Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
291/25.4T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
LEGITIMIDADE
ARRESTO
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO DA SOCIEDADE SOBRE O GERENTE OU ADMINISTRADOR
AÇÃO INTERPOSTA PELO SÓCIO
Nº do Documento: RP20251028291/25.4T8AMT.P1
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A falta de fundamentação da decisão de facto (tal qual os casos de deficiência parcial, obscuridade ou contraditoriedade da decisão de facto), consubstancia patologia que ao tribunal de recurso (mesmo oficiosamente) se impõe sindicar e suprir (art. 662º, nº 2, c) do CPC) a partir dos elementos que constem do processo - a deficiência resultante da falta de pronúncia sobre factos relevantes à decisão da causa deve ser colmatada nos termos dos arts. 640º e 662º do CPC, não sendo a consequência do vício a anulação do acto.
II - O surgimento do direito próprio do sócio à substituição processual (art. 77º, nº 1 do CSC) tem por pressuposto (e além do caso de não propositura da acção no prazo de seis meses, contado da deliberação que aprove a sua propositura) que a sociedade manifeste expressa e conscientemente, através de deliberação, o propósito de não exercer o direito à indemnização – à acção ut singuli apenas se poderá recorrer na eventualidade de a sociedade não ter exercido o seu direito de acção e de ‘estar demonstrado que não o irá exercer’.
III - Valem no âmbito do procedimento cautelar as regras gerais de aferição da legitimidade e, por isso, que os pressupostos para reconhecer a legitimidade indirecta (substituição processual) que possibilita ao requerente do arresto vir a juízo, em nome próprio, acautelar a garantia patrimonial de crédito alheio, terão de mostrar-se preenchidos no momento em que o arresto é requerido e decretado.
IV - A legitimidade directa ou indirecta vale no arresto (tal como na acção declarativa) também quanto à demanda do adquirente de bens do devedor (quando o arresto, nos termos do nº 2 do art. 392º do CPC, for deduzido também como preliminar de acção de impugnação pauliana) – exige-se que o requerente seja ou titular activo do crédito cuja garantia patrimonial se pretende tutelar (legitimidade directa) ou que possa, em nome próprio, dirigir-se a juízo para acautelar a garantia patrimonial do crédito doutrem perante o adquirente de bens do devedor (legitimidade indirecta).
V - A tutela cautelar, ponderada à luz dos princípios da proporcionalidade e do acesso ao direito, não importa, de per si, se reconheça legitimidade indirecta a quem não cumpre (ao tempo da propositura da providência) os requisitos legais para a invocar - no caso da acção ut singuli, também na tutela cautelar o legitimado indirecto está a exercer um direito próprio do sócio à substituição processual e, por isso, a legitimidade indirecta terá de (e só poderá) ser-lhe reconhecida com esse fundamento (não podendo ser-lhe antecipado - ainda que só ‘cautelar’ ou ‘provisoriamente’ - esse direito à substituição processual).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 291/25.4T8AMT.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Alexandra Pelayo
                Anabela Andrade Miranda

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Apelantes: AA, BB e CC (requerentes)

Apelados: DD, EE e FF (requeridos).

Juízo de comércio de Amarante (lugar de provimento de Juiz 4) – Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este.


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Intentaram os requerentes contra os requeridos procedimento cautelar de arresto alegando a sua qualidade de sócios da sociedade A..., Ld.ª (titulares, em conjunto, de quota sem determinação de parte ou direito no valor de 62.259,95€), com mais de 5% do capital social, e bem assim, factos tendentes a demonstrar a responsabilidade civil dos gerentes e requeridos DD e EE (actuação ilícita e culposa enquanto gerentes naquela sociedade, fundamento da sua condenação proferida em processo criminal, transitada em julgado), que causaram à sociedade prejuízo já liquidado que ascende a 2.082.498,49€ e ainda doutro a liquidar ulteriormente, e ainda, relativamente à requerida FF, factos tendentes a demonstrar a provável procedência de acção de impugnação pauliana (relativamente a bens adquiridos do requerido DD). Ademais, além dos factos que entendem demonstrar o justo receio da perda da garantia patrimonial, alegam ainda os requerentes, ponderando o disposto nos arts. 75º e 77º do CSC, ter a sociedade deliberado não propor acção para responsabilizar o gerente DD (o que permite, aos requerentes, o recurso a juízo para o responsabilizar – art. 77º do CSC) e bem assim não ser de aplicar, quanto ao requerido EE, a exigência prescrita em tais preceitos, ‘atendendo à composição do capital social (dominado pela família BB)’ e porque considerando o ‘tempo que a convocatória e a realização da Assembleia demoram’, tal situação pode ‘comprometer de forma irremediável a eficácia e o resultado deste procedimento que é preliminar de uma acção declarativa a ser proposta e visa assegurar a efectividade da decisão a ser proferida nessa acção.’

Proferida decisão a julgar procedente o procedimento e a decretar o arresto, apresentaram-se os requeridos a deduzir oposição invocando, entre o mais que não releva à presente apelação, a ilegitimidade activa dos requerentes, por se não verificar situação em que a demanda seja permitida aos sócios para responsabilização dos gerentes, nos termos dos arts. 75º e 77º do CSC, falhando também legitimidade activa para a demanda da FF com fundamento na impugnação pauliana – ao tempo da deliberação a que aludem os requerentes na petição e que não aprovou a propositura da acção de responsabilidade contra o requerido DD (em 21/05/2024), a decisão criminal ainda não havia transitado quanto à sociedade, o que fundamentou o voto dos sócios maioritários contra a aprovação dessa deliberação (não podendo assim considerar-se a existência de deliberação sobre a não propositura de acção contra o DD em atenção a tal ainda não verificado trânsito em julgado da decisão), não sendo por isso aquela deliberação suficiente para entender cumpridos os pressupostos legalmente exigidos para que os sócios sejam admitidos a substituir a sociedade no exercício do direito de acção (e sendo certo que, entretanto, transitada aquela decisão condenatória criminal, já deliberou a sociedade intentar contra o requerido acção para o responsabilizar), não valendo também o argumento aventado quanto ao requerido EE (tanto mais quanto também quanto a ele, transitada a decisão criminal, deliberou a sociedade intentar contra ele a pertinente acção de responsabilidade).

