Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
13265/18.2T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: CITAÇÃO
CARTA RECEBIDA POR TERCEIRO
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
DESPACHO SANEADOR
Nº do Documento: RP2023092513265/18.2T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 09/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 01/09/2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos, razão pela qual a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado devendo, assim, eliminar-se da fundamentação factual os pontos que neles se contenham meras conclusões.
II - Do regime legal de citação decorre: a)- ser equiparada à citação pessoal a efetuada em pessoa diversa do citando, encarregada de lhe transmitir o conteúdo do ato; b)- que, em tal situação presume-se, salvo prova em contrário, ter tido o citando oportuno conhecimento do conteúdo da mesma; c) que no caso de citação de pessoa singular, através de carta registada com aviso de receção, esta pode ser entregue a qualquer pessoa (terceiro) que se encontre na residência ou local de trabalho do citando, desde que declare encontrar-se em condições de lha entregar prontamente; d)- nesta situação, a citação considera-se efetuada na própria pessoa do citando, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta de citação foi oportunamente entregue àquele.
III - A presunção de entrega ao destinatário, de natureza ilidível, prevista no n.º 1 do artigo 238.º do (presentemente, artº. 230.º) e no nº. 4, do artº. 233º (presentemente 225.º), ambos do CPCivil de 1961 (na redação à data vigente), apenas funciona caso se cumpram todos os pressupostos de tal entrega, nomeadamente, e no que ora importa, a sua feitura ou ocorrência, no lugar próprio (residência ou local de trabalho), legalmente enunciado.
IV - Todavia, não sendo operatória tal presunção, caso em que a carta foi recebida por terceiro, em local que já não correspondia à sua residência (nem local de trabalho), não se pode considerar que o citando tenha ficado onerado com qualquer ónus, nomeadamente o prescrito na alínea e), do artº. 195.º (presentemente, artº. 188.º), do Cód. de Processo Civil (na redação à data vigente).
V - Os poderes de representação “perante a justiça portuguesa em geral” constantes de procuração não contemplam o poder de receber citações.
VI - Estando controvertido que o citando não residia no local para onde foi expedida a carta para citação, nem esse era o seu local de trabalho, foi prematuro o conhecimento de mérito no despacho saneador dos embargos deduzidos que apenas deve ter lugar quando o processo fornecer, já em tal fase processual, todos os elementos de facto necessários à decisão do caso segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 13265/18.2T8PRT-A.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Execução do Porto-J3
Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Drª Teresa Maria Sena Fonseca
Sumário:
………………………
………………………
………………………
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO

Por apenso à execução que lhe foi movida por A...-Sucursal da Sociedade Anónima Francesa A..., SA, veio o executado AA, com os demais sinais nos autos, apresentar os presentes embargos de executado.
Alega em resumo a nulidade da sua citação, por falta da mesma, referindo que jamais recebeu qualquer citação, sendo as cartas endereçadas recebidas por um terceiro, BB, que nunca lhe deu conhecimento das mesmas.
Mais peticiona a suspensão da execução com fundamento na citada nulidade de citação.
No mais, em sede de oposição à penhora veio o embargante invocar, tão-somente, a manifesta desproporcionalidade entre o valor da dívida exequenda e a penhora efetuada, “dois imóveis urbanos, sitos na Costa da Caparica, com valor muitíssimo superior ao da dívida”.
Assim, termina peticionando:
“Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, devem os presentes embargos ser recebidos, autuados por apenso, e, produzida a prova, julgados procedentes por provados, com todas as demais e legais consequências daí decorrentes.
Mais se requer a suspensão da instância executiva sem prestação de caução até decisão dos embargos com os fundamentos atrás aduzidos.
Requer-se ainda sejam as penhoras sobre ambos os imóveis, levantadas por desadequadas e desproporcionadas aos fins da execução”.
*
Na contestação, a exequente pugna pela improcedência da peticionada nulidade porquanto o embargante outorgou procuração a favor desse terceiro, pessoa encarregue de receber citações, como sucedeu nos autos.
Quanto ao demais alegado, invocou o embargado que previamente à penhora realizada nestes autos, existem registadas duas hipotecas e penhoras anteriores, pelo que não se verifica qualquer desproporcionalidade.
Termina peticionando:
“Requer-se que se oficie ao tribunal onde correu termos a ação declarativa onde foi proferida a sentença dada à execução-ao presente no juízo local cível de Matosinhos, Juiz 1, comarca do porto, processo 1636/09.0tbmts-no sentido se se mandar apensar a estes autos a dita ação declarativa”.
