposta da V/ Instituição.
Assim sendo, agradeço por gentileza que procedam à entrega dos valores monetários em causa, uma vez que já decorreu demasiado tempo desde que entreguei a documentação legal necessária para o efeito.
Apresento os meus cumprimentos. A Advogada,
DD».
- A 14 de Agosto de 2020 a Ré respondeu à mandatária da Autora nos seguintes moldes: «Boa tarde
Após leitura atenta, reiteramos a informação prestada.
Ao cabeça de casal cabe a administração da Herança até à sua liquidação e partilha, com vista a assegurar a manutenção dos bens que a compõem, não lhe sendo possível dispor deles livremente sem o acordo da totalidade dos herdeiros, ou sem consentimento judicial.
Com os melhores cumprimentos EE».
- A Autora entende que de cujus celebrou com a Ré um contrato de depósito bancário, contrato esse através do qual entregou uma quantia em dinheiro (coisa fungível);
- Portanto, aplicam-se-lhe as regras previstas para o contrato de mútuo (art. 1205.º e 1206.º do Código Civil);
- Das referidas regras existe uma que impõe a obrigação do Banco restituir as quantias depositadas, no mesmo género e qualidade (vide art. 1142.º do Código Civil);
- A restituição deve ocorrer no termo do prazo acordado ou quando o mutuário /depositário for interpelado para o efeito (vide art. 1147.º e 1148.º ou 1187.º, al. c), 1192.º e 1194.º do Código Civil);
- Por conseguinte, a Autora (herdeira) interpelou a Ré para proceder ao encerramento da conta bancária do de cujus e restituição da respetiva quantia monetária depositada, apresentou toda a informação e documentos solicitados por aquela, conforme acima alegado;
- A Ré recusou-se invocando que só entregaria valores presencialmente e não por transferência bancária e que também não lhe foi indicada a devida fração pertencente à Autora/herdeira e à outra herdeira;
- Conforme consta da habilitação de herdeiros junta, a cabeça de casal, aqui Autora, foi designada por acordo das herdeiras;
- Mas independentemente disso, esse juízo não cabe a uma instituição de crédito;
- A Ré não tem o direito de reter os valores monetários depositados na referida conta com o pretexto de supor o que a cabeça de casal/herdeira fez ou não fez, ou o que irá fazer ou não irá fazer juntamente com a outra herdeira;
- No seguimento do supra alegado, faz-se notar que o Tribunal da Relação de Évora em acórdão de 23-02-2017, processo n.º 879/14.9TBSSB.E1-2ª, cujo relator foi o Exmo. Sr. Desembargador Mário Serrano (vide in www.dsgi.pt), pronunciou-se por unanimidade no sentido de que impende sobre a instituição bancária a obrigação de restituição dos valores depositados quando tal lhe for solicitado pelos clientes ou seus herdeiros (não obstante, diga-se, o mesmo referir-se a uma conta solidária não deixará de ter aplicação ao caso em apreço) conforme sumário que aqui se cita: “A instituição bancária é alheia à questão da repartição da propriedade do dinheiro depositado nas suas contas, a qual respeita às relações internas dos titulares da conta bancária ou aos respetivos herdeiros, em caso de sucessão mortis causa.”;
- Mais, pode-se extrair do referido Acórdão que: “(...) Não nos oferece dúvidas que, em relação a esse depósito bancário, estamos perante um contrato de depósito irregular: é pacífico o entendimento de que um contrato de depósito bancário (com entrega de quantia em dinheiro, como coisa fungível), como o que se prefigura no caso dos autos, reveste a referida natureza, que tem a sua previsão no art. 1205.º do C.Civil, ao qual se aplicam, quando possível, as regras do mútuo, nos termos do art. 1206.º do mesmo Código (v., por todos, o recente ac. STJ de 16/9/2014, proc. 339/09.0TVLSB.L2.S1, e o ac. RE de 4/10/2007, proc. 64/07-3, in www.dgsi.pt), designadamente a regra de que o Banco fica com a obrigação de restituir o dinheiro depositado do mesmo género e qualidade, nos termos do art. 1142.º do Código Civil (e a concretizar no termo de prazo acordado ou quando para tal interpelado o mutuário/depositário, sempre ressalvando período mínimo de denúncia, se aplicável, ou regras contratuais específicas, tudo segundo as disposições dos arts. 1147.º e 1148.º ou 1187.º, al. c), 1192.º e 1194.º do Código Civil)(...)”;
- Mas a questão que então se coloca é a de saber que base legal, nessa eventualidade, teria o Banco para recusar tal entrega, incumprindo a obrigação de restituição que emerge do art. 1142.º, ex vi do art. 1205.º, ambos do Código Civil – e isso perante o risco de o Banco ser, afinal, e com propriedade, demandado por responsabilidade civil contratual, devido a essa omissão de entrega. E a resposta que nos surge como óbvia é, precisamente, inexistir qualquer fundamento legal para tal procedimento: não se vislumbra qualquer normativo que permitisse ao Banco impedir os herdeiros dos titulares de aceder ao dinheiro dos seus familiares, e por todo o tempo que durasse o litígio entre as partes, designadamente até haver uma decisão judicial definitiva daquele – o que apenas se afiguraria possível através de alguma medida conservatória que blindasse o respetivo saldo, a acionar por via judicial, e por iniciativa de algum dos interessados (...)”;
- Conforme se pode extrair dos documentos ora juntos, inclusive dos correios eletrónicos trocados entre a mandatária da Autora e a Ré, a Autora procurou junto da Ré proceder dentro dos trâmites legais ao levantamento dos valores monetários depositados na referida conta de que era titular o de cujus, mas em vão;
- E, por isso, a Autora/cabeça de casal viu-se forçada a recorrer às vias judiciais para que a Ré cumpra a obrigação de restituir à herança as quantias depositadas, no mesmo género e qualidade, na conta titulada pelo de cujus;