Cumprido o contraditório – concluindo os requerentes pela sua legitimidade – foi proferida a seguinte decisão:

‘Os Requeridos invocam que a acção social ut singuli (prevista no artigo 77.º do Código das Sociedades Comerciais - CSC) tem um caráter subsidiário. Para que os sócios possam interpor esta acção, é necessário que a sociedade tenha deliberado não propor a ação, ou se tenha recusado a deliberar, ou, tendo deliberado propor, não o tenha feito no prazo de seis meses. A sociedade B..., em Assembleia Geral Extraordinária de 24 de abril de 2025, deliberou propor ação de responsabilidade civil contra os Requeridos DD e EE. Dado que a sociedade deliberou instaurar a ação e ainda não decorreram os seis meses desde essa deliberação, os Requerentes não poderiam antecipar-se à sociedade.

Os Requerentes, embora citem doutrina que defende uma interpretação mais flexível da ação ut singuli (a inação da sociedade é suficiente), reconhecem que, no procedimento cautelar, a aplicação de tal exigência poderia comprometer a eficácia da medida. Mencionam que a sociedade havia deliberado anteriormente (21 de maio de 2024) "nada pretender fazer" relativamente a DD, com base na ausência de trânsito em julgado do processo-crime. Argumentam que a sociedade, através da sua gerência, age conforme as determinações da "família BB". Frisam que a sociedade será sempre a beneficiária do pedido na ação principal. Além disso, os Requerentes alegam abuso de direito (venire contra factum proprium) por parte da Requerida FF, ao viabilizar a deliberação da sociedade para propor a ação e, agora, arguir a ilegitimidade dos sócios.

Como se sabe, a ação dos sócios só pode ser utilizada se a sociedade não tiver solicitado a reparação, e que, se a sociedade deliberar propor a acção, os sócios só estarão legitimados se esta não for proposta no prazo de seis meses a contar da deliberação. No caso concreto, o facto de a sociedade B... ter deliberado propor a acção contra os gerentes DD e EE em 24 de abril de 2025 é decisivo. Independentemente da deliberação anterior (de 21.05.2024), a deliberação mais recente demonstra a intenção da sociedade em agir, o que torna a acção ut singuli dos sócios prematura.

A finalidade da subsidiariedade é dar primazia à atuação da sociedade enquanto titular do direito, evitando acções paralelas ou a antecipação por parte dos sócios. A alegação de "abuso de direito" por parte de FF, embora possa ter relevância para outras questões, não altera o facto de que a condição legal de subsidiariedade para a instauração da acção ut singuli pelos sócios não se encontra preenchida, uma vez que a sociedade já deliberou agir e o prazo legal ainda não decorreu.

Pelo exposto, a exceção de ilegitimidade activa substantiva dos Requerentes para a acção social de responsabilidade civil contra os gerentes procede, por preterição do caráter subsidiário e prematuridade.


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Os Requeridos também argumentam que a legitimidade para a acção pauliana pertence exclusivamente ao credor (a sociedade B...), nos termos do artigo 610.º do Código Civil (CC) e artigo 391.º do Código de Processo Civil (CPC).

Reforçam que o artigo 77.º do CSC (que permite a acção ut singuli) é uma norma excecional aplicável apenas à responsabilização de gerentes, e que a acção pauliana não se destina a esse fim, além de envolver um terceiro que não é gerente (FF).

A legitimidade substantiva exige que o autor seja o titular do direito invocado.

A ação pauliana é um direito do credor. No caso, o direito de crédito invocado é da sociedade B..., não dos sócios minoritários. O artigo 77.º do CSC constitui uma norma de exceção, com aplicação restritiva, que permite aos sócios substituírem-se à sociedade apenas para efeitos de responsabilidade civil de gerentes. Não há qualquer previsão legal que estenda essa legitimidade aos sócios para a instauração de uma acção pauliana em substituição da sociedade. A conexão reconhecida pelo Tribunal para efeitos de competência material (que permite que o Juízo de Comércio aprecie matérias de direito civil conexas com a atividade societária) não confere, por si só, legitimidade ativa substantiva aos sócios para exercerem um direito que pertence diretamente à pessoa coletiva (a sociedade). A ilegitimidade singular é insuprível.

Pelo exposto, a exceção de ilegitimidade activa substantiva dos Requerentes para a ação de impugnação pauliana procede.


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Os Requeridos sublinham que FF não é nem nunca foi gerente da sociedade B.... Consequentemente, as normas de direito societário (artigos 72.º e 77.º do CSC) não lhe são aplicáveis para efeitos de responsabilidade civil.

Qualquer responsabilidade civil de FF seria de natureza extracontratual (artigo 483.º do CC), e o titular do direito indemnizatório seria a própria sociedade B..., não os Requerentes.

À semelhança da ação pauliana, a responsabilidade civil extracontratual é um direito que pertence à parte lesada (neste caso, a sociedade B...), nos termos do artigo 483.º do Código Civil. A acção do artigo 77.º do CSC é uma exceção limitada à responsabilização de gerentes. Como FF não é gerente, os Requerentes não podem invocar o artigo 77.º do CSC para se substituírem à sociedade nesta acção.

A conexão para efeitos de competência material não se traduz em legitimidade substantiva para os sócios litigarem em nome da sociedade fora dos casos excecionais expressamente previstos na lei.

Pelo exposto, a exceção de ilegitimidade activa substantiva dos Requerentes para a ação de responsabilidade civil contra FF procede.


