Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
544/17.5GBOAZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: SIGILO PROFISSIONAL
MÉDICO
REQUISITOS
Nº do Documento: RP20181010544/17.5GBOAZ-A.P1
Data do Acordão: 10/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NÃO DISPENSADO O SIGILO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 772, FLS 199-202)
Área Temática: .
Sumário: I - O segredo profissional define-se como a proibição de revelar factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou que foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional.
II - O dever de segredo profissional não é um dever absoluto, isto é, não prevalece sempre sobre qualquer outro dever que com ele entre em conflito.
III - Cabe ao Tribunal Superior decidir da dispensa do dever de sigilo invocado pelo Médico Psiquiatra da Assistente em conformidade com o princípio da prevalência do interesse preponderante.
IV - Na ponderação a realizar para esse fim, importa considerar, como ponto de partida, o interesse na protecção da reserva da vida privada, no caso da Assistente, a reclamar que o sigilo médico só ceda perante interesse superior em sentido contrário, que justifique tal quebra.
V - O artigo 135°, n.° 3, do CPP, manda ter em consideração, na referida ponderação, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 544/17.5GBOAZ-A.P1
Comarca de Aveiro.
Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis.

Acordam, em Conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I.-Relatório.
Nos autos de Processo Comum singular n.º 544/17.5GBOAZ, o arguido B... suscitou a intervenção deste Tribunal da Relação do Porto para que decrete a quebra do sigilo médico, com vista ao arguido poder exercer o direito de defesa e garantir-se a descoberta da verdade material, nos termos do disposto no art. 135º, n.ºs 2 e 3 do CPP.
Este requerimento de pedido de quebra de sigilo médico vem no seguimento do seu arrolamento como testemunha do médico C..., médico psiquiatra da Assistente; e do referido médico, conforme fls. 2 dos presentes autos, ter vindo ao processo pedir escusa de prestar declarações ao abrigo do disposto nos arts. 70º a 73º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos.
Foi pedido à Ordem dos Médicos Parecer sobre a escusa de prestar depoimento, que foi junto aos autos e do qual se respiga:
«O direito do paciente à confidência, isto é à preservação sigilosa dos factos relacionados com o seu tratamento, constitui um dos pilares de sustentação da profissão médica e é, desde logo, assegurado pela Constituição da República Portuguesa (CRP) - por via da tutela do direito fundamental à reserva da intimidade da ida privada (artigo 26.°, n° 1 in tine, e n° 2 da CRP) e de forma mediata pelo princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.0 da CRP), enquanto segredo que protege informações íntimas cuja revelação é susceptivel de afectar a integridade da dignidade da pessoa [Como bem referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada (2007) - Vol. I, Coimbra Editora, pág. 467-468, o direito, fundamental à reserva da intimidade da vida privada desdobra-se em dois direitos distintos: a) no direito de impedir que estranhos acedam às informações relativas à vida privada e familiar e b) no direito não divulgação dessas informações.]
No plano da legislação ordinária é alvo de protecção, em ultima ratio, do Direito Penal (artigo 195.º do Código Penal), mas também da Lei de Bases da Saúde (alínea b) do nº 1 da Base XIV da LBS), da Lei de Informação da Saúde (artigos 3.º e 7.º da Lei 12/2005, de 26.10), da Lei de Protecção de Dados Pessoais (artigo 7.º da Lei 67/98, de 26.10 -LPDP) e da Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina [Aprovada para ratificação da Assembleia da República, em 19 de Outubro e ratificada pelo decreto do Presidente da República n.º 1/2001, de 3 de Janeiro.] (artigo 10.º da CDHB), entre outros.
O sigilo médico representa, pois, um importantíssimo direito do doente e uma obrigação ética e deontológica do médico (vide artigo 139.º do Estatuto da Ordem dos Médicos (EOM) na versão aprovada pela Lei 117/2015, de 31 de Agosto e os artigos 29.º a 38.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos (CDOM), aprovado pelo Regulamento 707/2016, publicado no DR, 2 série, de 21 de Julho de 2016) consultáveis in https://ordemdosmedico&pt/estatutos-e-regulamentos/.
O segredo médico é, pois, um mandamento privilegiado dos códigos éticos e deontológicos dos médicos constituindo um referente irrenunciável da auto-representação dos médicos em todo o mundo.
(…)
In casu, o médico psiquiatra tem o dever irrenunciável de proteger as informações pessoalíssimas correlacionadas com o atendimento, ou seja os dados veiculados pela doente sobre aquilo que faz parte da esfera mais frágil e vulnerável da sua pessoalidade. Embora a densidade da protecção dos direitos de reserva da intimidade seja vertical a todas as especialidades médicas há algumas em que a intensidade da protecção releva sobremaneira e uma delas é, sem dúvida, a psiquiatria já que a realidade clínica é de uma sensibilidade extrema.
