Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
407/22.2T8ETR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Nº do Documento: RP20240521407/22.2T8ETR.P1
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Um dos comportamentos que se aponta como variante do abuso de direito, por violação manifestamente excessiva dos limites impostos pelo princípio basilar da boa-fé, é o denominado venire contra factum proprium.
II - Pode definir-se venire contra factum proprium como o exercício de uma posição jurídica contrária ao comportamento anteriormente assumido pelo exercente.
III- Tal modalidade do abuso de direito comporta duas atitudes da mesma pessoa que se encontram diferidas, espaçadas temporalmente, sendo que o primeiro desses comportamentos, designado como factum proprium, é contrariado pelo segundo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 407/22.2T8ETR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo de Competência Genérica de Estarreja - Juiz 2


Recorrente – AA
Recorridos – BB e CC



Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Rui Moreira
Desemb. Lina Castro Baptista









Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível)



I – BB e CC intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo de Competência Genérica de Estarreja a presente ação declarativa com processo comum contra AA, peticionando a condenação desta:
- A reconhecer que os autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano sito na Rua ..., ..., ... ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ...45 e descrito na CRP de Estarreja sob o n.º ...33;
- A restituir imediatamente aos autores o referido prédio, livre de pessoas e pertences pessoais;
- A abster-se, de futuro, de praticar atos que perturbem a posse e o direito de propriedade dos autores sobre o aludido prédio;
- A pagar a cada um dos autores quantia nunca inferior a €1.500,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais;
- A pagar aos autores o valor mensal de €600,00, a título de indemnização pela privação do uso do valor locativo do imóvel em apreço, desde a data da citação até à sua entrega efetiva;
- A pagar aos autores a quantia diária de €100,00, desde a notificação da sentença até à efetiva entrega do aludido imóvel, a título de sanção pecuniária compulsória.
Alegaram para tanto e, em síntese, que em 1992, cederam a utilização do referido imóvel à sua filha, ora ré, para que a mesma aí iniciasse a sua vida marital, tendo assumido os autores, como proprietários, as despesas de conservação da habitação. Sucede que, recentemente, a ré iniciou um relacionamento amoroso com indivíduo que tem causado incómodos aos autores, pelo que estes, desde os inícios de 2021, exigiram à ré a restituição do imóvel, ao que a mesma se tem negado.
Mais alegaram que essa privação do uso lhes tem causado danos patrimoniais,
pelos quais pretendem ser ressarcidos à razão de €600/mês, por ser o valor de mercado de arrendamento daquele imóvel, bem como danos não patrimoniais.

A ré AA, pessoal e regularmente citada, veio contestar pedindo a improcedência da ação.
Para tanto, invocou que os autores lhe cederam o imóvel ora reivindicado para que a mesma pudesse iniciar a sua vida após o casamento, tendo, ao longo de mais de 30 anos, criado a expectativa de que a casa lhe pertencia, pelo que a ré e o seu ex-marido fizeram até vários melhoramentos na fração.
Concluiu pugnando pelo abuso de direito dos autores na iniciativa agora tomada.

Foi proferido despacho saneador, fixado o valor da causa, definido o objeto do litígio e dispensada a enunciação dos temas de prova.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença de onde consta: “Pelo exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência, decide-se:
a) Condenar a ré AA a restituir aos autores BB e CC o prédio urbano sito na Rua ..., ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ...45 e descrito na CRP de Estarreja sob o n.º ...33, livre de pessoas e pertences pessoais;
b) Condenar a ré a pagar aos autores a quantia global de €3.500,00 (três mil e quinhentos euros) a título de privação do uso do referido imóvel, bem como da quantia de €250,00 (duzentos e cinquenta euros) por cada mês de atraso na entrega do imóvel;
c) Absolver a ré do demais peticionado pelos autores;
d) Condenar autores e ré nas custas do processo, na proporção de 20% e 80%, respetivamente – art.º 527.º, 1 e 2, CPC.
Valor da causa: € 29.167,15 – art.ºs 306.º, 2, 301.º, 1, e 297.º, 1 e 2, CPC.
Registe e notifique”.