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Decisão Final

Pelo exposto, e em conformidade com os princípios da legitimidade substantiva e o caráter subsidiário das acções específicas em direito societário, o Tribunal decide julgar procedente a exceção de ilegitimidade activa substantiva invocada pelos Requeridos, relativamente a todas as ações principais que o procedimento cautelar de arresto antecipa.

Consequentemente, o pedido formulado pelos Requerentes é julgado improcedente devido à sua falta de legitimidade substantiva, nos termos do artigo 576.º, n.º 3, e 579.º do CPC, mais se determinando a revogação da decisão – proferida sem contraditório prévio – que decretou o arresto.´

Do assim decidido apelam os requerentes, terminando as suas alegações pelas seguintes conclusões:

1. A fundamentação da sentença deve ser de facto – com indicação dos factos provados e não provados - e de direito – com a indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes, e assenta no direito das partes a saberem as razões da decisão do tribunal, de modo a poderem avaliar a bondade da mesma e, se for caso disso, ponderar a sua impugnação, constituindo uma fonte de legitimação da decisão judicial.

2. A decisão sob recurso é nula por falta de fundamentação de facto, nos termos do art.º 615.º n.º 1 al. b) do CPC, ao não fazer o elenco dos factos que tem como assentes ou tidos como provados, limitando-se a afirmar a verificação ou não das exceções que aprecia e a indicar de forma conclusiva a norma jurídica correspondente.

3. Sem prescindir,

A positivação da ação ut singuli visa permitir aos sócios minoritários atuar, em defesa dos interesses da sociedade, contra a inércia do órgão primordialmente competente. A mera inação da sociedade não pode, porém, consubstanciar a única condição para a propositura de ações ut singuli, sob pena de a solução preconizada pecar por manifesto formalismo.

4. Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 7ª ed. 2021- Reimpressão, Almedina, pág. 897, aduz que se inclina para a posição de os sócios poderem tomar a iniciativa de propor individualmente a ação sendo suficiente aguardar que a sociedade nada faça no prazo suficiente para requerer a assembleia geral, com um argumento de ordem prática, qual seja, o de não ser proposta a ação num prazo razoável, fazendo sentido que os sócios o façam, em defesa dos interesses da sociedade».

5. E no caso veja-se que a sociedade nada fez! E continua sem nada fazer!

6. Todavia, mesmo a entender-se em sentido contrário, como a decisão recorrida fez constar, não deve a mesma ser aplicada ao procedimento cautelar por tal situação poder comprometer de forma irremediável a eficácia e o resultado deste procedimento que é preliminar de uma acção declarativa a ser proposta e visa assegurar a efectividade da decisão a ser proferida nessa acção, na qual a sociedade é a beneficiária.

7. Aliás, tal exigência em sede cautelar, atentos os contornos fácticos que vieram a ser dados como provados na decisão que decretou o arresto, ainda que indiciariamente, seria “meio caminho andado” para o insucesso da pretensão, sendo que a referida deliberação teve lugar já com arrestos efectuados e outros ainda em curso.

8. Sendo que a intervenção da sociedade sempre estará assegurada na acção principal, por via do disposto no art.º 77º, n.º 4 do CSC.

9. A interpretação normativa que resulta da conjugação dos artigos 75º, n.º 1 e 77º, n.º 1 do CSC, no sentido de exigir a deliberação da sociedade, o decurso do prazo de propositura da acção e na sua ausência poderem os sócios solicitar a convocação de assembleia geral ou incluir a matéria na ordem do dia, de assembleia geral já convocada, no âmbito de um procedimento cautelar de arresto apresentado por sócios minoritários numa sociedade em que a maioria do capital é detida directa e indirectamente por sócios com interesses comuns, ou melhor por quem não qualquer interesse na responsabilização dos gerentes, visando a defesa do interesse social, é atentatória dos princípios do acesso ao direito e da proporcionalidade, consagrados nos arts.º 18º, n.º 2 da CRP e 20º, n.º 1 e, por isso, inconstitucional.

10. Os recorrentes actuam como defensores do interesse social, fazendo uso de iniciativas procedimentais necessárias para a prossecução daquele interesse.

11. Em bom rigor a requerida FF até actua em abuso do direito, que pressupõe sempre que “o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (artigo 334.º do CC). Na verdade, ao viabilizar a deliberação em causa, no sentido da sociedade propor a acção de responsabilidade, para vir agora pugnar pela procedência da excepção em causa, com os efeitos daí decorrentes, não deixa de constituir um venire contra factum proprium.

12. Na verdade, os recorrentes, quanto ao segundo segmento decisório, a bem do que entendem ser o melhor direito, não têm qualquer dificuldade em aceitar a decisão relativamente à requerida FF; mas já não assim relativamente aos requeridos DD e EE.

13. Com efeito, o princípio normativo que subjaz a esta conclusão é, o de que apenas se impedem que certas causas sejam cumuladas no mesmo processo, mas não que outras, relativamente às quais, inexistam obstáculos, o sejam; logo, a absolvição do pedido deverá atingir, não todo o processo (isto é, todas as acções ou causas cumuladas), mas apenas aquelas relativamente às quais se verificam os referidos obstáculos.

14. E relativamente aos requeridos EE e DD, não se verificam tais obstáculos.

15. Normas jurídicas violadas: 75º e 77º do CSC; 576.º, n.º 3, e 579.º do CPC.

Contra-alegam os requeridos em defesa da decisão apelada e pela improcedência da apelação.


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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Delimitação do objecto do recurso.

Extraem-se das conclusões dos apelantes (conjugadas com a decisão recorrida - ponto de partida do recurso) as seguintes questões decidendas:

- a nulidade da decisão, por falta de fundamentação,

- a legitimidade activa dos requerentes para a presente demanda.


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FUNDAMENTAÇÃO

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A. Da nulidade da decisão – a falta de fundamentação de facto.