*
Conclusos os autos foi proferido despacho saneador sentença que julgou improcedentes os embargos e determinou a normal tramitação da execução, mais julgando improcedente a oposição à penhora.
*
Não se conformando com o assim decidido veio o embargado interpor o presente recurso concluindo com extensas alegações que aqui nos abstemos de reproduzir.
*
Devidamente notificada contra-alegou a embargada exequente concluindo pelo não provimento do recurso.
*
Corridos os vistos legais cumpre decidir.
*
II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
*
No seguimento desta orientação são duas as questões que importa apreciar:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- saber se se verifica ou não a nulidade da citação na ação declarativa de que esta execução é apensa.
*
A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1. Foi dada a execução a sentença, que aqui se dá por integralmente reproduzida, proferida em 30.09.2012, que correu termos no Juízo Local de Matosinhos, tendo sido condenado “Pelo exposto julga-se a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, condena-se o Réu a pagar à Autora: a) a quantia correspondente às prestações de capital vencidas entre 20 de Maio de 2008 e a citação para a presente ação, acrescida dos respetivos juros remuneratórios à taxa de 30,94%; b) a quantia correspondente às demais prestações de capital vencidas e não pagas, em valor a liquidar em incidente de liquidação; c) os juros de mora, à taxa de 30,94% sobre o valor do capital e juros remuneratórios relativos às prestações vencidas até à citação, que se apurarem em incidente de liquidação, desde 20 de Maio de 2008 e até efectivo e integral pagamento”.
2. Nesses autos a exequente figurou como Autora e o Réu como executados, tendo este último sido citado, na pessoa de BB, por carta registada com aviso de receção, na data de 20.01.2009, na morada constante do contrato em crise na ação declarativa, Rua ..., ..., Matosinhos (cfr. aviso de receção junto aos autos).
3. Após, foi remetida nova missiva para a morada constante em 3, com o teor “Nos termos do disposto no art.º 241.º do Código de Processo Civil, fica V. Ex.ª notificado de que se considera citado na pessoa e na data da assinatura do Aviso de Receção de que se junta cópia, que recebeu a citação e duplicados legais. O prazo para contestar é de 20 dias. Na falta de contestação poderá ser conferida força executiva à petição. A contagem do prazo suspende-se durante as férias judiciais. Terminando em dia que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte. Fica advertido de que é obrigatória a constituição de mandatário judicial”.
4. Em 9 de Maio de 2008, o executado outorgou procuração a favor de BB com o seguinte teor: “Por este particular instrumento de Procuração, nomeio e constituo BB como meu bastante procurador, acima qualificado, a quem confio amplos, gerais e ilimitados poderes para, onde com este apresentar, tratar de todos os meus negócios: podendo vender, hipotecar, permutar, doar, dar em pagamento ou penhor e de qualquer outra forma alienar ou onerar seus bens imoveis, direitos, ações e outros de qualquer natureza, possuídos ou que venha a possuir, assumir compromissos e obrigações; contrair empréstimos e confessar dívidas; renunciar direitos; aceitar doações onerosas; ceder; transferir e caucionar créditos, direitos e ações; prestar tudo quanto por qualquer titulo lhe seja devido e dar quitações, celebrar quaisquer contratos, estipular quaisquer cláusulas ou condições, mesmo penais, para os negócios que realizar, responder por evicção, outorgar, aceitar e assinar escrituras de qualquer natureza, representar-me, enfim, em todos os atos e contratos que dependam da minha anuência, presença, outorga ou assinatura, podendo, outrossim, transigir em tribunal ou fora dele, representar-me perante a justiça portuguesa em geral, com os poderes de cláusula “adjudicar” e mais especiais para desistir, confessar, receber e dar quitações, e firmar compromissos, praticar, enfim, todos os demais atos necessários para o fiel e cabal cumprimento do presente mandato, inclusive subestabelecer”.
5. No dia 31.05.2022, foi realizada a penhora do imóvel designado pela fração CS, melhor identificado no auto de penhora junto aos autos de execução, pelo valor de 52.968,63€, como verba n.º 1, imóvel descrito sob o artigo n.º 3284, na Conservatória do Registo Predial de Almada (cfr. auto de penhora dos autos de execução, cujo teor, no mais, aqui se dá por integralmente reproduzido).
6. Da certidão predial do imóvel referido no ponto 5 consta que sobre o mesmo incidem, para além da penhora referida naquele ponto 5:
a) A hipoteca, registada sob a Ap. ... de 11.02.2000, a favor de Banco 1..., S.A., correspondente ao valor de 17.987.750,00 Escudos;
b) A penhora, registada sob a Ap. .../09, a favor de Fazenda Nacional, correspondente ao valor de 17.322,60 Euros;
c) A penhora, registada em 2014/06/06, a favor de Fazenda Nacional, correspondente ao valor de 747,23 Euros;
d) A penhora, registada em 2015/02/20, a favor de Fazenda Nacional, correspondente ao valor de 774,09 Euros.