Inconformada com tal decisão, dela veio a ré recorrer de apelação, pedindo a sua revogação e substituição por outra que julgue procedente a exceção perentória do abuso de direito, absolvendo a apelante da totalidade dos pedidos.

A apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos, por se entender que se impõe a modificação da decisão do Tribunal “a quo” que julgou improcedente a exceção perentória, do abuso de direito por parte do autores, aqui apelados, alegada pela ré, aqui apelante, na contestação (art.º 334.º do Código Civil), a qual se impugna.
2. A douta sentença recorrida condena a apelante “a restituir aos autores, BB e CC, o prédio urbano sito na Rua ..., ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...45 e descrito na CRP de Estarreja sob o n.º ...33, livre de pessoas e pertences pessoais”, bem como “a pagar aos autores a quantia global de €3,500,00 (três mil e quinhentos euros) a título de privação do uso do referido imóvel, bem como da quantia de €250,00 (duzentos e cinquenta euros) por cada mês de atraso na entrega do imóvel.”
3. A douta sentença não teve em devida conta o facto de que a apelante vem ocupando o dito imóvel há cerca de 30 anos, desde 1992, altura em que os apelados decidiram ajudar a sua filha/apelante no início da sua vida marital, permitindo que esta e o marido residissem no imóvel supra mencionado na segunda conclusão do presente recurso.
4. Há mais de 20 anos, em data não concretamente apurada, a apelante separou-se do marido por um período não inferior a cinco meses e voltou a residir com os apelados.
5. Aquando da reconciliação com o marido, em momento não apurado, mas não inferior a cinco meses, a apelante pediu aos apelados que lhe cedessem, gratuitamente, para nele habitar, o prédio urbano sito na Rua ..., ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...45 e descrito na CRP de Estarreja sob o n.º ...33, ao que os apelados acederam.
6. Após a reconciliação mencionada na quinta conclusão do presente recurso, a apelante e o marido colocaram móveis de cozinha novos na habitação descrita nessa mesma cláusula.
7. A apelante continuou a fixar a sua casa de morada de família na habitação descrita na quinta conclusão do presente recurso, aí residindo, após a separação definitiva do seu ex-marido, com o consentimento e permissão dos apelados.
8. Este imóvel é a única habitação que a apelante conheceu durante a maior parte da sua vida adulta, tendo aí passado a residir quando casou em 1992, pelo que necessariamente se trata de um investimento de tempo-emocional e de memórias – que não pode deixar de ser considerado pelo Direito.
9. Por outro lado, é legítimo concluir que na esfera jurídica da apelante, ainda mais existindo uma relação de familiaridade, filha única e pais, foi gerada uma situação de confiança merecedora de tutela de direito.
10. A situação de confiança legítima gerada na esfera jurídica da apelante foi direta e indiscutivelmente imputável à conduta dos apelados que, sabendo que era a apelante que residia na casa de morada de família na habitação descrita na quinta conclusão do presente recurso, nada fizeram para obter a restituição do prédio, ao longo de 30 anos.
11. Os pedidos formulados pelos apelados nestes autos – reconhecimento dos mesmos como donos e legítimos proprietários do prédio e a restituição imediata deste, livre de pessoas e seus pertences pessoais - não podem deixar de consubstanciar uma forma de abuso de direito, na sua manifestação mais típica de venire contra factum proprium, pois sempre conheceram e consentiram o circunstancialismo que legitimou, durante todos estes anos, a ocupação pela apelante da casa de morada de família na habitação descrita na quinta conclusão do presente recurso.
12. Assim, a apelante não pode ser considerada como uma mera ocupante de facto, pois tal situação configura uma inadmissível situação de venire contra factum proprium, perante a inércia dos apelados ao longo de 30 anos.
13. Foi, assim, violado o artigo 334.º do Código Civil que consagra o abuso de direito na conceção objetiva dispondo que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
14. Em conformidade, andou mal o Meritíssimo Juiz “a quo” na douta sentença recorrida, porquanto, atento o exposto, deveria a presente ação improceder in totum, devendo em consequência a apelante ser absolvida de todos os pedidos contra si formulados.


Não há contra-alegações.