Invocam os apelantes a nulidade da decisão por falta de fundamentação de facto (art. 615º, nº 1, b) do CPC), por não elencar matéria provada, limitando-se a ‘afirmar a verificação ou não das exceções que aprecia e a indicar de forma conclusiva a norma jurídica correspondente’.

Importa, porém, ponderar que o apontado vício (tal qual os casos de deficiência parcial, obscuridade ou contraditoriedade da decisão de facto) – que até poder ser conhecido oficiosamente pela Relação (faculdade que não vale para os casos de nulidade da decisão, salvo o caso específico da falta de assinatura, como resulta do art. 615º, nº 1, a) e nº 2 do CPC, pois que proferida a decisão, esgotada fica o poder jurisdicional[1]) –, consubstancia patologia que ao tribunal de recurso se impõe sindicar e (mesmo oficiosamente) suprir (art. 662º, nº 2, c) do CPC) a partir dos elementos que constem do processo (seja ponderando elementos probatórios com força plena ou reponderando os meios de prova que se encontrem disponíveis e que tenham servido de base ao tribunal a quo) e só assim não sendo (se inexistirem elementos probatórios que permitam tal suprimento) poderá determinar a ampliação da matéria de facto, anulando a decisão[2] (a deficiência resultante da falta de pronúncia sobre factos relevantes à decisão da causa deve ser colmatada nos termos dos arts. 640º e 662º do CPC, não sendo a consequência do vício a anulação do acto[3]).

Na situação dos autos, mesmo atendendo a que se trata de decisão que concluiu pela verificação da falta de legitimidade activa dos requentes para a presente demanda (ainda que haja concluído julgando procedente ‘a exceção de ilegitimidade activa substantiva invocada e consequentemente improcedente o pedido formulado, nos termos dos arts. 576.º, n.º 3, e 579.º do CPC – considerando verificada excepção peremptória, não excepção dilatória a dar lugar à absolvição dos requeridos da instância), não pode deixar de considerar-se que a sua fundamentação de facto não se mostra plenamente satisfeita com o que o relatório da decisão pode revelar (como indicação do objecto do processo – causa de pedir e pedido), pois que no caso é necessário ponderar outra matéria concernente a pressuposto essencial para apreciar da verificação dos pressupostos necessários para conhecer da questionada legitimidade activa (isto é, para apurar se os requerentes podem ou não, enquanto sócios, intentar acção de responsabilidade contra gerentes da sociedade), qual seja a existência ou inexistência de deliberação social sobre a propositura da demanda.

De reconhecer, assim que a decisão de facto sofre de vício de deficiência, que importa suprir – sendo certo que se mostram disponíveis os elementos a tanto necessários (mostram-se juntas aos autos as cópias das assembleias em que foram tomadas deliberações concernentes à propositura de acções, pela sociedade, destinadas ao exercício da responsabilidade civil dos gerentes, aqui primeiros requeridos e bem assim a certidão extraída do processo crime nº 34/13.5TELSB).

Assim, suprindo a deficiência da decisão da matéria de facto, julga-se provado (além do que do relatório deste acórdão resulta quanto aos concretos da demanda – causa de pedir e pedido) o seguinte:

- Na assembleia geral da sociedade A..., Ldª, realizada em 21/05/2024, fazia parte da ordem de trabalhos, entre outros, deliberar sobre o seguinte ponto: ‘Deliberar no sentido de a Sociedade propor ação judicial contra o gerente (…) DD, para responsabilização civil (por danos patrimoniais e não patrimoniais) pela prática dos atos que constam da sentença proferida no processo judicial nº 34/13.5TELSB que correu termos no Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 22 – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e do acórdão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, 5ª secção, Processo 34/13.5TELSB.L1 – cópia da acta junta com o requerimento inicial como documento nº 10,

- Tal ponto da ordem de trabalhos mereceu votos favoráveis de GG, em representação dos herdeiros do sócio HH e de II e votos contra de EE, em representação de FF, e de JJ, argumentando este que até à data não havia ainda sido proferida decisão transitada em julgado no referido processo judicial nº 34/13.5TELSB.L1, motivo pelo qual nem os factos em discussão em tal processo se mostravam definitivamente julgados, nem a sociedade fora definitivamente condenada no pagamento de qualquer montante, pelo que à data ainda não sofrera qualquer prejuízo com o identificado processo ou com os factos objecto do mesmo - cópia da acta junta com o requerimento inicial como documento nº 10;

- A decisão proferida no processo crime nº 34/13.5TELSB (que condenou os aqui requeridos e bem assim a sociedade, quer no âmbito criminal, em multa, quer no pedido de indemnização civil, em indemnização de 2.082.498,49€, acrescida de juros) transitou em julgado, quanto à sociedade A..., Ldª, em 20/10/2024 – certidão junta com o requerimento como documento 2.1,

- Na assembleia geral da sociedade A..., Ldª, realizada em 21/05/2025, foi deliberado aprovar (com abstenção da aqui requerida apelada FF) os seguintes pontos da ordem de trabalhos:

Ponto Um: Deliberar no sentido de a Sociedade propor ação judicial contra EE, gerente à data dos factos, para responsabilização civil (por danos patrimoniais e não patrimoniais) pela prática dos atos que constam da sentença proferida no processo judicial n.º 34/13.5TELSB.L1 que correu termos no Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 22 - Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, 5ª secção, Processo nº 34/13.5TELSB.L1. e que levaram à condenação da sociedade.

Ponto Dois: Deliberar no sentido de a Sociedade propor ação judicial contra o gerente, por ora suspenso e destituído, DD, para responsabilização civil (por danos patrimoniais e não patrimoniais) pela prática dos atos que constam da sentença proferida no processo judicial n.º 34/13.5TELSB, causadores de avultados prejuízos à sociedade e aos sócios - cópia da acta junta com o requerimento de oposição como documento 3.