- Nos termos do art. 2078.º do Código Civil, o herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória, e a consequente restituição de todos os bens da heranças ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título;
- Face à certidão de nascimento, certidão de óbito e escritura de habilitação de herdeiros juntas com a petição inicial, a Autora faz prova plena da sua qualidade sucessória, bem como de que foi designada cabeça de casal na herança indivisa do Exmo. Sr. BB;
- Pelo que a Autora vem por meio desta ação requerer o seu reconhecimento enquanto herdeira do de cujus, seu progenitor, o Exmo. Sr. BB;
- E ainda se dirá que, sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro, sem prejuízo do direito que assiste ao cabeça de casal de pedir a entrega dos bens que deva administrar (art. 2078.º do Código Civil);
- Face ao preceituado nas disposições supra elencadas, parece-nos que a Autora tem legitimidade para pedir a restituição dos bens da herança contra quem os possua;
- Neste caso e atendendo à participação da transmissão gratuita de bens realizada junto da AT pela Autora, o único bem que compõe o acervo hereditário é precisamente o valor monetário constante da conta bancária que era titulada pelo de cujus junto da Ré;
- E é esse valor correspondente a 4.951,27€, acrescido de juros da conta que a Autora peticiona que seja restituído pela Ré à herança indivisa;
- A Autora, que é emigrante em França, em fevereiro de 2020 deslocou-se propositadamente a Portugal para, em representação da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu progenitor, efetuar o pedido de restituição do valor monetário constante da conta bancária que era titulada pelo de cujus junto da Ré;
- Acontece que até à presente data, a Ré recusou-se conforme acima alegado;
- A Autora perante tal recusa viu-se impossibilitada de pagar a despesa com o funeral do de cujus no valor de 1.257,99€ pois não tem meios próprios para o fazer, optando por fazer o pagamento da sepultura e do jazigo que eram mais prementes;
- A concessão da sepultura no valor de 750,00€ e o jazigo no valor de 950,00€ do de cujus, foram pagos a suas próprias expensas, que com muito esforço conseguiu quando se deslocou a Portugal em outubro e em dezembro de 2020, pois a outra herdeira nem tem possibilidades para tal, quanto mais para o pagamento do funeral;
- A Autora, em nome próprio e enquanto cabeça de casal da herança indivisa, teve igualmente de assumir a responsabilidade de liquidar a dívida do falecido perante a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia ... onde esteve internado devido a doença oncológica que o atingiu fatalmente;
- O art. 2068.º Código Civil dispõe que “a herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados”;
- As despesas com a concessão de sepultura no cemitério, o jazigo do progenitor da Autora e o pagamento das dívidas do falecido foram liquidadas pela Autora;
- A Autora viu-se obrigada a contratar uma advogada para tentar resolver consensualmente o diferendo com a Ré;
- O que não foi possível, restando-lhe a alternativa de recorrer à presente ação judicial;
- A Ré com a sua postura fez com que a Autora se sentisse e presentemente ainda se sinta impossibilitada de fazer o luto do seu progenitor. Mais, a Autora fez viagens a Portugal em vão e outras para pagar as dívidas do falecido, teve despesas avultadas e inesperadas por causa de ter de liquidar essas dívidas (tendo-se inclusive atrasado num dos pagamentos por dificuldades económicas), teve de recorrer aos serviços de uma advogada face à posição assumida pela Ré, causando-lhe assim incómodos, preocupações, ansiedade e dificuldades económicas no seio familiar;
- Por causa da atuação e tomada de posição da Ré - recusa em restituir à Autora enquanto herdeira e cabeça de casal da herança indivisa do falecido progenitor o valor monetário constante da conta bancária que era titulada pelo de cujus junto da Ré - a Autora sofreu danos patrimoniais e danos não patrimoniais;
- Tal entendimento é perfilhado pelo Tribunal da Relação de Guimarães em Acórdão de 17-01-2013 (proc. n.º 148/07.0TBPVL.G1) cuja relatora foi a Exma. Sr.ª Desembargadora Rita Romeira (vide in www.dsgi.pt), que se pronunciou por unanimidade no sentido de que a instituição bancária ao violar as regras de conduta que lhe são impostas nos termos do RGIC incorre em responsabilidade civil contratual pelos danos causados decorrentes da recusa na restituição dos valores depositados quando tal lhe for solicitado pelos clientes ou seus herdeiros (não obstante, diga-se, o mesmo referir-se a uma conta solidária não deixará de ter aplicação ao caso em apreço) conforme aqui se cita: “O comportamento da Ré, revela-se violador de regras de conduta que lhe são impostas nos termos do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGIC), cf. Decreto-Lei n.º 298/92 de 31.12, na redação vigente, o qual inscreve nos seus arts. 73 a 76.º um capítulo denominado “Regras de Conduta” (…) A sua atuação, ao declarar a conta “não movimentável em absoluto”, traduz-se na violação de deveres de conduta que lhe são exigíveis e impostos e, ao não permitir que os autores dispusessem da sua conta nos termos em que tinham contratado com a mesma, traduz-se, de igual modo, na violação daqueles deveres e, em atos abusivos da sua parte, violadores dos direitos dos autores, privando-os de usar a sua conta, com consequências danosas para os mesmos, de modo que lhes causou abalo e incómodo, suscetíveis de serem indemnizados atenta a sua gravidade.