7. No dia 31.05.2022, foi realizada a penhora do imóvel designado pela fracção A, melhor identificado no auto de penhora junto aos autos de execução, pelo valor de 38.034,16€, como verba n.º 2, imóvel descrito sob o artigo n.º 3005, na Conservatória do Registo Predial de Amora (cfr. auto de penhora dos autos de execução, cujo teor, no mais, aqui se dá por integralmente reproduzido).
8. Da certidão predial do imóvel referido no ponto 7 consta que sobre o mesmo incidem, para além da penhora referida naquele ponto 7:
e) A hipoteca, registada sob a AP. ... de 1997/07/14, a favor de Banco 2..., S.A., correspondente ao valor de 10.422.650,00 Escudos;
f) A penhora, registada em 2010/04/08, a favor de Condomínio do prédio sito na Avenida ..., correspondente ao valor de 5.096,23 Euros;
g) A penhora, registada em 2014/06/06, a favor de Fazenda Nacional, correspondente ao valor de 912,17 Euros.
9. O valor da dívida exequenda e das despesas prováveis, à data das penhoras, era de 75.142,58€.
*
III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respetivas conclusões o apelante abrange, com o recurso interposto, a impugnam a decisão da matéria de facto, não concordando com a resenha dos factos provados.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.
Efetivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente impercetível na gravação/transcrição.[1]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[2]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[3]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[4]
Importa, porém, não esquecer porque, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[5]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão ao embargante/apelante neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele pretendidos.
Impugna, desde logo o recorrente o ponto 2. dos factos provados, alegando que o mesmo encerra matéria conclusiva.
Este ponto tem a seguinte redação:
Nesses autos a exequente figurou como Autora e o Réu como executados, tendo este último sido citado, na pessoa de BB, por carta registada com aviso de receção, na data de 20.01.2009, na morada constante do contrato em crise na ação declarativa, Rua ..., ..., Matosinhos (cfr. aviso de receção junto aos autos)”.
Tem, de facto, razão o apelante.
Na verdade, sendo a validade da citação o thema decidendum e fundamento dos embargos deduzidos, torna-se evidente que a redação do citado ponto não pode subsistir com aquele conteúdo já que, contém ele próprio, a resposta à questão jurídica colocada.
Importa não esquecer que o artigo 607.º, nº 4 do CPCivil[6] dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.
Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.
Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.
Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (artigo 607.º, nº 3 do CPCivil) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (artigo 607.º, nº 4).
Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência“[7].
Antunes Varela considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “às respostas do coletivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito“[8].
Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.
Diante do exposto altera-se a redação do citado ponto factual pela seguinte forma:
Nesses autos, a Exequente figurou como Autora e o Executado como Réu, tendo o Juízo Local de Matosinhos remetido a carta de citação dirigida ao então réu por correio registado com aviso de receção, endereçada para a Rua ..., ... Matosinhos, a qual foi recebida em 20/03/2009 por BB, conforme aviso de receção junto aos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido”.
*
Alega depois o apelante que o tribunal considerou não provada qualquer outra matéria factual quando, na verdade existem outos factos que deveriam ter sido dados como provados, elencando-os nas conclusões 14ª e 20ª.
Acontece que, sob este conspecto, os citados factos estão carecidos de prova face ao teor da contestação apresentada pela embargada recorrida e, concretamente, face ao teor do artigo 2º da citada peça, o que poderá determinar, caso não proceda a invocada nulidade da citação, a anulação da decisão recorrido com vista a ampliação da base factual que possa eventualmente sustentar, uma vez provada, que a citação em pessoa diversa do citando não obedeceu aos cânones a que se referem os artigos 236.º e 238.º do CPCivil de 1961 [cfr. artigo 662.º, nº 2 al. c) do CPCivil].
*
Impugna depois o apelante os pontos 6., 8. e 9. dos factos provados relativos à oposição à penhora.
*
Também aqui assiste inteira razão ao apelante face aos elementos documentais juntos autos e por eles referenciados nas respetivas conclusões 22ª a 30ª.
Como assim altera-se a redação dos citados pontos factuais pela seguinte forma:
Ponto 6.
Sobre o imóvel referido em 5, incide, para além da penhora efetuada nos autos de execução: A hipoteca, registada sob a Ap. ... de 11.02.2000 conjugada com a AP. AP. ... de 2020/08/13 relativa a operação de fusão, a favor de Banco 3..., para garantia de capital, juros, cláusula penal e despesas no valor máximo assegurado de 17.987.750,00 Escudos”.