II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
1- Mostra-se descrita a favor dos autores BB e CC, por doação de DD e mulher, pais do autor marido, realizada em 18 de fevereiro de 1976, a casa de habitação sita na Rua ..., ..., ..., inscrita na matriz predial urbana sob o art.º ...45 e descrita na CRP de Estarreja sob o n.º ...33, nos termos constantes dos docs. n.ºs 1 a 3 juntos com a p. i., cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
2- Os pais do autor marido residiram naquela habitação até falecerem;
3- Em 1977, os autores começaram a construir uma habitação no terreno que por aquela escritura também lhes foi doado, contíguo ao prédio identificado em 1), tendo nela passado a residir em 1984 conjuntamente com a ré, a qual com eles coabitou até 1992, ano em que se casou;
4- Nessa ocasião, dado que a ré necessitava de uma habitação para residir com o seu marido, e uma vez que o pai do autor marido se encontrava a residir sozinho no prédio aludido em 1), pois havia enviuvado, os autores decidiram ajudar a sua filha no início da vida marital, permitindo que esta e o marido residissem com o avô da ré no pressuposto de o auxiliarem no que fosse necessário e de realizarem as lides domésticas;
5- Não obstante, desde a data da doação até ao presente, todos os encargos com a habitação, entre os quais o IMI e a tarifa de resíduos do Município de Estarreja, com exceção da energia elétrica, foram suportados em exclusivo pelos autores;
6- Em data não concretamente apurada, mas há mais de 20 anos, e já após o falecimento do pai do autor BB, ocorrido em 1994, a ré separou-se do marido e voltou a residir com os seus pais na morada que estes ainda mantêm, de modo a que estes ajudassem nos cuidados com a neta mais velha;
7- Nessa altura, os autores, a suas exclusivas expensas, procederam à reconstrução e remodelação da casa aludida em 1), uma vez que se encontrava bastante deteriorada, o que incluiu, designadamente, uma mesa da cozinha, um guarda roupa, uma cama de solteira, uma escrivaninha e um armário;
8- Em momento não concretamente apurado, mas não inferior a cinco meses após a separação aludida em 6), a ré reconciliou-se com o marido e pediu aos autores que lhe cedessem, gratuitamente, para nela habitar, a moradia contígua, agora reconstruída, ao que aqueles acederam, tendo a ré, assim, voltado a fixar a sua casa de morada de família na habitação descrita em 1);
9- Em data não concretamente apurada, mas não posterior a 2008, a ré separou-se definitivamente do seu ex-marido e, nessa altura, pediu aos autores para continuar a residir na sobredita habitação, de molde a estar próxima dos pais e a que estes ajudassem a cuidar das netas, o que os autores permitiram, pois sempre ajudaram a filha e as netas, ao ceder-lhes teto e pagar-lhes despesas do lar e de formação;
10- Nessa altura, a ré ficou a morar com a filha EE na casa indicada em 1), tendo a filha FF passado a residir com os avós na casa ao lado;
11- Desde a data da aquisição da habitação identificada em 1) até ao presente, os autores ali realizaram manutenções e reparações, nomeadamente limpeza, arranjos exteriores, mudança do motor do poço, limpeza das caleiras, mudança das lâmpadas, exteriores e interiores, lavagem e pintura do gradeamento, pintura do muro, limpeza do terreno adjacente à habitação, jardinagem no jardim e logradouro, plantação e recolha de hortícolas, manutenção do galinheiro e alimento das aves;
12- A área do rés-do-chão daquele imóvel compreende uma oficina onde o autor marido armazena as suas máquinas e ferramentas, uma loja destinada a barbearia onde o autor marido realiza a atividade profissional de barbeiro, uma loja destinada a florista onde a autora mulher executa e vende arranjos florais e flores, uns arrumos onde armazenavam roupas e utensílios antigos e o logradouro onde têm plantas, hortícolas e galinheiro;
13- A ré vem utilizando o 1.º andar, onde reside, e a cozinha, um WC e uns arrumos no rés-do-chão do aludido prédio;
14- Há cerca de 6 anos a ré iniciou um relacionamento amoroso com GG, o qual passou a frequentar a habitação referida em 1);
15- Após quezílias surgidas entre o namorado da ré e os autores, que deram azo à instauração de processos criminais dos segundos contra o primeiro, bem como levaram os autores a delimitar a casa onde residem da habitação mencionada em 1), de modo a não se contactarem com o sobredito GG, os autores, desde pelo menos o início de 2021, passaram a exigir verbalmente à ré a restituição do imóvel em causa;
16- Como AA se recusou a fazê-lo, os autores, em 28 de fevereiro de 2022, por intermédio de advogada, enviaram missiva a interpelar a ré para entregar o imóvel no prazo máximo de 30 dias;
17- A ré não acedeu à interpelação e mantém a recusa de entregar a casa;
18- Tal recusa tem causado angústia e revolta aos autores;
19- Devido à recusa de entrega, os autores têm ficado impossibilitados de proceder ao arrendamento do imóvel, o que lhes permitiria melhor fazer face às despesas mensais que suportam;
20- Após a reconciliação mencionada em 8), a ré e o marido colocaram móveis de cozinha novos na habitação aludida em 1);
21- O imóvel descrito em 1) possui valor matricial, para efeitos de IMI, determinado no ano de 2021, de €24.167,15;
22- O valor locativo de apartamento novo, de tipologia T1+1/T2, no concelho de Estarreja, ronda €600/mês;
23- A ré foi citada para a presente ação no dia 9 de agosto de 2022;
24- A ré ocupou o imóvel sempre à vista de todos e, até ao momento mencionado em 15), sem a oposição dos autores.