Regularmente citada, a Ré contestou a presente ação, pugnando para que a exceção de ilegitimidade seja julgada provada e procedente e, consequentemente, a Ré ser absolvida da instância, com todas as consequências legais. Assim não se entendendo, a ação ser julgada não provada e totalmente improcedente, absolvendo-se a Ré do pedido, com as inerentes consequências legais.
Alega o seguinte:
- Ao Banco 1... não pode ser imputada qualquer responsabilidade pelo facto de se ter recusado a entregar à aqui Autora, na qualidade de cabeça-de-casal, a quantia devida aos herdeiros do seu falecido Cliente.
- Nos termos do disposto no art. 2091.º do Código Civil o exercício dos direitos da herança é efetuado em conjunto pelos herdeiros, com as exceções constantes dos arts. 2087.º a 2090.º do mesmo Código – as quais não se verificam no caso concreto;
- De igual modo, preceitua o arti. 86.º, n.º 1, alínea e) do Código do Notariado ao prever que a habilitação de herdeiros notarial “tem os mesmos efeitos da habilitação judicial e é título bastante para que se possam fazer em comum, a favor de todos os herdeiros e do cônjuge meeiro o[s] seguinte[s] ato[s]: (…) Levantamentos de dinheiro ou de outros valores”;
- O acabado de expor foi reiteradamente explicado pela Ré à Autora – debalde;
- Não obstante o exposto, e face à incompreensível insistência da Autora, o Banco 1..., ainda assim, admitiu a possibilidade de a sua pretensão se poder fundar no facto de a herança deste seu falecido Cliente ter sido já liquidada e partilhada – o que poderia, então, legitimar a pretensão da A., não na qualidade de cabeça-de-casal (na medida em que tal liquidação e partilha determinam a cessação o cabecelato – art. 2079.º do Código Civil), mas antes na qualidade de herdeira a quem, por força da partilha, tivesse sido definitivamente adjudicada a integralidade do saldo da conta do cliente falecido;
- Porém, a Autora nunca veio a comprovar tal facto não tendo, tão-pouco compreendido o seu alcance, o que impede o Banco 1... de lhe entregar tal saldo de modo liberatório (arts. 769.º e 770.º do Código Civil), sob pena de ter de o vir a fazer duplamente ao abrigo do instituto da repetição do indevido, nos termos do art. 476.º do Código Civil;
- Apenas em 28.05.2020, a Autora concluiu a entrega, junto do Banco 1..., de toda a documentação legalmente exigível à instrução do processo interno de habilitação de herdeiros por morte do seu falecido pai, tendo, nessa data, facultado o exigível Comprovativo de Participação de Transmissões Gratuitas (Modelo 1 e respetivos anexos), do Imposto do Selo gerado pelo óbito do seu pai, com a descrição da conta titulada por este no Banco 1... pelo valor do saldo à data do óbito – obrigação esta imposta ao Banco 1... pela Administração Fiscal no artigo 63.º-A do Código do Imposto do Selo;
- Assim, só a partir desta data é que o Banco 1... pôde desencadear o seu processo interno de habilitação de herdeiros com vista à entrega do saldo da conta titulada pelo seu falecido Cliente, o qual foi prontamente concluído tendo o Banco 1... comunicado à aqui Autora, em 15.6.2020, que já estavam reunidas as condições para o Banco 1... proceder à entrega do saldo da conta objeto de habilitação, convidando-a e à outra herdeira a contactar a Agência onde o processo havia sido iniciado, a fim de se inteirarem das particularidades da forma de entrega;
- Não podendo, assim a Autora reclamar – e tal como o faz no petitório;
- A haver responsabilização do Banco 1... – o que se não aceita nem concede, face ao exposto – só seriam devidos juros de mora desde a citação;
- Para além do saldo da conta titulada pelo falecido - à data em que o mesmo venha a ser entregue, deduzido das despesas devidas - o Banco 1... nada mais deve às herdeiras do falecido, entre elas a aqui Autora, sendo certo que as alegadas despesas que aqui peticiona, a comprovarem-se, são dívidas da herança pelas quais são exclusivamente responsáveis as herdeiras (entre elas a Autora), mas nunca a Banco 1...;
- Não sendo devido qualquer valor a título de danos de natureza não patrimonial porquanto inexiste qualquer responsabilidade do Banco 1... que possa fundamentar tal pedido;
- O saldo existente na única conta titulada pelo falecido ascendia, à data do seu óbito, a 3.363,28€ ascendendo, à data de 1.2.2012, ao valor de 4.951,27€, sendo os valores a debitar, por serem contratualmente devidos ao Banco 1..., os seguintes: Despesas de manutenção pendentes de cobrança e devidas até 11.1.2021: 56,65€; Despesas de manutenção que se venham a vencer até à data da entrega do saldo, à razão de 5,15€/mês, de acordo com o atual preçário; O valor da comissão da elaboração do processo interno de Habilitação de herdeiros: 100,70€, de acordo com o atual preçário.