B. Da legitimidade activa dos requerentes para a presente demanda.

A legitimidade (qualidade para agir[4] em juízo – a legitimatio ad causam, posição ou qualidade do sujeito em relação ao litígio, que lhe permite ser parte no concreto processo concreto, que tem esse litígio como objecto[5]; é, essencialmente o poder de dispor do processo, de o conduzir ou gestionar no papel de parte[6]) nem sempre se afere pela regra (geral) assente na titularidade da relação jurídica (dos interesses em jogo) ou, no dizer dos nº 1 e 2 do art. 30º do CPC, e no que se refere à legitimidade activa, pelo interesse directo em demandar (exprimido pela vantagem resultante da procedência da demanda) – tal regra não se aplica nos casos excepcionais de atribuição do direito de acção a titulares de um interesse indirecto[7].

Legitimidade indirecta (em que o autor – no caso da legitimidade activa – substitui o alegado titular do direito), vulgarmente conhecida sob a designação de substituição processual, em que a parte substituta é parte processual (autor ou réu), agindo em nome próprio sobre um direito alheio[8] – embora excepcionalmente, admite a lei que em lugar do próprio titular do direito outrem intervenha na causa como autor, actuando em juízo, em nome próprio, um direito alheio (substituindo-se ao titular no exercício da faculdade de requerer ao tribunal a tutela jurisdicional para uma situação jurídica em relação à qual não goza de disponibilidade exclusiva)[9].

Exemplo paradigmático de substituição processual (com fonte legal[10]) é a acção de responsabilidade movida pelo sócio de sociedade comercial contra gerente, administrador ou director para fazer valer o direito da sociedade à indemnização (art. 77 do CSC)[11].

Estas acções destinadas ao exercício da responsabilidade civil dos gerentes, administradores ou directores, pelos danos causados à sociedade por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais (art. 72º do CSC), podem ser exercidas pela sociedade (a interessada directa, titular do interesse lesado – a titular activa da relação jurídica ou obrigação), ou, verificados determinados pressupostos legalmente previstos, pelos sócios, em nome próprio mas actuando o direito da sociedade e no interesse e proveito da sociedade (a pretensão formulada nessas acções é também a da ‘reparação, a favor da sociedade, do prejuízo que esta tenha sofrido – assim o dispõe o art. 77º, nº 1, parte final do CSC) - acção social ut universi, na primeira hipótese, tratada no art. 75º do CSC (a sociedade dirige-se a juízo para obter ressarcimento pelos danos sofridos pelos actos ou omissões dos gerentes, administradores ou directores praticados com preterição dos seus deveres legais ou contratuais - art. 72º do CSC -, nos seis meses posteriores a deliberar, por maioria simples, propor tal acção); acção social ut singuli, prevista no art. 77º do CSC, proposta por sócios que representem, pelo menos 5% do capital social[12] (nesta são os sócios que pedem a condenação dos demandados gerentes, administradores ou directores a pagar à sociedade - e não a eles próprios - a indemnização devida à reparação dos prejuízos que as condutas daqueles a esta causaram).

Na segunda hipótese (acção ut singuli), a lei ‘dissocia a titularidade do direito à indemnização (encabeçado pela sociedade) da legitimidade activa para a efectivação do mesmo, surgindo os sócios (a minoria legitimada) como autores no processo; ainda que do ponto de vista substantivo, seja a sociedade lesada a credora do direito à indemnização, do ponto de vista processual, a legitimidade activa é (também) reconhecida aos sócios que não são credores da indemnização devida – do ‘ponto de vista substantivo, os sócios, ao abrigo do art. 77º reclamam um direito alheio (o direito da sociedade à indemnização) e não um direito próprio’, sendo próprio tão só o direito dos sócios promoverem a acção social de responsabilidade[13].

A questão trazida em apelação centra-se, precisamente, em apreciar quais os pressupostos para o surgimento deste direito próprio dos sócios a promoverem a acção social de responsabilidade – a substituírem-se à sociedade no exercício da faculdade de requerer em juízo o reconhecimento o direito indemnizatório e de o fazer valer (e bem assim de recorrer aos procedimentos necessários a acautelar o efeito útil da demanda – art. 2º, nº 2 do CC).

Tal direito dos sócios a substituírem-se à sociedade, no âmbito da legitimidade processual, tem como pressuposto a inacção da sociedade – na expressão do nº 1 do art. 77º do CSC, que a sociedade não haja solicitado, em juízo, a reparação (não tenha exercido, em juízo, o direito de acção).

Inacção da sociedade que deve considerar-se existente tanto quando, tendo-a deliberado, não haja proposto a acção de responsabilidade no prazo de seis meses decorridos sobre a deliberação como quando haja deliberado não propor tal acção.

Vexata quaestio é a situação de inexistência de deliberação da sociedade.

Questão que pode colocar-se nos seguintes termos: i) deve ter-se por suficiente a simples e mera inércia da sociedade (verificada até ao momento em que o sócio se dirige a juízo para exercer o direito subjectivo daquela) para o preenchimento do estabelecido no nº 1 do art. 77º do CSC, ou ii) antes deve exigir-se para o surgimento do direito próprio do sócio à substituição processual (com fonte legal no art. 77º do CSC) que a sociedade manifeste expressa e conscientemente, através de deliberação, o propósito de não exercer o direito à indemnização?

Seguimos este segundo entendimento, desde logo porque não se nos afigura que o primeiro[14] seja conforme à lei e aos interesses em jogo.

Temos por não concludente o argumento de ordem prática de que faz sentido conferir efectividade ao direito dos sócios minoritários (a substituírem-se processualmente à sociedade), pois a não propositura da acção pela sociedade num prazo razoável mais não seria que simples objectivação da vontade da maioria em rejeitar uma deliberação no sentido de propor a acção[15].