Não se julgaram provados os seguintes factos:
a) Que todo o mobiliário existente na habitação aludida em 1) é pertença exclusiva dos autores;
b) Que os rendimentos mensais dos autores não lhes permitem pagar todas as despesas que possuem;
c) Que o valor locativo do imóvel identificado em 1) é de, pelo menos, €600/mês;
d) Que, após a reconciliação mencionada em 8), a ré e o marido efetuaram algumas remodelações interiores e exteriores, nomeadamente a colocação de teto falso com lâmpadas embutidas, construção de um fogão de sala, bem como de uma garagem e de uma jaula para o cão;
e) Que, desde a data em que a ré começou a habitar o aludido prédio, aquando do seu casamento, após a sua separação e até ao presente momento, as remodelações, manutenções e reparações necessárias no mesmo têm sido divididas entre autores e ré;
f) Que, após a separação indicada em 8), a ré tem procedido aos arranjos do motor de água, à limpeza das caleiras e à mudança das lâmpadas exteriores e interiores da habitação;
g) Que toda a mobília existente na casa de morada de família da ré foi comprada pela mesma e pelo ex-marido;
h) Que a oficina referida em 12) contém objetos do ex-marido da ré, uma máquina de lavar roupa e uma bicicleta da sua neta mais nova, EE;
i) Que, durante 30 anos, ao permitirem o uso da casa mencionada em 1), os autores acederam a que a ré agisse como proprietária da mesma;
j) Que a ré se encontra desempregada, a tratar dos documentos para beneficiar do rendimento social de inserção e recorre a ajuda social alimentar, o que os autores não ignoram;
k) Que os autores têm rendimentos que lhes permitem viver de forma tranquila.


III – Como é sabido o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.

*


Ora, visto o teor das alegações da ré/apelante é questão a apreciar no presente recurso:
- Do alegado abuso de direito da atuação dos autores.