Em 04.05.2021, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Através da presente ação, a Autora peticiona que lhe seja entregue, em representação da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do Exmo. Sr. BB, a totalidade da quantia ou quantias que se encontram ou encontrarem depositadas na conta junto à Ré, acrescida de juros à taxa legal, calculados desde 28 de fevereiro de 2020 até efetiva entrega.
Finda a fase dos articulados e considerando as concretas questões a apreciar e a decidir na presente ação, importa desde logo relembrar o ac. do TRC de 05.07.2005, proferido no proc. n.º 2075/05, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler que: “Exorbita dos seus poderes o cabeça de casal que procede ao levantamento das quantias em dinheiro depositadas em instituição bancária em nome do inventariado e, de seguida, as deposita em seu nome, muito embora as tenha incluído na relação de bens. O levantamento dos depósitos bancários só pode ser legalmente permitido por acordo de todos os interessados. Devendo constar da relação de bens o dinheiro pertencente ao inventariado, e estando o dinheiro depositado, então devem ser relacionados os depósitos bancários em nome do inventariado”.
A Autora apenas refere que é herdeira e cabeça de casal.
Os poderes de administração do cabeça de casal não se confundem com a titularidade do direito de propriedade sobre os bens administrados. Somente o titular dos depósitos poderá exigir a sua entrega judicial».