Para lá da assertiva crítica a que tal posição fica sujeita por não densificar o que deve considerar-se como ‘prazo suficiente’ ou ‘razoável’ para que a sociedade siga os trâmites necessários a tomar uma deliberação sobre a propositura (ou não) da acção (atente-se na incerteza e insegurança que tal solução acarreta)[16], deve evidenciar-se que por tal entendimento é conferido relevo a uma mera inação em situação na qual ao silêncio não pode ser reconhecido significado declarativo[17] (art. 218º do CC – não pode conceder-se, e excluído o valor convencional do silêncio, que a sociedade tenha incumprido ou entrado em mora quanto ao cumprimento dum ónus de deliberar num qualquer prazo tido pelo sócio como razoável, tanto mais mantendo-se este também inerte e silente ao não exercer o direito de convocar assembleia em vista de deliberar sobre a propositura da acção) e, bem assim, descurado que sobre o sócio impende o dever (como se retira do art. 242º, nº 1 do CSC) de agir com lealdade (um verdadeiro dever jurídico[18] de proteger a sociedade e promover todas as acções que entenda necessárias à defesa dos direitos e interesses desta) e, assim, de diligenciar ele para que a sociedade delibere a proposição de tal acção (pois que também titular do dever de promover o fim último e precípuo da sociedade, qual seja o de alcançar lucro e, por contraponto, o dever de determinar a sociedade a fazer-se ressarcir de prejuízos que possam ter-lhe sido causados pelos gerentes, administradores ou directores).

Por isso que o interesse dos sócios minoritários (fora dos casos em que a sociedade não propõe a acção nos seis meses posteriores à deliberação de propositura ou já deliberou não a propor) não exige que se prescinda, para o surgimento do direito próprio à propositura da acção de responsabilidade (à substituição processual), de uma deliberação da sociedade de não propositura da acção – mesmo nas situações em que fosse de reconhecer como altamente previsível uma deliberação de não propositura (por objectivar uma pressentível e antevista vontade da maioria dos sócios) sempre será de contrapor que a deliberação de tal recusa cumpre, plenamente, os interesses dos sócios minoritários, pois que gera o direito próprio de propositura da acção[19].

Acolhemos, assim, a posição que sustenta que o surgimento do direito próprio do sócio à substituição processual (art. 77º, nº 1 do CSC) tem por pressuposto que a sociedade manifeste expressamente, através de deliberação, o propósito de não exercer o direito à indemnização – a ‘natureza subsidiária da acção prevista no art. 77º do CSC, por referência à aludida no art. 75º do mesmo código, não permite dissociar ambos os preceitos, cuja leitura e interpretação terão necessariamente de ocorrer em conjunto’ e, por isso, que à acção ut singuli apenas se poderá recorrer na eventualidade de a sociedade não ter exercido o seu direito de acção e de ‘estar demonstrado que não o irá exercer’[20].

Não pode reconhecer-se, pois, o direito próprio do sócio à substituição processual quando se fundamente ou baseie numa antecipação ao processo formativo da vontade social quanto a propor ou não propor a acção de responsabilidade (art. 75º do CSC), tanto mais quanto o sócio deve agir com lealdade para com a sociedade e tem ao seu dispor os meios para provocar uma tal tomada de decisão da sociedade, fazendo convocar a assembleia ou incluir em assembleia já convocada um tal assunto na ordem do dia (assim, quanto às sociedades por quotas – o que releva no caso – os arts. 248º, nº 1 e 2, 375º, nº 1 e 2 e 378º do CSC). O sócio não pode, pois, antecipar-se a uma eventual actuação da sociedade, antes devendo provocar uma expressa tomada de posição desta sociedade a esse propósito, pois só perante deliberação que recuse a propositura da poderá substituir-se processualmente à sociedade propondo a acção – a ‘tomada de posição da sociedade, no sentido de que não irá propor qualquer acção nos moldes previstos pelo artigo 75.º do CSC é, aliás, a única forma de combater a insegurança e incerteza que, de outro modo, sempre existiriam quanto a essa matéria.’[21]

Conclui-se, assim, que a configuração do regime legal da substituição processual em que a acção ut singuli se traduz, ponderando o que a propósito se dispõe no nº 1 do art. 75º do CSC, tem também por função ‘permitir determinar claramente o momento a partir do qual pode ser afirmada a inércia da sociedade, nomeadamente para o efeito de se admitir que possa ter lugar o recurso à acção social «ut singuli»’, sendo porém de ‘excluir que a simples ausência de deliberação da sociedade sobre a acção social de responsabilidade legitime os sócios minoritários para intentarem a acção «ut singuli»’ – em tais circunstâncias ‘estes deverão solicitar convocação da assembleia geral ou a inclusão do assunto na ordem do dia de assembleia geral já convocada’[22] e só depois de assim procederem poderão (seja face à deliberação de recusa, seja face à não proposição no prazo de seis meses após deliberação positiva) recorrer a juízo, nos termos do art. 77º do CSC.

Aspecto importante (e que, no caso trazido em apelação, releva decisivamente) – enquanto a sociedade não tiver assumido a recusa de proposição da acção de responsabilidade pela actuação ilícita dos gerentes, administradores e directores para ressarcimento dos danos sofridos, não se poderá considerar gerado na esfera jurídica dos sócios o direito próprio a propor tal acção; apenas depois de inviabilizada a instauração da acção pela sociedade ‘poderão os sócios exercer a acção de responsabilidade prevista no art. 77º já que, enquanto tal posição não estiver assumida, sempre poderá a acção ser intentada pela sociedade’[23].

Solução que vale não apenas para a acção declarativa de condenação como também para o procedimento cautelar necessário a acautelar o efeito útil da acção (art. 2º, nº 2 do CPC) – basta atentar que também no âmbito do procedimento cautelar valem as regras gerais de aferição da legitimidade e, por isso, que os pressupostos para reconhecer a legitimidade indirecta (substituição processual) que possibilita ao requerente do arresto vir a juízo, em nome próprio, acautelar a garantia patrimonial do crédito (do direito indemnizatório) alheio, terão de mostrar-se preenchidos no momento em que o arresto é requerido e decretado (assim não acontecendo, não se tratará de considerar injustificada a providência, por não demonstrada a provável existência do crédito do requerente – um dos requisitos da providência cautelar de arresto –, mas sim de considerar que o requerente não tem legitimidade, directa ou indirecta, para requerer a providência).