Ponto 8.
“Sobre o imóvel referido em 7 incide, para além da penhora efetuada nos autos de execução: A hipoteca, registada sob a AP. ... de 1997/07/14, a favor de Banco 2..., S.A., para garantia de capital, juros, cláusula penal e despesas no valor máximo assegurado de 10.422.650,00 Escudos”.
Ponto 9.
“O valor indicado da dívida exequenda, à data da instauração da ação executiva, foi 30.376,15 €”.
*
Alterado pela forma descrita o quadro factual a segunda questão que vem colocada no recurso prende-se com:
a)- saber se se verifica ou não a nulidade da citação na ação declarativa de que esta execução é apensa.
Dispunha o artº. 233.º, nºs. 1, 2, al. b) e 4, do Cód. de Processo Civil[9], em vigor à data dos factos, à cerca das modalidades de citação, que:
“1 - A citação é pessoal ou edital.
2 - A citação pessoal é feita mediante:
(….)
b) Entrega ao citando de carta registada com aviso de receção, seu depósito, nos termos do n.º 5 do artigo 237.º-A, ou certificação da recusa de recebimento, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo;
(….)
4 - Nos casos expressamente previstos na lei, é equiparada à citação pessoal a efetuada em pessoa diversa do citando, encarregada de lhe transmitir o conteúdo do cato, presumindo-se, salvo prova em contrário, que o citando dela teve oportuno conhecimento”.[10]
A citação por via postal encontrava-se prevista no artº. 236.º, dispondo nos seus nºs. 1 a 4 que dispunha:
1 - A citação por via postal faz-se por meio de carta registada com aviso de receção, de modelo oficialmente aprovado, dirigida ao citando e endereçada para a sua residência ou local de trabalho ou, tratando-se de pessoa coletiva ou sociedade, para a respetiva sede ou para o local onde funciona normalmente a administração, incluindo todos os elementos a que se refere o artigo 235.º e ainda a advertência, dirigida ao terceiro que a receba, de que a não entrega ao citando, logo que possível, o fará incorrer em responsabilidade, em termos equiparados aos da litigância de má fé.
2 - No caso de citação de pessoa singular, a carta pode ser entregue, após assinatura do aviso de receção, ao citando ou a qualquer pessoa que se encontre na sua residência ou local de trabalho e que declare encontrar-se em condições de a entregar prontamente ao citando.
3 - Antes da assinatura do aviso de receção, o distribuidor do serviço postal procede à identificação do citando ou do terceiro a quem a carta seja entregue, anotando os elementos constantes do bilhete de identidade ou de outro documento oficial que permita a identificação.
4 - Quando a carta seja entregue a terceiro, cabe ao distribuidor do serviço postal adverti-lo expressamente do dever de pronta entrega ao citando”.[11]
Relativamente à data e valor de tal modalidade de citação, prescreve o nº. 1, do artº. 238º que “a citação postal efetuada ao abrigo do artigo 236.º considera-se feita no dia em que se mostre assinado o aviso de receção e tem-se por efetuada na própria pessoa do citando, mesmo quando o aviso de receção haja sido assinado por terceiro, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário”.[12]
Por fim, no que se reporta à advertência ao citando, quando a citação não haja sido na própria pessoa deste, refere-se no artº. 241.º que: “sempre que a citação se mostre efetuada em pessoa diversa do citando, em consequência do disposto no n.º 2 do artigo 236.º e na alínea b) do n.º 2 do artigo anterior, ou haja consistido na afixação da nota de citação nos termos do n.º 4 do artigo anterior, sendo ainda enviada, pelo agente de execução ou pela secretaria, no prazo de dois dias úteis, carta registada ao citando, comunicando-lhe:
a) A data e o modo por que o ato se considera realizado;
b) O prazo para o oferecimento da defesa e as cominações aplicáveis à falta desta;
c) O destino dado ao duplicado; e
d) A identidade da pessoa em quem a citação foi realizada”.[13]
Resulta, assim, do exposto:
- ser equiparada à citação pessoal a efetuada em pessoa diversa do citando, encarregada de lhe transmitir o conteúdo do ato;
- que, em tal situação presume-se, salvo prova em contrário, ter tido o citando oportuno conhecimento do conteúdo da mesma;
- que no caso de citação de pessoa singular, através de carta registada com aviso de receção, esta pode ser entregue a qualquer pessoa (terceiro) que se encontre na residência ou local de trabalho do citando, desde que declare encontrar-se em condições de lha entregar prontamente;
- nesta situação, a citação considera-se efetuada na própria pessoa do citando, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta de citação foi oportunamente entregue àquele.