Como se vê, os autores vieram por via da presente ação defender o seu invocado direito de propriedade relativamente ao imóvel constituído por casa de habitação sita na Rua ..., ..., ..., inscrita na matriz predial urbana sob o art.º ...45 e descrita na CRP de Estarreja sob o n.º ...33 contra a ré, pedindo consequentemente que o mesmo lhes seja restituído e, ainda serem indemnizados pela privação de tal habitação e pelos danos não patrimoniais sofridos.
Dúvidas não restam de que os autores lograram alegar e provar a propriedade de tal imóvel, pois além de terem provado a aquisição derivada de tal direito – por via da doação de tal bem que lhes foi feita pelos pais do autor marido, como principalmente, por beneficiarem da presunção de propriedade, não ilidida, decorrente da inscrição registral do mesmo a seu favor, por força do preceituado no art.º 7.º do C.R.Predial.
Aqui chegados, estando provada a propriedade do dito imóvel, a sua restituição aos autores só poderia ser recusada nos casos previstos na lei, cfr. art.º 1311.º, n.º 2 do C.Civil).
Está provado nos autos que a ré/apelante vem ocupando o referido imóvel há cerca de 30 anos (desde 1992), quase ininterruptamente (ou seja, apenas se verificou um interregno de alguns meses aquando da primeira separação da mesma e do seu ex-marido), e que tal ocupação resultou de autorização dos autores/seus pais para o efeito.
A 1.ª instância interpretou corretamente que “tal autorização, por mera tolerância, será juridicamente comparável ao contrato de comodato, uma vez que se trata da entrega de uma coisa imóvel, para que a ré dela se servisse, com a obrigação de, assim que desejado pelos autores, aquela a restituísse – art.ºs 1129.º e 1137.º, n.º 2, do C.Civil”.
Com efeito, no art.º 1129.º do C.Civil apresenta-se a definição de comodato como sendo “o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.
Trata-se de um contrato real quod constitutionem, que só se completa pela entrega da coisa, e que reveste as características da temporalidade e da gratuitidade, cfr. Luís Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações” vol. III, pág. 367. Quanto à primeira característica, porque não se tolera um comodato que deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por estar associado a um uso genérico ou de duração incerta. No que respeita à segunda característica, porque não há, a cargo do comodatário, prestações que constituam o equivalente ou correspetivo da atribuição efetuada pelo comodante, muito embora o comodante possa impor certos encargos ao comodatário, sem natureza correspetiva (“in casu” cláusulas modais).
Trata-se também de um contrato meramente consensual, em que há uma simples atribuição do uso da coisa, para todos os fins lícitos ou alguns deles, dentro da função normal das coisas da mesma natureza e não, em princípio, da atribuição do direito de fruição, cfr. art.º 1133.º, n.º 1, do C.Civil. Ou seja, e que ao caso em apreço respeita, não se podendo olvidar que para o contrato de comodato não está estabelecida legalmente a observância de forma, pelo que o mesmo será válido independentemente da observância de qualquer forma, tem se concluir que o contrato de comodato verbal mencionado nos autos legitimava a detenção que do imóvel vinha sendo feita pela ré/apelante, há cerca de 30 anos.
A ré/apelante não põe em causa a subsunção levada a cabo pela 1.ª instância, como tendo consubstanciado a sua ocupação do imóvel dos autores/seus pais um contrato de comodato.
Consequentemente e como se entendeu em 1.ª instância, há que chamra à colação o preceituado no art.º 1137.º do C.Civil, segundo o qual: “1 – Se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação. 2 – Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida. 3 – É aplicável à manutenção e restituição da coisa emprestada o disposto no artigo 1043.º.”
In casu” não se alegou nem provou que foi convencionado entre autores e ré qualquer prazo para a restituição do imóvel, tendo apenas provado que o imóvel comodatado se destinava à habitação da ré e sua família. Sendo que, como é entendimento expendido no Ac. do STJ de 26.11.2020, in www.dgsi.pt “(…) a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido que o “uso determinado”, a que se alude no art.º 1137.º, do CC, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada, mas antes atos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar; caso em que se deve haver como concedido por tempo por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável. (…) no quadro normativo vigente, não seria de aceitar um comodato que subsistisse indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico, de tal modo que o comodatário pudesse manter gratuitamente e sem limites o gozo da coisa (…)”.