A Autora foi convidada a esclarecer se já se procedeu à partilha judicial ou extrajudicial dos bens deixados pelo seu progenitor, incluindo as quantias monetárias em causa, sem a qual não se mostra possível a procedência da presente ação quanto ao pedido formulado.

Respondeu, a Autora, por requerimento de 13.05.2021 (ref.ª 7096079), do seguinte modo:
- A partilha judicial ou extrajudicial do bem deixado (as quantias monetárias depositadas no Banco da Ré) pelo Exmo. Sr. BB (progenitor da Autora) nunca se realizou porque aquele único bem, que compõe o acervo hereditário, encontra-se na posse da Ré sendo condição sine qua non que, para se realizar a partilha, seja judicial ou extrajudicial, a Autora enquanto cabeça de casal necessita de ter acesso físico àquele bem, no seu todo, e não de forma fracionada;
- Acresce esclarecer que, o douto Acórdão enunciado por V. Exa. do TRC de 05-07-2005, de facto no seu sumário refere que “exorbita dos seus poderes o cabeça de casal que procede ao levantamento das quantias em dinheiro depositadas em instituição em nome do inventariado e, de seguida, as deposita em seu nome, muito embora as tenha incluído na relação de bens”;
- A Autora nunca expressou pretender levantar as quantias monetárias em causa e fazer delas suas, depositando-as em seu nome;
- Se o Tribunal entende que sem a realização da partilha não se mostra possível a procedência da presente ação quanto ao pedido formulado pela Autora no ponto b 1) da petição inicial, então a Autora ficará impossibilitada de obter vencimento em juízo, bem como simultânea e indiretamente de realizar qualquer espécie de partilha pois torna-se fisicamente impossível partilhar um bem material sem poder aceder ao mesmo.

Foi dispensada a realização de audiência prévia, nos termos dos artºs 591º nº 1, al. d), 595º nº 1, al. b) e 593º nº 1 todos do CPCivil.
Mais se julgou improcedente a invocada excepção dilatória de ilegitimidade processual activa.

Foi proferido despacho-saneador-sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:
a) Declarar a qualidade de herdeira e cabeça de casal da Autora AA por óbito do seu ascendente, o Exmo Sr. BB.
b) Absolver a Ré Banco 1..., S.A. dos restantes pedidos contra si formulados nestes autos pela Autora AA.

Inconformada, apelou a Autora, apresentando alegações cujas conclusões são as seguintes:
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Foram apresentadas contra-alegações pela Ré C..., SA, pugnando pela total improcedência do recurso interposto pela autora, mantendo-se a decisão proferida.