A citação por via postal concretiza-se “por carta registada com aviso de receção, enviada para a residência ou local de trabalho da pessoa singular”, sendo a entrega da carta feita, mediante assinatura do aviso de receção, ao réu, se este for encontrado, mas, se não for, pode sê-lo a outra pessoa que se encontre na sua residência ou local de trabalho e declare encontrar-se em condições de a entregar oportunamente ao réu (art. 228.º-2); neste caso, o carteiro, após identificação dessa pessoa (art. 228.º-3), adverte-a do dever de pronta entrega da carta (art. 228.º-4), e é ainda enviada ao réu segunda carta registada, sem aviso de receção, com a indicação do modo por que foi citado (art. 233)”
Deste modo, a citação quase-pessoal, enunciada no nº. 4 do artº. 233.º, é aquela que é “efectuada em pessoa diversa do citando ou seu representante ou mediante afixação duma nota de citação no local mais adequado”, sendo que em tais situações “pode o citando vir a provar que não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável (art. 188.º, nºs. 1-e e 2”.[14]
Prevê e admite, assim, a lei que, em certos casos, a carta seja entregue a qualquer pessoa que se encontre na residência ou no local de trabalho do citando e que declare encontrar-se em condições de a entregar prontamente ao citando, devendo ser advertida expressamente nesse sentido (art. 228.º 1 in fine, 2 e 4). A este propósito, é de notar que o nº. 4 do art. 225.º equipara à citação pessoal a citação feita em pessoa diversa do citando, encarregada de lhe transmitir o conteúdo do ato, com a particularidade de a lei presumir que o citando teve oportuno conhecimento da citação.
Pelo que, conforme referenciado no transcrito nº. 1, do artº. 230.º, “a citação feita nos termos do art. 228º considera-se feita no dia em que se mostre assinado o aviso de receção e tem-se por efetuada na própria pessoa do citando, ainda que o aviso de receção tenha sido assinado por terceiro, havendo a presunção de que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário, sem prejuízo de demonstração em contrário”.
Estabelece, portanto, a lei uma presunção juris tantum, a presunção de que a carta de citação foi oportunamente entregue ao destinatário e de que este dela teve oportuno conhecimento. É este um facto que a lei tem por apurado; e que só vai ceder na hipótese da prova do contrário por banda do interessado (artigos 344.º, nº 1, 349.º e 350.º, nº 2, do Código Civil); quer dizer, pelo convencimento jurisdicional de que, pese embora toda a regularidade formal do ato, mesmo assim, nem a carta foi oportunamente entregue ao citando, ou então este dela não teve efetivo e oportuno conhecimento; em qualquer dos casos, naturalmente, circunstâncias ficadas a dever a facto que lhe não é imputável.
Pelo que, só quando firmada a convicção bastante daquele facto negativo (a falta de entrega ou de conhecimento, sem culpa); portanto, só na medida em que ilidida a apontada presunção; é que se considera verificado o vício da falta de citação, precedentemente referido, nos termos do artigo 195.º, nº 1, alínea e); por só então se demonstrar que o destinatário da citação dela não chegou a ter conhecimento por facto que lhe não é censurável.
Sem esse convencimento consistente, na própria dúvida ou incerteza acerca do facto, a lei faz operar a presunção; e, por conseguinte, considera a citação postal, efetuada em pessoa diversa, equiparada à citação pessoal, como feita e efetuada na própria pessoa do citando.
Todavia, para que citação exista, nos termos legalmente equacionados, urge atentar a que o funcionamento das presunções, que subjazem às disposições dos artigos 233.º, nº 4, 236.º, nº 2, e 238.º, nº 1, só é passível de se poder compreender e aceitar, no contexto final e funcional do (relevante) ato de citação, se a pessoa (o terceiro) recetora da carta, que seja corretamente dirigida para a residência ou para o local de trabalho do citando, numa destas efetivamente se encontrar; pois só então é passível de se vislumbrar a estreita proximidade ao citando que permita intuir e aceitar como razoável que, com toda a probabilidade, aquele entregará real e atempadamente a carta de citação a este; e então o ato, mesmo sem garantias absolutas, mas ao menos altamente verosímeis, cumprirá a sua concernente função.