A legitimidade processual não é objecto de regulamentação especial no âmbito dos procedimentos cautelares e, por isso, deve tal pressuposto ‘ser aferido pelos critérios legalmente fixados para a propositura da acção ou da execução’ – seja em atenção à regra geral, seja em atenção às excepcionais ‘situações de legitimação extraordinária ou indirecta, conferindo legitimidade a sujeitos que não são titulares’ da relação jurídica[24].

Assim, no arresto, a legitimidade activa pertence ou ao credor (ao titular do crédito cuja garantia patrimonial se visa acautelar), legitimidade directa, ou àquele que demonstre estarem verificados os necessários pressupostos para se substituir processualmente ao credor e actuar em juízo, em nome próprio, o crédito daquele, legitimidade indirecta.

Legitimidade directa ou indirecta que, no arresto (tal como na acção declarativa), vale também quanto à demanda do adquirente de bens do devedor (quando o arresto, nos termos do nº 2 do art. 392º do CPC, for deduzido também como preliminar de acção de impugnação pauliana[25]) – exige-se, nos mesmos termos, que o requerente seja o titular activo do crédito cuja garantia patrimonial se pretende tutelar (legitimidade indirecta) ou que possa, face à lei (a substituição convencional não interessa à economia da apelação), em nome próprio, dirigir-se a juízo para acautelar a garantia patrimonial do crédito doutrem perante o adquirente de bens do devedor.

Interpretação que (ao contrário do sustentado pelos requerentes apelantes) não atenta contra os princípios do acesso ao direito e da proporcionalidade, constitucionalmente consagrados (art.s 18º, nº 2 e 20º, nº 1 da CRP) – na verdade, tal interpretação não representa qualquer desproporcionado entrave à tutela jurisdicional efectiva que busca quem, não sendo seu titular, pretende acautelar a eficácia de direito alheio; os referidos princípios constitucionais não impõem interpretação que permita que a tutela cautelar seja requerida por (e conferida a) quem, não sendo titular do direito subjectivo, não possa àquele titular substituir-se processualmente.

Doutro modo: a tutela cautelar, ponderada à luz dos princípios da proporcionalidade e do acesso ao direito, não importa, de per si, se reconheça legitimidade indirecta a quem não cumpre (ao tempo da propositura da providência) os requisitos legais para a invocar; no caso da acção ut singuli, também na tutela cautelar o legitimado indirecto está a exercer um direito próprio do sócio à substituição processual e, por isso, a legitimidade indirecta terá de (e só poderá) ser-lhe reconhecida com esse fundamento (não podendo ser-lhe antecipado - ainda que só ‘cautelar’ ou ‘provisoriamente’ - esse direito à substituição processual, pois que o titular ainda do seu exercício não abdicou).

Aplicando o que vem de dizer-se à situação trazida em recurso – e ponderando a matéria de facto acima elencada.

Linear a conclusão de que os requerentes não têm legitimidade activa para a demanda dirigida ao requerido EE – não existe deliberação da sociedade a recusar a propositura de acção de responsabilidade quanto a ele; a única deliberação tomada pela sociedade tendo-o por sujeito ocorreu já depois de proposta a presente providência e foi no sentido de propor acção contra ele.

Igual conclusão vale a propósito da demanda dirigida ao requerido DD, considerando que na deliberação de 21/05/2024 foi ponderado que ainda não podia ter-se por definitivamente adquirido o dano ou prejuízo da sociedade - quanto à sociedade ainda não havia decisão transitada no âmbito do processo nº 34/13.5TELSB, como aliás notado e apontado na votação a que se procedeu a propósito de propor contra o gerente DD acção para o responsabilizar civilmente pelos danos sofridos pela sociedade como consequência dos actos constantes da sentença proferida em tal processo (a existência do dano tornou-se certa com o trânsito da decisão que condenou a sociedade, em razão dos actos praticados pelos seus gerentes DD e EE, no pagamento da indemnização de 2.082.498,49€, acrescida de juros – decisão que, quanto à sociedade, transitou em 20/10/2024).

Tem assim de considerar-se que aquela deliberação de Maio de 2024 não representa nem traduz uma recusa da sociedade em exercer o seu direito contra o gerente DD, ponderando que não estava então ainda definitivamente adquirida a existência do prejuízo – e sendo certo que a causa de pedir da presente providência assenta no trânsito da decisão proferida naquele processo criminal. Naquela deliberação, a sociedade não assume qualquer recusa de exercer o seu direito indemnizatório contra o gerente, pois que é então ponderado ser prematuro considerar a existência de dano (por não poder ter-se por demonstrado, com trânsito, a existência do prejuízo) – então, foi tão só manifestado o entendimento de que não estavam ainda disponíveis todos os elementos necessários para concluir o processo formativo da vontade, mantendo a sociedade tal questão em aberto (e sujeita, por isso, a deliberação logo que disponíveis tais elementos em falta).

Não pode, por isso, aquela deliberação constituir o momento a partir do qual se admite o recurso à acção social «ut singuli» (o que, diga-se, os apelantes em rigor não negam na apelação).

Conclui-se, pois, que também relativamente ao requerido DD se não verificam os necessários pressupostos para reconhecer aos apelantes legitimidade (indirecta) processual para a causa.

Falta de legitimidade para defender e acautelar o crédito da sociedade perante o requerido DD que se comunica à demanda dirigida contra a FF, fundada no instituto da impugnação pauliana – não tendo os requerentes apelantes, sócios, legitimidade activa para acautelar a garantia patrimonial do crédito de que a sociedade é titular e o requerido DD devedor, não têm eles também (como necessária consequência) legitimidade para a tutela cautelar dirigida contra a adquirente dos bens do devedor (requerida apelada FF).