(…)
Em conclusão:
«- Numa perspectiva estritamente deontolágica, os valores e interesses ligados à manutenção do sigilo profissional tendo em consideração o acima expendido, sobrelevam àqueles que se pretendem fazer valer em sede de processo penal;
- A quebra do sigilo médico por via da revelação de dados relacionados com a saúde mental de uma determinada doente, não é deontologicamente admissível, por desproporcionada e por poder afectar irremediavelmente e de forma substancial a relação de confiança e confidencialidade que tem de existir entre o psiquiatra e a sua doente;
Atento o exposto, a Ordem dos Médicos entende mostrar-se justificada, face às normas e princípios deontológicos, a invocação de segredo médico por parte do Dr. C... e a consequente recusa em depor na qualidade de testemunha ou fornecer dados do processo clínico da paciente D....»
A assistente veio aos autos dizer que não dá o seu consentimento à revelação de quaisquer dados clínicos ou sobre a sua saúde.
A Mma. Juíza no seu despacho de fls. 38 e 39, embora não o diga expressamente, tem por legítima a escusa do médico psiquiatra da assistente, pois invoca a relevância do segredo profissional no âmbito do sistema jurídico vigente, enfatizando inclusivamente a sua tutela penal, mediante a previsão do tipo legal de Crime de Violação de Segredo p. e p. pelo art. 195º do C.P.
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Suscitada a intervenção deste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido da justificação da escusa do depoimento pelo médico arrolado como testemunha, sem quebra do respectivo segredo profissional.
Foi cumprido o contraditório com resposta no sentido das anteriores posições.
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Colhidos os vistos, teve lugar a conferência, cumpre decidir:
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II – Fundamentação
A única questão a tratar é a de saber se no caso dos autos se deve quebrar o segredo profissional respeitante ao médico psiquiatra da assistente.
Vejamos.
O artigo 135.º do CPP estabelece, na parte que ao caso interessa, que:
- Os médicos podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos pelo sigilo profissional [n.º 1];
- Se a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento [n.º 2];
- O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento [n.º 3];
- Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável [n.º 4].
O n.º1, do artigo 135º do CPP enumera nominalmente ou por recurso a uma cláusula geral, as pessoas que podem escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo segredo profissional imposto ou permitido por lei, no caso o Médico Psiquiatra da Assistente.
Por sua vez, o n.º 3 do citado artigo estabelece uma fase do incidente que surge quando a autoridade judiciária, oficiosamente ou a requerimento, por não poder fazer uso do expediente estabelecido no n.º2 do artigo, pretende que, por a escusa ser legítima e dado o interesse da investigação [ou o interesse invocado], se quebre o segredo profissional, caso em que a decisão sobre o rompimento do segredo é da competência do tribunal superior àquele em que se suscita o incidente.
A legitimidade da escusa resulta necessariamente da circunstância de o facto estar abrangido pelo segredo.
Com efeito, configurando-se a escusa como legítima, a obtenção de informações escritas, imagens ou depoimentos já não pode ser ordenada sem a ponderação do valor relativo dos interesses em confronto, a ponderar em incidente específico: os interesses protegidos pelo segredo, por um lado, os interesses no sucesso da investigação criminal, por outro.
É no que se traduz a aferição do interesse preponderante ou prevalecente na decisão do incidente de quebra do segredo profissional, revelado no n.º3 do artigo 135º, pela expressão: “(...) sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante…”
Por sua vez, o juízo do interesse preponderante há de alcançar-se “nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos” – n.º 3 do citado artigo 135.º.
Com efeito, «a utilização pelo legislador do conceito “imprescindibilidade do depoimento”, tem em vista inculcar uma mais exigente ponderação, no plano concreto, dos juízos de necessidade, proporcionalidade, adequação, ou idoneidade do meio probatório em causa, como também uma utilização subsidiária da sua utilização - quando houver outro que conduza ao mesmo resultado, deve ser esse o preferencialmente utilizado» – vide neste sentido o Ac. do TRL de 15.07.2014, Relator Luís Gominho. Utilizando-se no mesmo acórdão o conceito de "absoluta necessidade".
O segredo profissional define-se como a proibição de revelar, factos, ou acontecimentos, de que se teve conhecimento ou que foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional.
Por outro lado, decorre do já acima referido que o dever de segredo profissional não é um dever absoluto, isto é, não prevalece sempre sobre qualquer outro dever que com ele entre em conflito.