São, portanto, exigências de uma certa segurança que aqui presidem; diríamos que, neste âmbito, a dúvida que importa superar é mais qualificada que a comum dúvida razoável; convém que o patamar de convencimento atinja um nível algo superior àquele que mais correntemente se recorre na abordagem judiciária. As ilações de natureza substantiva que a carência de uma citação judicial são passíveis de acarretar na esfera jurídica da parte, justificam este nível de exigência. E, por isto, será algo inequívoco que só em confirmação efetiva de ser aquela a residência ou o local de trabalho do citando, é que se permite viabilizar uma citação quase-pessoal.
Deste modo, a especificidade da citação efetuada em pessoa diversa, nos quadros do nº 2, do artigo 236.º (presentemente, artº. 228.º), apenas se viabiliza se esta se encontrar realmente na residência ou local de trabalho do seu destinatário; o que significa que, sem excluir outros lugares, na hipótese da citação de pessoa singular, apenas se for o próprio destinatário que aí se encontre, o ato será correto e ajustado; por exemplo, no caso da via postal, na particular hipótese de o aviso de receção ser assinado pelo próprio citando; mas não já quando a carta é rececionada por um terceiro, que não o seu próprio destinatário. Em suma, quando assim não seja, quer dizer, se o terceiro que recebe a carta de citação se não encontra num daqueles lugares, os únicos que a lei refere, já esta não tira a ilação da sua verosímil entrega, e concernente recebimento, ao efetivo destinatário; a presunção não é então sustentada.
Donde decorre que, a entrega da carta para citação, pelo distribuidor do serviço postal à pessoa diversa citando, e as legais advertências, dirigidas a esse terceiro, fazem operar a presunção ilidível estabelecida nos artigos 233.º, nº 4, e 238.º, nº 1; mas apenas desde que se cumpram todos os pressupostos formais dessa entrega, designadamente, a sua feitura no lugar próprio, apontado na lei.
Pelo que, só nesse pressuposto é que o citando carregará o ónus da sua ilisão; isto é, competindo-lhe convencer acerca do desconhecimento do ato; como, ainda, ademais, e concludentemente, que o facto gerador do desconhecimento lhe não é imputável [artigo 195.º, nº 1, alínea e), final]. É (apenas) nessa hipótese que onera o vínculo probatório não só do facto contrário ao presumido, mas ainda e também da circunstância de inimputabilidade na verificação desse mesmo facto. E de tal modo que, na dúvida sobre (in)existência de um juízo de censura, a esse nível, há-de ser sobre o mesmo citando que incidirão as desvantajosas consequências (artigo 516.º do CPC); que o mesmo é dizer, subsistirá a presunção legal da citação. Mas isso tudo por haver operado a presunção.
Donde decorre que, não operando tal presunção, porque, por exemplo, a carta foi recebida por pessoa diversa, mas noutro lugar que não a residência ou lugar de trabalho do citando, nenhum ónus carrega ao citando. A formalização do ato foi desviante; e tanto basta à sua ineficácia. Ou seja, a prática do ato foi inquinada pela preterição de formalidade prescrita na lei; e esse facto permite desonerá-lo de qualquer ónus probatório, bem como isentá-lo de qualquer juízo de censura.
Aqui chegados resulta provado que: “Nesses autos[15], a Exequente figurou como Autora e o Executado como Réu, tendo o Juízo Local de Matosinhos remetido a carta de citação dirigida ao então réu por correio registado com aviso de receção, endereçada para a Rua ..., ... Matosinhos, a qual foi recebida em 20/03/2009 por BB, conforme aviso de receção junto aos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido”.
Ora, nos embargos de executado o apelante alega que:
“- O Executado/Embargante é cidadão brasileiro e viveu em Portugal entre 1991 e 2002;
- Ao abrigo da Convenção Luso-Brasileira de 7 de setembro de 1971, o Executado /Embargante possuía bilhete de identidade emitido pela República Portuguesa e aqui vivia e trabalhava;
-O Executado/Embargante viveu, teve e tem como residência/morada oficial em Portugal a Rua ..., nº ...–R/C direito–... em ... Amora, imóvel que comprou com recurso a crédito bancário, em 1997, e que ainda está a pagar;
-Em 2002, o Executado/Embargante foi tentar a sua sorte no estrangeiro e radicou-se nos Estados Unidos da América, onde entrou em 9 agosto de 2002;
- Entre 09/08/2002 e Março de 2020, o Executado/Embargante não veio, não entrou e não esteve em Portugal;
- A carta de citação para a ação declarativa de condenação foi remetida em nome do ora Executado/Embargante para a Rua ... em ...;
- No entanto, o ora Executado/Embargante nunca residiu na Rua ... em ... (cfr. artigos 5º a 11º da petição de embargos).