Falta de legitimidade dos requerentes apelantes para a demanda da FF cuja declaração não seria prejudicada ainda que fosse de reconhecer verificar-se o invocado abuso de direito (por vir a requerida apelada suscitar tal excepção depois de em 21/05/2025 votar favoravelmente a deliberação no sentido da sociedade propor acção de responsabilização contra os sócios) – mais do que referir que a requerida FF se absteve quanto a tal deliberação e, bem assim, que tal deliberação não é contrária à invocada excepção de ilegitimidade (deliberou-se ali que a sociedade propusesse acção social ut universi, e assim, nos termos art. 75º do CSC, exercesse os seus direitos contra os gerentes; a excepção da ilegitimidade aqui arguida tem por pressuposto que os sócios, aqui requeridos, não podem exercer a acção ut singuli, substituindo-se processualmente à sociedade no exercício do direito desta), tem de afirmar-se que a legitimidade processual é pressuposto processual de oficioso conhecimento cuja verificação e operância não seria afastada mesmo que houvesse de reconhecer-se tal exercício abusivo.

De afirmar, pois, a falta de legitimidade activa dos requerentes apelantes para o presente procedimento cautelar (o que, tratando-se de excepção dilatória insuprível, tem como consequência, não a absolvição do pedido, como referido na decisão apelada, mas a absolvição dos requeridos apelados da instância – arts. 278º, nº 1 d), 278º, 576º, nº 1 e 2, 577º, e) e 578º, todos do CPC).

C. Síntese conclusiva

Do exposto - por se dever afirmar e declarar a ilegitimidade activa dos requerentes apelantes para o presente procedimento cautelar, com a consequente absolvição dos requeridos apelados da instância - resulta a improcedência da apelação, podendo sintetizar-se a argumentação decisória, nos termos do nº 7 do art. 663º do CPC, nas seguintes proposições:

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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em – declarando e julgando verificada a ilegitimidade activa dos requerentes apelantes para a presente demanda, com a consequente absolvição dos requeridos apelados da instância – em julgar improcedente a apelação.

Custas pelos apelantes.


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Porto, 28/10/2025
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
João Ramos Lopes
Alexandra Pelayo
Anabela Miranda
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[1] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral de Processo de Declaração, 2018, p. 734, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª edição, pp. 728 e 729 e Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, 2ª Edição, p. 607.
[2] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pp. 306 a 308.
[3] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), Volume 2º, p. 734.
[4] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 83.
[5] Antunes, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp. 131 e 132.
[6] Manuel de Andrade, Noções (…), p. 84.
[7] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 4ª edição, p. 92.
[8] Miguel Teixeira de Sousa, CPC online, Versão de 2024/02 (disponibilizada em entrada de 20/02/2024 no Blog do IPPC – blogippc.blogspot.com), CPC art. 1º a 129º, Nota Prévia aos art 30 a 39, p. 37 (ponto 2).
[9] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, 1982, p. 196.
[10] A substituição processual pode ter fonte tanto a lei como a vontade das partes - Anselmo de Castro, Direito Processual (…), II, p. 196 e Miguel Teixeira de Sousa, CPC online (…), CPC art. 1º a 129º, Nota Prévia aos art 30 a 39, p. 37 (ponto 2).
[11] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), Volume 1º, p. 92.
[12] Ou, hipótese que não releva à presente apelação, 2% no caso de sociedade emitente de acções admitidas à negociação em mercado regulamentado – no 1º do art. 77º do CSC, na redacção introduzida pelo art. 2º do DL 76-A/2006, de 29/03.
[13] Maria Elisabete Gomes Ramos, Minorias e a acção social de responsabilidade, I Congresso de Direito das Sociedades em Revista, 2012, p. 377, apud acórdão da Relação de Lisboa de 9/04/2024 (Renata Linhares de Castro).
[14] O acórdão da Relação de Lisboa de 9/04/2024 (Renata Linhares de Castro) cita vária doutrina que defende esse primeiro entendimento.
[15] Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 7ª edição, 2022, p. 897.
[16] Assim o acórdão da Relação de Lisboa de 9/04/2024 (Renata Linhares de Castro), no sítio www.dgsi.
[17] Cfr., a propósito do valor declarativo do silêncio, Luís Carvalho Fernandes, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora (coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença), nota ao artigo 218º, pp. 492/493.
[18] O dever jurídico consiste na necessidade imposta pelo direito objectivo de observância de determinados comportamentos com vista a salvaguardar interesses alheios, exigindo-se o seu acatamento ou cumprimento em ordem a respeitar direito subjectivo alheio.
[19] Assim, assertivamente, o citado acórdão da Relação de Lisboa de 9/04/2024 (Renata Linhares de Castro).
[20] Mais uma vez o citado acórdão da Relação de Lisboa de 9/04/2024 (Renata Linhares de Castro).
[21] Assim, judiciosa e esclarecidamente, o citado acórdão da Relação de Lisboa de 9/04/2024 (Renata Linhares de Castro).
[22] Maria de Fátima Ribeiro, ‘A função da acção social “ut singuli” e a sua subsidiariedade’, Direito das Sociedades em Revista, Outubro de 2011, ano 3, vol. 6, pp. 176/177, apud acórdão da Relação de Lisboa de 9/04/2024 (Renata Linhares de Castro).
[23] Mais uma vez o acórdão da Relação de Lisboa de 9/04/2024 (Renata Linhares de Castro).
[24] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume (4ª edição revista e actualizada), Procedimento Cautelar Comum, pp. 220/221.
[25] Do preceito decorre a possibilidade de o arresto ser deduzido como preliminar de acção pauliana, demonstrando o requerente os factos que tornem provável a sua procedência, ou seja, os requisitos da impugnação pauliana – João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2ª Edição, revista e aumentada, pp. 299/300.