Foram colhidos os vistos legais.

II - QUESTÕES A RESOLVER

Como se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente importando decidir as questões nelas colocadas – e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso –, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – artºs. 635º, 639º e 663º, todos do Código Processo Civil.
Assim, em face das conclusões apresentadas, a questão a resolver por este Tribunal é a seguinte:
- Saber se falecido o único titular de uma conta bancária, a cabeça de casal da herança do falecido desacompanhada da outra herdeira pode proceder ao levantamento da totalidade da quantia depositada.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos pertinentes à resolução do presente recurso decorrem do antecedente relatório.

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A sentença recorrida entendeu que «Os poderes de administração do cabeça de casal não se confundem com a titularidade do direito de propriedade sobre os bens administrados. Somente o titular dos depósitos poderá exigir a sua entrega judicial e todos os herdeiros são titulares dos depósitos.
Estando estabelecida uma relação contratual com o de cujus, a Ré não pode ser entendida como “terceiro” nos termos e para os efeitos do artº 2088º do Código Civil, pelo que a cabeça de casal não pode, simplesmente, invocar que necessita de levantar o dinheiro depositado para o administrar» e, por isso, concluiu que, o levantamento do dinheiro depositado em conta bancária titulada apenas pelo de cujus, só podia ser efectuado em conjunto por todos os herdeiros deste e não apenas pela cabeça de casal, daí que tenha julgado a acção parcialmente procedente, declarando apenas a qualidade de herdeira e cabeça de casal da autora e absolvendo a Ré dos restantes pedidos.
A autora/apelante discorda deste entendimento por entender que, o levantamento do depósito bancário pode ser levado a cabo por si na qualidade de cabeça de casal a fim de poder proceder a actos de administração da herança até à sua liquidação e partilha.
Vejamos, então, a quem assiste razão.
De acordo com o disposto no artº 2079º do CCivil, “A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal”, cabendo-lhe funções de gestão económica dos bens que integram a massa hereditária (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela in CC Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, pag. 136), podendo ser removido desse cargo o cabeça de casal que não administrar o património hereditário com prudência e zelo, nos termos do disposto no artº 2086º nº 1 al. b) do CCivil, estando, de resto, previsto que preste contas anualmente, como preceitua o artº 2093º do CCivil e estando previstas sanções para a sonegação de bens (artº 2096º do CCivil).
Ora, de acordo com o artº 2087º nº 1 do CCivil, sob a epígrafe “Bens sujeitos à administração do cabeça de casal”, aí se refere que “O cabeça de casal administra os bens próprios do falecido e, tendo este sido casado em regime de comunhão, os bens comuns do casal” estabelecendo-se no artº 2088º nº 1 do mesmo diploma legal que “O cabeça de casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído”.
Deste modo, pese embora o artº 2091º do CCivil estabeleça a regra de que, para além do declarado nos artigos anteriores, “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros”, a lei não define o conteúdo da administração a que se refere o citado artº 2079º do CCivil e que pertence ao cabeça de casal.
Por isso, há que apurar na doutrina se a movimentação de depósitos bancários da herança é um acto de disposição, como entendem a sentença recorrida e a ré recorrida ou se, pelo contrário, como entende a apelante, é um acto de mera administração.
In casu, estamos perante um depósito bancário singular, em que o titular da conta é uma única pessoa, o de cujus.
De acordo com Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. III, pags. 65 e segs, “administração será a actividade que tem por fim conservar, fazer frutificar ou melhorar certo bem ou património; todos os demais serão actos de disposição”.
Lopes Cardoso in Partilhas Judiciais, I, Coimbra, 1990, pag. 322, entende que, “a administração cometida ao cabeça de casal não tem a extensão da conferida ao administrador dos bens do casal”.
O Prof. Mota Pinto in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1989, pag. 408, entende que “A consideração, quer num quer noutro tipo de situações, onde a lei opera com a dicotomia administração-disposição, da “ratio legis”, conduz à conclusão de os actos de mera administração ou de ordinária administração serem os correspondentes a uma gestão comedida e limitada, donde estão afastados os actos arriscados, susceptíveis de proporcionar grandes lucros, mas também de causar prejuízos elevados. São os actos correspondentes a uma actuação prudente, dirigida a manter o património e a aproveitar as suas virtualidades normais de desenvolvimento, mas alheia à tentação dos grandes voos, que comportam risco de grandes quedas.
Ao invés, actos de disposição são os que, dizendo respeito à gestão do património administrado, afectam a sua substância, alteram a forma ou a composição do capital administrado, atingem o fundo, a raiz, o casco dos bens”. – no mesmo sentido, ou seja, quanto à consideração de que a movimentação de conta bancária da herança constitui acto de mera administração, vide ainda, a recomendação proferida pelo Provedor de Justiça José Menéres Pimentel no Recurso nº 137/A/94 de 07/09/1994 e a doutrina aí citada que pode ser consultada no Google.