No mesmo sentido, Ac. do STJ de 13.05.2013, in www.dgsi.pt, segundo o qual: “I - O contrato de comodato tem carácter temporário, pelo que a determinação do uso a que se refere o n.º 1 do art.º 1137.º do Cód. Civil envolve a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa quando, implicando este a prática de atos genéricos de execução continuada, não for concedido por tempo determinado ou, pelo menos, determinável. II - Assim, não se estipulando prazo nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição da coisa”.
Pelo que, “in casu” a ré estava, face ao preceituado na lei, obrigada a restituir o imóvel aos autores, logo que estes lho exigissem.
No entanto, a mesma não o fez, e vem agora defender que os autores, seus pais, ao intentarem a presente ação estão a agir em abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”. E isto, porque, segundo entende, o dito imóvel é a única habitação que conheceu, tendo aí passado a residir quando casou em 1992, por outro lado, existindo uma relação de familiaridade, já que é filha única dos autores, seus pais, e finalmente os autores nada fizeram, ao longo de 30 anos, para obter a restituição do prédio, tendo tudo isto criado em si uma situação de confiança legítima de que estes jamais intentariam contra si uma ação como a presente.
Ora, preceitua o art.º 334.º do C.Civil que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Referem Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil anotado”, vol. 1, pág. 299, “que o exercício de um direito só poderá ser ilegítimo quando houver manifesto abuso, ou seja, quando o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, traduzindo uma clamorosa ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante.”
Um dos comportamentos que tem sido apontado como variante do abuso de direito, por violação manifestamente excessiva dos limites impostos pelo princípio basilar da boa-fé, é o denominado venire contra factum proprium, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in obra citada e Baptista Machado, in “Obra dispersa”, vol. I, pág. 385, 393 e 394. Ora, pode definir-se venire contra factum proprium como o exercício de uma posição jurídica contrária ao comportamento anteriormente assumido pelo exercente. Esta modalidade da figura abuso de direito demanda a verificação de duas atitudes da mesma pessoa que se encontram diferidas, espaçadas temporalmente. O primeiro destes comportamentos designado como factum proprium é contrariado pelo segundo. Esta contradição de comportamentos, “constitui, atenta a reprovabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correção, um manifesta violação dos limites impostos pelo princípio da boa-fé; pelo que não é de admitir que essa pessoa possa invocar e opor um vício por ela causado culposamente, vício, este que a outra parte confiou em que não seria invocado e que nesta convicção orientou a sua vida”, cfr. Ac. do STJ de 02.07.96, in BMJ 459/519 e estudo de Stella Marcos de Almeida Neves Barbas, in CJ/STJ, ano II, tomo 2, pág. 14.
Como se escreveu no Ac. da Rel. de Lisboa de 16.03.2006, in www.dgsi.pt “Constituindo a exceção de abuso de direito um meio de defesa que visa obstar a resultados manifestamente injustos, nos termos do art.º 334.º do CC, a sua apreciação basta-se com a delimitação de um acervo de factos cuja análise revele um manifesto desajustamento da solução decorrente do direito formal e imponha uma solução diversa substancialmente mais justa.
Como tem sido acentuado múltiplas vezes pela jurisprudência e pela doutrina, o direito cessa onde começa o abuso, (…) de modo que o uso, quando convertido em abuso, não pode colher da ordem jurídica a tutela que, em princípio, deveria merecer.
Ainda que Menezes Cordeiro advirta para os perigos da sua banalização, não deixa de acrescentar que “o abuso de direito é um excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do Direito sobre os infortúnios do legislador e sobre as habilidades das partes”.
(…)
Por certo a figura não pode ser encarada como “panaceia” para todas as situações em que ao juiz pareça “injusta” a solução decorrente da aplicação dos preceitos de direito positivo, sob pena de se pôr em perigo a segurança jurídica que o ordenamento jurídico deve garantir. Por isso, demos preferência ao outro fundamento.
Mas, com a ponderação devida e assentando a construção em alicerces integrados por elementos de facto ou juízos de valor sobre os factos relevantes, não deve recear-se a interferência desse elemento moderador do exercício de direitos, ainda que a título de reforço da decisão final.
Já por diversas vezes aludimos ao princípio da boa-fé que envolve todo o ordenamento jurídico e pelo qual se devem orientar todos quantos dele se pretendem servir para obter o reconhecimento de direitos.
Por isso, quando, em termos meramente objetivos, o titular do direito faça deste um uso manifestamente reprovável, manifestamente antagónico com o que seria expectável, devem impedir-se ou limitar-se os efeitos pretendidos, sobrepondo ao interesse meramente individual os valores mais importantes e perenes que enformam o ordenamento jurídico”.