Ora, a provar-se a referida factualidade torna-se evidente, como acima se assinalou, a formalização do ato foi desviante, ou seja, a prática do ato foi inquinada pela preterição de formalidade prescrita na lei, urgindo, assim concluir pelo total comprometimento da validade do ato operado, traduzindo o vício em equação efetiva falta de citação, conducente à anulação, de todo o processado posterior à petição inicial da ação declarativa.
*
Refere-se na decisão recorrida que a citação se tem por existente e sem qualquer nulidade tanto mais que foi endereçada para a morada indicada pelo embargante no contrato em crise na ação declarativa.
Acontece que, o contrato em crise na ação declarativa mostra-se assinado em Viana do Castelo em 03/09/2007, data em que, conforme resulta do alegado pelo apelante o mesmo encontrava-se nos Estados Unidos da América e onde já vivia com carácter de permanência desde 2002, não tendo voltado a entrar em Portugal até 2020.
Validou igualmente o tribunal recorrido o ato da citação na ação declarativa, ancorando-se, na existência da procuração a que se refere o ponto 4. dos factos provados a favor de BB.[16]
Todavia, a existência e eventual relevância de uma procuração é, tal como acontece com as presunções, questão posterior à verificação da tramitação acima enunciada.
Por outro lado, a existência de uma procuração no caso de citação via postal é totalmente irrelevante, já que, qualquer pessoa pode receber citações de outra, possua ou não uma procuração outorgada pelo citando, desde que a citação se faça nos termos dos já citados artigos 236.º do CPC1961 e 228.º do NCPC.
Acresce que, os poderes de representação “perante a justiça portuguesa em geral” (conforme referido na procuração e seguido na sentença) não contemplam o poder de receber citações.
Efetivamente, atendendo à importância da citação, enquanto pilar do direito de defesa constitucionalmente consagrado, a concessão de poderes para alguém receber citações de outrem não pode deixar de ser expressa, não se bastando com uma cláusula genérica como a supratranscrita.
Para além disso, a procuração em causa não foi usada nem no ato de citação nem em qualquer outro momento da ação judicial, sendo certo que resulta do seu próprio texto que os poderes aí conferidos seriam exercidos pelo procurador “onde com este [particular instrumento de Procuração] se apresentar”.
Por último e mesmo que assim não fosse, a procuração constitui um mero ato de atribuição de poderes representativos, não ficando o procurador obrigado à prática dos atos, apenas lhe sendo permitido praticá-los. (artigo 262.º, nº 1 CCivil).
*
Isto dito, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 595.º do CPCivil, o despacho saneador destina-se a “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória”.
Tal acontecerá (i) quando toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documentos, (ii) quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, e (iii) quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental.
Além disso, entende-se que o conhecimento do mérito da causa, total ou parcialmente, só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não tendo em vista apenas a partilhada pelo juiz da causa.
Assim, a exemplo do que sucedia no anterior artigo 511.º do CPCivil, o juiz, ao identificar o objeto do litígio e ao fixar os temas da prova (art. 596.º do CPCivil), deve (continuar a) selecionar para a matéria de facto (para os temas da prova), aquela que seja relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito.
Nesta conformidade, o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objeto da ação. De maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final.
Na verdade, “(…) quando o juiz coloca a si próprio a questão de saber se tem, efetivamente, condições para conhecer do mérito da causa, no despacho saneador, o mais frequente é ser duvidoso o sentido da resposta. Quer dizer, poucos serão os processos em que, na fase intermédia, o juiz pode, claramente, concluir que todos os factos alegados estão provados ou não provados… Por outro lado, esta dificuldade é agravada pela perspetiva de a questão de direito poder ter mais do que uma solução, implicando que o relevo dos referidos factos (ainda que controvertidos) varie em função desta ou daquela solução jurídica (…)”.[17]
Assim, por uma questão de cautela, e para esse efeito, o juiz deverá usar um critério objetivo, isto é, tomando como referência indicadores que não se cinjam à sua própria convicção acerca da solução jurídica do problema.[18]
Como afiança Gabriel Catarino[19] “toda a decisão judicial deflui ou é gerada numa causa que tem na sua origem uma situação factual a que, conceptualmente, corresponderá uma hipótese suposta numa norma”.
Nesta equação, a sentença comporta um silogismo em que a premissa maior é a lei, a premissa menor corresponde aos factos apurados no caso concreto e a conclusão é a decisão.
Num silogismo, as premissas são os juízos que precedem a conclusão e dos quais ela decorre como consequente necessário. No silogismo judiciário as premissas–ou juízos–são os fundamentos e a conclusão é a decisão propriamente dita, devendo esta inferir-se daqueles como seu corolário lógico.