Por isso, no que concerne à movimentação de contas bancárias tituladas pelo falecido, sufragamos a posição da doutrina citada e aderimos sem reservas ao entendimento vertido no Ac. do TRG de 23/06/2021, pº nº 5435/20.0T8GMR.G1, consultável em www.dgsi.pt (que aqui nos permitimos seguir de perto), segundo o qual, tal acto de movimentação de depósito bancário, constitui um acto de mera administração, não envolvendo em si mesmo qualquer acto de disposição, no sentido comummente atribuído a estes relativo à afectação/alteração da sua substância, ao contrário do que parece entender a sentença recorrida e a Ré/instituição bancária de que a movimentação de um depósito bancário da herança constitui um acto de disposição e que, em consequência, só pode ser praticado conjuntamente por todos os herdeiros, em obediência ao disposto no artº 2091º do CCivil.
Quanto a nós, cremos não poder ser entendido que, o levantamento de dinheiro depositado, só por si, envolva a alteração ou composição e estrutura do património, uma vez que a “composição e estrutura” do dinheiro depositado numa conta bancária é, atenta a sua natureza fungível, necessariamente idêntica à do dinheiro à guarda do seu titular.
Por isso, in casu, tendo sido confiado à cabeça de casal um património para administrar, nele se inclui naturalmente, o depósito bancário existente na instituição bancária ré, titulado pelo falecido pai da cabeça de casal, devendo esta poder movimentá-lo, até para poder prover às despesas e obrigações que tenha que assumir, como sejam aquelas que alega, com o funeral, que constituem, no nosso entendimento, despesas inerentes à administração da herança.
Ora, a autora, ao contrário do que dá a entender a sentença recorrida, nunca alegou - nem tal se mostra provado - que pretendesse depositar o valor monetário depositado na instituição bancária ré numa conta em seu nome, fazendo-o seu.
O que a autora expressou nos autos foi que pretendia criar uma nova conta bancária em nome da herança (tendo já um NIF atribuído pela AT) que seria movimentada por si enquanto cabeça de casal para praticar actos de administração da herança até à sua liquidação e partilha, nos termos do preceituado no artº 2079º do CCivil.
E assim sendo, a Ré/instituição bancária não poderá recusar à cabeça de casal o levantamento do depósito bancário do autor da herança.
De facto, a ré não pode impedir a autora enquanto cabeça de casal de providenciar pela rentabilização da quantia monetária noutra instituição bancária à escolha da autora (acto que cabe da definição de acto de administração da herança) e depois proceder à partilha com a outra herdeira, a sua mãe, nos termos do artº 2101º do CCivil.
O que pode - e bem – a instituição bancária exigir é como de facto já fez o comprovativo da qualidade de herdeiro através da junção da certidão de óbito e da habilitação de herdeiros.
De resto, a instituição bancária ré também exigiu - e bem - no caso em apreço, à cabeça de casal o comprovativo de se encontrar pago o imposto de selo ou a sua isenção, junto do competente serviço de finanças, relativo à transmissão, o que a cabeça de casal entregou atempadamente, pelo que não se vislumbra a razão por que a ré não autoriza o levantamento pela cabeça de casal, do depósito que tem em seu poder.
Na verdade, como decorre da matéria de facto constante dos autos e que não foi impugnada, a autora cabeça de casal instruiu o pedido de levantamento do montante em depósito com os referidos documentos (assento de óbito, habilitação de herdeiros e documento comprobativo das obrigações fiscais) razão pela qual a ré instituição bancária não podia recusar o acesso da cabeça de casal à conta titulada pelo autor da herança, seu pai.
Não se percebe a preocupação da ré instituição bancária com a outra herdeira, a mãe da cabeça de casal, pois a movimentação da conta de um titular falecido após encerramento da mesma por via do falecimento do seu titular, fica documentalmente registada no Banco, não podendo a Ré obrigar a autora e a outra herdeira a anteciparem a partilha do valor monetário depositado com a indicação das respectivas fracções, pois, como é óbvio, à ré sempre será indiferente ao que se venha a processar entre os herdeiros da herança – boa ou má aplicação efectuada pela cabeça de casal relativamente ao capital que pretende levantar – devendo, por isso, proceder à entrega do montante existente na conta titulada pelo de cujus, deduzido naturalmente das despesas bancárias usuais nestes casos, atendendo a que já tem em seu poder toda a documentação que exigiu à cabeça de casal, não se lhe podendo exigir, de novo, o pagamento de tal montante, como parece recear a instituição bancária.
É que não é, de todo, à instituição bancária que incumbe aquilatar da boa ou má administração levada a cabo pela cabeça de casal, mas sim aos herdeiros.
É esse o entendimento vertido no Ac. do TRE de 23/02/2017, pº nº 879/14.9TBSSB.E1, consultável em www.dgsi.pt. ao referir que “A instituição bancária é alheia à questão da repartição da propriedade do dinheiro depositado nas suas contas, a qual respeita às relações internas dos titulares da conta bancária ou aos respectivos herdeiros, em caso de sucessão mortis causa”.
Acresce ainda dizer que, sem essa movimentação do depósito bancário da herança, o cabeça de casal está impedido de cumprir algumas obrigações expressamente prescritas na lei, como sejam as que vêm elencadas nos artºs 2090º nº 2, 2092º e 2093º nº 3, todos do CCivil.
Por conseguinte, há que revogar a sentença recorrida.