O Prof. Baptista Machado, in obra citada, pág. 415 a 418, refere que o efeito jurídico próprio do instituto só se desencadeia quando se verificam três pressupostos:
1. Uma situação objetiva de confiança: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura;
2. Investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos se a confiança legítima vier a ser frustrada;
3. Boa-fé da contraparte que confiou: a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá proteção jurídica quando de boa-fé e tenha agido com cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico.
Retornando à situação dos autos, está assente que em 1984, os autores, conjuntamente com a ré, sua filha, passaram a residir num outro imóvel que aqueles haviam, entretanto, construído, sendo que a ré com aqueles coabitou até 1992, ano em que se casou.
Quando a ré se casou, dado que necessitava de uma habitação para residir com o seu marido, e uma vez que o pai do autor marido se encontrava a residir sozinho no imóvel ora em causa nestes autos, os autores decidiram ajudar a sua filha no início da vida marital, permitindo que esta e o marido residissem com o avô da ré no pressuposto de o auxiliarem no que fosse necessário e de realizarem as lides domésticas.
Há mais de 20 anos, e já depois do falecimento do avô da ré, esta separou-se do marido e voltou a residir com os seus pais no supra referido imóvel que é a morada destes.
Entretanto os autores reconstruíram e remodelaram o imóvel que foi a residência do avô da ré e, +/- cerca de 5 meses após a supra aludida separação marital da ré, esta voltou a reconciliar-se com o marido e pediu aos autores que lhe cedessem, gratuitamente, para nela habitar, o imóvel em causa nos autos, ao que aqueles acederam, tendo a ré, assim, voltado a fixar a sua casa de morada de família na habitação no dito imóvel.
Todavia, em data não concretamente apurada, mas não posterior a 2008, a ré separou-se definitivamente do seu ex-marido e, nessa altura, pediu aos autores para continuar a residir no referido imóvel, ora em causa nos autos, de molde a estar próxima dos pais e a que estes ajudassem a cuidar das netas, o que os autores permitiram, pois sempre ajudaram a filha e as netas, ao ceder-lhes teto e pagar-lhes despesas do lar e de formação, sendo que nesse mesma ocasião, a ré ficou a morar com uma filha no imóvel em apreço, tendo a outra filha passado a residir com os avós na casa ao lado.
Ora, há cerca de 6 anos a ré iniciou um relacionamento amoroso com um outro indivíduo, o qual passou a frequentar o imóvel em causa nos autos, após o que surgiram quezílias entre esse individuo e os autores, que deram azo à instauração de processos criminais dos segundos contra o primeiro, bem como levaram os autores a delimitar a casa onde residem do imóvel em causa nos autos, de modo a não se contactarem com o sobredito individuo.
Finalmente, pelo menos desde o início de 2021, os autores passaram a exigir verbalmente à ré a restituição do imóvel em causa, a qual se recusou e recusa fazer.
Perante tal complexo fáctico, não se vê, na verdade que os autores hajam, em momento algum, dado motivo a que se criasse a ideia de que haviam aberto, definitivamente, a mão da posse efetiva do dito imóvel, ou dito de outra forma, que jamais iriam pedir a restituição do mesmo, ainda que a ré fosse e seja, a sua filha única. Portanto, não resulta provada qualquer conduta dos autores que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura, isto é, que jamais iriam pedir à ré, sua filha, a restituição do imóvel. Logo, também não se mostra provado que a ré tenha de forma legitima, de boa-fé, e alicerçada numa situação de confiança criada, mormente tendo presente que atualmente a qualidades das relações familiares, mesmo as mais próximas, são muito mutáveis, tenha organizado, com cuidado e precaução que eram devidos, planos de vida futura fundamentados na sua permanência indefinidamente no imóvel.
Em suma: os factos apurados não permitem concluir que os autores hajam tido, em momento anterior, uma conduta que, fundadamente, tenha criado na ré, a convicção de que não peticionariam a restituição do imóvel. O que inevitavelmente nos conduz à conclusão da inexistência de qualquer abuso de direito por parte dos autores, concretamente na variante venire contra factum proprium ao intetarem a presente ação contra a ré peticionando, além do mais, a restituição imediata do referido prédio, livre de pessoas e pertences pessoais.


Improcedem as conclusões da ré/apelante, havendo de se confirmar a decisão recorrida.



Sumário:
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IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar as presentes apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela ré/apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que beneficia.








Porto, 2024.05.21.
Anabela Dias da Silva
Rui Moreira
Lina Castro Baptista