Aquilo que está em causa aquando da elaboração da sentença é convocar os factos pertinentes à justa decisão do litígio e não ficcionar a existência de um quadro factual não demonstrado. Dito isto, cabe ao juiz indicar, interpretar e aplicar os factos, os quais constituem o antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.
O princípio do inquisitório adquire plena eficácia na fase da instrução do processo, constituindo um poder-dever que se impõe ao juiz com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio.[20]
Na sua atual configuração, a atividade de instrução não se limita aos factos alegados pelas partes, podendo dela se extraírem factos instrumentais, segundo o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil e ainda factos complementares e concretizadores daqueles que hajam sido alegados pelas partes.
Dentro dos limites do objeto da causa, a instrução da causa não assim está limitada aos factos alegados pelas partes e o julgador deve considerar os factos instrumentais que surjam da discussão contraditória.
Movendo-se a parte requerente neste âmbito, a produção dos meios de prova não só pode, como deve incidir não apenas sobre os factos essenciais que, direta e nuclearmente se reportem ao objeto do processo, entendido este tanto na perspetiva da ação como na da defesa, mas também sobre outros que, embora mediata ou indiretamente relacionados, são necessários ou instrumentais para a prova daqueles primeiros e para o apuramento da verdade material.
Diante do exposto, torna-se evidente que foi prematura a decisão do mérito dos embargos no despacho saneador.

Face ao exposto e tornando-se indispensável proceder a ampliação da base factual, outra solução não se perfila do que não anular a decisão recorrida a fim de o processo ser retomado a partir do momento da delimitação do objeto do litígio, enunciando-se os temas de prova, e procedendo-se às demais diligências a que alude o artigo 591.º do CPCivil, com vista à subsequente realização de audiência de julgamento, com produção de prova que ao caso couber (cfr. artigo 662.º, nº 2 al. c) do CPCivil).
Subsequentemente deverá o tribunal recorrido face ao supra decidido apreciar de novo o pedido da suspensão da execução formulado na petição de embargos pelo apelante.
*
Diante do exposto e, concretamente, na determinação da reapreciação da suspensão da execução prejudicada fica a apreciação da questão da oposição à penhora.
*
IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta parcialmente procedente e, consequentemente, anula-se a decisão recorrida a fim de o processo ser retomado a partir do momento da delimitação do objeto do litígio, enunciando-se os temas de prova, e procedendo-se às demais diligências a que alude o artigo 591.º do CPCivil, com vista à subsequente realização de audiência de julgamento, com produção de prova que ao caso couber (cfr. artigo 662.º, nº 2 al. c) do CPCivil), devendo igualmente, nesta sequência, ser apreciado de novo o pedido da suspensão da execução formulado na petição de embargos pelo apelante.
*
Custas a fixar a final pela parte vencida e na proporção em que o for (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
*
Porto, 25 de setembro de 2023
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Teresa Fonseca
______________
[1] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reações perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reações que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[2] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[3] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Ac. Rel. Porto de 19 de setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt
[6] No que diz respeito aos factos conclusivos cumpre observar que na elaboração do acórdão deve observar-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º CPCivil aplicáveis ex vi artigo 663.º, nº 2 do mesmo diploma legal.
[7] José Lebre de Freitas e A. Montalvão Machado, Rui pinto Código de Processo Civil–Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, pág. 606.
[8] Antunes Varela, J. M. Bezerra, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Lda., 1985, pag. 648.
[9] Redação decorrente das alterações introduzidas pelo DL n.º 52/2011, de 13/04, que determinaram a 41ª versão de tal diploma.
[10] Com correspondência no vigente artº. 225.º.
[11] Com correspondência no vigente artº. 228º.
[12] Correspondente ao presente artº. 230º, n.º 1.
[13] Com correspondência no atual artº. 233º.
[14] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª Edição, Almedina, pág. 444 e 445.
[15] Ação declarativa que correu termos no Juízo local de Matosinhos (cfr. ponto 1. da fundamentação factual).
[16] Pessoa que assinou o aviso de receção para a morada em causa.
[17] Cfr. Paulo Pimenta, in “Processo civil declarativo”, págs. 256/7.
[18] Cfr. Paulo Pimenta, in “Processo civil declarativo”, págs. 257; cfr. Lebre de Freitas, in “A Acão declarativa comum à luz do CPC de 2013”, pág. 186.
[19] In Gabriel Catarino, Decisões Judiciais/Sentença. Aspetos da sua formação, A Reforma do Processo Civil, Revista do Ministério Público, Cadernos II, 2012, pág. 104.
[20] Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª edição, Coimbra, pág. 208.