Todavia, atenta a solução a que a decisão recorrida havia chegado, absolveu a ré dos pedidos contra si formulados pela autora.
Porém, impedindo a movimentação do dinheiro existente na conta bancária do falecido, pai da cabeça de casal, a instituição bancária ré violou deveres de conduta para com o cliente e causou abalo e incómodos àquela, situação que assume suficiente gravidade, merecedora da tutela do direito, devendo aquela instituição ser responsabilizada e condenada a indemnizar a autora, pelos incómodos causados (neste sentido, cfr. ac. do TRG de 17/01/2013, pº nº 148/07.0TBPVL.G1, disponível em www.dgsi.pt).
Acontece, no entanto, que os autos não dispõem de elementos probatórios para decidir no tocante aos pedidos relativos aos danos patrimoniais e não patrimoniais, razão pela qual, se entende deverem os autos prosseguir para decisão quanto aos mesmos.

V – DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida no que concerne à al. b) do dispositivo, condenando-se agora a ré a entregar à autora, em representação da herança ilíquida e indivisa aberto por óbito de BB, a totalidade da quantia ou quantias que se encontram ou encontrarem depositadas na conta, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até efectiva entrega e determinando-se o prosseguimento da acção apenas para decisão dos pedidos da autora relativos a danos patrimoniais e não patrimoniais os quais não haviam sido conhecidos, atento o sentido decisório acolhido na decisão recorrida.

Custas a cargo da ré.

(Processado por computador e integralmente revisto pela Relatora)

Porto,04/05/2022
Maria José Simões
Abílio Costa
Augusto de Carvalho