Impõe-se ainda atentar que o Parecer do Conselho Distrital da O. A., não obstante de solicitação obrigatória - n.º 4, do art. 135.º - não é vinculativo, atento o disposto no art. 202.º, n.ºs 1 e 2 da C.R.P. – vide também o Ac. STJ de 21.04.2005, Relator Cons. Pereira Madeira, acessível em www.dgsi.pt..
Cabe, portanto a este Tribunal decidir da dispensa do dever de sigilo invocado pelo Médico Psiquiatra da Assistente em conformidade com o princípio da prevalência do interesse preponderante.
Na ponderação a realizar para esse fim, importa considerar, como ponto de partida, o interesse na protecção da reserva da vida privada, no caso da Assistente, a reclamar que o sigilo médico só ceda perante interesse superior em sentido contrário, que justifique tal quebra.
O artigo 135.º, n.º 3, do CPP, manda ter em consideração, na referida ponderação, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.
Neste pressuposto, importa considerar, em primeiro lugar, que o facto que o arguido pretende provar é: “a origem da perturbação da ofendida”; “quem é que afinal praticou os actos de violência sobre esta (ofendida): o Arguido ou qualquer outra pessoa”- artigos 7º e 8º do Seu requerimento de Incidente de Quebra de Sigilo; ou como diz no ponto 16º “…se torna imperioso a inquirição do médico que acompanhou a Ofendida em consultas de psiquiatria, no sentido de vir explicar ao Tribunal se, em algum momento, a sua paciente lhe transmitiu informações sobre acontecimentos traumáticos que se reportam à sua infância e, por isso, não imputáveis ao Arguido, ou se por outro lado, terá a Ofendida revelado que o Arguido teria praticado tais atos de violência contra ela, o que não se concede
A necessidade veiculada pelo requente do incidente reporta-se a um documento junto aos autos de um episódio de urgência, que o requerente do incidente apela de internamento [o que do documento não decorre dado que nele, a data de admissão e da alta foram no mesmo dia com intervalo de cerca de 4 horas].
Ora, parece-nos razoável considerar ante os factos alegados na acusação e a prova apresentada que saber “a origem da perturbação da ofendida”, por reporte ao referido documento [onde se fala em Síndrome depressivo crónico…; foi hoje avaliada pela Médica Assistente por quadro de provável síndrome maníaco-depressivo – períodos de depressão e períodos de maior euforia e compras compulsivas/alegria extrema. (…)] não tem qualquer relevância para o caso; assim como não tem qualquer relevância saber se a assistente transmitiu ao médico psiquiatra indicado como testemunha “informações sobre acontecimentos traumáticos que se reportam à sua infância”.
Sendo que o arguido ao referir “o que não se concede” na parte final do ponto 16 do requerimento onde suscita o incidente, demonstra não ter qualquer interesse, como é manifesto, em saber se terá “a Ofendida revelado que o Arguido teria praticado tais atos de violência contra ela”.
Assim, atento o número de testemunhas indicado quer pela acusação quer pelo arguido na sua contestação, e atendendo ainda aos relatórios periciais de avaliação do dano corporal de fls. 61 a 63 e de fls. 21 a 23 do apenso, entendemos que a prova existente e aquela que poderá ainda sobrevir, como seja a audição do perito/a ou peritos/as a propósito são suficientes para esclarecer cabalmente a questão em causa nos autos.
Aliás, uma qualquer doença mental da Assistente não estará certamente na origem dos comportamentos imputados ao arguido, e o julgador na 1ª instância guiado pela defesa do arguido terá oportunidade de destrinçar uma realidade da outra, a verificar-se a existência pretérita de doença da Assistente.
Assim, entendemos que o depoimento do médico psiquiatra, pretendido pelo arguido, não se mostra imprescindível nem para a descoberta da verdade material, nem para a defesa do arguido atento o alegado no seu requerimento do incidente, na sua contestação ou mesmo na acusação, pois se divisa desde logo meio de prova alternativo, como sejam a audição do perito/a/os/as, sobre o observado na personalidade da assistente.
Pelo exposto, tem de concluir-se que o interesse na protecção da reserva da vida privada da Assistente, no caso, é mais importante que o interesse invocado pelo arguido, e que contende com a investigação do caso, atenta a prova existente no caso concreto e aquela que a já produzida potencia, como referimos.
Logo, justifica-se a recusa de depoimento pelo Médico Psiquiatra da Assistente e não se justifica a quebra do sigilo profissional deste médico, pelo que improcede o incidente.
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III – Decisão.

Acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o presente incidente, sem quebra do sigilo profissional do médico psiquiatra da Assistente.
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Sem tributação.
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Notifique.
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Processado em computador e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do CP.P.

Porto, 10 de Outubro de 2018
Maria Dolores da Silva e Sousa
Manuel Soares